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O deficit de interação na democracia dos atenienses

John Morrall (1977), no seu clássico Aristóteles, identifica a influência de um ideal extra-político de harmonia no pensamento democrático dos gregos. “O consenso democrático – escreve ele – apresentado de forma simbólica no dénouement da trilogia Oréstia constituiu, para Ésquilo, a personificação social terrena da harmonia cósmica que povoa seus sonhos”. E mais adiante acrescenta: “Em Sófocles, o universo trágico criado por Ésquilo começa a ceder – um processo paralelo e contemporâneo ao da desintegração da democracia ateniense, na qual o consenso estava sendo substituído pelo governo da maioria”.

A observação é correta, mas não pelos motivos alegados por Morral, que não entendeu a democracia. A limitação daquela primeira invenção da democracia não foi a de não ter conseguido materializar um ideal de harmonia cósmica capaz de se expressar socialmente na forma política do consenso. Consenso para quê? Para construir um paraíso de concordância entre os homens na Terra (que nem mesmo havia entre os deuses no Olimpo)?

Mas a democracia não tem como finalidade consertar a sociedade e pacificar os homens que dissentem por terem interpretações divergentes do bem a ser alcançado a partir de uma fórmula harmonizante dos conflitos. A democracia é, justamente, uma convivência com o conflito e uma forma não guerreira de regulá-lo: mantendo o dissenso, não suprimindo-o.

O fato de o governo democrático ter se tornado oligárquico tem a ver com o participacionismo reinante na Ágora, com as regras adotadas na Ecclesia e, sobretudo, com a necessidade de uma Boulé (o comitê executivo que pautava e dirigia a assembléia). Foi o caráter participativo da democracia ateniense – que gerava artificialmente escassez com o emprego de procedimentos como o da votação – que a limitou. Ou seja, foi deficit de interação.

Examinemos o problema com mais profundidade.

A democracia dos atenienses

A primeira invenção da democracia durou de 509 a 322 a. E. C. A democracia foi uma invenção coletiva, uma espécie de “metabolismo” da rede social (com significativo grau de distribuição) que se formou na Agora, em Atenas. Foi um movimento de desconstituição de autocracia. Mas os historiadores não captaram isso e sim os feitos dos indivíduos: as guerras que travaram, os assassinatos que cometeram ou de que foram vítimas, os golpes que tramaram ou dos quais se defenderam, os cargos de poder que conquistaram ou dos quais foram apeados e as reformas que impulsionaram ou tentaram evitar.

Diz-se que tudo começou com as reformas de Sólon (638-558), sobretudo a instituição da Ecclesia (assembleia) e da Boulé (conselho) por volta de 590. Mas, na verdade, do ponto de vista da democracia como desconstituição de autocracia, tudo começou em consequência da intervenção de Psístrato, que deu um golpe militar e introduziu a tirania em Atenas em 546, governou até 527 e foi substituído por seus filhos Hipias e Hiparco. Hiparco foi assassinado em 514. Hípias ficou no poder até 510 e foi destituído por Clístenes.

Clístenes (565-492) fez uma reforma da constituição (508) e abriu caminho para Efialtes (que fez uma reforma do Areópago). Efialtes foi assassinado em 461 ensejando a ascensão de Péricles, que exerceu seu protagonismo político de 461 a 429. A democracia ateniense floresceu neste período. E o século 5 foi também chamado de século de Péricles.

Em 338 Atenas foi derrotada pela Macedônia e ficou sob o domínio de Filipe e de seu filho Alexandre. Escolhe-se o ano de 509 para marcar o início da democracia porque foi a época do fim da tirania dos psistrátidas. Escolhe-se o ano de 322 para marcar o fim da democracia ateniense porque foi o ano em que a oligarquia foi imposta em Atenas por Antipatro, regente do império de Alexandre. Foi também o ano da morte de Demóstenes (384-322).

É claro que todos esses registros são sofríveis. Escritos sob o influxo de culturas autocráticas milenares, os relatos históricos não podiam mesmo revelar o que estava acontecendo do ponto de vista social.

A democracia foi a mais formidável antecipação de uma era interativa que já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no abismo (ou não mergulhássemos no fluxo da convivência social).

