A esquerda populista é a esquerda realmente existente na contemporaneidade
A divisão esquerda x direita é um esquema interpretativo que tenta reduzir a realidade para fazê-la se encaixar no próprio esquema. O esquema é vazio: em qualquer lugar sempre se pode achar uma esquerda e uma direita, no Vaticano e numa seita fundamentalista. O esquema visa degenerar a política: de uma questão de modo (modo de regulação de conflitos) em uma questão de lado (o lado do bem contra o lado do mal, o lado do “nós” contra o lado do “eles”).
Foi a esquerda que inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita. Essa história de que a esquerda está mais preocupada com a igualdade e a direita com a liberdade – e que isso seria uma divisão exclusivamente política – não se sustenta sem algum dopping ideológico.
O problema da esquerda, pelo menos a partir de meados do século 19, são seus fundamentos incompatíveis com os fundamentos liberais da democracia:
a) o historicismo (a ideia de que há uma imanência na história, de que a história vai para algum lugar, de que a história é regida por leis que podem se conhecidas por quem tem a teoria verdadeira e o método correto de interpretação da realidade);
b) a luta de classes como motor da história;
c) a concepção (e a prática) da política como continuação da guerra por outros meios (já que, em sociedades de classes, a luta de classes seria uma espécie de guerra permanentemente presente).
Ou seja, ainda que a esquerda tenha surgido muito antes, na Assembleia da Revolução Francesa, o dopping ideológico que engendrou essa divisão nos últimos (quase) dois séculos foi o marxismo. Se vasculharmos a cabeça de qualquer militante de esquerda encontraremos em algum canto (às vezes como o rabo do gato escondido) as ideias acima.
O esquema esquerda x direita é funcional para qualquer tipo de guerra fria. Não teria surgido em um ambiente democrático. É característico da antipolítica.
No ocaso da guerra fria houve uma reengenharia ideológica na esquerda marxista. Do marxismo, a esquerda reteve a ideia de que o fim da desigualdade é pré-condição para a liberdade, abandonou a teoria de que a classe operária seria o único grupo social cujos particularismos, uma vez realizados, se universalizariam, e abraçou outras pautas ligadas às lutas por direitos e identitárias (minorias, mulheres, negros, populações LGBTQi+, povos tradicionais etc.). Em termos políticos, se desvencilhou das estratégias de tomada do poder por meios não-institucionais (insurreição, guerra popular prolongada, foco revolucionário) para estabelecer a sua própria ditadura (a ditadura do proletariado) e adotou a via eleitoral para chegar ao poder por meios não-violentos (mas não não-guerreiros ou pazeantes – pois a guerra: a política como continuação da guerra por outros meios, na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin – está no DNA de qualquer esquerda).
Foi aí que a esquerda abraçou o populismo, não propriamente ao velho estilo peronista ou getulista, mas um neopopulismo do tipo bolivariano ou similar, em versões, às vezes, menos hards (como o lulopetismo e o kirschnerismo), que usa a democracia contra a democracia mantendo a determinação de conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido.
Populistas creem que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe “o povo” às “elites”. Pretendem falar em nome do (verdadeiro) povo (composto por seus seguidores). Acham que são os únicos representantes legítimos (do povo) e que nada deve ficar no seu caminho.
Populistas pensam que democracia é a prevalência da vontade da maioria (majoritarismo). Em alguns casos os populismos de esquerda são hegemonistas. Acreditam que têm o direito de comandar (e só fazem alianças para ficar mais fortes e matar os aliados ao final).
Todos os populistas falam em nome da democracia (que confundem com processo eleitoral). Avaliam que, se foram eleitos por maioria, então têm legitimidade para fazer o que quiserem – até para não governar democraticamente.
A estratégia neopopulista de esquerda não quer dar nenhum tipo de golpe. Ela prevê ganhar eleições sucessivamente se delongando no poder por tempo suficiente para alterar a composição (e a natureza) das instituições democráticas. Mas tudo em nome da democracia.
Os populismos transformam democracias liberais em democracias apenas eleitorais. E, aos poucos, querem transformar democracias eleitorais em autocracias eleitorais (como está acontecendo, à direita, na Hungria e na Polônia e já aconteceu, à esquerda, na Venezuela e na Nicarágua).
De sorte que a esquerda populista é a esquerda realmente existente na contemporaneidade.
Quando a esquerda abraçou o populismo, a direita fez, logo em seguida, um movimento análogo. O florescimento do neopopulismo (de esquerda) precedeu à expansão (não propriamente simétrica, mas isomórfica) de um populismo-autoritário (ou nacional-populismo) de extrema-direita. Nesse processo, a extrema-direita fagocitou o que antes se chamava de direita (mais civilizada, que aceitava as regras do Estado democrático de direito não para violá-las em seguida e que tinha como referência conservadores como Churchill, Reagan ou Thatcher). Pois bem. Os conservadores foram devorados, digeridos e dejetados pelos reacionários.
A extrema-esquerda (não-eleitoral) feneceu para que uma “nova” esquerda (neopopulista) – muito mais moderada – pudesse se afirmar. A extrema-direita nunca precisou disso. O fascismo e o nazismo, quando surgiram, já eram vias (inicialmente) eleitorais.
Hoje o tipo de regime político mais numeroso no mundo não é a ditadura (autocracia fechada, sem eleições – uma minoria de 24 regimes que tende a se tornar vestigial) – muito menos a democracia liberal (pois só existiam no globo, até o final de 2020, 32 regimes que pudessem ser assim chamados) e a democracia eleitoral (60 regimes) – e sim a autocracia eleitoral (totalizando 62 regimes) (1). Esses regimes autoritários eleitorais são, em número significativo, populistas ditos de extrema-direita, mas uma parte não desprezível deles – no caso da bancarrota do populismo-autoritário – tenderá a ser populista de esquerda.
Tudo isso só foi possível acontecer porque houve desconexão e desconsolidação democráticas (2), recessão democrática (a partir de 2006 o número líquido de democracias parou de crescer) (3) e o advento de uma terceira onda de autocratização (a partir de meados dos anos 1990) (4). De lá para cá a erosão democrática gradual – operada, em maior parte, por governos populistas – representa 70% de todos os processos de reversão da democracia (5). Os processos clássicos de autocratização por invasão estrangeira, golpe militar ou autogolpe passaram a ser minoritários e tendem a se extinguir.
Notas
(1) Cf. o relatório 2021 do V-Dem: V-DEM Democracy Report 2021_updated
(2) Aqui: https://dagobah.com.br/a-desconexao-democratica/ e aqui: https://dagobah.com.br/os-sinais-de-desconsolidacao/
(3) Aqui: https://dagobah.com.br/uma-sinopse-do-artigo-de-larry-diamond-enfrentando-a-recessao-democratica/
(4) Aqui: https://dagobah.com.br/uma-terceira-onda-de-autocratizacao-esta-aqui-o-que-ha-de-novo-nisso/
(5) Idem.


