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Quando devemos nos preocupar? Agora, exatamente agora!

Quem toma a democracia como o arcabouço jurídico-político do sistema de governança chamado de Estado democrático de direito, mas não como processo de democratização que, para perdurar e prosseguir, exige uma base social (ou um fluxo de capital social) conforme, tem dificuldade de perceber sinais de autocratização. Porque não vê que essa base está sendo esgarçada e deformada neste século (pela degeneração da política como continuação da guerra por outros meios promovida pelos populismos) e que, sem ela, o processo de democratização fica paralisado ou retrocede, como vimos recentemente acontecer na Venezuela, na Nicarágua, na Turquia, na Hungria, na Polônia, na Rússia, nas Filipinas etc.

Quem acha que a democracia no Brasil não está sob ataque (porque as instituições estão funcionando) não entendeu bem o que é a democracia. Desgraçadamente, todo regime autoritário, quando se instala em um país, pressupõe esse tipo de cegueira democrática de parte da sua inteligência.

Quem acha que a democracia no Brasil não está sob ataque porque continuaremos tendo eleições, também não entendeu bem a democracia. Sim, se o projeto bolsonarista der certo nossa democracia continuará sendo uma democracia eleitoral, mas cada vez menos liberal, correndo o risco, no limite – para usar a classificação do V-Dem da Universidade de Gotemburgo – de virar uma autocracia eleitoral. Ora, isso configura, sim, um ataque à democracia. Por isso pode-se dizer, sem medo de errar, que a democracia brasileira está sob ataque.

Já tratei parcialmente do assunto no artigo Sobre a tese furada de que os arroubos autoritários de Bolsonaro têm pouca importância. Sigamos porém.

Tomemos como exemplo de falta de percepção democrática o artigo de Carlos Pereira, publicado no Estadão de hoje (veja abaixo).

Caricaturando um pouco. A tese de que se Bolsonaro não invade o Congresso com tanques e não fecha o STF com um cabo e um soldado, então vivemos a glória da democracia plena, além de míope é extremamente perigosa.

Essa história de que Bolsonaro, porque foi legitimamente eleito, pode alterar as políticas públicas impondo-lhes um viés conservador, é muito perigosa para a democracia. Um presidente, para ser legítimo, precisa governar democraticamente, não apenas ter sido eleito por maioria (dos votos válidos). E não se pode confundir o legítimo conservadorismo da direita liberal com o reacionarismo antidemocrático da extrema-direita iliberal e antissistema. Este último é ilegítimo. E é ilegítimo justamente porque é antissistema, ou seja, a rigor, não quer governar dentro do concerto institucional vigente e sim aboli-lo, ainda que homeopaticamente. Não quer governar nos marcos da democracia que temos e sim usar o governo para operar uma mudança de regime.

Não conseguirá de uma vez, é claro. Mas continuará insistindo. Todo santo dia uma luta. Como disse Steve Bannon (verdadeiro guru da família Bolsonaro e de todas as forças políticas populistas-autoritárias), será uma batalha por dia até que sejam completamente derruídas as bases do sistema liberal: “Every day, it is going to be a fight”.

Exatamente o que Bolsonaro vem fazendo. Isso pode não destruir as instituições, mas acaba deformando a base social que permite o bom funcionamento institucional. É guerra. Ainda que a forma Estado-nação seja um fruto da guerra, as instituições da democracia representativa não foram feitas para a guerra e acabam sendo degeneradas ao terem de travar batalhas, uma atrás da outra, para se manter. Elas não aguentam por muito tempo esse stress.

Os populistas-autoritários não são tolos. Eles sabem que não podem desferir golpes de Estado em termos clássicos (e nem querem fazer isso). Os processos de autocratização da terceira onda não derruem as instituições de uma vez e sim lentamente, passo-a-passo, com pequenas medidas. Orbán, quando foi eleito pela primeira vez, também era tido por liberal. Hoje é o campeão do i-liberalismo. Os analistas têm de abrir os olhos e não podem contribuir para nos despreparar para ver o perigo onde ele existe e em tempo hábil.

Carlos Pereira, no artigo reproduzido abaixo, pergunta “quando devemos nos preocupar?”. Imaginem se ele tivesse feito essa pergunta a Agnes Heller (quando viva) e aos democratas húngaros. Eles não se preocuparam suficientemente quando era a hora. Agora, que o fascistoide Viktor Orban já consolidou seu domínio, tudo é mais difícil.

