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Sobre o tamanho da seita bolsonarista: por que devemos evitar as avaliações impressionistas

Por que não devemos confundir militantes bolsonaristas com eleitores, apoiadores e simpatizantes de Bolsonaro

O imperativo democrático atual não é impedir que Bolsonaro tenha maioria em 2022 e sim impedir que o bolsonarismo ultrapasse 10% do eleitorado total antes de 2022. Dar de barato que o bolsonarismo já atingiu esses patamares nos descapacita para agir no sentido de evitar que ele os atinja e reduz a ação política necessária no presente a incertas tentativas de conseguir um candidato capaz de derrotá-lo no futuro. Isso seria um erro crasso. Bolsonaro tem de ser parado – removido do governo por meios pacíficos e legais ou constrangido a mudar de comportamento pela oposição e pela resistência democrática das instituições e da sociedade – agora, bem antes das próximas eleições, antes que o bolsonarismo cresça além do patamar controlável pelo processo democrático.

Republicamos abaixo, com alguns comentários, dois artigos recentes sobre o governo Bolsonaro e o bolsonarismo, de autoria de Wilson Gomes e Maria Hermínia Tavares de Almeida.

O artigo de Wilson Gomes (16/08/2019), intitulado O circuito da defesa de Bolsonaro, é excelente. Ele acerta em muitas coisas. Como já é comum, porém, erra na avaliação do tamanho do bolsonarismo. Não há 25% de bolsonaristas na população: há, no máximo, 10% entre os eleitores de Bolsonaro em 2018. Tirando crianças e pessoas muito jovens isso corresponderia a quase 40 milhões de pessoas. É improvável que um movimento político – em qualquer lugar do mundo ou época da história – consiga arregimentar tal número de ativistas, que não devem ser confundidos com eleitores, apoiadores e simpatizantes. Numa conjuntura polarizada é possível, sim, ter um número até bem maior de eleitores. Mas não de sectários. O fato do eleitor de Bolsonaro ainda não ter dado o braço a torcer e continuar apoiando-o, não significa que seja bolsonarista, militante full time, adepto da seita, propagador diuturno das fake news urdidas pela organização informal bolsonarista (é importante clicar neste link).

Pesquisas de opinião – feitas num clima eleitoral prorrogado e num ambiente de polarização – não podem captar o tamanho da seita. Podem captar, sim, o número de apoiadores e simpatizantes de Bolsonaro, mas não o de militantes.

Leiam o artigo de Wilson Gomes. Volto depois com o artigo de Maria Hermínia.

O circuito da defesa de Bolsonaro

Wilson Gomes, Cult, 16 de agosto de 2019

Dados aferidos reiteradamente por todas as pesquisas de opinião divulgadas nos últimos três meses mostram que a rejeição a Bolsonaro cresce em todos os segmentos da população. Mas o que passa despercebido a muita gente é que, por outro lado, o conjunto de apoiadores entusiasmados do governo não parece diminuir e estacionou em torno de 25%, talvez 30%. Isso significa que o caso de Bolsonaro se parece mais com a situação de Lula que com a de Temer. Este último, que já partiu de um patamar não muito alto de apoiadores, teve a sua taxa de aprovação minguando até que não lhe restassem mais que 3%. Já o Lula pós-prisão, embora tenha uma taxa de rejeição consistente, em torno de pelo menos 1/3 do eleitorado, também tem uma taxa de aprovação permanente, exatamente na mesma proporção.

Bolsonaro é um caso semelhante a Lula no que diz respeito ao apoio. Os dados indicam, portanto, que existe realmente uma coisa chamada bolsonarismo, que é um contingente expressivo de pessoas que apoiam Bolsonaro e que demonstram que continuarão vinculados a ele não importa o que aconteça. Além disso, há uma indicação de que o movimento bolsonarista compreende cerca de 25% da população, o que não é suficiente para uma reeleição, mas, considerando a consistência da adesão ao líder, o entusiasmo em sua defesa e o fervor no engajamento político, gera essa impressão paradoxal que salta aos olhos de todo mundo: quanto mais Bolsonaro diz ou faz coisas horríveis, é criticado na esfera pública e gera repulsa, tanto mais as vozes em sua defesa se tornam mais altas e mais gente veste em público a camisa do bolsonarismo.