Mas na verdade as pessoas que inventaram a primeira democracia não tinham a menor consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo. Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente, abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava, há milênios, em sociedades de predadores (e de senhores).

Não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um senhor.

O participacionismo na democracia ateniense

Mas nem tudo funcionava perfeitamente na democracia dos atenienses. Havia problemas com a assembleia dos gregos. O primeiro deles é que a Ecclesia era vulnerável ao discurso inverídico. Um orador jactante, por exemplo, podia levá-la a tomar medidas inconsistentes com as possibilidades reais de ação da polis.

Ademais, os próprios oradores – os hoi politeuomenoi – eram um problema quando se perpetuavam, adquirindo a condição de políticos profissionais. A retórica, neste caso, para além da lógica discursiva e de qualquer razão comunicativa, influenciava decisivamente a formação da vontade política coletiva: os que possuíam o “dom” (como se acreditava e, em parte, ainda se acredita) ou os que estavam mais treinados na arte de conduzir assembleias, acabavam tendo um papel desproporcional em relação aos demais. Foi em parte por isso, pode-se presumir, que Péricles conseguiu manter seu protagonismo por tanto tempo. Tudo isso, porém, não pode ser explicado adequadamente pela vontade deliberada de alguns agentes de praticar a demagogia ou de conduzir a assembleia. Pois nada disso poderia acontecer se… não houvesse a assembleia e os seus procedimentos participativos dirigistas.

Como se sabe, a pauta da Ecclesia era feita pela Boulé (um conselho menor, mais facilmente controlável, que acabava tendo grande influência nos resultados da assembleia). O processo era bem parecido com o das assembleias ensaiadas hodiernamente sob o nome de democracia participativa, no qual direções de instituições centralizadas elaboram a ordem do dia dos debates que ocorrerão, estabelecem as regras desse debate, concedem e cassam a palavra, abrem e fecham os trabalhos e privilegiam os participantes alinhados à sua orientação política. Tais procedimentos manipuladores acabam se transformando em estratégias de conquista de hegemonia, de “ganhar” a assembleia, de impedir que outros participantes alinhados a orientações políticas concorrentes adquiram notoriedade ou sejam escolhidos para as direções. Toda assembleia é manipulável porque a participação reflete graus baixos de interação: na participação a interação não é livre o suficiente para evitar o controle de uma oligarquia (ainda que seja uma oligarquia participativa e, no caso, trata-se disso mesmo). Como na Wikipedia, quem participa mais, tem mais chances de conduzir (porque tem poderes ou privilégios regulatórios aumentativos em relação aos demais).

A lógica da escassez

Em geral ambientes sociais são caracterizados por abundância de caminhos (e, consequentemente, de opções) a menos quando há obstrução ou eliminação de caminhos (conexões) introduzidas de modo artificial. De modo artificial, sim, porque a obstrução (ou a eliminação) não emerge da dinâmica própria da rede (distribuída): ela é operada top down por alguma hierarquia que deforma (verticaliza) o campo social. Essa é, aliás, a forma pela qual a hierarquia se reproduz, transformando tudo que toca em ambiente hierárquico ou centralizando a rede. Se não produzimos artificialmente escassez quando nos pomos a regular qualquer conflito, “produzimos” rede (distribuída); do contrário, “produzimos” hierarquia (centralização).

Todo processo delegativo ou participativo gera artificialmente escassez. A designação (nomeação), assim como a votação, a construção administrada de consenso, o rodízio e até mesmo o sorteio, não são procedimentos adequados a ambientes onde há abundância de caminhos. Ou melhor, quando aplicados, tais procedimentos reduzem o número de caminhos e são, portanto, geradores de escassez.

Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se estabelece pode ser pluriárquica. Maiorias que não aderem a uma proposta não poderão evitar a sua realização (ao contrário do que prevê a forma de verificação da formação da vontade política coletiva por meio de processos aritméticos de contagem de votos, que obriga a coletividade a escolher entre uma coisa e outra, entre uma proposta e outra, entre um representante e outro, entre um delegado e outro).

