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Os democratas podem votar na chamada ‘direita’?

É muito difícil tirar um partido hegemonista do governo, sobretudo quando liderado por um parasita populista com alta gravitatem, pelos processos eleitorais normais num contexto em que o concorrente incumbente tem a simpatia da maioria dos jornalistas (comentaristas e analistas) políticos, dos pesquisadores de institutos de pesquisa de opinião e de agências de checagem, de uma rede suja de sites e influencers nas mídias sociais, dos artistas e famosos em geral, da maioria dos acadêmicos (sobretudo das áreas de humanas das universidades federais), dos sindicatos, centrais e associações profissionais, dos movimentos sociais e de boa parte das ONGs e, ainda por cima, conta com uma TV do maior grupo de comunicação do país para reverberar tudo isso diariamente. Sobretudo se o incumbente contar também com a simpatia da maioria da suprema corte, de vários tribunais superiores e de grupos influentes de juristas alinhados.

Nestas circunstâncias até entende-se a atratividade de uma alternativa antissistêmica, revolucionária (ainda que para trás, ou seja, reacionária). Há uma crença difusa de que a situação só muda com um curto-circuito no sistema, ainda que isso possa acelerar uma transição autocratizante do nosso regime político ou mesmo abrir a possibilidade de um golpe de Estado (embora hoje essa possibilidade esteja afastada no Brasil).

Em outras palavras, o hegemonismo é tão sufocante que grande parcela da população – em sua maioria não convertida à democracia – prefere qualquer coisa à manutenção do status quo, no limite até a abolição da democracia. Essa é a razão pela qual um populismo dito de direita (bolsonarista) chegou ao governo depois de vários mandatos consecutivos da esquerda populista (lulopetista). Como tal revolução não houve, a hegemonia conquistada de 2003 a 2016 não foi substituída por outra, o sistema continuou rodando nos mesmos parâmetros e o lulopetismo voltou ao governo em 2023. E a via antissistema perdeu todas as suas chances de ressurgir entre nós num horizonte divisável.

Sem a via antissistêmica, dita de extrema-direita, o que chamam de direita é apenas um componente normal de qualquer regime democrático. Em princípio entende-se que direita é tudo que não é esquerda. Todavia, opor direita, como se fosse “o mal”, ao governismo, tido por “o bem” porque seria de esquerda, é uma fraude.

Até os mais lúcidos jornalistas políticos tratam quem não é governista como sendo ‘de direita’. Mas que conversa é essa de ser ‘de direita’? A maioria da nossa população – que não é governista – nada tem a ver com ‘direita’. Isso tem um nome: hegemonia. Muitas vezes sem ter consciência disso nosso jornalismo se habituou a pensar sob comando. Comando de quem? Ora, dos populistas que se dizem esquerda e que estão no governo e dos populistas que, remedando os primeiros com o sinal trocado, querem se dizer de direita e estão na oposição.

O ardil é especialmente maligno quando urdido e aplicado pelo populismo lulopetista. Basta não ser governista para ser qualificado como direita. E já vai embutida a ideia de que direita, no Brasil, é a extrema-direita bolsonarista. Repetindo e acrescentando: a maioria da população brasileira, além de não ser governista, não é de direita, nem bolsonarista. Afirmar o contrário é a fraude política de que estamos tratando neste artigo.

Um editorial da Folha de São Paulo de ontem (15/11/2025), comentando as recentes pesquisas de opinião (em especial a da Quaest) diz o seguinte:

O quadro geral que determinou o resultado apertadíssimo das eleições de 2022 não dá mostras de ter-se diluído. Parcela francamente majoritária dos 50,9% que votaram em Lula naquele segundo turno continua a apoiá-lo como presidente. Já os que o rejeitam correspondem quase matematicamente aos 49,1% que votaram em Jair Bolsonaro (PL). Um segmento de eleitores independentes — que ora oscila para um lado, ora para o outro — tem causado as idas e vindas na aprovação do petista desde a posse, em janeiro de 2023. A movimentação pendular prediz que essa fatia no centro do espectro ideológico vai decidir a sucessão presidencial em outubro de 2026.

