in ,

Sobre se tribunais devem ouvir a “voz das ruas”

Existem alguns ditos que são repetidos simplesmente porque as culturas são, por natureza, conservadoras e tendem a repetir comportamentos. Um exemplo de lema conservador da velha cultura política é o de que “decisão judicial não se discute, se cumpre”. Claro que todo mundo sabe que se discute, do contrário não haveria a possibilidade de recorrer contra a maior parte das sentenças que são proferidas por juízes e tribunais. O que o dito quer dizer é, simplesmente, que as decisões judiciais devem ser cumpridas.

Até aí tudo bem. Este é um fundamento do Estado de direito. No entanto, há uma visão pressuposta, que se esconde por trás do dito. A de que o judiciário julga sem parcialidade e tendo como referência as leis e não as opiniões da sociedade. Não raro se diz que o judiciário não pode ficar vulnerável ao humor variável da opinião pública ou das ruas. Aqui começam os problemas.

Segundo essa visão o arcabouço legal já estabelecido (ou seja, o conjunto das leis regularmente aprovadas e em vigor no momento do julgamento) estaria de alguma forma imune, quando tomado como referência para embasar um juízo, ao entrechoque de opiniões que conforma a esfera política numa democracia. O primeiro problema é um problema de fundo: o de que a democracia estaria sujeita ao Estado de direito. Esse tema – das relações, que não são óbvias, entre Estado democrático (e, sobretudo, sociedade democrática) e Estado de direito, já foi tratado em outra ocasião.

O primeiro problema, mencionado acima, é contornado em geral pela ideia de que leis que ficaram inadequadas ante o avanço do processo de democratização deveriam ser modificadas pelos mecanismos próprios do regime democrático, já que não cabe ao judiciário, mas apenas ao parlamento, aprovar novas leis. Isso significa, entre outras coisas, que leis injustas devem ser aplicadas enquanto não se aprova uma lei mais justa. É claro que a correção a posteriori não elide o fato de que alguém possa ser condenado ou absolvido em virtude da vigência de uma lei injusta, já que, no momento do julgamento, era a lei injusta que valia. Como exemplo mais gritante, nos dias que correm, temos o caso do chamado foro privilegiado (ou por prerrogativa de função). Quando a nova lei for aprovada, se ela beneficiar o réu, retroagirá. Mas a injustiça está na condenação e na eventual pena que será cumprida pelo réu (ou, no caso, na absolvição e na liberdade para continuar a delinquir) enquanto a lei mais justa não entra em vigor.

O segundo problema diz respeito à chamada opinião pública, que não é – como se pensa – a soma das opiniões privadas da maioria da população. Este assunto já foi extensivamente tratado em outro artigo. A opinião pública não se confunde, como se argumenta no artigo linkado acima, com pesquisas de opinião. Ela é a parte ativa e viva da democracia que se revela na interação entre opiniões e não um agregado de opiniões individuais ou grupais. Do contrário não seria necessário promover eleições como método de verificação da vontade política coletiva: bastaria fazer uma pesquisa de opinião. Mas as eleições são necessárias porque, no seu processo, as opiniões individuais e grupais se modificam.

O terceiro problema, que vai ser abordado doravante, diz respeito às ruas. O que são as ruas? Assim como há uma confusão entre a soma de opiniões individuais, que pode ser aferida por uma pesquisa de opinião, e a opinião pública, que não pode ser captada por esse tipo de pesquisa, há outra confusão: entre a confusão que mistura e iguala resultados de pesquisa de opinião com opinião pública, de um lado, e os fenômenos interativos que levam pessoas às ruas para protestar contra qualquer coisa ou para defender algum conjunto de ideias (opiniões), de outro. Existem diferentes tipos de manifestação social (às vezes dita popular): do arrebanhamento clássico para ouvir lideranças em palanques, passando pelas manifestações industriadas e conduzidas por corporações em defesa de interesses coletivos e privados, até manifestações que emergem espontaneamente ao sabor do fluxo interativo da convivência social, como as que ocorrem em mundos altamente conectados constelando multidões jamais vistas na história. A partir do início deste século assistimos a ocorrência, com mais frequência, de manifestações do último tipo, a começar do 11 de março de 2004 na Espanha até as de setembro e outubro de 2014 em Hong Kong, passando pelo junho de 2013 no Brasil e no Egito (esta última a maior de toda a história humana). Quando se fala das ruas, deve-se notar que essas ruas do último tipo são totalmente diferentes das antigas ruas.

