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Sobre o manifesto “Estamos Juntos”. Estamos?

Saiu aí um manifesto intitulado “Estamos Juntos” que vai de Frei Betto (lulista), passando por José Guimarães (petista, o da cueca), por Samia Bomfim (psolista), por Fernando Henrique Cardoso et coetera. É naquele velho estilo frente ampla contra um inimigo público número 1 (Bolsonaro, embora não se diga isso).

Em primeiro lugar é preciso parabenizar a iniciativa. No marasmo em que estamos vivendo, qualquer tentativa de unir forças para denunciar o processo de autocratização em curso é um sopro de esperança. Isso não quer dizer que – não obstante os perfis democráticos dos que, em maioria, assinaram o manifesto e do seu conteúdo correto no geral – não haja problemas na iniciativa.

O manifesto fala em “unir a pátria e resgatar nossa identidade como nação” e em “esquerda, centro e direita unidos para defender a lei, a ordem [sim, eles escreveram nessa ordem, e]… as famílias…” A linguagem, como se vê, também é antiga. Ademais, como alguém já observou, a hierarquia dos valores é estranha, dando a impressão de querer capturar os limítrofes bolsonaristas com um discurso de ordem. Por isso, talvez, não mencione Bolsonaro, o bolsonarismo e a natureza nacional-populista-autoritária desse projeto, quem sabe para não assustar ex-eleitores do “mito”.

Nada contra um movimento desse tipo, mas uma frente com populistas (de esquerda) contra populistas (de extrema-direita) só se justifica quando um desses populismos está na iminência de violar o Estado democrático de direito.

Talvez seja mesmo o caso. Mas seria melhor ter uma ecologia de diferenças momentaneamente coligadas, diante da ameaça bolsonarista, do que forçar um consenso para constituir uma frente com pouca efetividade em termos conjunturais e sem qualquer futuro em termos orgânicos e eleitorais. Não acrescenta nada que já não haja sem o manifesto, mas talvez seja útil como peça publicitária ou como plataforma para uma militância fazer agitação e propaganda.

O manifesto ressalta que “somos muitos, estamos juntos, e formamos uma frente ampla…” Não! A rigor, não estamos juntos, positivamente, pelos mesmos motivos democráticos, mas apenas negativa e circunstancialmente, para tentar barrar a escalada autoritária do bolsonarismo.

E por que não? Porque o lulopetismo não é democrático, na teoria e na prática não toma a democracia como valor universal e nem como principal valor da vida pública.

É ótimo que os lulistas e petistas queiram combater o governo Bolsonaro e os democratas devemos incentivá-los a fazer isso. Mas, para tanto, não é necessário assinar um mesmo manifesto que diz que “é hora de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum”. Não, novamente. A discordância com o caráter autocrático do projeto neopopulista lulopetista não pode ser considerada uma “velha disputa”. É um debate atualíssimo.

Mesmo sendo um imperativo da hora evitar o retrocesso bolsonarista, os democratas não podemos esquecer a natureza do projeto neopopulista que os lulopetistas tentaram implantar no país na última década, nem criar oportunidades para que essa esquerda, sem ter feito qualquer autocrítica e sem mudar sinceramente de comportamento, consiga agora lavar suas velhas estátuas e se absolver de seus crimes aproveitando o ensejo de uma luta contra um inimigo maior.

Ora, o tal “mal maior” definido por realpolitik é uma categoria operativa que não transita bem nos ambientes da democracia. Ao contrário do que diz o senso comum autocrático, o inimigo do meu inimigo não é meu amigo (esta é a lógica da guerra, não da democracia). Pergunte-se aos democratas atenienses no que deu tentar se aliar aos espartanos para combater os persas. Deu em frustração (como em Maratona) e, depois, em uma guerra de mais de um quarto de século (a do Peloponeso) que acabou drenando as forças da democracia e ensejando, na esteira de suas consequências trágicas, três golpes de Estado cruentos (apoiados e financiados pelos espartanos) que mataram ainda mais democratas do que a guerra.