Na pluriarquia (que é apenas um nome para a democracia democratizada em redes distribuídas), o que está em jogo é a funcionalidade do organismo coletivo e não o poder de mandar nos outros (a capacidade de exigir obediência ou de comandar e controlar os semelhantes) a partir da regulação majoritária da inimizade política. Assim, se uma pessoa propõe alguma coisa, aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. Os que não concordarem não devem aderir e podem sempre propor outra coisa; os que concordarem com a nova proposta aderirão a ela e assim por diante.

Tanto os antigos quanto os modernos democratas adotaram modos de regulação de conflitos geradores de escassez. Mas os que questionam a democracia representativa porque querem que ela seja mais participativa, podem introduzir ainda mais escassez do que os adeptos do liberalismo político.

O participacionismo dos contemporâneos é tão vulnerável à manipulação quanto o representacionismo dos modernos e o assembleísmo dos antigos. Quando tudo termina no voto, é tão fácil manipular assembleias quanto manipular eleições para obter decisões favoráveis a uma instância centralizada (e não há como evitar o empobrecimento político pela redução da abundância de caminhos e opções). O que há de comum a todos esses procedimentos é a regulação majoritária da inimizade política. Ou seja, a votação para tomada de decisões e a capacidade de maiorias verificadas aritmeticamente de impedir a realização de propostas minoritárias (ou invalidá-las) – o que é um absurdo.

Na participação em assembleia, por certo, pode haver mais discussão ou debate, mas nem todo debate é democratizante, nem sempre ele é capaz de facilitar a consumação do commons ou a constituição de um sentido público. Quando o debate vira uma guerra entre lados, tendências ou facções, por exemplo, dificilmente o seu resultado contemplará a diversidade dos desejos, dos projetos, das ênfases dos atores políticos arrebanhados (na assembleia). Além disso, o debate, em geral, não é criativo: convoca das pessoas o passado, não o futuro. Então aparece sempre alguém levantando a mão (como já acontecia na Ecclesia) para dizer que concorda ou discorda de alguma opinião proferida por outro (com base em suas convicções pretéritas), mas não para polinizar a ideia do outro ensejando a construção de novas propostas.

Todavia, nem mesmo os demais procedimentos introduzidos já pelos antigos (como o rodízio e o sorteio) ou acrescentados pelos contemporâneos (como a construção administrada de consenso) conseguiram evitar a produção artificial de escassez. O centro da questão é que, em todos eles, obriga-se sempre alguns (via de regra, as minorias) a aceitar o resultado de um processo cujas regras já foram determinadas antes da interação (e são melhor usadas por alguns, a seu favor).

Ademais, em alguns desses procedimentos – como a busca do consenso – exige-se a condução centralizada: há sempre uma oligarquia que administra a construção do consenso, impondo a todos uma metodologia, um conjunto de passos obrigatórios para se alcançar determinado resultado esperado. E o consenso administrado – a não ser quando haja espontânea unanimidade (o que dispensa administração) – é sempre um consenso majoritário (quem não concorda com o consenso produzido deve acatar o resultado obtido pela… maioria!). Ao fim e ao cabo, mesmo quando todos pareçam dedicados à construção do consenso, o ethos é competitivo. Compete-se, quando menos, pela maior habilidade de extrair o consenso, pela capacidade de melhor expressar os desejos da maioria, pelo domínio de uma técnica mais aperfeiçoada de prorrogar determinada liderança (como ocorreu com Péricles, como ocorreu com Lula). Grande parte das pessoas ainda pensa que a isso se reduz o fazer político (politics).

Os modernos resolveram achar que a competição – em si – é uma boa coisa: em parte com razão, pois em autocracias não há competição, prevalecendo a vontade do soberano (ou da oligarquia) e a democracia é mesmo um movimento de desconstituição de autocracia; mas em parte não, pois os modernos se deixaram seduzir pela competição do mercado como modo de autorregulação de um sistema complexo, operando um deslizamento indevido de procedimentos adotados em âmbitos de diferente natureza e confundindo racionalidades distintas. Como os liberais não acreditavam que pudesse existir qualquer coisa como uma sociedade (a rede social) – a qual seria, para eles, no máximo, um epifenômeno – e sim apenas conjuntos de indivíduos, então, pensaram: por que não aplicar também à política um modo de regulação que funciona tão bem quando se trata de coordenar (sem autoritarismo) o entrechoque de uma multiplicidade de interesses de agentes (ofertantes e demandantes) privados de produtos e serviços?