O eleitor de Bolsonaro em 2019 [acho que o autor queria dizer 2018], já o sabemos, não foi apenas o bolsonarista. O bolsonarismo usou o sentimento antipetista e antipolíticos como cavalo de Tróia para conseguir a presidência para o seu campeão. Mas como após a eleição Bolsonaro insiste em permanecer na campanha eleitoral, fazendo discurso de candidato de extrema direta e exercendo o horrendo papel de líder do exército de feios, sujos e malvados, o resultado foi que os segmentos não bolsonaristas do seu eleitorado foram se afastando da triste figura do presidente, dos seus filhos e dos seus ministros ideológicos. Assim, ficou mais definido o perfil do bolsonarista, o sujeito que apoia Bolsonaro por convicção e identificação, que é o segmento da sociedade a que o presidente se conecta, para o qual fala ou faz as suas performances, cuja reação o presidente monitora no Twitter, e que ele tem em conta o tempo todo.

Este sujeito o venera, não apesar das coisas que ele diz ou das coisas inapropriadas que ele faz, mas exatamente por causa delas. A ligação entre Bolsonaro e o movimento bolsonarista é de identificação, de compartilhamento de visão de mundo e de valores. O bolsonarismo já estava de certa maneira pronto, e poderia hoje muito bem se chamar felicianismo ou cunhismo se Bolsonaro, um dos seus participantes, não tivesse tido a fortuna de montá-lo em 2016.

A conexão é direta. Assim, por exemplo, quando Bolsonaro falou mal do presidente da OAB, no outro dia gente que não tinha a menor ideia do assunto já estava compartilhando fake news sobre o novo inimigo nº 1 da tribo, vídeos difamando a esposa dele e pedindo que a OAB fosse fechada por ser um antro de corrupção. Quando Weintraub disse que as universidades públicas promoviam balbúrdia e nudez, no outro dia 25% dos brasileiros já tentavam fervorosamente convencer os outros 75%, por meio de vídeos de fake news, que as universidades eram só orgia, depravação e petismo. Há duas semanas foi a vez de se odiar Paulo Freire, esta semana é a vez de se odiar a Alemanha e a Noruega, porque cortaram as verbas do Fundo Amazônia. A Alemanha porque, presumivelmente, não tem florestas; a Noruega, por matar baleias. Se Bolsonaro declarar que a lei da gravidade é uma invenção comunista e está revogada, bolsonaristas se jogarão de penhascos.

É sempre assim, é um padrão. Duas horas depois que qualquer declaração estapafúrdia de Bolsonaro repercute na mídia tradicionais e na mídia social, o movimento bolsonarista já está em campo para confirmar as suas loucuras, respaldar as suas maluquices, corroborar os seus desvarios. No interior do circuito da defesa do presidente, não importam os fatos científicos, os argumentos embasados e os dados. Eles não confiam na autoridade científica, no valor dos intelectuais e nos meios de obtenção de informação; eles simplesmente criam os próprios dados, aderem à autoridade do seu líder e repetem os seus próprios intelectuais.

Em face disso, faço cinco observações que acho fundamentais para que a gente possa entender o que está acontecendo hoje na política brasileira.

1 – Bolsonaro não é o pior dos bolsonaristas. Antes, pode ser ainda mais moderado que os brucutus que lidera. O bolsonarista típico se define por ser intelectualmente grosso e politicamente bruto, e por não pedir desculpas por isso. Antes, vangloria-se do fato. Democracia, Estado de direito, liberalismo lhe são noções desconhecidas.

2 – Tudo o que Bolsonaro faz ou diz é para o seu público, os bolsonaristas, não para você. Portanto, deixe de ser autorreferente. Você e eu não lhe importamos enquanto audiência, só a nossa fúria é que é buscada.

3 – Se você está chocado ou repugnado com algo que Bolsonaro, seus filhos ou seus ministros disseram ou fizeram, isso não é por acaso, este era exatamente o propósito. Você está justamente no lugar onde Bolsonaro quer os não-bolsonaristas: pasmos e nauseados.

4 – Joga-se na política hoje um jogo de soma zero baseado na ideia de que “se incomoda os meus inimigos, meus amigos vão gostar”. O princípio é “nenhum dia sem uma grosseria, uma afronta, uma ofensa, uma provocação”. Os inimigos (sim, inimigos) precisam ser perenemente incomodados para que os amigos estejam perenemente satisfeitos.

5 – Como acontece com todo movimento religioso, quanto mais você bate no bolsonarismo mais os crentes se sentem confirmados na sua fé, mais coesos, mais identificados uns com os outros. O bolsonarismo é um movimento identitário e, noves fora os valores em causa, funciona sob a mesma lógica sectária dos movimentos identitários de esquerda: não cresce quando você bate, mas fica mais radical e mais ativo quando isso acontece. O ataque dos adversários externos é o combustível que acende e alimenta o fervor da seita.

