Esse negócio de esquerda x direita como schema interpretativo e critério axiológico-normativo é um vírus terrível, um malware resistente, que depois que se instala na cabeça da pessoa não sai fácil, nem passando um CCleaner.
Mas já que não há muito o que fazer em relação a isso, somos obrigados a usar as expressões vazias (posto que se aplicam a qualquer ambiente): extrema-esquerda, esquerda, centro-esquerda, centro-direita, direita, extrema-direita. Não sem antes alertar para o fato de que essas classificações mais confundem do que esclarecem e contribuem, por exemplo, para dificultar a caracterização das forças políticas populistas que, na atualidade, são os principais adversários da democracia (digam-se de esquerda, como o neopopulismo ou de direita, como o populismo-autoritário).
Isso é tão patente que a extrema-direita bolsonarista parece que só faz copiar a esquerda lulopetista, trocando o sinal.
Tudo igual com o sinal trocado
Vejamos – com dez exemplos – como pensam (e fazem) os bolsonaristas:
1 – A esquerda fez o Foro de São Paulo e o Fórum Social Mundial para juntar os revolucionários marxistas. Vamos então fazer um foro internacional com o sinal trocado para juntar os revolucionários para trás (quer dizer, os reacionários bannonistas).
2 – A esquerda tinha uma política externa ideológica que nos isolava do mundo desenvolvido. Vamos então implantar uma política externa ainda mais ideológica que nos isole do mundo desenvolvido (com exceção dos USA).
3 – A esquerda criticava os USA por prejudicarem os interesses do Brasil. Vamos então adotar uma política de subordinação aos USA sujeitando a eles os interesses do Brasil.
4 – A esquerda aparelhou o Estado com seus militantes petistas. Vamos então aparelhar o Estado com militares (que não aceitaram a abertura democrática) e com militantes olavistas e bolsonaristas.
5 – A esquerda partidarizou as escolas com doutrinação marxista. Vamos então militarizar as escolas infundindo nos alunos a ideologia da pátria, o nacionalismo e o soberanismo de extrema-direita e fazendo uma escola sem partido (de esquerda), mas com partido (de extrema-direita).
6 – A esquerda impôs sua ideologia como critério para financiar atividades culturais e intelectuais. Vamos então impor nossa ideologia como critério para financiar atividades culturais e intelectuais.
7 – A esquerda usava a democracia contra a democracia, vencendo eleições para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido com o fito de nunca mais sair do governo, ganhando tempo e acumulando forças para alterar o DNA do regime democrático. Vamos então também usar a democracia contra a democracia, elegendo e reelegendo um líder para, a partir do governo e com o apoio de sua base social mobilizada, alterar a natureza do regime.
8 – A esquerda lançou mão dos MAVs (núcleos de Militância em Ambientes Virtuais). Vamos então lançar mão dos MAVs (Movimento de Ativistas Virtuais) – é espantoso: até a sigla é a mesma!
9 – A esquerda era populista (neopopulista, na linha bolivarianista, chavista, lulopetista). Temos então de ser também populistas (populistas-autoritários, na linha trumpista, orbanista, salvinista, bolsonarista).
10 – A esquerda não encara a democracia como um valor universal e como o principal valor da vida pública. Nós também.
Aí a pessoa diz que é de esquerda e não de extrema-esquerda, para não posar de adversário da democracia. Ora, quem é de extrema-esquerda hoje? Os militantes das FARC que não concordaram com o processo de paz na Colômbia (ou o refugaram depois de assinado)? O Exército de Libertação Nacional (ELN) da mesma Colômbia?
Em suma, a extrema-esquerda é composta pelos que não aceitam a via eleitoral. Mas estes são vestigiais na atualidade. Não, eles não são populistas.
O problema para a democracia são os populistas, que são de esquerda mesmo, não de extrema-esquerda (se é que tais distinções topográficas ainda fazem algum sentido – e não fazem).
Chavistas, maduristas, bolivarianistas em geral, como os orteguistas, os evoístas, os luguistas, os kirchneristas (sub-conjunto dos peronistas), os funesistas, os correistas, os lulopetistas e até os ex-guerrilheiros das FARC que seguiram o conselho de Lula para depor as armas e disputar o poder usando os mecanismos da democracia – que são, todos, de esquerda – aceitam o processo eleitoral, proclamam defender a democracia, mas não a tomam como um valor universal e o principal valor da vida pública. Usam a democracia contra a democracia, para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir de governos eleitos, tal como aprenderam a fazer, mais recentemente, os populistas-autoritários, aí sim de extrema-direita, como os bannonistas, orbanistas, salvinistas, lepenistas, olavistas e bolsonaristas.
Alguém poderia perguntar por que caracterizamos o populismo de esquerda como sendo de esquerda e não de extrema-esquerda, já que designamos o populismo de direita como de extrema-direita. É simples. Existe uma chamada direita-liberal, liberal-conservadora, que convive bem com a democracia e não é populista, não acha que a sociedade está dividida em uma única clivagem (povo x elites, pessoas de bem x establishment corrupto-comunista). Por exemplo, Pondé, Reinaldo, Coutinho e Joel não são populistas, não querem usar a democracia contra a democracia, se identificam com o liberalismo no sentido político do termo e (alguns) se dizem de direita. Podem ser conservadores, mas não são reacionários. Não são de extrema-direita. Não podem, portanto, ser colocados no mesmo pátio infecto onde vicejam bannonistas, olavistas e bolsonaristas.
O que há de comum em lulopetismo e bolsonarismo é que ambos são populistas e, como tais, i-liberais e majoritaristas. Por isso, quando o segundo substitui o primeiro, tenta remedá-lo, fazendo as mesmas coisas com o sinal trocado.


