Os democratas esperamos, mais cedo do que tarde, a queda de Maduro, favorecendo a derrocada de outros neopopulismos ditos de esquerda. Mas fazemos votos de que seja pacífica e que o populismo de esquerda não seja substituído pelo populismo-autoritário de extrema-direita (que está agora em ascensão no mundo e no Brasil).
Uma boa imagem do neopopulismo, no seu auge, em 2010, na América Latina: Líderes em encontro da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) em Los Cardales, na Argentina – 4/5/2010, na qual faltam alguns, como Daniel Ortega que é da América Central (Natacha Pisarenko/AP):
O problema é que o populismo de esquerda entrou em decadência para dar lugar ao populismo-autoritário de extrema-direita. A colagem abaixo mostra seus principais líderes (com exceção de Jair Bolsonaro, seu guru Olavo de Carvalho, seus filhos Flávio, Carlos e Eduardo e seus mais destacados sequazes, cuja lista já foi publicada aqui): Anders Vistisen, Andrej Babis, Donald Trump, Geert Wilders, Gyöngyösi Márton, Heinz-Christian Strache, Jaroslaw Kaczynski, Jörg Meuthen, Marine Le Pen, Matteo Salvini, Nigel Farage, Olli Kotro, Santiago Abascal, Steve Bannon, Tomio Okamura, Viktor Orbán, Vlaams Belang.
Com o declínio dos neopopulistas (ditos de esquerda), o populismo-autoritário de direita e outras vertentes da extrema-direita são, hoje, os principais adversários da democracia. Todos eles são contra o governo de Maduro, mas não pelas mesmas razões dos democratas.
Nossa motivação contra a ditadura de Maduro (restaurar a democracia) não é a mesma dos bolsonaristas (usar a ditadura bolivarianista para alimentar uma guerra cultural contra um imaginário comunismo e estimular uma guerra propriamente dita contra a Venezuela para introduzir na cena política uma nova variável, um fato extraordinário que permita a implantação de seu projeto anti-establishment no Brasil alterando o DNA do nosso regime). Os olavistas-bolsonaristas sabem que, em condições normais de temperatura e pressão, seu projeto é irrealizável.
Sobre o Brasil infestado de bolsonaristas e a Venezuela cabe, assim, fazer mais algumas considerações.
1 – HOUVE, SIM, GOLPE NA VENEZUELA
Mas só houve um golpe na Venezuela. Ele foi perpetrado por Maduro que perverteu as instituições democráticas que remanesciam e instalou uma ditadura. Não importa que ele tenha sido eleito democraticamente. Para ser legítimo um governo tem que governar democraticamente. Isso ele não fez.
Alguns perguntam: se houve uma eleição na Venezuela e os bandidos a venceram, derruba-los por meios extra-eleitorais não seria golpe? A resposta é não: isso só valeria se a Venezuela ainda fosse uma democracia, com Estado de direito e suas instituições funcionando.
Assim o governo de Maduro, conquanto tenha sido eleito (ao que tudo indica com fraude, mas mesmo que não fosse), não é mais legítimo. Repita-se: para ser legítimo não basta a um governo ter sido eleito democraticamente. É necessário também que ele governe democraticamente, não violando os demais princípios democráticos: além da eletividade (exercida sem fraude), a liberdade, a publicidade ou transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade. Maduro violou todos esses critérios da legitimidade democrática.
No entanto, do ponto de vista da democracia, cabe à sociedade venezuelana remover o ditador, que só se mantém pela força, com o apoio dos militares. É preciso uma grande mobilização capaz de fraturar e retirar esse apoio militar. Mesmo o alto comando das forças armadas que ainda apoia a ditadura não conseguirá manter esse apoio se houver um grande swarming civil. Este é o caminho democrático.
A guerra civil não é solução, a menos para autocratas que estejam querendo substituir o neopopulismo de esquerda de Maduro pelo populismo-autoritário de extrema-direita – ambos avessos à democracia.
