in , ,

Qual é a saída para os democratas?

Alguns amigos e amigas vez por outra me perguntam qual a saída para os liberais (no sentido político do termo)? Esses amigos e amigas são (ou já foram) políticos com mandato representativo, ou estão querendo entrar na política (nos legislativos ou nos executivos). Eles pensam que não se pode fazer política sem mandato. É claro que se pode, mas proponho deixar essa questão de lado, pelo menos por ora.

Para começar digo que as caracterizações habituais da política não fazem mais o mesmo sentido que faziam antes. Alguns desses amigos e amigas foram alinhados ao que se chamava de social-democracia (aliás, incorretamente, posto que sempre se tratou mais de estatal-democracia) e se consideravam (ou ainda se consideram) de centro-esquerda ou de esquerda. Outros preferem se dizer de centro-direita ou de uma direita democrática. De certo modo eles ainda não viram que os registros ou referenciais da política mudaram. De qualquer modo, todos – com seus diferentes entendimentos – prezam a democracia ou se consideram democratas. É para estes que escrevo este artigo, não para os autocratas que não tomam a democracia como um valor universal e como o principal valor da vida pública.

Se o nosso referencial é a democracia, então temos de partir da constatação de que hoje, no Brasil e no mundo, os principais adversários da democracia não são mais os comunistas e os fascistas e sim os populistas, digam-se de esquerda (os neopopulistas, como os lulopetistas, os chavistas e outros bolivarianistas), digam-se de direita (os populistas-autoritários, como os bolsonaristas, os bannonistas, os orbanistas e outros conspiracionistas antiglobalistas). Já há extensa literatura sobre isso.

Os populismos têm algo em comum: todos são majoritaristas e i-liberais (no sentido político do termo). Em geral os populistas creem: 1) que a sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do establishment (as elites); 2) que a polarização (elites x povo) deve ser encorajada: os representantes do povo (que são os atores legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar sempre suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (daí seu majoritarismo); e 3) que as minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares e a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo.

Portanto, a saída para fazer política democrática (no parlamento, no governo ou em outras instituições do Estado e da sociedade) deve ser a de se opor aos populismos e resistir pacificamente ao avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade.

Até aí tudo bem. Mas os impasses surgem quando os atores políticos que concordam com os referenciais acima procuram – e não acham – um lugar para continuar (ou começar) a fazer política, sobretudo institucional (que exige a participação em processos eleitorais, posto que no Brasil os partidos ainda têm esse monopólio ou oligopólio: ninguém pode ser candidato a não ser através de um partido). Qual o partido com tais características? Qual o partido “menos pior” do ponto de vista da democracia? Existe um partido liberal (no sentido político do termo e não apenas, nem principalmente, no seu sentido econômico)? E, se não existe, deve-se fundar um novo partido?

Sabe-se que os liberais, no sentido político do termo, quer dizer, os democratas, andam meio em falta na política nacional. Muitos, que se afirmam liberais-econômicos, não são liberais-políticos (e aceitariam, sem perder o sono, trabalhar para um Pinochet, um Orbán ou um Xi Jinping que lhes desse carta branca para aplicar suas ideias econômicas). Então é preciso sempre esclarecer que liberais, do ponto de vista político são aqueles que acham: 1) que é normal que a sociedade esteja dividida entre muitas — e às vezes transversais — clivagens; 2) que a melhor maneira de lidar com essas clivagens é por meio de um debate aberto e livre, sob uma cultura política que valoriza a moderação e busca o consenso; e 3) que o Estado de direito e os direitos de minorias precisam ser respeitados.

Onde encontrar a turma da “enfermaria” que pensa assim no meio de uma polarização entre belicosas turmas que pertencem a estrebarias majoritaristas e iliberais (populistas)? Como não conseguem encontrar sua turma (ou ela é muito pequena), muitas pessoas ficam tentadas a construir um novo partido.

