in

Orwell: “Uma das diversões mais fáceis do mundo é desmistificar a democracia”

“Uma das diversões mais fáceis do mundo é desmistificar a democracia”

George Orwell, “Fascism and Democracy”, The Left News, fevereiro de 1941.

Uma das diversões mais fáceis do mundo e desmistificar a democracia. Neste país, pouco se levam em conta os argumentos meramente reacionários contra o governo popular, mas nos últimos vinte anos a democracia “burguesa” foi atacada de forma bem mais sutil tanto por fascistas como por comunistas, e é muito significativo que esses aparentes inimigos tenham recorrido aos mesmos fundamentos nesses ataques. É verdade que os fascistas, com métodos mais arrojados de propaganda, também aproveitam quando lhes convem o argumento aristocrático de que a democracia “coloca os piores no comando”, mas basicamente o que alegam todos os apologistas do totalitarismo é que a democracia não passa de uma fraude. Ao que parece, ela não passa de um disfarce para o domínio de um punhado de ricos. Não se trata de algo completamente falso, e tampouco de algo obviamente falso; pelo contrário, é até mais justificável do que contestável. Para um estudante de dezesseis anos, atacar a democracia é mais tácil do que defendê-la. E não há como responder a ele a menos que se conheça o “caso” antidemocrático e se esteja disposto a admitir que, em grande medida, é verdadeiro.

Para começar, o que sempre se coloca contra a democracia “burguesa” é o fato de ela ser anulada pela desigualdade econômica. De que vale a chamada liberdade política para alguém que trabalha doze horas diárias em troca de três libras por semana? Uma vez a cada cinco anos ele pode votar no partido que quiser, mas no restante do tempo praticamente todos os detalhes dc sua existência são ditados por seu empregador. E, na prática, também a sua vida política é assim determinada. A classe abastada mantem em suas mãos todos os postos ministeriais e as funções públicas, manipulando o sistema eleitoral a seu favor ao subornar os eleitores direta ou indiretamente. Ainda quando, por algum revés, um governo que represente as classes mais pobres chega ao poder, os ricos em geral podem chantageá-lo com ameaças de exportar o capital. Mas o mais importante é que quase toda a vida cultural e intelectual da comunidade — jornais, livros, escolas, filmes, rádio — está sob o controle desses endinheirados, que têm motivos fortes para evitar a difusão de determinadas ideias. O cidadão de um pais democrático é “condicionado” desde o seu nascimento, de forma menos rígida mas não menos efetiva do que o seria num Estado totalitário.

E não há nenhuma certeza de que o domínio dc uma classe privilegiada possa em algum momento ser rompido por meios estritamente democráticos. Em tese, o governo do Partido Trabalhista podería chegar ao poder com uma clara maioria e de imediato instaurar o socialismo por meio de um ato do Parlamento. Na prática, as classes abastadas se rebelariam, provavelmente com êxito, pois contam com o apoio da maioria dos funcionários estáveis e dos ocupantes de postos cruciais nas Forças Armadas. Os métodos democráticos apenas são viáveis onde há uma base razoavelmente ampla de consenso entre todos os partidos políticos. Não há nenhuma razão preponderante para se pensar que alguma mudança fundamental possa ser alcançada por meios pacíficos.

De novo, muitas vezes se argumenta que toda a fachada da democracia — liberdade de expressão e de reunião, independência dos sindicatos, e assim por diante — deve ruir logo que as classes abastadas não estejam mais obrigadas a fazer concessões a seus empregados. A “liberdade” política, costumava-se dizer, é simplesmente um subormo, um sucedâneo incruento da Gestapo. De fato, os países considerados democráticos são em geral prósperos — na maioria dos casos, com base na exploração, direta ou indireta, da mão de obra batata de povos de cor —, e também a democracia tal como a conhecemos nunca existiu a não ser em países marítimos ou montanhosos, ou seja, capazes de se defender sem a necessidade de manter um enorme Exercito permanente. A democracia acompanha —  e provavelmente requer — condições favoráveis de vida; ela nunca prosperou em Estados pobres e militarizados. Se a localização resguardada da Inglaterra for tirada, o país vai prontamente retroceder a métodos políticos tão bárbaros quanto os da Romenia. Além do mais, todos os governos, democráticos ou totalitários, dependem em última análise da força. Nenhum governo, a menos que seja conivente com a própria derrubada, pode ou demonstra o menor respeito pelos “direitos” democráticos quando se vê seriamente ameaçado. Um pais democrático empenhado numa guerra desesperada é obrigado, tanto quanto uma autocracia ou um Estado fascista, a recrutar soldados de forma compulsória, coagir trabalhadores, encarcerar derrotistas, suprimir jornais sedidosos; em outras palavras, ele apenas pode se salvar da destruição deixando de ser democrático. Aquelas coisas pelas quais supostamente está lutando sempre acabam descartadas assim que começa a briga.

Esse, num resumo grosseiro, é o caso contra a democracia “burguesa”, proposta tanto por fascistas como por comunistas, embora com enfoques diferentes. Não há como deixar de reconhecer que todos os pontos contêm muita verdade. No entanto, por que é que tal argumento é, em última análise, falso — por que lodo mundo que foi criado num país democrático sabe quase instintivamente que há algo de errado em toda essa linha de argumentação?

O que há de errado com esse desmascaramento familiar da democracia é que ele não basta para explicar todos os fatos. As diferenças existentes na atmosfera social e no comportamento político entre os paiscs são muito maiores do que se pode explicar por uma teoria que desconsidera as leis, os costumes, as tradições etc., tratando-os como mera “superestrutura”. No papel é muito fácil demonstrar que a democracia é “a mesma coisa” que (ou “tão ruim quanto”) o totalitarismo. Existem campos de concentração na Alemanha; mas também há campos de concentração na Índia. Os judeus sofrem perseguição onde quer que reine o fascismo; mas o que dizer das leis raciais na África do Sul? A honestidade intelectual é um crime em qualquer pais totalitário; mas até na Inglaterra não é exatamente vantajoso falar e escrever a verdade. Tais paralelos podem ser multiplicados de forma indefinida. Mas a argumentação implícita e subjacente é que uma diferença de grau não constitui uma diferença. Não há como negar, por exemplo, que exista perseguição política nos países democráticos. Trata-se de ver em que medida. Quantos refugiados fugiram da Inglaterra, ou de todo o Império Britânico, nos últimos sete anos? E quantos refugiados saíram da Alemanha? Quantas pessoas você de fato conhece que foram espancadas com cassetetes de borracha ou obrigadas a engolir galões de óleo de rícino? Quão perigoso lhe parece ir ao pub mais próximo e exprimir a opinião de que essa é uma guerra capitalista e que devemos abandonar a luta? Dá para apontar algo na história britânica ou americana recente comparável à Noite dos Punhais Longos, em junho de 1934, aos processos contra os trotskistas russos, ao pogrom que se seguiu ao assassinato de Ernst vom Rath? Poderia um artigo equivalente a este que estou escrevendo ser publicado num pais totalitário, seja ele vermelho, pardo ou negro?

A nova população politicamente ativa: um resumo

As eleições de 2022 vão resolver os problemas da democracia brasileira?