A democracia nunca nasce da guerra, porque a guerra mata a rede social (não confundam com as mídias sociais, por favor) e disso nunca pode resultar mais liberdade. Uma vez instalada a guerra, o processo de democratização é paralisado imediatamente: porque a guerra é a autocracia. Existem numerosos exemplos, sendo que o mais expressivo é o da Síria. Depois das grandes manifestações populares de janeiro de 2011, Assad instalou a guerra para matar a rede social (novamente: não confundam social network, a rede humana, com social media, as ferramentas) e foi bem sucedido: matou a rede (que é o objetivo de qualquer guerra: seja quente, fria ou praticada como política pervertida como continuação da guerra por outros meios).
2 – O QUE SIGNIFICOU O CHAMADO DE JUAN GUAIDÓ À DERRUBADA DO REGIME
Significou, não há como negar, um erro e uma derrota para a democracia. A inexperiência política desse Guaidó e dos estrategistas de Trump (como esse palhaço Bolton – ex-dirigente da organização armamentista NRA – National Rifle Association) é fabulosa. Provocar fraturas nas forças militares que apoiam o ditador Maduro, tudo bem. Mas contar com uma sublevação militar prometida (e tramada por outro país, os USA) e proclamar aos quatro ventos que já tinha força político-militar para derrubar o regime de Maduro, é muito amadorismo.
A menos que os que se envolveram na tentativa de conspiração para derrubar Maduro estejam querendo isso mesmo: um fracasso, seguido de um recrudescimento da repressão da ditadura que justifique uma intervenção militar externa. Vai ter gente da extrema-direita bolsonarista defendendo isso, podemos aguardar.
Aliás, já começou. O príncipe olavista Luiz Philippe de Orleans e Bragança postou anteontem (30/04/2019) a noite no seu Twitter:
3 – ESTÁ SENDO CORRETA A ATITUDE DO GOVERNO BRASILEIRO?
No que depende de Bolsonaro, não. O presidente do Brasil, irresponsável como é, disse ontem (01/05/2019) que Guaidó não foi derrotado. Ora não seria mesmo o caso se ele não tivesse declarado, na manhã do último dia 30 de abril, contar com o apoio militar efetivo para derrubar Maduro. Mas ele declarou isso, ao que tudo indica, em conluio com o governo Trump, outro irresponsável. E não era verdade, como estamos vendo, pelo menos até agora.
Dizer que Guaidó não foi derrotado não é uma fala equilibrada de política internacional de um chefe de Estado e sim a expressão de uma torcida ideológica. Bolsonaro quer se identificar com a derrubada de um governo que se diz socialista, como o de Maduro, para dar continuidade à sua guerra cultural anticomunista no Brasil.
Na verdade, porém, não há socialismo nenhum, muito menos comunismo, na Venezuela. O que há é um populismo degenerado, ao último grau, como uma ditadura de bandidos, de narcotraficantes civis e, sobretudo, fardados.
Se a oposição não conta com força político-militar para derrubar a ditadura militar que vigora hoje na Venezuela, deve buscar outros caminhos que não o confronto aberto nas ruas com barricadas, paus, pedras e coquetéis molotov contra tanques, aviões, helicópteros e canhões, como continua conclamando Juan Guaidó.
A não ser, como já foi dito, que estejam querendo radicalizar ainda mais a situação a ponto de despertar uma repressão brutal do regime que justifique uma intervenção militar externa (dos Estados Unidos com a participação do Brasil).
Sim, Bolsonaro negou ontem que o Brasil esteja pensando numa intervenção militar na Venezuela ou que haja a intenção de ceder o território brasileiro para a passagem de tropas americanas. Mas suas declarações foram oblíquas:
“Por enquanto, não há nenhum contato nesse sentido. Se, porventura, vier, o que é normal nós acontecermos, o presidente reúne o Conselho de Defesa, toma uma decisão e participa ao Parlamento brasileiro”.
Ora, segundo o Artigo 49 da Constituição, inciso II, compete ao Congresso Nacional:
“II – autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar”.
E para fazer tal pedido ao Congresso ele deve ouvir os Conselhos da República e de Defesa Nacional, conforme dispõe o inciso II do Artigo 137.
A decisão, portanto, não é dele e sim do Congresso. Mas Bolsonaro, ignorando isso, afirma que a decisão (sobre “qualquer hipótese”, portanto, também a de guerra) é “EXCLUSIVAMENTE” sua, como escreveu no Twitter, sendo corrigido pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
O presidente de um país com o tamanho e a importância do Brasil não poderia estar apostando num líder que se comporta assim como se comportou Guaidó só para alterar a correlação interna de forças no Brasil. Como se sabe, há uma disputa aqui entre a ala olavista-bolsonarista do governo, que quer intervenção militar, quer guerra, porque sabe que somente um fato extraordinário será capaz de permitir que seu projeto anti-establishment seja implementado no Brasil e as forças armadas brasileiras, que se opõem, corretamente, à tal aventura.
