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Os seres humanos não precisam ser anjos para experimentar a democracia

O conceito de liberalismo precisa ser revisitado. Liberal, no sentido originário do termo, é quem toma a liberdade como sentido da política e não a ordem. Antes de contrapor Spinoza (1670) a Hobbes (1651), é bom ver que tal distinção já era feita pelos democratas atenienses do século 5 a.C. Assim, geneticamente, não há contradição entre liberalismo e democracia. Há, por certo, tensão entre a forma como o liberalismo foi tomado no século 20 (sobretudo quando reduzido ao seu sentido econômico) e as formas de democracia representativa que se expandiram no mesmo século. Ora, nem o liberalismo deve continuar sendo entendido, precipuamente, como liberalismo-econômico, nem a democracia representativa pode ser tomada como ‘a’ democracia (no sentido de um modelo).

A democracia é, propriamente, um processo de democratização e o que caracteriza (e define) tal processo é ser um movimento de desconstituição de autocracia. Só por isso podemos chamar com o mesmo nome – democracia – o modo de regulação de conflitos que se originou da resistência dos atenienses à tirania de Hípias, filho do tirano Psístrato e o modo de regulação de conflitos que surgiu no parlamento inglês do século 17 com os Bill of Rights e a resistência ao poder despótico de Carlos I. O processo de democratização é um processo de liberalização (no sentido político do termo).

Sobre as relações entre liberalismo e democracia, João Pereira Coutinho publicou anteontem, na Folha de São Paulo, um artigo intitulado Se os homens fossem anjos. Trata-se, como veremos, de uma apreensão problemática do liberalismo e da democracia. Segue reproduzido abaixo com algumas observações críticas interpoladas (em azul). Volto ao final para um comentário mais extenso sobre o liberalismo-econômico.

A democracia liberal está em regressão. Não sou eu quem o diz. É a Freedom House, e pelo 13º ano consecutivo. Causas? Várias. Mas uma delas está na divergência crescente entre “democracia” e “liberalismo”. O mito democrático está chegando ao fim.

Essa é a tese que Yascha Mounk apresenta em “O Povo Contra a Democracia” (Companhia das Letras), talvez o melhor livro que li até o momento sobre o chamado populismo. Resisti bastante, confesso, porque o título enganava.

A tese de Mounk é a de que populismo ascendente (sobretudo o populismo-autoritário de extrema-direita, i-liberal e majoritarista) vai contra a democracia liberal (nesta terceira onda de autocratização em que estamos imersos), não a de que um suposto “mito democrático” estaria chegando ao fim.

Erro meu. Mounk não se limita a carpir mágoas contra a fúria iliberal das massas, ou daqueles que as dizem representar. No banco dos réus, também está o “liberalismo não democrático” que desprezou e alienou essas massas. São precisos dois para dançar o tango.

Ruínas da frente do Parthenon em preto e vermelho

Mas eu falei em mito democrático. E que mito é esse? Basicamente, a ideia de que os destinos da comunidade estão nas mãos do “demos”, do povo, dos que votam.

Os “demos” não eram nada que se pudesse chamar de povo (povo não era um conceito dos democratas, nem havia a palavra na Grécia clássica). Os demos eram divisões territoriais que foram instituídas pelos primeiros democratas para quebrar o poder da aristocracia fundiária. Menos ainda pode-se dizer que povo seriam os que votam. A eletividade nunca foi critério central de legitimidade na democracia nascente. Na essência da democracia está, isto sim, o sorteio, não o voto. A democracia não é o governo do povo e sim o governo de qualquer um (por isso o sorteio). O poder da maioria é majoritarismo, uma característica do populismo que contribuiu para derruir a democracia.

Pode, é claro, haver muitos mitos sobre a democracia: o mito de que ela é sinônimo de regime eleitoral (como se as autocracias eleitorais não fossem, hoje, os regimes mais numerosos do mundo); o mito de que ela é o regime ou o governo da maioria (quando ela é o governo de qualquer um); o mito de que ela é um modelo de sociedade ideal (quando não há modelo e sim um processo de democratização, que é um processo de desconstituição de autocracia); o mito de que ela é a utopia da política (quando é exatamente o contrário); o mito de que é papel da democracia dar “casa, comida e roupa lavada” para o povo (quando seu propósito não é melhorar condições de vida das populações e sim alterar as condições de convivência social) et coetera. Mas não há um mito democrático no sentido de que a democracia – tal como inventada e ensaiada pelos gregos pela primeira vez – seria uma ilusão pelo fato de que não conseguiria se exercer como governo sem se degenerar em formas não liberais e de que esse mito estaria sendo desmontado no mundo atual.

