Está rolando por aí uma tese esquisita segundo a qual os arroubos autoritários de Bolsonaro têm pouca importância porque não se efetivam (graças ao Congresso e ao STF ou à complexidade da sociedade brasileira) e porque o essencial, entrementes, é o avanço da agenda econômica. Essa tese está errada.
Os arroubos autoritários de Bolsonaro não são apenas retóricos. Bolsonaro está impondo retrocessos reais nas políticas de meio ambiente, de direitos humanos, nas relações exteriores, na participação cidadã (por exemplo, na extinção ou na recomposição dos conselhos) etc. E, ademais, está mais atrapalhando do que ajudando o avanço da necessária agenda de reformas (cuja liderança está atualmente com o Congresso).
Alguns analistas pensam que enquanto Bolsonaro não cometer ações típicas de um ditador (como Kim Jong-un ou Maduro), enquanto não fechar jornais, invadir universidades, prender opositores ou os tanques não estiveram nas ruas, nossa democracia não estará ameaçada. Ledo engano. Bolsonaro não precisa mais dar um golpe de Estado para enfrear o processo de democratização. Ele vai avançando e recuando, mas nunca volta ao lugar original e sim ganha alguns milímetros de terreno de cada vez.
Na terceira onda de autocratização em que vivemos, as democracias não morrem mais por golpes de Estado e sim pela erosão, lenta e sistemática, dos valores, das instituições e dos procedimentos democráticos. Basta ver o que vem acontecendo na Turquia (de Erdogan), na Hungria (de Orbán), na Polônia (de Kacynski), nas Filipinas (de Duterte) e, até mesmo, no Reino Unido (do Brexit) e nos Estados Unidos (de Trump) e, ainda, o que pode acontecer na Itália (de Salvini), na França (de Le Pen) e até na Alemanha (de Meuthen e Gauland).
Há uma profunda incompreensão da democracia nesses juízos que acham que Bolsonaro pode falar e fazer o que quiser desde que a economia avance.
Se fosse apenas para modernizar o país, adotar mecanismos e processos econômicos liberais, crescer o PIB e a produtividade e reduzir o desemprego e a criminalidade, aumentando o bem-estar material da população, não precisaríamos, a rigor, de democracia. Um déspota esclarecido poderia fazer isso. Olhem Singapura. Olhem a China.
Sim, se Singapura, China e outros países autocráticos estão indo bem em termos econômicos, para que democracia?
Ao contrário do que afirmou o discurso neoliberal dos anos 90, a democracia não tem a ver propriamente com essas coisas, embora elas sejam desejáveis. Não tem a ver com o crescimento da economia e com a promoção do bem-estar das populações, embora tudo isso seja desejável. Democracia não é “dar casa, comida e roupa lavada” para os pobres. O Sultão de Brunei, talvez mais do que ninguém, faz isso e… “para compensar”, não admite opositores e adota a sharia, decretando leis que incluem morte por apedrejamento por sexo homossexual e adultério.
Para entender a situação em que estamos no final desta segunda década do século 21 é necessário acompanhar as análises sobre a recessão () e a desconsolidação () democráticas em curso no mundo e no Brasil. É necessário entender também que já estamos sob a influência de uma terceira onda de autocratização (). E, por último, é preciso perceber que a democracia não é mais o único caminho para a prosperidade (), como se acreditava (e propagava a ideologia neoliberal). Modernização e autoritarismo () passaram a andar juntos. Países autocráticos estão se aproveitando dos mecanismos e processos econômicos liberais, próprios do capitalismo, sem adotarem, entretanto, instituições e procedimentos políticos liberais, ou seja, sem percorrerem a transição para a democracia. E países democráticos estão começando a tentar fazer uma transição inversa (), capitaneada por alianças entre economistas-liberais e populistas-autoritários.
A democracia tem a ver com a liberdade. Mas é preciso entender o que é liberdade. É a possibilidade de não repetir passado, quer dizer, é a capacidade de criar novos mundos sociais que se expressa não diretamente pela melhoria da qualidade material de vida e sim pela melhoria da qualidade da convivência social.
Assim, esta é uma pergunta fundamental que deve estar permanentemente na cabeça dos analistas democráticos: para que democracia?
Três respostas básicas podem ser dadas para esta pergunta:
Para não se sujeitar a viver sob o jugo de um senhor, quer dizer, para ser cidadão e não súdito. Para se subordinar apenas ao império da lei e não ao império de um ser humano (ou de um conjunto de seres humanos aglomerados como partido, corporação, igreja, governo ou outra forma de organização).
Para ter liberdade de opinião e de proferir no espaço público sua opinião em igualdade de condições políticas com qualquer outro agente e de não ter desvalorizada sua opinião em relação ao saber (filosófico, científico, técnico). Ademais, para não haver a possibilidade de validar ou invalidar uma opinião a partir da adesão a uma doutrina (laica ou religiosa).