Daqui a poucos meses teremos eleições. Como se comportarão aqueles que assinaram um manifesto, intitulado “Estamos Juntos”, que diz que “é hora de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum”. Estarão juntos? É quase certo que não. Estarão engolfados na mais ferrenha disputa. Até por razões instrumentais, de realpolitik: quem será louco de aparecer junto com o PT diante um eleitorado ainda tão intoxicado de antipetismo? Então seria melhor dizer: esta é uma frente para combater Bolsonaro e o bolsonarismo e ponto. Ou: é o início de uma campanha do impeachment e ponto. Nada de busca conjunta de um “bem comum”. Democratas e populistas não andam pelos mesmos caminhos para alcançar o (que avaliam ser o) “bem” em termos políticos.

Basta olhar hoje a atividade no Twitter para comprovar que os militantes lulopetistas se comportam da mesma maneira que os bolsonaristas (o que não é estranho de vez que são, ambos, populistas). Querem aproveitar a crise atual para inculpar seus adversários (e que não são, neste caso, os bolsonaristas), dizendo que a culpa por Bolsonaro ter sido eleito é dos democratas e dos que não fizeram campanha e não votaram em Fernando Haddad. Querem, além disso, aproveitar a onda de repúdio ao bolsonarismo para obter, na manha, uma espécie de anistia, se absolvendo dos crimes e ataques à democracia que cometeram na última década.

Com tudo isso, devemos apoiar a iniciativa do manifesto, sempre seguindo diretrizes simples e claras, que expressam duas coisas que não podem acontecer: 1) Bolsonaro continuar no governo. 2) O PT voltar ao governo.

Seria mais correto ter dito diretamente. Este é um manifesto assinado pelos que querem barrar a escalada autoritária de Bolsonaro e do bolsonarismo. Mas essa conversa-mole de caminhar juntos em direção a um bem comum, junto com os neopopulistas petistas, é meio difícil de engolir.

Segue abaixo a íntegra do manifesto.

MANIFESTO “ESTAMOS JUNTOS”

Somos cidadãs, cidadãos, empresas, organizações e instituições brasileiras e fazemos parte da maioria que defende a vida, a liberdade e a democracia.

Somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país.

Somos a maioria de brasileiras e brasileiros que apoia a independência dos poderes da República e clamamos que lideranças partidárias, prefeitos, governadores, vereadores, deputados, senadores, procuradores e juízes assumam a responsabilidade de unir a pátria e resgatar nossa identidade como nação.

Somos mais de dois terços da população do Brasil e invocamos que partidos, seus líderes e candidatos agora deixem de lado projetos individuais de poder em favor de um projeto comum de país.

Somos muitos, estamos juntos, e formamos uma frente ampla e diversa, suprapartidária, que valoriza a política e trabalha para que a sociedade responda de maneira mais madura, consciente e eficaz aos crimes e desmandos de qualquer governo.

Como aconteceu no movimento Diretas Já, é hora de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum. Esquerda, centro e direita unidos para defender a lei, a ordem, a política, a ética, as famílias, o voto, a ciência, a verdade, o respeito e a valorização da diversidade, a liberdade de imprensa, a importância da arte, a preservação do meio ambiente e a responsabilidade na economia.

Defendemos uma administração pública reverente à Constituição, audaz no combate à corrupção e à desigualdade, verdadeiramente comprometida com a educação, a segurança e a saúde da população. Defendemos um país mais desenvolvido, mais feliz e mais justo.

Temos ideias e opiniões diferentes, mas comungamos dos mesmos princípios éticos e democráticos. Queremos combater o ódio e a apatia com afeto, informação, união e esperança.

Vamos #JUNTOS sonhar e fazer um Brasil que nos traga de volta a alegria e o orgulho de ser brasileiro.

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