O diabo é que partidos são organizações difíceis de construir e de manter numa mesma linha programática. As concepções de seus fundadores, via de regra, se desmilinguem diante da velha dinâmica partidária (a vida política como ela é). Se se funda um partido, com a melhor das intenções e a mais excelsa plataforma possível, para cumprir as exigências legais, deve-se ter um número determinado de diretórios municipais. Ora, em cada município, onde os partidos já têm dono, qualquer aventureiro pegará a nova sigla para ser chefe do seu próprio partido (ou para ter um partido para chamar de seu). O cara favorável à liberação geral de agrotóxicos pegará o Partido Verde se ele estiver dando sopa. Essa dinâmica é incontrolável. Ou então os partidos, cartorializados, viram verdadeiras empresas de coligações (formais ou informais). Ou, ainda, para manter pura a sua linha original, os partidos se verticalizam ou hierarquizam (e acabam como o Partido Novo, sob o comando fortemente centralizado da sua liderança principal). E não adianta fazer provas e testes como condição para aceitar filiações e candidaturas (como no Partido Novo, podem passar por essas provas até sujeitos como Ricardo Salles).

Como se sabe, todo partido tem dono, mesmo os que se querem mais democráticos. Como também se sabe, todo partido tem pouca democracia interna. Como se sabe, igualmente, todo partido pode ser capturado por uma tendência ou facção (que às vezes é sua própria direção, formal ou informal) que acaba se erigindo como uma espécie de Partido Interno (para lembrar o 1984 de George Orwell). Aconteceu com o PT, aconteceu com a Rede Sustentabilidade e voltou a acontecer com o Novo. Não estamos nem falando das siglas de aluguel, dos partidos-ônibus, das agremiações meramente cartoriais – e são dezenas no Brasil.

De sorte que, para os amantes da liberdade, partidos não são bons arranjos. E antes que haja uma profunda reforma política que democratize as organizações partidárias (o que é difícil na medida em que ela será votada pelos chefes e funcionários partidários que têm interesses em manter as estruturas e dinâmicas atuais) é meio inútil tentar achar o partido ideal, não apenas pelo seu ideário, mas também pelo seu padrão de organização (mais distribuído do que centralizado) e pelo seu modo de funcionamento (mais democrático do que autocrático). Os mesmos problemas, já detectados acima, incidem sobre novos partidos que forem fundados com as melhores intenções do universo. Em pouco tempo a interação dos novos partidos com os velhos partidos acabará equalizando tudo; ou seja, um novo partido ficará velho bem antes do que se espera.

Então não há saída? Saída real, no curto prazo, não há. A democratização da política (incluindo a democratização dos partidos) não se fará da noite para o dia. Mas… enquanto isso, o que se pode fazer – ou melhor, o que podem fazer os democratas que querem continuar (ou entrar) na política institucional?

Recentemente surgiram várias iniciativas não-partidárias (algumas, talvez, proto-partidárias) de inovação na política, como, entre outras (intentadas ou que tiveram continuidade): a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), o Brasil 21, o Movimento Acredito, a Bancada Ativista, o Agora, o Quero Prévias, a Nova Democracia, o Instituto Cidade Democrática, o Movimento Transparência Partidária, o Nossas, a Transparência Brasil, a Frente pela Renovação, o Open Knowledge Brasil, o RenovaBR e o Livres. Cada uma dessas iniciativas teve, tem ou terá o seu papel específico, em geral mais voltado para a disputa eleitoral.

Há também movimentos (como o MBL) que talvez almejem virar partidos. E surgiram outros grupos organizados contra a corrupção, desenhados para convocar manifestações de rua e para colonizar as mídias sociais, que – em mais de 90% dos casos – acabaram virando comitês eleitorais de um candidato (Bolsonaro) ou linhas auxiliares do lavajatismo (como o Vem Pra Rua).

Ocorre que, na maioria desses grupos ou movimentos, não há um compromisso claro com a democracia. E, o que é mais preocupante, não há um esforço bem-sucedido de formar novos agentes liberais (no sentido político do termo, quer dizer, democratas). Aqui cabe um esclarecimento. Liberal, no sentido em que a palavra é empregada neste texto, é quem toma a liberdade (e não a ordem) como sentido da política e quem está disposto a defender os critérios da legitimidade democrática como: a liberdade (sobretudo de opinião e de imprensa), a publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade. Isso é um problema porque não existe democracia sem democratas. E o grau de analfabetismo democrático entre os nossos agentes políticos (partidários ou não) ainda é altíssimo.