Quando se diz que o judiciário não pode se abalar com o clamor das ruas, de que ruas precisamente se fala? Parece correto afirmar que juízes e tribunais não podem julgar para atender o que querem as manifestações privadas nas ruas, sejam de caráter político (partidárias), corporativo (sindicais), religiosas, étnicas etc. Não porque a lei esteja supostamente acima dos conflitos e imune aos emaranhados vivos de opiniões que constituem o propriamente público e sim porque a lei, numa democracia, se aplica a todos e não apenas às partes da sociedade que se mobilizam mais do que as outras para defender seus interesses ou propor suas ideias. Mas o que dizer das manifestações públicas, ou seja, daquelas em que não se pode estabelecer uma relação entre opiniões privadas de um grupo, setor, categoria ou classe da sociedade e a opinião pública (tal como definida no artigo citado anteriormente: ou seja, quando as opiniões deixam de ser privadas pelo mesmo processo que constitui o público)?

Nada, numa democracia – nem o judiciário, nem mesmo as leis -, pode estar acima da opinião pública (se tomarmos a expressão ‘opinião pública’ rigorosamente, não no sentido de que não haja mais opinião privada, individual ou coletiva, e sim no sentido de que não se pode mais estabelecer uma relação entre os portadores dessas opiniões privadas e uma opinião que se forma por emergência, a partir da combinação e recombinação de múltiplos inputs).

Isso significa que juízes e tribunais devem violar as leis existentes para julgar de acordo com sua percepção do que seria, em cada caso, a opinião pública? É claro que não. Seria impossível fazer isso, até porque as percepções de uma opinião, em geral difusa (ou difusamente composta), da sociedade, variam muito. Mas isso significa que julgadores não podem se colocar acima da opinião pública, ou ficarem surdos (por surdez voluntária) para a “voz das ruas” quando interpretam as leis que devem aplicar.

A interpretação não é conhecimento objetivo (no sentido preciso do famoso Human Knowledge do último Russell). A interpretação é sempre subjetiva e se baseia, via de regra, no passado (é o que se chama de jurisprudência). Toda jurisprudência é conservadora, posto que visa manter coerência com uma trajetória de interpretações pretéritas das leis. As ruas não podem mudar as leis, mas podem mudar as interpretações. E só mudam as interpretações quando introduzem disrupturas na trajetória das interpretações que, do contrário, tenderiam a se conservar. Não fosse assim, a democracia estaria congelada no século 17, quando os modernos a reinventaram e não haveria, a rigor, democracia, posto que o processo de democratização (que é o que devemos entender por democracia, no sentido forte do conceito) seria contido pelas exigências de manutenção de um modelo qualquer anterior ao processo de democratização em curso.

Portanto, essa conversa mole de ideólogos jurídicos conservadores, em geral legalistas, de que um tribunal não deve se curvar ao humor variável das ruas (entendendo-se por ruas os ambientes onde se forma a opinião pública e não um lugar ocupado por manifestantes que defendem seus interesses privados), é incorreta. Numa democracia, todos os poderes devem estar abertos aos clamores da sociedade. Podem até fingir que não estão vendo e ouvindo o que estão vendo e ouvindo. Mas não podem reclamar das consequências. E a principal consequência é a perda de legitimidade pública.

O Supremo Tribunal Federal perdeu legitimidade pública ao tentar se colocar acima da opinião pública em recente julgamento que talvez fique conhecido como o affaire Marco Aurélio x Renan Calheiros. No caso, o tribunal não ouviu a voz das ruas, mas ouviu a voz do velho sistema político, ou seja, não interpretou a lei autonomamente e sim sob pressão das instituições de outros poderes, assumindo um papel político que extravasou sua esfera de competência jurídica. A surdez voluntária (para as ruas) foi adotada pela necessidade de ajudar o governo (o que não é atribuição sua: assim como tribunais não devem legislar, também não devem governar). “Ouvidos de mercador”, diz outra velha expressão. No caso é ouvido para ouvir o Estado, mas não a sociedade, como se a sociedade fosse uma espécie de dominium do Estado e não a sua constituinte.

Membros da suprema corte não são seres superiores, não são infalíveis, não têm sempre a interpretação correta das leis (se tivessem, não divergiriam tanto entre si e o próprio método de votação em tribunais é altamente questionável) e não são mais nem menos importantes do que qualquer um de nós. Se os fluxos interativos da convivência social não pudessem alterar a estrutura, a dinâmica e, inclusive, as normas que regem as instituições, ficaríamos condenados a viver nos escaninhos de algum arquivo morto.

Deixe uma resposta

Loading…

Deixe seu comentário

A mega-operação da Odebrecht

Crimes comuns e crimes políticos