É claro que não é a mesma coisa. O funcionamento do mercado a partir da interação de agentes privados (e existe de fato autorregulação mercantil, a ponto de causar terrível incômodo nos estatistas) não pretende constituir um sentido público, nem quer estabelecer resultados gerais para os que entram (ou não entram) no jogo. Uma sociedade não é uma economia (e, como já se disse, é a economia que tem que ser de mercado, não a sociedade).

O rodízio (para a ocupação de cargos ou para delegação de representações) e o sorteio (para os mesmos fins ou para tomada de decisões sobre a implementação de qualquer proposta) são melhores do que a votação e o consenso pois não admitem manipulação (a não ser em caso de fraude) ou condução por uma instância centralizada (ou oligarquia). De todos os procedimentos introduzidos pelos antigos e pelos modernos, o sorteio é o que melhor respeita a natureza da comunidade política democrática (isológica, isegórica e isonômica). Se o player (molecular) é a própria comunidade política, então é irrelevante (e, a rigor, antidemocrático) decidir quem é o melhor: todos os membros da comunidade política têm, em princípio, o mesmo valor; ou – como iguais que são, como seres igualmente capazes de conceber e proferir uma opinião (doxa) e não de deter ou saber aplicar um conhecimento específico (techné ou episteme) – devem ser (todos) igualmente valorizados (em princípio) para qualquer função coletiva.

De qualquer modo, ambos (rodízio e sorteio) introduzem escassez onde não seria necessário. Quando se remove um sujeito político de determinado lugar ou função para obedecer a regra do rodízio obrigatório ou quando se pretere alguém que queria ocupar um lugar ou desempenhar uma função porque não foi sorteado, estamos reduzindo a abundância. Mais atores no jogo significa mais possibilidades de realização de novas realidades políticas.

Em todo caso, o procedimento padrão na democracia realmente existente na modernidade é a votação: a imposição da vontade da maioria às minorias (a tal ponto que a democracia acabou sendo definida como o regime da maioria quando deveria ser o regime das múltiplas minorias). E a votação estabelece como estado natural a concorrência quando a competição pelo voto (e pela formação da maioria) acaba se tornando o centro do fazer político (inclusive nos modelos de democracia participativa propostos pelos novos teóricos contemporâneos da autocracia, tudo sempre começa e acaba em alguma votação para escolha de direções ou delegações (sendo que os eleitos são, a despeito de qualquer justificativa, representantes – o que, curiosamente, é um processo indireto e não mais-direto como proclamam).

Em vez de regular majoritariamente a inimizade política, procedimentos democratizantes deveriam ensejar a conversão de inimizade em amizade política. Isso não pode ser feito pela disputa baseada na força, nem pela disputa oratória, nem pela disputa pelo voto (que são formas de guerra: quente, fria ou de política praticada como continuação da guerra por outros meios) e sim na conversação amistosa (e toda conversação só se realiza a partir de uma emoção amistosa e pressupõe cooperação). De qualquer modo, somente a livre interação pode constituir (por emergência) um sentido comum à todos os envolvidos.

O deficit de interação da democracia ateniense não deve ser reproduzido

Interação é um gradiente: adesão-participação-interação. Na verdade, tudo é interação, mas quando predominam a adesão ou a participação a livre-interação diminui. Tanto a adesão quanto a participação impõem restrições à interação (obstruindo, condicionando, direcionando ou capturando fluxos).

Autocracias apresentam pouca interatividade em razão dos altos graus de centralização de suas instituições (e procedimentos, entendidos como metabolismos acordes à estrutura ou ao corpo dessas instituições). Democracias são sempre mais interativas pela razão inversa (suas instituições e procedimentos são mais distribuídos). Mas mesmo nas democracias a interatividade varia. A democracia dos atenienses era mais participativa do que a dos modernos. O sistema representativo funciona por adesão, não raro compulsória (por exemplo, quando o voto passa de direito à dever).

Não houve nada como uma evolução na passagem da democracia dos antigos para a democracia dos modernos. Aliás, não houve nem uma passagem. A democracia foi simplesmente reinventada em outro mundo. Reapareceu, sob outra forma, dois milênios depois.