Na luta para capturar os 10% que vão decidir a eleição de 2026, a direita é pintada como tendo sido devorada, digerida e dejetada pela extrema-direita. O cadáver insepulto de Bolsonaro continuará, para tanto, sendo agitado como um espantalho. De modo que não reste alternativa, a qualquer pessoa de bom senso, senão rejeitar a direita. Por quê? Porque ela não passa de uma fantasia usada pela extrema-direita para voltar ao governo e tentar novamente seu plano de dar um golpe de Estado na nossa democracia, desta feita com a ajuda do imperalismo norte-americano returbinado por Donald Trump. A extrema-direita realmente existente, quer dizer, os reacionários antissistema que são, na verdade, os agentes da camorra bolsonarista, dão credibilidade a essa farsa assumindo-se como os únicos verdadeiros antipetistas (porque são anticomunistas). Para vencer os comunistas qualquer ajuda será válida, inclusive do governo dos Estados Unidos, mesmo violando a nossa soberania nacional.

Os opostos jogam juntos na criação desse ambiente deletério para a democracia. Superar essa constelação aziaga de fatores exige, entretanto, começar esquecendo as ideologias. Não importa se as forças políticas principais se dizem progressistas (uma sopa de socialistas e liberais que acham que devem ser posicionar mais à esquerda) ou conservadoras (em boa parte reacionárias travestidas de conservadoras que querem se dizer de direita).

E devemos esquecer também o esquema classificatório ultrapassado que divide as forças políticas em esquerda e direita. Do ponto de vista propriamente político existem governo e oposição. O governo é populista. Parte da oposição (a parte bolsonarista) também é populista. Os democratas, no sentido pleno ou liberal do termo, não são populistas. Esses últimos, embora minoritários, são o que há de oposição democrática no Brasil. Serão eles suficientes para apresentar uma alternativa não populista para 2026? Não parece ser o mais provável, ainda que possa acontecer.

Já está passando da hora de pré-candidatos que não são populistas (nem lulopetistas, nem bolsonaristas) e não apoiam ditaduras apresentarem à sociedade brasileira um programa coerente capaz de situá-los no centro de gravidade da política democrática. Mas embora o programa deva vir antes do nome, não adiantará mais, nesta altura do campeonato, um programa sem um nome. E também não adiantará um programa e um nome sem um movimento. Eduardo Leite poderia ser esse nome, mas – além de estar dependendo da conveniência política do chefe do seu partido, o PSD – parece ter medo de queimar a largada e virar vidraça antes do tempo se se lançar num franco movimento por uma via democrática para o Brasil. Há incerteza sobre se um movimento desse tipo não seria taxado, inclusive pela imprensa, como ‘de direita’, dificultando a adesão de eleitores moderados de centro.

O truque, reconheçamos, funcionou perfeitamente até agora. O medo da acusação de ser ‘de direita’ (e, na visão dos acusadores, antidemocrático) é tão grande que, por incrível que pareça, até uma parcela de liberais que querem ser esquerda (justamente para não ficarem com a pecha de ser ‘de direita’), trabalham objetivamente contra essa via democrática. Só há explicação se partirmos de uma hipótese abstrusa: parece que existem pessoas cujo córtex frontal é liberal, mas o cérebro límbico é de esquerda populista (ou seja, iliberal). É esse tipo de gente que, na reta final de 2026, acabará recomendando o voto em Lula como o menos pior. E atenção! A reta final pode não ser o segundo turno, de vez que o governo e o PT vão jogar tudo para reeleger Lula no primeiro turno.

É claro que há uma malandragem jornalística em curso para captar a simpatia dos 10% de votos moderados de centro, que podem decidir a eleição. Na reta final os malandros dirão que, infelizmente, não apareceu ninguém que valha a pena e então recomendarão o voto em Lula como o menos pior. E já que é o menos pior, por que não elegê-lo logo no primeiro turno afastando o risco do governo cair nas mãos de um aventureiro reacionário ou de um fisiológico ou corrupto do “centrão”?