É isso.

Pelo mesmo caminho vai Maria Hermínia Tavares de Almeida. O estudo que deu base para seu artigo, intitulado Ela veio para ficar, publicado na Folha de São Paulo em 08/08/2019, é interessante. Sem estudo nenhum – apenas analisando sinais e evidências – já havíamos chegado em avaliação parcialmente semelhante. Com a diferença de que apoiadores eleitorais não são a mesma coisa do que ela chama de “bolsonaristas de raiz”. Estes últimos – antiglobalistas, anticomunistas macarthistas, olavistas e bannonistas – não passam, provavelmente, de 10% dos eleitores de Bolsonaro. Maria Hermínia não faz tal distinção, mas ela é fundamental. Ademais, as conclusões da autora são muito duvidosas: nada garante 1) que a base eleitoral de Bolsonaro (39% do eleitorado) vai se manter após seu primeiro e desastrado mandato e na ausência da força indignada do antipetismo e da supremacia do lavajatismo (sem a qual ele não teria sido eleito); e 2) que o núcleo-duro bolsonarista vai triplicar de tamanho, convertendo e conquistando parte significativa do eleitor normal de Bolsonaro em 2018.

Vejamos agora o artigo de Maria Hermínia.

Ela veio para ficar

Maria Hermínia Tavares de Almeida, Folha de S. Paulo (08/08/2019)

A extrema direita bolsonarista é uma minoria de homens brancos de renda alta

O Brasil vive um paradoxo: é uma democracia presidida por um líder autoritário que, por palavras e atos, despreza os valores básicos da ordem democrática. Até por isso, está na ordem do dia avaliar quem e quantos são os bolsonaristas de raiz —aqueles que apoiam incondicionalmente o chefe.

Com o cientista político Fernando Guarnieri, do Iesp-Uerj, analisamos resultados das pesquisas de intenção de voto feitas pelo Datafolha no ano das eleições. Em junho de 2018, quando a campanha não começara, Bolsonaro era o preferido de 17% dos entrevistados.

À época, o eleitor típico do capitão era homem, jovem (25 a 34 anos), branco ou amarelo, com renda familiar entre 20 e 50 salários mínimos, evangélico, empresário ou autônomo regular, morador das regiões norte, sul e centro-oeste. A probabilidade de um cidadão com esse perfil declarar-se disposto a votar em Bolsonaro beirava os 90%.

Já em outubro, na última pesquisa realizada imediatamente antes do primeiro turno o índice subiu para 95%. Ou seja, praticamente todos os eleitores com tais características pretendiam votar no candidato do PSL. Esse parece ser o núcleo duro do bolsonarismo.

Marcos Coimbra, diretor do Instituto Vox Populi, em artigo publicado na revista Carta Capital, chega a conclusão semelhante quanto ao porte dessa parcela do eleitorado —embora divirja sobre as suas características sociais. “Os encantados com o capitão”, assinalou, “são predominantemente mais velhos e ricos”.

Dias atrás, este jornal publicou informações coletadas pelo Datafolha nos últimos meses e que permitem avaliar o apoio da população às posições mais extremadas de Bolsonaro. Elas revelam que aproximadamente 1/3 dos entrevistados —número semelhante aos dos seus eleitores no primeiro turno e dos que continuam a apoiá-lo— acredita que a política ambiental prejudica o desenvolvimento, que o governo deve reduzir as áreas destinadas às reservas indígenas, que o golpe de 31 de março de 1964 deve ser comemorado e que a posse de armas deveria ser um direito. Na mesma linha, pouco menos de 1/3 concorda que a segurança seria maior se a polícia matasse mais suspeitos e, enfim, que o Brasil deve dar preferência aos Estados Unidos em comparação com outros países.

Em suma, focalizando apenas o núcleo inicial dos adeptos do capitão, constituído por homens brancos de renda alta, ou o grupo mais amplo que hoje forma a sua base de apoio, a extrema direita é minoria. Minoria, porém considerável, que parece ter vindo para ficar e é suficiente para levar seu candidato ao segundo turno em 2022. Seja ele o próprio Bolsonaro ou outro “mito” qualquer.