Sim, foram mundos diferentes (em termos sociais). A experiência da democracia grega, ensaiada entre 509 e 322 a. E. C., foi um mundo que se abriu e fechou e só a análise posterior pode encontrar um liame entre aquela experiência e a da sua reinvenção pelos modernos, dois mil anos depois. Não houve continuidade, não houve qualquer evolução; pelo contrário, o que tivemos depois do ensaio fundante da democracia foi retrocesso. Por dois mil anos foi – para todos os efeitos – como se aquele mundo que atingiu seu apogeu no chamado “século de Péricles” não tivesse existido. No entanto… após milênios, eis que surge um modo de regulação de conflitos baseado no mesmo fundamento básico: a liberdade de opinião. Só podemos chamar as duas invenções com o mesmo nome (democracia) porque foram ambas movimentos de desconstituição de autocracia (não importa se representada pelo filho restante de Psístrato ou por Carlos I).

O ambiente social da sociedade-em-rede é favorável à uma nova invenção da democracia. Mas isso não significa que ela ocorrerá de qualquer modo, por força dos graus maiores de distribuição das redes que estão se configurando. Significa apenas que ela pode ocorrer: se for experimentada!

Novas experiências de democracia, nas circunstâncias de uma sociedade em rede, poderão ser mais interativas do que as experiências anteriores. Por isso se diz que a dinâmica de uma nova invenção da democracia será mais interativa do que participativa ou adesiva.

Quanto mais livre for a interação, mais fortuita ela será e menos baseada em coletivos conformados antes da interação ela será (ou seja, com base na exigência de pertencimento a um cluster configurado por razões extra-políticas, que tenha poderes regulatórios aumentativos em relação aos demais; por exemplo, com direitos exclusivos ou mais direitos de decidir do que os que não pertencem ao coletivo). Portanto, uma democracia interativa não poderá ser assembleísta. De uma democracia interativa não poderão participar apenas os que se tornarem partícipes de uma estrutura já erigida e que aceitarem se submeter a um modo de funcionamento pré-estabelecido (ou estabelecido antes da interação).

Novas formas mais democratizadas de democracia não poderão ser uma volta ao caráter participativo da primeira invenção da democracia. Não podemos – e não devemos, se não quisermos retrogradar em termos de interatividade – reeditar as instituições da velha Grécia do século 5, simulando a Ecclesia (assembleia) ateniense, muito menos a Boulé (uma espécie de conselho que pautava a assembleia) ou o sistema de Prutaneis (comissões de administradores ou executivos de governo). Várias propostas de democracia que têm surgido nos últimos vinte anos tentam fazer isso ao mostrar que podemos voltar a uma democracia tão direta quanto a dos gregos com o auxílio das ferramentas digitais que, agora afinal, viabilizariam a participação geral (antes impedida pela falta de instrumentos eficazes para reunir grandes contingentes de pessoas – o que é, note-se, uma falsa razão). A questão não é o número de pessoas a reunir: a questão é que não precisamos re-unir o que já está conectado: como escreveu Frank Herbert (1969) em O Messias de Duna, “não reunir é a derradeira ordenação”. Pois não se trata de voltar ao participacionismo (ou nele estacionar, como se fosse a maior maravilha do mundo) e sim de caminhar para o interativismo.

As experiências ocorridas na segunda metade do século 20, consideradas de radicalização ou democratização da democracia, foram mais participativas do que interativas. Foram – quase todas – experiências assembleístas, baseadas em estruturas e procedimentos mais descentralizados do que distribuídos (e, portanto, hierárquicas). Alguém (os bouleutas modernos) fazia previamente (quer dizer, antes da interação) a pauta das assembleias. Alguém (os oradores conhecidos como “os políticos”, os hoi politeuomenoi modernos) monopolizava a palavra nas reuniões. Formavam-se, em todas elas, oligarquias participativas compostas pelos profissionais de reunião, muitas vezes por “pescadores de aquário” (“fishers in the barrel”): militantes cuja função era recrutar nas assembleias populares novos membros para suas organizações hierárquicas. Os procedimentos adotados nesses ensaios de democracia participativa geravam artificialmente escassez – e, com isso, verticalizavam o campo social limitando o processo de democratização.

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