Tudo isso é verdade sobre o Chile:
➡️ Maior IDH da América Latina (ONU)
➡️ Melhor educação da AL (PISA)
➡️ Melhor universidade da AL (QS University Rankings)
➡️ 2ª menor taxa de pobreza da AL (Banco Mundial)
➡️ Menor taxa de homicídios da AL (Insight Crime)
Também é verdade o que tuitou o ajuizado Rodrigo da Silva:
“O Chile foi o país latino americano que mais reduziu sua pobreza entre 2015 e 2017: passou de 13,7% para 10,7% (esse índice era de 68% em 1990). Hoje é oficialmente o país com o menor índice de pobreza na América Latina”.
“Em 1980, a renda média chilena era 30% menor que a brasileira. Hoje é 64% maior. A previsão era que o Chile atingisse os US$ 25 mil de renda média/anual em 2022. Atingiu em 2019. Foi o primeiro país da região a passar essa marca”.
“O Chile também é o melhor colocado no ranking do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), com a melhor educação da região. Não bastasse, o país tem a melhor universidade da América do Sul”.
“O Chile também é o país com a melhor cobertura de saneamento básico da América Latina. Lá é universal: atinge 99,9% da população. No Brasil, alcança apenas 42,7% da população. Os pobres aqui estão literalmente na merda”.
“A luta é dura. Hoje mesmo uma matéria publicada há 3 anos pelo Spotniks foi bastante criticada porque dizia que o Chile teria renda média de país desenvolvido (US$ 25 mil/ano) em 2020. De fato, nós erramos a previsão: essa é a renda já de 2019. Mas quem conta isso aos ideólogos?”
Com tudo isso… a luta ideológica não explica o que está acontecendo no Chile. Sim, lá ocorreram verdadeiros swarmings nos últimos dias, infelizmente violentos.
A hipótese conspiratória de que é a esquerda que está fazendo isso, sob as ordens do Foro de São Paulo ou em razão da doutrinação marxista nas universidades, é ridícula. Mas está sendo divulgada neste momento, a todo vapor, nos grupos de WhatsApp colonizados pelos bolsonaristas.
Entretanto, Jair Bolsonaro, não apenas através de seu filho Eduardo, mas inclusive pessoalmente, está investindo na mentira.
Bruno Boghossian, em artigo de hoje (23/10/2019) na Folha de S. Paulo (23/10/2019), intitulado Um líder bem bolsonarista, escreve o seguinte:
Antes de fugir da imprensa pelos corredores do Câmara, o deputado Eduardo Bolsonaro deu sua primeira contribuição como líder do PSL. O filho do presidente pegou o microfone e lançou no plenário uma teoria da conspiração. Misturou os protestos no Chile e no Equador com a Coreia do Norte e o vazamento de petróleo na costa brasileira.
Potencial ex-futuro embaixador, ele sentenciou que as manifestações em Santiago e Quito são uma maquinação da ditadura venezuelana para desestabilizar governos do continente. Repetiu, ainda, a tese de que o óleo que banha as praias nordestinas é fruto desse mesmo complô.
O bolsonarismo costuma buscar refúgio nas lentes ideológicas para mascarar suas frustrações. Desta vez, o filho do presidente foi longe: reproduziu uma teia de perseguições criada nas redes sociais e compartilhou um vídeo publicado pelo líder da extrema direita do Chile – deixando bem claras suas afinidades.
Ainda que os protestos nas ruas chilenas e equatorianas tenham óbvios contornos políticos, eles refletem mais uma crise de representatividade e um cansaço com os governantes de maneira geral do que um conluio global típico da Guerra Fria.
Os apuros enfrentados por Evo Morales após mudar a regra do jogo para disputar mais uma reeleição na Bolívia juntam as pontas. O resultado das urnas está sob contestação, e o esquerdista se tornou alvo de manifestantes que certamente não são financiados pelos socialistas.
A exaustão dos eleitores não é um fenômeno de 2019. O bolsonarismo, aliás, se alimentou desse sentimento, gestado por aqui desde a primeira metade desta década. Eduardo só descreve os episódios recentes pelo viés da ideologia porque pretende tirar proveito político desse delírio.
A ameaça da esquerda é o eixo principal dessa espiral de alucinações, que serve para disfarçar até os insucessos do governo. “Não fiquem surpresos se mais instabilidade vier por aí”, disse Eduardo, jogando para inimigos externos a culpa por problemas que ainda nem existem.
E o próprio Bolsonaro, o chefe de Eduardo, já começou a conversa de intervencionismo militar:
“Não podemos ser surpreendidos, temos que ter a capacidade de nos antecipar a problemas. Conversei com o ministro da Defesa sobre a possibilidade de ter movimentos como tivemos no passado, parecidos com o que está acontecendo no Chile, e a gente se prepara para usar o artigo 142, que é pela manutenção da lei e da ordem.”
Esta é uma declaração literal de Jair Bolsonaro, feita no Japão. Se preparar para usar o Artigo 142 da Constituição antes de acontecer qualquer ameaça concreta à paz social, é um sinal claro de intenção de autocratização do regime. É concepção de defesa como guerra contra um imaginário “inimigo interno”.
Vejamos o que diz a Constituição:
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Esse artigo não permite ações preemptivas. Isso é conversa de intervencionista militar.
Pegando como bicho-papão os casos do Chile, do Equador e do Peru (mas não – sintomaticamente – o da Bolívia), o bolsonarismo está neste momento atrás de um pretexto para radicalizar a guerra civil fria contra um imaginário comunismo e tomar medidas autocratizantes do regime.