Assim, temos de passar a observar de perto não os que hoje defendem a reeleição de Lula ou a eleição de um oposicionista. Mas os que estão cativando a simpatia desses 10% de votos ditos centristas, projetando um caminho para, amanhã, recomendar o voto em Lula como o menos pior para a democracia.

Ao fazerem isso, porém, esses trânsfugas do liberalismo estarão não apenas eliminando a possibilidade de uma via democrática para 2026 (se houver um candidato não populista viável), mas inclusive para 2030 e, quiçá, além. Descartada a via antissistema, dita de extrema-direita, nos curto e médio prazos, o hegemonismo petista continuará aparelhando as instituições e colonizando as consciências durante o quarto mandato de Lula e o sexto do PT neste século. E, dependendo do que vier a acontecer nos próximos cinco anos, 2030 pode ser ainda mais difícil para uma via democrática do que 2026. Não se deve duvidar disso. Estamos sob uma terceira onda de autocratização e em plena recessão democrática desde o início deste século. É mais ou menos como a antessala de uma idade das trevas, semelhante àquela que vivemos nos anos 20-30 do século 20.

Há pouco mais de um ano (em 04/11/2024) publiquei um artigo intitulado Centro democrático? Sim, em 2030. O artigo terminava assim:

Claro que 2030 passa por 2026. E que se deve fazer o possível em 2026. Desde que a comichão de jogar todas as fichas na loteria do calculismo eleitoreiro de curto prazo não nos desvie das tarefas estratégicas cujo horizonte, queiramos ou não, salvo um acontecimento extraordinário, já vai se deslocando para 2030. Não somos idiotas. Não se trata de abrir mão de 2026 e sim de começar hoje, no final de 2024, a construir as condições para uma vitória futura, que não cairá do céu…

Porém um ano se passou e fizemos muito pouco nesse sentido. Se não houver um fato extraordinário, o tempo hábil é muito curto para estruturar, fermentar e fazer crescer um movimento democrático-liberal capaz de suplantar os dois populismos que estão alimentando uma polarização tóxica no Brasil.

Nestas circustâncias, qualquer candidato que não se alinhe ao eixo autocrático, seja pela esquerda (Rússia, Bielorrússia, China, Vietnam, Laos, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Angola, Cuba, Venezuela, Nicarágua etc.), seja pela direita (Rússia novamente, Índia, Turquia, Hungria, Eslováquia, El Salvador, EUA-MAGA etc.) – e que não seja populista – é melhor do que Lula ou um lulopetista e do que um bolsonarista-raiz (ou seja, um súdito fiel da famiglia Bolsonaro).

Sim, a política externa passou a ser um tema de campanha na medida em que Lula e o PT tomaram e acentuaram, neste quinto mandato petista, posições francamente antidemocráticas e favoráveis à ditaduras de esquerda, como demonstra a folha corrida do PT desde o seu surgimento (e como elencou o Heni Ozi Cukier neste vídeo) e o bolsonarismo também o fez, ao não apoiar a resistência ucraniana à invasão do ditador Putin, da Rússia, ao apoiar o governo Netanyahu, de Israel, que abriga supremacistas judaicos, ao elogiar e pedir ajuda ao ditador Orbán da Hungria, ao tentar colocar o autocrata Nayib Bukele, de El Salvador, como modelo de combate ao crime, ao apoiar o populista Milei, da Argentina, adepto da servidão voluntária a Trump – tudo culminando com os pedidos para que o presidente dos EUA pressionasse os poderes da república brasileira para reverter a ilegibilidade e a condenação de Bolsonaro ou livrasse da prisão ele e algum (ou alguns) dos seus filhos (o que deu e continua dando muito errado, como estamos vendo).

De sorte que não há como tirar a política externa da campanha, a menos que o TSE e o STF – neste caso para favorecer Lula, o mais vulnerável pela sua aproximação crescente com ditaduras amigas – decidam proibir que os candidatos abordem o tema. Sim, absurdo, mas é possível no Brasil dos dias que correm.