Na Grécia Antiga, talvez fosse assim, exceto para mulheres, escravos ou estrangeiros. Mas Atenas era uma cidade-Estado, pequena, sem a complexidade das grandes repúblicas. Impossível replicar o modelo na era moderna, por mais que Jean-Jacques Rousseau e seus herdeiros o tenham desejado (e, durante o Terror da Revolução Francesa, praticado; não deu bons resultados).

Não é o tamanho das unidades territoriais que impede, a partir da modernidade, formas mais  participativas de democracia. As cidades gregas que experimentaram a democracia eram do tamanho dos nossos atuais municípios. Foi o nível de interatividade que impediu isso, quando os modernos tentaram aplicar a democracia a unidades artificiais de governança chamadas de Estados-nações (um fruto da guerra, da paz de Vestfália), que  aprisionaram pessoas que não conviviam (ou seja, que não tinham uma história de interações, às vezes que nem falavam a mesma língua ou dialeto) dentro de fronteiras definidas manu militari

E não, os jacobinos não tentaram reproduzir a democracia grega na França revolucionária. Proliferação de comitês populares, assembleísmo, sovietismo, não têm a ver com democracia.

Quando os “pais fundadores” dos Estados Unidos são obrigados a pensar e a executar o modelo democrático moderno, em nenhum momento tiveram a ilusão de que estavam a imitar a democracia ateniense.

Quando muito, estariam a adotar o modelo republicano de Roma, onde as assembleias populares eram parte do processo político mas nunca a totalidade dele.

Para James Madison, a tirania de um só homem era tão intolerável como a tirania das massas. E a única forma de impedir qualquer um desses extremos de assumir uma posição suprema passava por um governo representativo e por um sistema de “checks and balances”, capazes de frear quer o absolutismo de um rei, quer o absolutismo das multidões.

Aqui há vários equívocos. O primeiro deles é que os “pais fundadores” teriam sido obrigados a pensar ou executar o “modelo” democrático moderno. A democracia não é obrigação (quer dizer, nunca é necessária e sim fruto do desejo). E não há propriamente modelo democrático. O fato de eles não imitarem a democracia ateniense não deve ser visto como sabedoria em refugar uma ilusão e sim como analfabetismo democrático mesmo (possivelmente involuntário). Eles – os chamados de “pais” do regime americano, Jefferson incluído – não faziam a menor ideia do que havia sido a democracia ateniense. Claro que a democracia participativa dos atenienses, tal como vigorou entre 509 e 322 a.C., não se aplica ao mundo moderno, mas por outras razões (sobretudo pelo fato de ela ser participava em um mundo interativo e por ela se aplicar a unidades de governança com baixa interatividade).

Sim, eles tentaram imitar o modelo republicano de Roma, que não era uma democracia e sim uma oligarquia disfarçada, dos patrícios sobre os plebeus. Nunca se adotou, na Roma republicana, a isologia, a isonomia e a isegoria no que tange às opiniões (elementos que fazem parte do genos da democracia).

Por último, a tal tirania das massas (ou a “ditadura da maioria”) – que estaria implícita no “modelo” democrático – esta, sim, é um mito. Nunca ocorreu em lugar nenhum ou qualquer época da história. O que existe é o majoritarismo, que não é democracia e se confunde com a tirania de algum líder populista (que pretende falar em nome das massas). Madison – e não só ele – talvez estivesse assombrado por fantasmas. Não há como se materializar um regime de ditadura da maioria em que não haja tirania de um ou de poucos (quer dizer, uma oligarquia) – nunca de muitos! Como “as massas” ou “as multidões” exerceriam um poder despótico sem representantes ou líderes? Nenhuma democracia foi isso (o que seria, stricto sensu, uma anarquia e, então, não poderia ser tirania), nem na antiguidade, nem na modernidade. O problema, portanto, não tem a ver com a democracia e sim com o populismo (que hoje constitui o principal adversário da democracia – como, aliás, mostra Mounk no livro resenhado por Coutinho neste artigo e em outros artigos).