De qualquer modo, na falta de partidos mais conformes às suas visões e desejos, alguns desses grupos ou movimentos plantaram seus candidatos em agremiações já existentes. Antigamente, sobretudo no seio da esquerda, isso era chamado de “entrismo”, uma prática com conotação negativa. Mas nem sempre essa saída é negativa. Às vezes é a única saída para tentar renovar a política com a inserção de novos quadros.

Não creio que, no curto prazo, seja possível encontrar outra saída. A multiplicidade exagerada de partidos nos órgãos de Estado – a fragmentação partidária e a inconsistência dos partidos existentes – é um problema para a governança democrática, mas a diversidade de grupos e movimentos políticos na sociedade não: pelo contrário, é enriquecedora da esfera pública democrática.

Pode-se, entretanto, dar mais um passo na direção da democratização da política. Nada indica que não se possa (e não se deva) construir “meta-partidos”, ou seja, partidos-movimentos, na verdade movimentos (ou correntes de opinião) que tenham como função precípua atuar como agentes fermentadores (ou catalisadores) da formação da opinião pública e que, eventualmente, também lancem seus candidatos por vários partidos.

Para os democratas a questão central é a existência de democratas atuando continuamente na esfera pública (estatal e social), polinizando opiniões com ideias-sementes democráticas, construindo espaços comuns (commons, no sentido político e não apenas econômico do termo) em que seja possível associar pessoas para contender com problemas que as afetam e ensejar que elas se juntem para realizar projetos que nasçam da congruência de seus desejos em diversas comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem e de projeto (o que consubstancia a nova esfera pública correspondente à visão forte da democracia como modo-de-vida e não apenas como modo político de administração do Estado, como já havia percebido, há um século, John Dewey).

Portanto, para os democratas, a questão da existência de um número cada vez maior (ainda que sempre minoritário, na medida em que fermento não é massa e não pode mesmo ser maioria) de agentes democráticos é o fundamental. E esse número é pequeno atualmente. Quantos liberais-políticos existem hoje nos parlamentos e nos governos? Quantos políticos cumprem o papel desempenhado outrora, por exemplo, por um Ulisses Guimarães? Quantos liberais-políticos escrevem, falam ou aparecem regularmente nas mídias tradicionais (broadcasting), no Youtube e nas mídias sociais? São pouquíssimos: contam-se, talvez, nos dedos. Em contrapartida, cresce o número de populistas (ditos de direita ou de esquerda) que desempenham essa função ao avesso. Por exemplo, o número de hubs da rede centralizada bolsonarista – que atuam via WhatsApp, num fluxo descendente em árvore, manipulando as mídias sociais e subindo artificialmente hashtags falsificadoras nos TT do Twitter – hoje já é bem maior do que o número de democratas.

É crucial, assim, para a democracia, para barrar as investidas dos populismos e para resistir ao avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade, ter agentes para atuar na grande mídia, nas mídias sociais, nas organizações da sociedade e em outras instituições, nos parlamentos e executivos, eventualmente no ministério público e no judiciário. Pessoas que tenham uma visão mais profunda e abrangente da democracia, que integrarão clusters com alta interatividade.

Não é, entretanto, necessário centralizar ou unificar tais iniciativas. Elas podem ser múltiplas. O ideal é que interajam permanentemente entre si, não por acordos de cúpula e sim em rede mesmo, pessoa a pessoa, horizontalmente. Redes democráticas, redes de democratização da política e da sociedade, redes mais distribuídas do que centralizadas, regendo-se por modos não-guerreiros de regulação de conflitos.

No dealbar de uma sociedade-em-rede, a saída só pode ser a rede, não outras hierarquias. Sobretudo agora que estamos sendo atingidos por uma ofensiva tenebrosa: uma reação desesperada do mundo hierárquico à desabilitação das suas velhas formas de governança, dos seus padrões centralizados de organização e de seus modos autocráticos de regulação (como se pode constatar pela ascensão dos populismos majoritaristas e i-liberais que acompanha a recessão e a desconsolidação democráticas que estamos vivendo nas duas primeiras décadas deste século).


Para saber mais sobre democracia: acesse http://democracia.org.br

Dos limites dentro dos quais é válido, do ponto de vista da democracia, alguém se dizer conservador

Um balanço da manifestação chapa-branca de 30 de junho de 2019