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Paz não é ausência de conflito

Uma parte das pessoas confunde paz com não-violência. Mas ainda que a não-violência seja desejável, paz não é não-violência e sim não-guerra.

Outra parte das pessoas acha que paz é ausência de conflito. Mas o conflito é inerente ao que chamamos de social. Sem conflito a sociedade morreria de inanição. O conflito não é uma disfunção que precise ser suprimida. O problema não é o conflito, mas o modo de resolver o conflito. O problema é cultuar o conflito, não reconhecê-lo e tratá-lo. Ao tratar o conflito de modo guerreiro, instauramos a autocracia. Ao tratá-lo de modo pacífico (ou melhor, pazeante), inventamos a democracia. Paz não é ausência de conflito e sim ausência de guerra.

Muitas pessoas me interpelam assim: como você pode dizer que só a paz é revolucionária e ao mesmo tempo ser tão crítico em relação às opiniões divergentes ou contrárias às suas?

Então essas pessoas acham que quem prega a paz deve ser cordato, se abster de fazer críticas, só falar positivamente (e calar sempre que não haja motivos para elogiar). Como aqueles caras que só publicam fotos lindas de crianças sorridentes, gatinhos meigos, alvoradas radiantes, passarinhos cantando no azul cerúleo. Eles acham que estão espalhando amor, atraindo boas energias, situando-se num patamar de alto astral e, com isso, contribuindo para um mundo melhor. Em geral quem está assim tão transbordante de amor para dar, não entra em bola dividida, só vai na boa, não discorda de ninguém. Construindo uma persona com tais características pensam que conseguirão ser admirados ou, pelo menos, poupados de hard feelings. Mas tudo isso, creio, não passa de medo de desobedecer.

Bem, em primeiro lugar quero dizer que não sou um pregador da paz. A paz não precisa de pregadores. Apenas repito, todo dia, como um disco velho arranhado (daqueles de vinil), que só a paz é revolucionária. E quando repito isso quero dizer, precisamente, que a paz não é um objetivo a ser alcançado depois de uma guerra revolucionária vitoriosa, mas um caminho não-guerreiro de desobediência civil e política que desconstitui as bases (de obediência) sobre as quais se assenta o Estado (e todas as organizações hierárquicas). Vocês já viram um revolucionário obediente?

Sim, revolução tem a ver com desobediência a um poder que se institui e mantém pela guerra. Quero dizer, com a construção e manutenção de inimigos como artifício para reproduzir sistemas hierárquicos regidos por modos autocráticos. Não importa se isso é feito por meio da guerra quente ou violenta, da guerra fria que não é assim tão menos violenta ou da política pervertida como arte da guerra: tudo é guerra. Tudo que constrói e mantem inimigos é guerra. Toda vez que há estratégia e tática para lutar contra inimigos (não para destruí-los – como se pensa – e sim para mantê-los como inimigos), há guerra. Logo, se faço guerra para tirar alguém do poder e me organizo em seguida para manter e reproduzir também um poder (o meu “novo” poder, mas com as mesmas características morfológicas e funcionais, com a mesma estrutura hierárquica e a mesma dinâmica autocrática do “velho” poder que derrubei), isso não é revolução e sim conservação.

No entanto, as pessoas confundem revolução com o seu oposto, quer dizer, com a guerra. Então estou repisando a trilha que vai ao oposto do oposto. O oposto da guerra (a não-guerra) é a paz. E por isso repito que só a paz é revolucionária.

Este texto foi publicado originalmente em 10 de julho de 2014, no grupo SÓ A PAZ É REVOLUCIONÁRIA do Facebook.

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