Os mecanismos de “checks and balances” – a despeito do que disseram os “pais fundadores” – não foram feitos para evitar um suposto “absolutismo das multidões” e sim para dificultar a manipulação (em geral populista) dos regimes democráticos por parte de elites que, tendo chegado ao governo pelo voto, quisessem falar em nome do povo bypassando as instituições para estabelecer uma ligação direta com as massas.

A tensão entre “democracia” e “liberalismo” —no fundo, a tensão entre a vontade popular expressa pelo voto e a soberania da lei na proteção das liberdades e dos direitos fundamentais— esteve presente desde o início da democracia moderna.

Pois bem: para Mounk, essa tensão latente virou conflito aberto.

De um lado, existe a sensação crescente e impaciente de que a arquitetura tradicional das democracias liberais já não funciona —e de que é necessário acelerar a “vontade geral” na prossecução de fins políticos, mesmo que isso implique formas mais autoritárias de organização social.

Do outro lado, e nas palavras certeiras de Mounk, “o sistema político se converte no pátio de bilionários ou tecnocratas” e “a tentação de excluir cada vez mais o povo de decisões importantes irá crescer”.

Como resultado desta divergência, o povo tornar-se-á cada vez mais iliberal e as elites ficarão cada vez mais não democráticas.

Perante esse quadro sombrio, a velha pergunta leninista: que fazer?

O autor tem razão quando afirma que “democracia” e “liberalismo”, apesar de conterem naturezas divergentes, conseguiram coexistir por três motivos essenciais: havia dinheiro para distribuir; não havia redes sociais para incendiar; e a tribo ocidental, etnicamente falando, era mais homogênea.

Não há naturezas divergentes entre democracia e liberalismo (com ou sem aspas), como foi dito na introdução deste artigo e sim entre duas apreensões desses conceitos. A democracia (ou seja, o processo de desconstituição de autocracia que está na gênese da primeira democracia, a dos antigos atenienses que resistiram à tirania dos psistrátidas e da segunda, a dos modernos que resistiram no parlamento inglês ao poder despótico de Carlos I) é intrinsecamente liberal (no sentido político do termo).

Essa cola desapareceu: os filhos sabem que não terão uma vida tão confortável como os seus pais; a internet mobiliza os descontentamentos com uma força que James Madison nunca conheceu; e as sociedades multiculturais despertam ansiedades nativas que só um cego não vê.

No livro, Mounk tenta responder a cada um desses problemas com proclamações vagas sobre a necessidade de menos desigualdade, mais educação para resistir à imbecilidade cibernauta e um renovado papel para o esquecido Estado-nação. Difícil discordar.

Mas o grande desafio, ao qual Mounk não responde completamente, é o de saber por que motivo a democracia liberal merece ser defendida. É uma discussão metapolítica, ou até ontológica, sobre as virtudes de um regime político que tenta combinar a escolha livre dos cidadãos com a durabilidade de certos direitos ou instituições que estão acima das contingências populares.

No fundo, é preciso voltar ao básico —“se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário”— para lembrar o básico: ter democracia sem direitos ou liberalismo sem democracia só pode acabar da mesma forma. Em tirania.

Os homens não são anjos nem demônios. O santo que baixa depende da configuração do terreiro (consulte-se a umbanda ou o candomblé para saber o que é “santo” e o que é “terreiro”). Todo governo, em certo sentido, é oligárquico, mas porque isso tem a ver com padrões de organização (hierárquicos) que produzem artificialmente escassez (atribuindo poderes regulatórios aumentativos a uns poucos) e não devido a defeitos de fábrica da natureza humana. O governo da Ecclesia ateniense, enquanto durou e se exerceu em sua plenitude (sobretudo em torno de meados do século 5) foi o menos oligárquico que já surgiu, porém isso só foi possível porque se configurou, na praça do mercado de Atenas, na passagem do século 6 para o século 5 a.C., uma rede mais distribuída do que centralizada de conversações entre os homens que não estavam arregimentados para a guerra e que já haviam se libertado da servidão (Mommsen) da casa ou da família como espaços privados (e, assim, puderam parir uma esfera pública). Tudo isso foi feito por homens comuns, com todas as suas curvaturas, sujidades e imperfeições. Os seres humanos não precisam ser anjos para experimentar a democracia.

Por último, conquanto corretas, as últimas palavras do artigo de Coutinho são desnecessárias. Democracia sem direitos não se poderia chamar de democracia. Liberalismo sem democracia – e vice-versa – é uma contradição em termos.

