Na verdade, ela é a guerra. Vamos ver mais um relato esclarecedor de Juan Reinaldo Sánchez, que foi guarda-costas pessoal de Fidel, no seu livro A vida secreta de Fidel (2014), disponível em PDF no link para download.
FIDEL, ANGOLA E A ARTE DA GUERRA
A guerra, enfim! Durante sua longa trajetória, Fidel Castro aconselhou, treinou e apoiou dezenas de grupos armados. Ele inspirou centenas de milhares, talvez milhões de combatentes anti- imperialistas mundo afora. Na América Latina, nenhum país escapou a sua influência. E na África — onde Che Guevara foi lutar pessoalmente em 1965 —, nada menos que dezessete movimentos revolucionários se beneficiaram de sua expertise. No fundo, porém, todas essas ações subversivas foram pontuais, com efetivos limitados e duração reduzida, ou seja, bastante modestas em relação às verdadeiras ambições planetárias do comandante. Eram “apenas” guerrilhas…
Em Angola, Fidel Castro passou para outro patamar, o da guerra de movimento, com tropas de solo, tanques, blindados, baterias de artilharia, helicópteros e aviões de caça. Ao longo de dezessete anos, de 1975 a 1992, ele realizou a façanha de enviar ao front, a 10 mil quilômetros das costas cubanas, um contingente total de 200 mil a 300 mil combatentes civis. Algo nunca visto: até então, nenhum país de tamanho comparável, nem mesmo Israel, havia se projetado tão longe militarmente, por tanto tempo, com tantos homens. Acima de tudo, em Angola, os militares cubanos contribuíram para enfraquecer o regime racista da África do Sul, infligindo-lhe uma derrota militar e política pungente.
Essa história incrível — curiosamente pouco conhecida fora de Cuba — começou em Lisboa, em 25 de abril de 1974. A Revolução dos Cravos derrubou a ditadura salazarista, que detinha o poder em Portugal desde os anos 1930.
Recém-instalado, o novo governo decidiu abandonar seu império colonial que, além de Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Macau e Timor, contava com uma “joia da Coroa”: Angola, rica em petróleo e minério. Lá, três movimentos independentistas que até então enfrentavam separadamente o colonizador passaram a disputar o butim. De um lado, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), comandado pelo líder marxista Agostinho Neto (1922-79), era apoiado pelo bloco soviético. Do outro, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), do independentista Holden Roberto (1923-2007), e a UNITA, de Jonas Savimbi (1934-2002), recebiam auxílio do Ocidente.
A fim de acalmar as tensões exacerbadas entre os angolanos, que corriam o risco de levar o país a uma guerra civil, os portugueses rapidamente anunciaram, em janeiro de 1975, a data da futura independência: seria no próximo dia 11 de novembro. A contagem regressiva teve início e restavam, portanto, menos de dez meses a cada um dos movimentos para preparar a guerra. Pois todo mundo entendeu: aquele que controlasse Luanda, a capital, no dia da partida dos portugueses, automaticamente se tornaria o novo senhor do país.
O líder do MPLA Agostinho Neto — que conhecera Che Guevara dez anos antes, no Congo — naturalmente fez um apelo para que Fidel Castro viesse em seu socorro. Este, num clarão de gênio, concebeu e organizou a famosa “operação Carlota”. Loucamente audaciosa, consistia em estabelecer uma ponte aérea e marítima entre Havana e Luanda, para encaminhar milhares de “internacionalistas” e equipamentos que permitissem ao MPLA de Agostinho Neto tomar Luanda algumas horas antes da data fatídica. No outono de 1975, milhares de soldados cruzaram o oceano a bordo de transatlânticos e de quadrimotores Britannia da Cubana de Aviación, para chegar, em meio ao maior sigilo, às margens da África austral. A operação foi facilitada pelo fato de que o contingente cubano contava com muitos negros e mestiços, que facilmente se fundiam à paisagem.
Quando o mundo descobriu que milhares de cubanos tinham chegado a Luanda, houve uma surpresa geral. Não apenas para os americanos, mas também para os soviéticos! Pois Fidel não julgou necessário avisar o Kremlin de suas grandes manobras. Confrontados com o fato consumado, os dirigentes soviéticos ficaram boquiabertos. Com razão: era a primeira vez, desde o período colonial, que um exército inteiro desembarcava no continente negro.