Para viver em paz, quer dizer, para aceitar o conflito e regulá-lo de modo não-guerreiro (ou seja, para não viver num clima de guerra: seja a guerra quente, seja a guerra fria, seja a política praticada como continuação da guerra por outros meios na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin).
Sob o governo Bolsonaro vivemos num clima de guerra que dilapida aceleradamente o que resta de nosso capital social, quer dizer, esgarça a rede social (não se fala aqui das mídias sociais já capturadas pelo bolsonarismo ou pelo lulopetismo e que são hoje um instrumento contra as verdadeiras redes sociais). E nada indica de que essa guerra promovida pelo bolsonarismo vai diminuir. Como disse Steve Bannon (verdadeiro guru da família Bolsonaro e de todas as forças políticas populistas-autoritárias), será uma batalha por dia até que sejam completamente derruídas as bases do sistema liberal: “Every day, it is going to be a fight”!
E voltando à questão econômica. O que há, até agora, é também, em grande parte, discurso e desejo. A rigor, os indicadores econômicos no governo Bolsonaro são piores do que no governo Temer.
Mas o problema para a democracia não é se o governo “der errado” e sim se ele começar a “dar certo” (o PIB e a produtividade começarem a crescer e o desemprego e a criminalidade a cair) dando a Bolsonaro um crédito maldito para aplicar políticas autoritárias que restrinjam as liberdades civis.
Bolsonaro, como populista que é, não quer acabar com nossa democracia eleitoral. Quer transformá-la, lentamente, em uma autocracia eleitoral ou, pelo menos, em uma democracia eleitoral de baixa intensidade, da qual tenha sido reduzido o conteúdo liberal.
Por enquanto ainda não estamos caminhando para uma autocracia eleitoral. O problema, entretanto, é outro: mesmo não virando uma ditadura, a substância liberal da nossa democracia eleitoral está se esvaindo. O avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade vai mudando a configuração da rede social (de novo: nada a ver com as mídias sociais).
Ou seja, mesmo que nosso regime (o modo – político – de regulação de conflitos) continue sendo democrático, ele está se descolando de padrões (sociais) de organização capazes de sustentar a democracia liberal.
O que está havendo, portanto, é uma revolução (para trás) na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. Não há como, honestamente negar: um retrocesso está acontecendo na sociedade.
A tese de que os arroubos autoritários de Bolsonaro (1) têm pouca importância é furada. Além de terem um efeito simbólico, de vez que partem do chefe de governo e de Estado, provocam alterações no comportamento dos agentes do Estado e da sociedade.
Não vamos conseguir decifrar o que está acontecendo se ficarmos esperando escandalosos golpes de mão, graves violações constitucionais ou quebras da institucionalidade. Como – diz-se – os animais que pressentiram o tsunami de 2004, no Oceano Índico, a análise política tem que auscultar os pequenos sinais (2). Se ficarmos esperando os grandes sinais, quando a onda gigante vier não dará mais tempo de correr.
(1) Exemplos de arroubos autoritários de Bolsonaro cometidos apenas nos últimos dez dias de julho de 2019.
1) 19/07/2019 – “Ela estava indo para a guerrilha do Araguaia quando foi presa em Vitória. E depois [Míriam Leitão] conta um drama todo, mentiroso, que teria sido torturada, sofreu abuso etc. Mentira. Mentira”. A jornalista Miriam Leitão foi presa, espancada, torturada e ameaçada de estupro pela ditadura militar em 1973, em Vitória. Na época, tinha 19 anos e estava grávida. Ela ficou ficou três meses detida. Miriam nunca participou da luta armada nem esteve na guerrilha do Araguaia (a maioria dos guerrilheiros nunca foi encontrada). Na época em que foi presa, era jornalista da rádio Espírito Santo e militante do PC do B. Miriam foi inocentada de todas as acusações que foram feitas contra ela pelo regime militar.
2) 19/07/2019 – “Daqueles governadores de paraíba, o pior é o do Maranhão [Flávio Dino, do PC do B]. Tem que ter nada com esse cara.” O termo “paraíba” é usado de forma pejorativa no Rio de Janeiro, estado onde Bolsonaro se radicou, para se referir a nordestinos. A expressão, quando usada para ofender uma pessoa ou um grupo, é considerada preconceituosa e racista e pode originar um processo judicial.
3) 19/07/2019 – “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não. Você não vê gente mesmo pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo”.
4) 19/07/2019 – “Com toda a devastação que vocês nos acusam de estar fazendo e de ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido. Isso acontece com muitas revelações, como a de agora (…), e inclusive já mandei ver quem está à frente do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] para que venha explicar em Brasília esses dados que foram enviados à imprensa. Nosso sentimento é que isso não coincide com a verdade, e parece até que [o presidente do Inpe] está a serviço de alguma ONG”. Bolsonaro se referia à notícia de que monitoramento do Inpe havia constatado aumento de 57% no desmatamento na Amazônia entre maio e junho. Em seguida demitiu o diretor do Inpe.
