Constatamos que há um acentuado déficit de democratas nas instituições e na sociedade no Brasil.
Dizemos que há um déficit de democratas não quando as pessoas que preferem a democracia a outros regimes são minoria e sim quando o número de pessoas capazes de perceber sinais de avanço do autoritarismo e de desconsolidação da democracia está abaixo daquela “massa crítica” suficiente para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.
Ou seja, há – no Brasil de 2021 – uma maioria de pessoas que prefere a democracia a outros regimes, mas talvez não haja nem 1 milhão e 500 mil pessoas (1% dos eleitores) capazes de perceber sinais do avanço do autoritarismo enquanto as instituições estão (formalmente) funcionando.
E talvez não haja nem 150 mil pessoas (0,1% dos eleitores) capazes captar precocemente processos subterrâneos de desconsolidação da democracia.
Só para dar um exemplo factual, se houvesse essa “massa crítica”, no dia (22/04/2020) em que Bolsonaro declarou, em reunião ministerial (está gravado em vídeo), que queria armar a população para resistir a governadores legitimamente eleitos que adotaram medidas de distanciamento social para controlar a propagação da pandemia, teria surgido um movimento para exigir sua renúncia ou retirá-lo do governo. Se houvesse essa “massa crítica” no parlamento, deputados e senadores paralisariam os trabalhos exigindo uma retratação e, não ocorrendo essa retratação cabal, abririam imediatamente um processo de impeachment. Se houvesse essa “massa crítica” nos meios de comunicação, no dia seguinte, os editoriais de telejornais, jornais e revistas pediriam a renúncia do presidente. Se houvesse essa “massa crítica” nas instituições da sociedade, haveria protestos generalizados em todas as localidades e setores de atividades.
E, para acrescentar outro exemplo, menos episódico, se houvesse um número suficiente de democratas, alguns sinais de avanço do autoritarismo e de desconsolidação da democracia teriam sido percebidos por uma parcela maior de pessoas e teriam alertado a sociedade sobre os perigos. Sinais como o aumento da relevância de forças políticas populistas (i-liberais e majoritaristas, ditas de direita ou de esquerda) e o recrudescimento da polarização (“nós” contra “eles”) com a consequente degeneração da política como guerra; a subversão da democracia por meios democráticos (ou o uso da democracia – notadamente das eleições – contra a própria democracia); o crescimento da retórica antipolítica (associada – mas nem sempre – ao combate à corrupção) e o ascensão de movimentos de opinião que pregam a realização de cruzadas de limpeza (étnica, ética, religiosa ou nacional); o aparelhamento das instituições e a incidência sistemática de uma retórica antissistema; os ataques à imprensa profissional; a volta à políticas públicas de oferta estatal centralizada, assistencialistas, clientelistas; a permanência da tutela militar sobre o poder civil e forças armadas (ou policiais) possuídas pela ideologia do “inimigo interno”; o surgimento de propostas de armamentismo da população (para defesa pessoal, como política de segurança pública ou, pior, como preparação para combater algum inimigo interno); o florescimento de seitas fundamentalistas, com a mistura de religião com política; a proliferação de milícias digitais que falsificam a opinião pública por meio da manipulação das mídias sociais; e, fundamentalmente, a violação das normas não-escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão sustentação.
Se sinais como esses não são percebidos como perigos por uma parcela considerável das pessoas que participam do debate público (ou seja, pela opinião pública) é porque há um déficit de democratas.
Ora, como não existe democracia sem democratas – e como essa situação (o déficit acentuado de democratas) não vai se resolver por si mesma, isso significa que algumas coisas devem ser feitas.
Cursos de formação política democrática são sempre lembrados como medidas para enfrentar a situação. Faz sentido. Diante do déficit de democratas a conclusão lógica é que é preciso multiplicar o número de democratas estimulando a aprendizagem da democracia. Mas a aprendizagem da democracia não significa apreensão de conteúdos. Ela tem as características de uma conversão não-religiosa. Essa conversão implica uma mudança do emocionar e do pensar. Ora, ninguém pode experimentar tal mudança se não mudar de rede (não adianta tentar convencer as pessoas com discursos ou apenas com recomendações de leituras de textos). E, ademais, é preciso mudar as redes nas quais as pessoas conversam recorrentemente, no dia-a-dia – interagindo entre si e agindo juntas (pois são os links locais que regulam o mundo).
Isso significa que devemos ensejar a formação de novas redes locais (constituídas de baixo para cima: por proximidade, com base sócio-territorial municipal ou distrital), novos ambientes configurados para as pessoas se conhecerem e se reconhecerem (ao se sintonizarem) e para fazer coisas juntas (ao se sinergizarem).
Cada um desses ambientes será um novo nicho de “pegajosidade antropológica” capaz de criar condições para que as pessoas fiquem próximas o suficiente para possibilitar as mudanças implicadas na conversão à democracia.
Neste caso, trata-se de conectar as pessoas por desejos congruentes. É a única saída para não arregimentar por interesses. Se arregimentarmos por interesses, dará mais do mesmo.