O plano do comandante funcionou perfeitamente. No dia 10 de novembro de 1975, depois de uma semana de combates, o MPLA de Agostinho Neto venceu, com o auxílio das tropas cubanas, a batalha decisiva que permitiu tomar Luanda. E no dia 11 de novembro o novo dirigente do país proclamou a independência. Em plena Guerra Fria, Angola passou para o bloco soviético. O novo governo marxista recebeu o reforço de conselheiros militares russos e de equipamentos de guerra, o que lhe permitiu controlar a maior parte do país. Em Havana, o mito da invencibilidade cubana, nascido na Baía dos Porcos, se viu reforçado.
Na época, eu ainda não fazia parte da escolta de Fidel. Aos 26 anos, estudava na escola de especialistas do MININT, com a intenção de me tornar um oficial de segurança responsável por altas personalidades. Mas como meu desejo mais alto era morrer pela Revolução, fui procurar um oficial graduado e lhe supliquei que me enviasse para Angola, para participar da epopeia gloriosa. Para minha grande surpresa, ele me recebeu friamente, perguntando quem eu achava que era. Explicou que não cabia a mim decidir sobre o meu futuro, e que a Revolução escolheria a missão que melhor me conviria. Mais tarde entendi que naquele estágio de minha carreira, ou seja, dois anos antes de ser nomeado guarda-costas de Fidel, eu já tinha sido pré-selecionado para essa função.
Em 1976, uma ótima surpresa: o Senado americano, não querendo se deixar levar para um “Vietnã africano”, votou a emenda Clark, que proibiu que os Estados Unidos exportassem armas ou interviessem militarmente em Angola. Em março de 1977, Fidel fez sua primeira viagem triunfal para terras angolanas, onde a situação estava mais ou menos sob controle. Depois da morte natural de Agostinho Neto, em 1979, ele foi substituído por José Eduardo dos Santos (no poder até hoje). Mas as coisas se complicaram nos anos 1980. A invasão americana a Granada, onde 638 cubanos foram feitos prisioneiros, representou um grande golpe ao mito da invencibilidade cubana. Em Angola, os sul-africanos retomaram a ofensiva militar no sudeste do país. Fidel, nesse meio-tempo, enviava constantes reforços humanos, enquanto os russos continuavam fornecendo tanques, aviões, helicópteros e mísseis, sem pensar nas despesas. Em campo, porém, as perdas se acumulavam. Dez anos depois do início do conflito, as mães cubanas temiam uma única coisa: que um oficial do MINFAR batesse a sua porta pela manhã para anunciar, com um buquê de flores na mão, segundo a tradição, a morte de um filho em combate. No total, mais de 2500 cubanos perderam a vida no conflito angolano.
Naquele momento, as divergências entre cubanos e russos se multiplicavam. Para Fidel, a doutrina de guerra soviética era inadequada ao campo de batalha africano. Circunstância agravante: os russos eram incapazes de se adaptar à mentalidade local. Em contrapartida, as afinidades entre angolanos e cubanos eram evidentes, na mesma medida em que os soviéticos pareciam extraterrestres. Primeira desavença grave: em julho de 1985, o comando militar soviético insistiu em lançar uma grande ofensiva, a “Operação Congresso II”, contra o município de Mavinga, estrategicamente localizado no sudeste angolano, a mil quilômetros da capital. Fidel se opôs, pois as circunstâncias lhe pareceram desfavoráveis. E a continuação da história lhe deu razão: depois de conquistarem seu objetivo, as forças cubano-angolanas logo precisaram recuar, pois os russos não tinham assegurado corretamente a coluna de abastecimento. Uma batalha em vão…
No war room do Ministério das Forças Armadas de Havana, onde eu estava com Fidel — era dali que ele seguia todos os combates —, ouvi-o repetir mais uma vez a Raúl: “Eu sabia que ia dar nisso. Eu disse aos russos que era preciso assegurar as linhas de retaguarda e de abastecimento… Agora é tarde demais… Deviam ter pensado nisso antes!”. Então el comandante ordenou ao irmão — desde sempre o “agente de ligação” de Havana com Moscou — que transmitisse seu absoluto desagrado “às mais altas instâncias do Kremlin”. O que foi feito.