Frisando esse ponto. Não havendo um candidato democrata-liberal viável, qualquer candidato não-alinhado ao eixo autocrático e não-populista (não lulopetista e não bolsonarista) será uma alternativa. Não precisa ser um social-democrata ou alguém dito de centro-esquerda. Qualquer político moderado de centro, ou até considerado do “centrão” – e dito ‘de direita’ – que jogue dentro das regras da democracia representativa, seria melhor do que a reeleição de Lula ou a eleição de um bolsonarista-raiz (quer dizer, nunca é demais repetir a definição: um súdito fiel da famiglia Bolsonaro).

Por todas as razões apresentadas, os democratas:

1 – Não devem votar na continuidade do atual governo (que se diz e é dito de esquerda – mas não por ser de esquerda e sim porque Lula e o PT são populistas e hegemonistas, além de estarem alinhando o Brasil ao eixo autocrático contra as democracias liberais).

2 – E não podem votar em ninguém considerado de extrema-direita (ou seja, num candidato reacionário antissistema) – por razões tão óbvias a esta altura que seria ocioso enumerar.

3 – Preferencialmente devem votar em um candidato democrata liberal (se houver algum viável). Mesmo que a campanha do PT diga que esse candidato é ‘de direita’ (querendo com isso dizer que ele é um bolsonarista de extrema-direita ou um golpista e fascista disfarçado).

4 – Na ausência dessa alternativa devem votar em algum democrata considerado de centro (que for viável). Idem; ou seja, mesmo que a campanha do PT diga que esse candidato é ‘de direita’ (querendo com isso dizer que ele é um bolsonarista de extrema-direita ou um golpista e fascista disfarçado).

5 – Se não houver um democrata de centro, devem votar num candidato rotulado (pela esquerda) como sendo moderado ‘de direita’. Idem-idem; quer dizer, mesmo que a campanha do PT diga que esse candidato não é ‘de direita’ e sim de extrema-direita, golpista e fascista.

Qual o problema?

As duas únicas democracias liberais da América do Sul – o Chile e o Uruguai – passaram por isso.

O caso do Chile. Aylwin é substituído por Frei, que é substituído por Lagos, que é substituído por Bachelet, que é substituída por Piñera, que é substituído novamente por Bachelet, que é substituída novamente por Piñera, que é substituído por Boric (dito ‘de esquerda’). E o mundo não acabou (pelo menos até às arriscadíssimas eleições de ontem). O Chile continuou sendo uma democracia liberal – coisa que nunca fomos no Brasil (1).

O caso do Uruguai. Sanguinetti é substituído por Lacalle, que é substituído por Sanguinetti novamente, que é substituído por Batlle, que é substituído por Vázquez, que é substituído por Mujica, que é substituído novamente por Vazquez, que é substituído por Lacalle Pou (dito ‘de direita’). E o mundo não acabou. O Uruguai continuou sendo uma democracia liberal – coisa que nunca fomos no Brasil.

Pelo exposto fica claro que os democratas podem, sim, votar num candidato que seja dito ou até que se diga ‘de direita’ – embora isso seja uma besteira. A esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita. Mas vá-se lá dizer-lhes!

Nota

(1) Boric não conseguiu montar uma coalizão democrática expressiva. Já se sabia que sua candidata não venceria no primeiro turno e perderia para todos os concorrentes no segundo turno. O diabo é que o Chile, uma das poucas democracias liberais da América Latina (juntamente com Costa Rica e Uruguai), vai entrar em risco de decair para democracia apenas eleitoral no curto prazo e no médio prazo as consequências podem ser piores. O importante era que o Chile continuasse sendo uma democracia liberal, não que continuasse sendo governado pela esquerda. O Uruguai foi governado por Pou, que não era de esquerda, e continuou sendo uma democracia liberal. A coalizão governista no Chile perdeu ontem (16/11/2025) a Câmara e o Senado. E, não ocorrendo um milagre, perderá também a presidência. Essa besteira de querer ser ‘de esquerda’ levou à escolha de uma candidata do partido comunista (que não consegue nem dizer que Cuba é uma ditadura).


Uma primeira versão deste artigo foi publicada na revista Inteligência Democrática (em 16/11/2025).

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