Leiam um artigo quase-bom de Pablo Ortellado, hoje (27/11/2021) em O Globo.
Por que quase-bom?
Quase-bom porque não diz claramente que Lula não condena o autoritarismo de esquerda porque, no fundo e no raso, concorda com o autoritarismo de esquerda.
Leiam o artigo com meus comentários (interpolados em azul, abaixo). No final, uma conclusão.
Por que Lula não condena o autoritarismo de esquerda?
Pablo Ortellado, O Globo (27/11/2021)
No final de sua viagem à Europa, Lula deu entrevista ao jornal espanhol El País e foi questionado sobre o governo de Daniel Ortega na Nicarágua e sobre os protestos em Cuba. Suas respostas talvez evasivas, talvez condescendentes com o autoritarismo de esquerda provocaram amplo debate. Afinal de contas, por que Lula e o PT não conseguem condenar com clareza o autoritarismo na Nicarágua, na Venezuela e em Cuba?
Cuba é uma ditadura de partido único, sem liberdade de reunião e sem liberdade de organização sindical. O governo da Venezuela subordinou o Legislativo e o Judiciário, acabando com a separação entre os Poderes, redesenhou distritos eleitorais para dificultar a eleição de opositores, perseguiu veículos de imprensa, torturou e assassinou dissidentes. O governo nicaraguense prendeu os candidatos da oposição para poder ganhar as eleições, prendeu arbitrariamente centenas de outros dissidentes e suspendeu a operação de ONGs. Todos esses abusos antidemocráticos estão amplamente documentados nos relatórios das organizações de direitos humanos.
Nos 13 anos em que esteve no poder, o PT não deu muitos sinais de que queria esse tipo de autoritarismo no Brasil. Os críticos do petismo podem dizer que foi apenas falta de oportunidade, mas, agora que conhecemos o governo Bolsonaro, sabemos o tamanho do estrago que um governo realmente orientado ao autoritarismo é capaz de fazer.
Claro que, sendo ambos populistas, o lulopetismo é muito diferente do bolsonarismo. Lula representa uma força populista (ou neopopulista) democrático-eleitoral. Bolsonaro representa uma força populista-autoritária, autocrático-eleitoral. Mas não é porque Bolsonaro fez mais estragos na democracia brasileira do que Lula, que o segundo também não tenha feito algum. Bolsonaro quer transformar nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral (na linha do que fizeram Orbán e Erdogan, e tentaram fazer Trump e os irmãos Kaczyński, e querem fazer Salvini, Le Pen e Farage). O problema do lulopetismo é querer estacionar a democracia no seu “estágio” eleitoral, enfreando o processo de democratização rumo a uma democracia liberal (na linha do que tentaram fazer Evo, Correa, Lugo e Funes). São duas ameaças distintas, mas são duas ameaças. E a ameaça do neopopulismo de esquerda pode ser muito perigosa, como ocorreu na Venezuela de Maduro e na Nicarágua de Ortega – que viraram ditaduras.
O bolsonarismo atacou sem trégua a imprensa, o STF e o Congresso e incitou os militares a promover uma intervenção “constitucional”; além disso, submeteu a um duro controle político a PGR, a Polícia Federal e os órgãos ambientais, destruindo sua autonomia institucional. Perto disso, as críticas dos petistas à imprensa (“Partido da Imprensa Golpista”), a perseguição a Larry Rohter, correspondente do New York Times, e mesmo a tentativa de aprovar a PEC 33, que diminuía o poder do STF, parecem pouco importantes.
Novamente a comparação descabida. O fato de Bolsonaro ter atacado a democracia mais do que o PT não absolve, nem desresponsabiliza, este último. O PT no governo não apenas criticou a imprensa. Tomou medidas concretas para efetivar o chamado “controle social” (na verdade, partidário-governamental) dos meios de comunicação. Basta ver as propostas do tal Franklin Martins, antigo quadro de aparelho do MR8, agora novamente na coordenação da campanha Lula 2022 (confira-se as propostas do Conselho Federal de Jornalismo e da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual).
Se o tipo de governo de esquerda dos petistas é assim tão diferente do que vemos em Cuba, na Venezuela ou na Nicarágua, por que Lula e seu partido não condenam sem meias palavras esses regimes para afastar qualquer tipo de suspeita de que, se tiverem a oportunidade, podem colocar a democracia brasileira em risco?
A primeira explicação é que o petismo abriga setores autoritários que acreditam que a democracia burguesa não é fundamental e pode — ou deve — ser descartada para enfrentar o inimigo imperialista ou de classe. Esse setor não é majoritário, mas tem peso suficiente para influenciar as posições do partido.
Não! A concepção pedestre de democracia de Lula fica clara na entrevista a El País. A má-vontade com a democracia “burguesa” não é de nenhum setor minoritário do partido e sim do seu próprio líder máximo (e único).
A segunda explicação é o entendimento de que é necessária a solidariedade com os governos de esquerda diante dos adversários imperialistas e da direita. Em vez de criticar o governo de Cuba, deve-se enfatizar o embargo econômico dos Estados Unidos; em vez de criticar Maduro, deve-se enfatizar a oposição golpista.
Essa ênfase nos abusos da reação silencia sobre os abusos da esquerda, mas funciona como uma espécie de garantia de que, quando chegar a vez de a esquerda brasileira ser atacada, ela receberá em troca a solidariedade internacional — como efetivamente ocorreu na época do impeachment de Dilma e da prisão de Lula.
A terceira explicação é, de certa forma, ligada à segunda: os petistas entendem que o impeachment de Dilma e a prisão de Lula foram uma reação aos avanços sociais produzidos por seus governos e, por não contarem com suficiente apoio interno, precisaram do apoio internacional.