Há, contudo, problemas reais no Chile.
Uma parte da população não se adaptou às tais medidas liberalizantes na economia, tomadas sem qualquer debate público durante o regime ditatorial de Augusto Pinochet.
=> A pobreza caiu, mas a desigualdade é altíssima, quase igual à brasileira.
=> Não há sistema público de saúde (lá não há SUS).
=> Parece que também não há farmácia popular para a aquisição de remédios crônicos.
=> Não há sistema público de educação superior (lá tudo é privado e o financiamento da educação universitária é feito com preços de mercado – o que muitos não podem pagar).
=> A previdência no sistema de capitalização resultou que muitos aposentados estão ganhando o equivalente à metade do nosso salário mínimo (o que não dá nem para comprar a comida necessária para sobreviver).
=> Não há programas compensatórios, equivalentes aos nossos aposentadoria rural, bolsa-família e benefício de prestação continuada.
Ou seja, os excluídos por razões sócio-econômicas são poucos, comparados aos nossos, mas o Estado assistencialista, que garante uma válvula de escape para a insatisfação de amplos setores da população, praticamente desapareceu depois da ditadura do Pinochet.
Não que o Estado assistencialista seja bom. É péssimo, sobretudo por exterminar capital social (sem o qual não há desenvolvimento social, que nunca é resultado automático apenas de crescimento econômico).
Não que o caminho adotado pelos chilenos teria de ser o nosso, longe disso. As medidas adotadas aqui não resolveram muita coisa, como mostram também todos os indicadores usados agora para exaltar o acerto das políticas econômicas liberais aplicadas no Chile.
Mas o caminho trilhado pelo Chile tem um preço que, algum dia, em termos políticos, acabaria sendo cobrado. Talvez seja o caso agora.
Talvez não. As razões para os atuais protestos dos dias que correm no Chile talvez não tenham a ver, diretamente, com nada disso. Mas, indiretamente, têm.
Ninguém sabe as “causas” de grandes enxameamentos de protesto: por exemplo, ainda não se sabe, aqui, as “causas” do junho de 2013. Manifestações tão impactantes da fenomenologia da interação não têm propriamente causas – são produzidas pela constelação fortuita de vários fatores.
Hélio Schwartsman, ainda na Folha de hoje (23/10/2019), no artigo intitulado Protestologia, reconhece que as democracias têm mais dificuldade para conter os movimentos populares. Deve ser por isso que Bolsonaro declarou ontem, também no Japão, que os protestos no Chile contra o presidente Piñera têm origem no fim da ditadura chilena de Augusto Pinochet, há mais de 30 anos.
Escreve Schwartsman:
Equador, Líbano, Chile. São países em que protestos com graus variados de violência estão tirando o sono de governantes. Qual é o próximo? Bolívia, Brasil? O que leva o povo às ruas para protestar?
Se há algo que as ciências sociais são ruins em explicar é a eclosão dessas manifestações. A literatura oferece apenas umas poucas pistas, que não permitem grandes voos de futurologia. O surgimento de revoltas populares já foi correlacionado à inflação, particularmente à inflação de alimentos, e, paradoxalmente, a crescimento econômico recente (que, por alguma razão, passa a ser visto como ameaçado).
Outro fenômeno interessante é que esse tipo de movimento pode ser transmitido de um país para outro, num modelo análogo ao de doenças contagiosas. Foram os casos das revoluções que derrubaram o comunismo no Leste europeu no final dos anos 80 e, com resultados menos duradouros, da Primavera árabe.
A grande verdade, porém, é que os gatilhos para a revolta são bastante aleatórios. Pode ser um aumento específico de preço (caso dos três países em questão), um suicídio público (Primavera árabe) ou um discurso mal interpretado (queda do Muro de Berlim).
A Nova Ciência das Redes só começou a investigar o assunto muito recentemente, a partir da virada do século. Sabemos, porém, algumas coisas.
Sabemos, por exemplo, que sem uma insatisfação difusa e generalizada com o sistema (seja lá o que isso for para as pessoas), não aconteceria o que aconteceu aqui (no Brasil, em 2013) e o que está acontecendo lá (no Chile, em 2019).
Tanto é assim que o presidente, dito liberal, Sebastián Piñera veio ao Twitter ontem reconhecer:
Acogemos con humildad legítimas demandas sociales y mensajes q los chilenos han entregado. Es verdad q problemas se acumulaban desde hace décadas y los distintos Gobiernos no fuimos capaces de reconocer situación en toda su magnitud. Reconozco y pido perdón x esa falta de visión.
Hemos escuchado fuerte y clara la voz de la gente expresando pacíficamente sus problemas, sus dolores, sus sueños y sus esperanzas de una vida mejor. Hoy quiero compartir con todos mis compatriotas las principales medidas y componentes q impulsaremos con esta #NuevaAgendaSocial
Eis a Agenda Social que Piñera propôs:
Se as coisas estivessem correndo às mil maravilhas no Chile, como mostram todos os indicadores, Piñera não teria pedido desculpas à população e nem teria proposto esse conjunto de medidas que chamou de Nova Agenda Social (que não está sintonizada com a agenda econômica liberal).
Cuidado! Nem tudo é luta ideológica.
Mas quando eclodem swarmings como o chileno, os bolsonaristas (inclusive os que se dizem liberais-econômicos) – não sabendo explicar de outra maneira o fenômeno e querendo instrumentalizá-lo politicamente – põem a culpa na ideologia comunista. O inimigo que precisa ser construído como pretexto para justificar uma guinada autoritária do regime. Eis a razão do pretexto chileno.