5) 27/07/2019 – “Só aos veganos que comem só vegetais [consideram importante a questão ambiental] (…) Outros países com baía não tão exuberante como a de Angra conservam o meio ambiente. Se quiséssemos fazer uma maldade, cometer um crime, nós iríamos à noite ou em um fim de semana qualquer na baía de Angra e cometeríamos um crime ambiental, que não tem como fiscalizar”. Bolsonaro tem defendido, desde a campanha, que seja alterado o status da Estação Ecológica (Esec) de Angra dos Reis (RJ). Ele, que tem uma casa na região, foi multado em 2012 por pescar em local proibido. A multa foi anulada pela superintendência do Ibama no Rio de Janeiro em dezembro de 2018, sob a alegação de que a punição estaria prescrita. Parecer da Advocacia-Geral da União, contudo, indicava a prescrição só aconteceria em 2024. Em março, o fiscal responsável por multar Bolsonaro foi exonerado do cargo comissionado de chefe do Centro de Operações Aéreas do Ibama, subordinado à Diretoria de Proteção Ambiental. Ele foi o único dos nove funcionários do mesmo nível hierárquico dessa diretoria a ser exonerado pelo novo governo.
6) 27/07/2019 – “Ele [Glenn Greenwald] não se encaixa na portaria. Até porque ele é casado com outro homem e tem meninos adotados no Brasil. Malandro, malandro, para evitar um problema desse, casa com outro malandro e adota criança no Brasil. Esse é o problema que nós temos. Ele não vai embora, pode ficar tranquilo. Talvez pegue uma cana aqui no Brasil, não vai pegar lá fora não.”
7) 29/07/2019 – “Eu estou achando que, no meu entender, ele cometeu um crime porque em outro país ele estaria já numa outra situação. Espero que a Polícia Federal chegue, ligue realmente todos os pontos. No meu entender isso teve transações pecuniárias. E pelo que tudo indica a intenção é sempre atingir a Lava Jato, atingir o [ministro] Sergio Moro, a minha pessoa, tentar e desqualificar e desgastar. Invasão de telefone é crime, ponto final”. Nesta segunda (29). Bolsonaro se referia à portaria do Ministério da Justiça que autoriza a deportação sumária de estrangeiros considerados “perigosos”, ainda que não tenham sido condenados judicialmente. O jornalista vive há cerca de dez anos no país. Ele é casado com o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) e os dois são pais de duas crianças. Não há nenhum indício de que Greenwald tenha cometido crime.
8) 29/07/2019 – “Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro.” Bolsonaro comentava a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na investigação do caso de Adélio Bispo, autor da facada da qual foi alvo em 2018. A entidade se posicionou de forma contrária à investigação do advogado de Adélio, justificando a necessidade de preservar o sigilo da relação entre clientes e defensores. Bolsonaro se referia a Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, desaparecido em fevereiro de 1974, após ter sido preso junto com o amigo Eduardo Collier por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar, no Rio de Janeiro. Ele era pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Fernando era estudante de direito e funcionário do Departamento de Águas e Energia Elétrica em São Paulo e integrante da Ação Popular (grupo marxista ligado à juventude católica, fundado em 1962). Felipe tinha dois anos quando o pai desapareceu. No relatório da Comissão Nacional da Verdade, responsável por investigar casos de mortos e desaparecidos na ditadura, não há registro de que Fernando tenha participado da luta armada.
(2) Para quem não sabe o que são sinais, vão aqui alguns exemplos, colhidos somente no mês de julho de 2019.
1) 10/07/2019 – Mobilização industriada de cidadãos de Paraty para sabotar a Flip e ataque à barca em que estava Glenn Greenwald no município.
2) 16/07/2019 – Mobilização contra a presença de Miriam Leitão e Sergio Abranches em uma feira literária em Jaraguá do Sul (SC) que levou a coordenação do evento a cancelar o convite para a participação de ambos na feira do livro da cidade.
3) 23/07/2019 – Intrusão ilegal de policiais rodoviários federais em uma reunião sindical de professores em Manaus (AM) com ameaças.
4) 23/7/2019 – Durante a 71ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), um militar fardado gravou e fotografou participantes reunidos em auditório da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande.
5) 24-28/07/2019 – Repressão política da polícia militar ao 20 Festival de Inverno de Bonito (MS), com prisões arbitrárias, ameaças, intimidações e sequestro de celulares de cidadãos que gravaram as cenas deploráveis.
6) 31/07/2019 – Combatentes da unidade de elite da Polícia Militar do Pará, na presença do governador do estado, cantaram os seguintes versos: “Arranca a cabeça e deixa pendurada / É a Rotam patrulhando a noite inteira / pena de morte à moda brasileira”.
O comportamento bolsonarista – como se sabe – é fascistoide. Se perdurar a escalada de intolerância, verificada em julho de 2019, virará comportamento fascista mesmo.