ALGUNS COMENTÁRIOS FINAIS

O artigo de João Pereira Coutinho linka – para a definição de liberalismo – um outro artigo, publicado em 23 de julho de 2019, na mesma Folha, de Joel Pinheiro da Fonseca e intitulado O que é (e o que não é) liberalismo.

Escreve Joel:

“Ciente da pobreza de qualquer definição, eu diria que o liberalismo é a defesa da liberdade individual como fator essencial da boa sociedade. Uma boa sociedade é aquela na qual as pessoas podem, tanto quanto possível, viver de acordo com seus diferentes valores e interagir pacificamente com os demais. Os indivíduos vêm antes da consideração abstrata da coletividade, ou de alguma concepção da sociedade como um todo orgânico, que não raro acaba sendo identificado com o Poder Executivo.

Além de um componente moral, essa defesa parte também do entendimento de que a economia de mercado —aquela baseada na propriedade privada, liberdade de preços e de iniciativa— é a engrenagem básica do progresso.

O mercado está longe de ser perfeito. Tem falhas, pode levar à concentração exagerada de renda e riqueza, não atende adequadamente aos mais pobres, não compreende tudo que importa na vida. Essas considerações justificam o papel ativo do Estado para além de mero garantidor da propriedade. Mas o fato é que economias que tentaram prescindir do mercado naufragaram e seguem naufragando.

Dito isso, a liberdade individual vai além da liberdade econômica. Ela depende também, por exemplo, de regras e instituições que impeçam a concentração extrema de poder. Isso se dá tanto pela divisão dos Poderes do Estado quanto pela existência de entidades da sociedade civil capazes de fazer um contraponto ao discurso dos mais poderosos. Nada é mais perigoso ao poder constituído do que mentes e vozes livres”.

Correto! Mas há questões não discutidas aqui. Tais questões dizem respeito às consequências da apreensão do liberalismo como sendo, fundamentalmente, liberalismo econômico (não é o caso do Joel, mas é o caso de 99% dos institutos que se dizem liberais no Brasil: parece inegável que há um deficit de liberais, no sentido político do termo – que é o que importa para a democracia).

A principal questão tem a ver com a concepção, como diz Joel, de que “os indivíduos vêm antes da consideração abstrata da coletividade, ou de alguma concepção da sociedade como um todo orgânico”. Entenda-se isso, no bom sentido, como uma correta refutação das formas de coletivismo exaltadas pelos teóricos e militantes marxistas e socialistas em geral. Mas a sociedade existe: é uma rede de pessoas, não uma abstração. Indivíduos, estes sim, são abstrações estatísticas. Os seres humanos concretos, realmente existentes, são pessoas. E pessoas são entes sociais. Um indivíduo isolado não poderia alcançar liberdade política. E, a rigor, nem seria humano (o genoma não determina o humano e sim apenas o humanizável).

Entretanto, liberais-econômicos não fazem a menor ideia do que significa a palavra ‘social’. Para as doutrinas do liberalismo-econômico o social não existe com racionalidade própria. A sociedade, para eles, é um epifenômeno, como declarou Margaret Tatcher (1987) em entrevista ao Women’s Own: “And, you know, there’s no such thing as society. There are individual men and women and there are families”.

Para os seguidores de doutrinas do liberalismo-econômico existem, como forma autônoma de agenciamento, somente o mercado e o Estado (e, por extensão, os indivíduos e suas famílias).

O social – que não é a coleção dos indivíduos e sim o que acontece entre eles para que virem pessoas (quando inventam aqueles “novos mundos” dos primeiros democratas atenienses, que na leitura de Hannah Arendt não se confundem com a natureza ou a vida, nem com o universo físico) – não lhes passa pela cabeça.

São pessoas de pensamento primário, economicistas que acham que o que acontece na economia determina o que acontecerá na política e na cultura.

Isso explica, pelo menos em parte, porque os seguidores de doutrinas do liberalismo-econômico têm tanta dificuldade de entender o conceito de esfera pública e de commons (na acepção política do termo) e de tomar a democracia como um valor universal.

No limite, isso explica porque eles preferem (sem ter a coragem de declarar) regimes comandados por um Augusto Pinochet (Chile ditatorial), um Xi Jinping (China ditatorial) ou um Lee Hsien Loong (Singapura autoritária), onde um senhor lhes dê carta branca para aplicar suas fórmulas econômicas liberalizantes de cima para baixo, do que regimes democráticos, onde as coisas têm que andar no ritmo lento do debate público. Público? Isso não é com eles.

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