Nessa leitura para lá de particular, Lula não foi investigado porque houve um esquema de corrupção bilionário entre a Petrobras, as empreiteiras e políticos, e Dilma não sofreu impeachment porque era inepta e não sabia negociar com o Congresso. Lula e Dilma, segundo essa versão, foram perseguidos porque as elites não suportaram ver os pobres com comida no prato e as empregadas domésticas andando de avião. Diante do ataque das elites econômicas, a solidariedade internacional seria imprescindível.
A ambivalência do petismo com respeito aos governos autoritários de esquerda é fruto da combinação desses três fatores. E essa ambivalência não é uma excentricidade brasileira. Nos últimos anos, impactou também as candidaturas de Pablo Iglesias, na Espanha; de Jean-Luc Mélenchon, na França; e, mais recentemente, de Gabriel Boric, no Chile.
Não! O PT não é um partido convertido à democracia liberal. Os seus líderes e dirigentes são marxistas, marxistas-leninistas ou marxistas-gramscistas (acreditam que a história tem um sentido que pode ser conhecido de antemão por quem tem a teoria e o método corretos de interpretação da realidade, que a luta de classes é o motor da história e que a política é uma espécie de continuação da guerra por outros meios, na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). Assim, não assimilaram os pressupostos democráticos básicos. Basta ver a recente nota, depois apagada por motivos tático-eleitorais, elogiando a vitória fraudulenta do bandido sandinista e ditador Daniel Ortega.
Nestes tempos em que a democracia é duramente tensionada, não podemos mais nos dar ao luxo de alimentar qualquer ambivalência. Hoje, mais do que nunca, a defesa da democracia precisa estar em primeiro lugar.
De acordo. Mas para concluir, Ortellado deveria dizer que Lula não condena o autoritarismo de esquerda porque, no fundo e no raso, concorda com o autoritarismo de esquerda. Se não concordasse não teria feito as campanhas eleitorais de Chávez e Maduro (tem vídeo gravado). Se não concordasse não seria tão amiguinho dos ditadores Castro e do ditador Ortega e não teria fundado o Foro de São Paulo em conluio com Fidel. Para ele, ditadura só deve ser condenada se for de direita.
CONCLUSÃO
Ortellado, assim como outros (raros) analistas de esquerda críticos do PT, contribuem para não-esclarecer as reais ameaças representadas pelo neopopulismo de esquerda lulopetista.
Em primeiro lugar, não analisam a corrupção petista com motivos estratégicos de poder (não mostram que, como a vespa parasitoide – a hymenoepimecis argyraphaga –, o PT depositou seus ovos dentro da carcaça podre do sistema político fisiológico e corrupto) (*). A corrupção do PT não é (apenas) a corrupção de Tipo 1, a corrupção costumeira ou ordinária que um ator político pratica para se dar bem na vida, levar vantagem em uma transação, subir na carreira, enriquecer, manter ou reproduzir uma posição de poder individual ou grupal. A corrupção característica do PT é a corrupção de Tipo 2, para financiar um Estado paralelo visando a se delongar nos governos, vencendo eleições sucessivamente e ganhando tempo para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido.
Em segundo lugar, não esclarecem que, conquanto os governos Lula tenham sido democráticos (no sentido eleitoral e não liberal do termo), Lula não é um líder convertido à democracia liberal e sim um democrata eleitoral, populista e majoritarista e, como tal, um i-liberal.
Em terceiro lugar, não mostram que só houve antipetismo porque houve petismo (e que o virus da inimizade política – nós x eles – foi gerado pelo PT com seu hegemonismo e que esse comportamento de disputar tudo e em todo lugar, de querer ser o senhor da razão, de se apresentar com afetada superioridade moral, irritou muita gente e está na raiz do antipetismo).
E, em quarto lugar, não constatam o óbvio: que o PT volta à cena política como o mesmo de sempre, ou seja, não aprendeu nada e não esqueceu nada. Basta ver que a composição da equipe da campanha Lula (segundo Traumann, na Veja), revela zero renovação. A coordenação ficará com a presidenta do PT, Gleisi Hoffmann. Os membros serão: Franklin Martins (aquele do controle da imprensa), Luiz Dulci (o funcionário ideológico da tendência de Lula e Dirceu), José Guimarães (aquele da cueca), Rui Falcão (o velho lugar-tenente de Dirceu) e Paulo Okamoto (o velho valet de chambre de Lula que, espantosamente, conseguiu ficar solto). Só faltaram – mas talvez por enquanto – os tesoureiros dos fundos “não-contabilizados” Delúbio, Ferreira e Vaccari e o CEO José Dirceu.
(*) Os neopopulistas não querem reformar o velho sistema político para torná-lo mais democrático. Antes, querem parasitá-lo, se alimentar dele para crescer no seu interior, como aquela vespa parasitoide (a hymenoepimecis argyraphaga) que deposita seus ovos dentro da aranha (plesiometa argyra) e que, de alguma forma, controla a mente da aranha (ou a reprograma). A aranha passa então a construir teias especialmente preparadas para receber as larvas que nascerão e para mantê-las seguras (até que, quando estão prontas, as larvas devoram a aranha de dentro para fora, saindo do corpo da hospedeira e se aproveitando da casa que ela construiu). Foi isto, precisamente, que o PT fez: depositou seus ovos dentro da carcaça podre do velho sistema político, escondendo sua corrupção com propósitos de poder dentro da corrupção tradicional, endêmica na política. E foi bem sucedido, sobretudo com a ajuda dos moralistas, dos jacobinos e dos bolsonaristas. Ficou parecendo que Lula é a mesma coisa que Cabral, Dirceu é igual a Cunha e Vaccari é uma espécie de Geddel.