No ano seguinte, entre maio e agosto de 1986, os soviéticos cometeram o mesmo erro. Lançaram uma segunda grande ofensiva que, por motivos iguais, resultou no mesmo lamentável fracasso: os sul-africanos e a UNITA de Jonas Savimbi sabotaram pontes que atravessavam rios e impediram a retirada das tropas cubano-angolanas. Mais uma vez, Fidel comunicou seu desagrado a Mikhail Gorbatchóv — o qual ele vê, aliás, com preocupação, realizar uma aproximação diplomática de mau augúrio com os Estados Unidos.
No mês seguinte, em setembro de 1986, Fidel foi à Cúpula do Movimento dos Não Alinhados, no Zimbábue, assim como eu e… o coronel Gaddafi. Ele decidiu então fazer um desvio por Angola, onde estavam 40 mil cubanos, soldados ou civis, dentre os quais o próprio filho de Raúl, o jovem Alejandro Castro, que hoje é coronel. É a segunda vez que Fidel põe os pés em Angola, nove anos depois da primeira viagem, em 1977.
A visita durou três dias. Na segunda noite, Fidel foi visitar nossas tropas na linha de frente. Sua escolta era mínima: três guarda-costas, dentre os quais eu me encontrava, o chefe da escolta Domingo Mainet e o dr. Selman. Decolamos ao cair da noite e, como num filme, voamos rente ao chão a bordo de três helicópteros rumo à zona de combate. Depois que aterrissamos no meio da savana, percebi que estávamos a poucas centenas de metros dos sul-africanos. O inimigo estava tão perto que podíamos ver as luzes de seu acampamento. Se eles pudessem imaginar que Fidel estava ao alcance… El comandante dirigiu-se aos nossos soldados, encheu-os de palavras para inflamá-los, avaliou o moral deles, discutiu o cotidiano e tentou compreender a situação militar. Parecia Napoleão falando com seus veteranos. “De que região cubana você vem? Da província de Oriente? Ah, muito bem…”, “Há quanto tempo está em Angola?”, “E o abastecimento, vai bem?” Lembro que, ao voltar a Luanda, na mesma noite, Fidel se sentia nas nuvens, animado com aquele passeio.
Depois do fracasso das duas grandes ofensivas, os soviéticos finalmente abandonaram o comando, deixando a iniciativa tática e estratégica a cargo de Fidel Castro. O fato é tão extraordinário que merece ser enfatizado: ao longo de toda a guerra, Fidel dirigiu as operações miliares de Havana, quase do outro lado do planeta. Era preciso ver aquele estrategista em ação, no war room do MINFAR, coberto de mapas do estado-maior e cheio de maquetes dos campos de batalha! Perfeito mestre na arte da guerra (ele tinha lido Sun Tzu), era Napoleão e Rommel reunidos num só corpo. Por escrito ou por telefone, ditava instruções a seus generais. O que resultava em boletins redigidos assim: “O perímetro defensivo a leste do rio deve ser reduzido. Recuem as brigadas 59 e 26 para posições fortificadas mais perto do rio. Essas duas brigadas devem cobrir todo o setor sudoeste, de maneira que a oitava possa se dedicar à missão de abastecimento. Atualmente, elas estão expostas a ataques que poderiam vir da zona que a 21a brigada defendia antes. Dada a situação, tal risco é inaceitável e deve ser corrigido de imediato”.
Quase duas décadas depois, nos anos 2000, o ex-general e ex-ministro da Defesa sul-africano Magnus Malan, que o combateu em Cuito Cuanavale, continuava sem acreditar: “Não entendo como ele conseguiu fazer aquilo. Comandar as operações a 10 mil quilômetros de distância é teoricamente impossível… Não, nunca vou entender”, confessou, sinceramente, numa espécie de homenagem involuntária ao antigo inimigo.