O artigo de Pereira quase entra na categoria da análise pollyanna, confunde conservadorismo com reacionarismo e não vê os sinais de autocratização, nem as consequências desastrosas do ataque sistemático à democracia por parte de um chefe de governo.

Leiam.

Quando devemos nos preocupar?

Carlos Pereira, O Estado de S. Paulo (12/08/2019)

Instituições de freios e contrapesos têm limitado os excessos do presidente

Até que ponto a retórica belicosa de um presidente coloca em risco a democracia de um país? Não são poucos os exemplos de declarações agressivas do presidente Bolsonaro.

Desde o início de seu governo, a lista parece não ter fim. Dentre os variados alvos há opositores, ambientalistas, cientistas, jornalistas, órgãos de imprensa, índios e filho de desaparecido político.

Alguns analistas até identificam uma suposta escalada autoritária do presidente nas últimas semanas. Argumentam que essa postura destemperada emite, no mínimo, sinais de um baixo apreço do chefe do Executivo aos direitos individuais. Isso geraria insegurança para a sociedade civil e agentes políticos e econômicos, desestabilizando e colocando em xeque o funcionamento da própria democracia.

Esse comportamento beligerante não surpreende. A ausência de suporte partidário decorrente da escolha do presidente de governar sem o apoio de uma coalizão majoritária e estável tende a torná-lo cada vez mais dependente de contatos diretos com os eleitores (going public).

Governar de forma truculenta, portanto, tem se transformado na estratégia dominante do presidente para se manter conectado, principalmente com o núcleo de eleitores conservadores que lhe dá sustentação. Essa estratégia tem funcionado como uma ferramenta de construção de maiorias episódicas no Congresso, constrangendo legisladores a apoiar a agenda do presidente.

Qual a métrica mais adequada para identificar sofrimento democrático? Discursos inapropriados que privilegiam o conflito e a polarização ameaçam, por si só, as instituições democráticas? Ou devemos levar também em consideração a reação da sociedade a destemperos retóricos e a presença de limites impostos pelas instituições às iniciativas inconstitucionais do presidente?

Responder a essas perguntas requer que se faça uma distinção entre políticas públicas e instituições. Mudanças de curso em uma política pública, por vezes até interpretadas por alguns como retrocesso, fazem parte do jogo político e da alternância de poder. Assim como é esperado que governos com uma agenda de inclusão social e de proteção ambiental tendam a implantar políticas consistentes com essa plataforma, espera-se que governos conservadores pratiquem políticas que privilegiam o desenvolvimento, muitas vezes em detrimento de proteção social e ambiental.

O que importa para a qualidade da democracia liberal não são potenciais retrocessos de política pública, mas sim retrocessos institucionais. As regras do jogo democrático estão sendo erodidas? Se governos legitimamente eleitos ignoram de forma rotineira os seus limites constitucionais, comprometendo assim a independência das instituições responsáveis por controlar seus excessos, a democracia liberal sofre. Adquire um caráter iliberal.

Retrocessos institucionais desse tipo têm ocorrido em democracias eleitorais como Turquia, Venezuela, Polônia e Rússia. No Brasil, porém, em contraste com esses casos, é possível observar reação, ativismo e vigilância tanto da sociedade como de suas instituições contra os principais discursos, eventos e iniciativas com potencial iliberal do governo Bolsonaro.

A cada discurso truculento do presidente, atores sociais organizados e suas instituições de freios e contrapesos têm defendido com vigor os princípios e procedimentos democráticos. Além disso, o Congresso e o Judiciário têm imposto perdas sistemáticas às iniciativas do Executivo que supostamente teriam ultrapassado os limites constitucionais.

Nem tudo que é considerado retrocesso é um ataque às instituições democráticas, e nem todo conflito político gestado dentro das regras do jogo é, em si, uma ameaça a essas regras. Quando a sociedade e suas instituições estão ativas e vigilantes contra destemperos retóricos e/ou iniciativas de um presidente que resvalem em inconstitucionalidades, o que temos não é retrocesso democrático, mas sim uma democracia plenamente ativa e vibrante.

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