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O papel dos democratas hoje no Brasil

Nós, os democratas, não temos (e não teremos) uma alternativa de governo (completamente democrática). Democracia não é sobre governo, é sobre controlar o governo. Tomara que possamos inspirar comportamentos de um novo governo que não seja populista. Isso já será muito. Os democratas são e sempre foram minoria: sozinhos, não elegem ninguém. E o seu papel precípuo não é o de virarem cabos eleitorais de um candidato que se diga democrático.

E isso passa pelo impeachment (ou pela campanha do impeachment, melhor dizendo) em 2021 (bem antes, portanto, de outubro de 2022). Não quer dizer que vai haver impeachment (necessariamente) – pois um impeachment pressupõe um alinhamento de astros que depende de vários fatores que não controlamos – e sim que deve haver campanha do impeachment para desvelar e denunciar os ataques de Bolsonaro à democracia e sua responsabilidade pelo alastramento da pandemia.

Mas quer dizer também que não podemos apostar todas as fichas na loteria do calculismo eleitoreiro em 2022 (quer dizer, não se trata de escolher um candidato do “centro democrático” e começar a fazer campanha para ele desde agora, ignorando os conflitos políticos e as ameaças presentes à democracia). Do contrário os democratas não precisariam cumprir o seu papel de agentes fermentadores da formação de uma opinião pública democrática: se transformariam num exército de cabos eleitorais, antecipando campanhas para apresentar seus pontos de vista (sempre no futuro, depois da próxima eleição, nunca hoje).

Candidatos que querem se situar no campo democrático evitam entrar em temas polêmicos para não perder futuros eleitores (por exemplo, não querem falar sobre o impeachment de Bolsonaro). Seguem uma lógica eleitoral que aconselha escorrer por caminhos de menor atrito. Agentes democráticos, entretanto, não podem se comportar assim.

Claro que qualquer candidato do campo democrático (o que significa hoje, na prática, não-populista) precisa apresentar uma proposta de governo com respostas para os problemas que afetam a população (por exemplo, como reduzir a desigualdade, como coibir a corrupção, como ofertar ou promover educação de qualidade para todos, como manter e expandir um sistema público de saúde capaz de tornar a maioria das pessoas menos vulnerável às emergências sanitárias, como resolver o problema da segurança pública sem ser na base da guerra contra o crime, como mudar o padrão de desenvolvimento de sorte que ele se torne mais sustentável e sintonizado com as exigências ambientais et coetera). Essa não é uma pauta propriamente ou exclusivamente democrática, mas deve ser contemplada por candidatos que priorizem a defesa da democracia sob pena desses candidatos não serem eleitos.

No entanto…

Países com regimes autocráticos (ou autoritários) estão reduzindo a desigualdade e aumentando o bem-estar de suas populações (como o Vietnã). Em grande número, já resolveram os problemas da corrupção e de segurança pública (como Singapura). Alguns estão conseguindo ofertar educação de qualidade para parcelas cada vez maiores de seus habitantes (como Brunei). Controlaram a pandemia de um modo mais eficaz do que a maioria dos países com regimes democráticos (como a China). E não será de estranhar que alguns deles avancem mais do que nós em políticas ambientais. Tudo isso pode ser feito sem democracia (ou com pouca democracia).

Não se deve esquecer que a democracia é um processo de desconstituição de autocracia. Não é um projeto de ocupar o governo e ficar engrossando pautas para justificar a nova oligarquia (sim, a rigor, todo governo é oligárquico – no sentido literal e original do termo ‘oligoi’ολιγοί – que significa ‘poucos’). O que deve ser defendido, fundamentalmente, pelos democratas, é o modo de vida democrático que está ameaçado pelos populismos.

Ou seja, o que deve ser defendido hoje no Brasil:

Não é o regime eleitoral, posto que esse vai continuar (e eleição não garante democracia: hoje no mundo o número de autocracias eleitorais e quase o dobro do número de democracias liberais).

Não são apenas as instituições que operam os mecanismos de freios e contrapesos, porque estas também, ao menos formalmente, vão continuar existindo. As instituições podem continuar funcionando e mantendo um facínora (como Bolsonaro) no poder.

Não são, igualmente, o império da lei e os direitos políticos formais inscritos na Constituição (que não será rasgada no curto prazo).

Antes de tudo isso, o que há a preservar é a integridade das bases sociais sobre as quais se assenta a democracia, as normas não escritas, as formas benignas de sociabilidade, os comportamentos políticos colaborativos, enfim, o estoque ou fluxo de capital social, sem o qual o processo de democratização não pode ter continuidade (mesmo que a casca formal da democracia permaneça aparecendo como um tipo híbrido de regime – conquanto cada vez mais i-liberal).

O que devemos evitar é que nosso modo de vida (ou de convivência social) seja destruído pela colisão com outros mundos adversariais, hierárquicos e guerreiros, menos humanos (ou desumanos), que estão brotando das cruzadas dos cavaleiros da morte que ora campeiam sobre a planície desolada de nossos sonhos.

Enquanto Bolsonaro permanecer no poder – mesmo que ele obedecesse a todas as leis – esse processo de destruição vai avançar. É preciso pará-lo o quanto antes.

Para tanto é necessário conectar os democratas existentes e multiplicá-los. Não há democracia sem democratas em número suficiente para conseguir fermentar a formação e a emergência de um opinião pública democrática. Não é necessário que a maioria da população ache que Bolsonaro deva sofrer impeachment. Basta que emerja uma opinião pública (que não é a soma das opiniões privadas dos cidadãos) favorável ao impeachment. Nosso papel, como democratas, é contribuir para isso.

Uma classificação de comportamentos políticos do ponto de vista da democracia

Como as democracias não morrem