Cuito Cuanavale: a mítica batalha foi o derradeiro embate entre Cuba e África do Sul. Durou seis meses, de setembro de 1987 a março de 1988, e entrou para a História como a maior batalha militar na África desde a Segunda Guerra Mundial. Esse “Stalingrado africano”, com tanques, helicópteros, aviões de caça e baterias de mísseis acabou num impasse. Ninguém ganhou, e os dois lados reivindicaram a vitória, mas os sul-africanos tiveram de admitir que nunca derrubariam, militarmente, o governo marxista de Luanda. Aceitaram, portanto, negociar a paz nos seguintes termos: Fidel repatriaria seu exército para Cuba, desde que a South African Defense Force (SADF) deixasse a Namíbia e outorgasse a independência total a essa ex-colônia alemã, desde 1945 sob protetorado sul-africano, que servia de Estado-tampão ao lado de Angola. Assim, a independência da Namíbia foi proclamada. O que levou o regime racista de Pretoria a outras concessões: a libertação de Nelson Mandela e, a seguir, a abolição do apartheid. Três anos depois, Nelson Mandela declarou: “Cuito Cuanavale pôs fim ao mito da invencibilidade do opressor branco. Foi uma vitória para toda a África”.
Nessa fantástica aventura, Fidel ganhou mais prestígio ainda. Mas seria injusto não mencionar a participação de Arnaldo Ochoa. Em Angola, seu papel foi crucial. Considerado o melhor general cubano, ele tinha participado de todas as peripécias da epopeia castrista, ou quase. Para a minha geração, esse militar com perfil de falcão e charme irresistível era o próprio exemplo do guerrilheiro completo. Resistente na Sierra Maestra durante a luta contra Batista, ele fora a seguir para o Congo com Che Guevara, em 1965, e depois para a Venezuela, em 1966, a fim de organizar um foco de guerrilha. Tornando-se uma engrenagem essencial da “operação Carlota” em Angola, em 1975, também tinha comandado o corpo expedicionário cubano na Etiópia durante a guerra de Ogaden (1977-8), antes de se tornar, entre 1984 e 1986 — sempre a pedido de Fidel —, o conselheiro especial do ministro da Defesa nicaraguense, Humberto Ortega, para ajudar o país a repelir os ataques da “Contra” financiada por Washington.
Militar mais condecorado do país, esse prodígio da Revolução foi nomeado por Fidel “Herói da República de Cuba”, título que ele era o único a ter. Em 1987, quando o Exército cubano se viu numa posição delicada, devido sobretudo a erros soviéticos, ele se tornou chefe da “missão militar cubana em Angola”. Chegando ao local, porém, esse fino estratego, que também era o melhor amigo de Raúl Castro, se considerou em posição mais vantajosa que a de Fidel para avaliar a realidade do terreno. Um dia, por exemplo, Ochoa propôs uma trégua de oito dias para que os combatentes pudessem se recuperar, enquanto el comandante queria retomar o combate sem demora. Outra vez, o general decidiu formular propostas alternativas às escolhas táticas decretadas pelo jefe.
No Palacio ou no war room do MINFAR, ouvi Fidel dizer a Raúl coisas do tipo: “Ochoa demonstra sintomas de incapacidade” (entenda-se: incapacidade intelectual), “Ochoa está fora da realidade”, ou ainda “Ochoa não tem os pés no chão”. Em janeiro de 1988, em plena batalha de Cuito Cuanavale, o general foi convocado em Havana: Fidel ordenou-lhe que retirasse todas as brigadas, menos uma, a da margem leste do Cuito. Mas ao voltar para Angola, Ochoa se absteve de executar essa estratégia, que julgava errônea, e fez outras escolhas, provavelmente melhores. Algumas semanas depois, Ochoa foi chamado a Luanda, depois a Havana.
Em meu íntimo, eu me preocupava com ele. Pois sabia havia muito tempo que ninguém, nem mesmo o “herói da república de Cuba”, podia contradizer Fidel. Fazer isso significava, mais dia menos dia, cair em desgraça. Eu estava longe de imaginar, no entanto, que sua contagem regressiva já tinha começado.
Menos de um ano depois, Arnaldo Ochoa foi executado pelo pelotão de fuzilamento. Por ordem de Fidel.



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