4 – O QUE O BOLSONARISMO QUER COM A VENEZUELA
A despeito do que declara confusamente Bolsonaro, os bolsonaristas são a favor de uma guerra contra a Venezuela. Não porque prezem a democracia e sim porque a ditadura de Maduro se diz socialista. É um pretexto para alimentar a luta anticomunista. Do contrário não fariam alianças com governos antidemocráticos como o de Viktor Orbán, da Hungria.
E Bolsonaro (que é bolsonarista) quer apadrinhar Guaidó e se apropriar da luta democrática contra a ditadura de Maduro não porque ame a democracia e sim porque avalia que é um bom pretexto para manter acesa a chama da sua guerra cultural contra um imaginário comunismo no Brasil.
Como já foi dito aqui, mas não é ocioso frisar, os olavistas-bolsonaristas querem usar a ditadura de Maduro para alimentar sua campanha macarthista e para provocar uma alteração da correlação interna de forças com a introdução de um fato extraordinário, capaz de despertar emoções guerreiras na população, aumentando a polarização entre os patriotas, que supostamente defendem o país e os traidores, que defendem o comunismo venezuelano.
A agitação e propaganda pró-guerra continua. Depois do tweet do monarquista Orleans e Bragança (cujo print foi publicado acima) vejam o que está promovendo a deputada olavista-bolsonarista Carla Zambelli:
5 – QUAL A SAÍDA PARA A VENEZUELA
Pessoas de mentalidade conspiracionista (que é sempre autocrática) acham que na Venezuela se trata de convencer os narco-generais maduristas a derrubar o ditador. Mas nunca é assim que acontece. E, em geral, não é bom que aconteça assim.
Pode-se derrubar o ditador de turno (como na Argélia e no Sudão) para manter o regime autocrático. Se não houver um cisma no seio da cúpula militar, os generais fiéis a Maduro só ajudarão a derrubá-lo se tiverem de se dobrar ao clamor das ruas (não se forem convencidos, em conciliábulos, pelos falcões de Trump, como Pompeo e Bolton). E isso não acontecerá naturalmente, ou seja, Maduro e sua troupe não cairão por gravidade.
Nunca é demais lembrar a lição 1 do pré-primário político. Inflação alta, crise econômica, crise de desabastecimento, crise política, institucional e social – nada disso, separado ou combinado, por si só, derruba governo. Um governo não cai se não houver quem o derrube por meios legais ou extra-legais. Como não há possibilidade de eleições livres e justas sob o comando do ditador, a solução deverá ser outra. E o ator da derrubada, no caso, só poderá ser a sociedade venezuelana.
Só um swarming civil, com o enxameamento de milhões de pessoas – e atenção: pacífico! – pode provocar uma democratização do regime, não manifestações com vibe guerreira, organizadas por pequenos grupos (comandos de combate, construção de barricadas nas ruas pelos “guarimbeiros”). Isso já aconteceu na Venezuela em 2014 e não teve êxito.
Se a oposição venezuelana não tem força político-militar para derrubar Maduro, como já foi diagnosticado e mencionado anteriormente, cabe apenas à fenomenologia da interação que se manifesta na sociedade conseguir isso. Se as famílias (filhos, mulheres, irmãos, pais) dos próprios militares forem às ruas (como ocorreu no 30 de junho de 2013, no Egito: quando 20 a 30 milhões de pessoas se manifestaram em todas as cidades de um país de 80 milhões, ou seja, de cada residência pelo menos uma pessoa se mobilizou) aí a coisa muda de figura. Um enxameamento volumoso a esse ponto é sempre irresistível: contra ele não adiantam aviões, helicópteros, tanques, canhões e metralhadoras.
Ou é isso, ou é manutenção do regime com troca de guarda, ou é guerra. As duas últimas opções não são boas para a democracia. A última, sobretudo, é péssima. É bom repetir para não esquecer: a democracia nunca nasce da guerra.