Um comentário final

Sobre o tamanho do bolsonarismo devemos evitar as avaliações impressionistas. Em artigo recente (11/07/2019), intitulado Qual é o real tamanho da extrema-direita no Brasil, tentei explicar:

A impressão de que o bolsonarismo (a extrema-direita reacionária, populista-autoritária, nacionalista ou antiglobalista e anticomunista macarthista) é maior do que de fato é, vem do uso de tecnologias bannonistas (que foram compradas de Steve Bannon) de manipulação das mídias sociais, sobretudo do broadcasting privado e do fluxo descendente em árvore permitidos pela topologia descentralizada do WhatsApp (por meio do qual foram colonizados o Twitter e, em parte, o Facebook e o Instagram).

Ocorre que todo esse carnaval bolsonarista nas mídias sociais pode ser feito por apenas cerca de 50 mil pessoas (que replicam diariamente e religiosamente cerca de três fatwas – na forma de hashtags, memes, vídeo-memes ou pequenos discursos – emitidas por menos de 100 hubs – e sabemos quem são estes hubs, seus nomes e sobrenomes).

Em outro artigo, mais antigo (18/05/2019), intitulado O bolsonarismo é um tigre de papel, cheguei a esboçar um diagrama da pirâmide bolsonarista.Por mais que se repita isso, as pessoas, entretanto, não entendem que os bolsonaristas (não confundir com os eleitores, apoiadores e simpatizantes de Bolsonaro) não chegam a 4% do eleitorado total (o que já é muita gente). Isso mostra que a estratégia bolsonarista (ou bannonista) está dando certo: até experimentados analistas estão se deixando impressionar e são capturados pela reverberação.

Ainda que Bolsonaro esteja em permanente campanha eleitoral, não haverá eleições presidenciais no curtíssimo prazo. O bolsonarismo busca aumentar o tamanho de sua seita, entre outras coisas, para tentar garantir um eleitorado majoritário em 2022. Mas a seita propriamente dita – a organização bolsonarista – não é composta por simples eleitores. Por isso que, agora, o mais relevante, é avaliar precisamente o tamanho da seita bolsonarista e não do eleitorado futuro de Bolsonaro.

Há uma questão mais relevante aqui. Nosso regime político é capaz de metabolizar 5 milhões de militantes atacando diuturnamente a democracia, mas dificilmente será capaz de fazê-lo com o triplo (ou quase) disso. Uns 4% do eleitorado total é uma coisa, mais de 10% é outra coisa, bem diferente em termos de rede (não falo aqui das mídias sociais e sim das redes mesmo: das configurações móveis que se formam quando as pessoas interagem, enquanto interagem, por qualquer meio). Com 10% de uma rede perturbando continuamente o campo ou o fluxo interativo da convivência social, pode-se facilmente mudar o comportamento coletivo (ou seja, o comportamento dos agentes do sistema).

Assim, o imperativo democrático atual não é impedir que Bolsonaro tenha maioria em 2022 e sim impedir que o bolsonarismo ultrapasse 10% do eleitorado total antes de 2022. Até porque o projeto político bolsonarista é anti-establishment: não quer apenas vencer eleições e sim usar o governo para operar mudanças no sistema, aparelhar e alterar a natureza, a estrutura e o funcionamento das instituições de sorte a converter a nossa democracia eleitoral numa democracia eleitoral cada vez menos liberal e, no limite, se for possível, em uma autocracia eleitoral.

O bolsonarismo quer, por certo, vencer as próximas eleições presidenciais – reconduzindo Bolsonaro à presidência ou introduzindo outro representante seu – mas não para governar normalmente, nos marcos institucionais vigentes, e sim para ter mais tempo para implantar seu projeto de poder.

Dar de barato que o bolsonarismo já atingiu esses patamares – de mais de 10% do eleitorado total composto por militantes – nos descapacita para agir no sentido de evitar que ele os atinja e reduz a ação política necessária no presente a incertas tentativas de conseguir um candidato capaz de derrotá-lo no futuro. Isso seria um erro crasso. Bolsonaro tem de ser parado – removido do governo por meios pacíficos e legais ou constrangido a mudar de comportamento pela oposição e pela resistência democrática das instituições e da sociedade – agora, bem antes das próximas eleições, antes que o bolsonarismo cresça além do patamar controlável pelo processo democrático.

Portanto, o jogo é agora, não em 2022. A questão é como parar Bolsonaro antes de 2022 para que o bolsonarismo – que é anti-establishment – não atinja um perigoso tipping point.

Existe uma organização bolsonarista?

Uma boa interpretação do modo Bolsonaro de governar