No dia 8 de julho de 2020 escrevi no Facebook. Eu torço para que Bolsonaro viva, se recupere bem da doença com o menor sofrimento possível, seja removido do cargo pacifica e democraticamente e responda pelos seus crimes de acordo com as leis. Antes de começar deixo clara a minha posição.
Comentei porque é impossível não comentar o artigo de Hélio Schwartsman, na Folha (07/07/2020), que abriu uma grande polêmica. Já fiz dois posts sobre isso: curiosamente, o primeiro, antes do Hélio publicar seu artigo, declarando – sem explicitar a razão – que não se deve torcer para nenhum ser humano ficar doente (ou sofrer) ou morrer; e, o segundo, sustentando que não há crime na sua escritura. Tudo a propósito da infecção de Bolsonaro pelo novo coronavírus.
Pois bem. André Mendonça decidiu então pedir à Polícia Federal, conforme dispõe o Inciso IV do Artigo 31 da Lei de Segurança Nacional, que abra um inquérito para investigar o artigo (!) de Hélio. Foi uma prova de duplo analfabetismo do nosso ministro da Justiça: democrático e jurídico.
Não existem tribunais éticos nas democracias, apenas jurídicos. Os tribunais não julgam o que é mau ou bom e sim o que viola ou não as leis (democraticamente aprovadas).
Se um sujeito expressa o desejo de que alguém morra, ou tece considerações filosóficas sobre o bem que adviria desse passamento, mas não faz nada concretamente para matá-lo, não planeja sua intenção para que se torne ato, nem incita terceiros a fazê-lo, isso não é crime (muito menos crime contra a segurança nacional). Ademais, Schwartsman não se propôs a matar, nem mesmo desejou que alguém matasse, o presidente, para que se alcançasse um bem almejado por ele. Partiu do fato de que o presidente já está infectado fortuitamente (e não por ele, nem por alguém seguindo sua orientação) com um patógeno capaz, sim, de matá-lo. Considerou então que, se ele viesse a morrer, isso seria um bem para o país. Não há crime.
Dito isto, cabem agora algumas considerações filosóficas (por assim dizer, porque na verdade nascem de uma contraposição do modo sofista de pensar à filosofia) e políticas.
Em democracias, Schwartsman não pode ser julgado pelo artigo porque sua opinião é de natureza ética, situando-se, como ele próprio diz, na corrente de pensamento consequencialista (para o qual “as ações devem ser valoradas pelos resultados que produzem”). Ou seja, o autor não se filia à corrente deontológica da filosofia moral (para a qual existem escolhas que são moralmente necessárias de acordo com algum princípio ou ordem, e que, assim, devem ser proibidas ou permitidas ou julgadas ruins ou boas).
Mas a questão originária que está no fulcro dessa discussão é: existe um princípio imanente ou transcendente, uma ordem moral divina ou natural (na verdade, por trás dessa pergunta há outra: há uma ordem – qualquer ordem social, moral ou não – preexistente à interação dos humanos)? Para o ponto de vista sofista, protagoriano, do chamado dualismo crítico, que faz uma contraposição ao platonismo (filosófico), não há uma ordem de justiça inerente ao mundo, isto é, a ordem original ou primeira em que a natureza foi criada por deus ou por si mesma. Assim, para Protágoras (que não era filósofo, tal como o termo foi significado pela tradição pitagórico-platônica e, talvez, heraclítica), o homem é o ser moral neste mundo, a natureza (ou seu suposto criador) não é moral nem imoral, não havendo, portanto, qualquer princípio imanente ou transcendente à ação humana, para piorar ou melhorar as coisas. Ou seja, os humanos têm direito de piorar as coisas.
A opinião de Hélio pode piorar as coisas, mas como não se pode saber se uma opinião piora ou melhora as coisas de um posto de vista estritamente moral, vamos examinar agora uma classe de juízos de um ponto de vista político. Todos os argumentos de que o autor está errado porque, ao desejar a morte de Bolsonaro se iguala a ele ou porque dificulta o diálogo entre os atores visando um objetivo político (a interrupção do mandado de Bolsonaro ou a sua não reeleição), são de natureza política, não propriamente moral, muito menos jurídica. Ora, não se pode julgar (juridicamente) uma opinião política como crime, a não ser que se admita a existência de crime de opinião, o que é incompatível com a democracia.
Por certo a democracia – que é política, aliás, a política propriamente dita – lançou uma ponte entre a política e a ética. Considerou, ainda quando não o explicitou, que bom é tudo que nos faz mais livres. Mas a concepção de liberdade que estava na origem dessa conexão não era a de ausência de coerção e sim a de poder se associar livremente (sem necessidade) aos semelhantes, seja para contender com um problema comum, seja para realizar um projeto nascido da congruência dos seus desejos. Ou seja, livre era – na gênese da democracia – quem participava da polis, quer dizer, quem interagia na comunidade como um ser político (voluntariamente e não compelido por qualquer natureza – e. g., a de animal político, como desentendeu Aristóteles).
Poder-se-ia dizer então, pulando – por amor à brevidade – várias passagens da presente argumentação, que Hélio Schwartsman dificultou, em vez de favorecer, a possibilidade de interação política (democrática) ao enunciar um juízo ético distônico. Para a comunidade política (democrática) a vida é um valor, posto que, sem ela, não se pode experimentar a liberdade (que é o sentido da política). Assim, desejar que uma pessoa morra ou mesmo sofra (com uma doença), dificultando que ela experimente a maior liberdade possível (que implica se comprazer e não se desaprazer na convivência) não é sintônico com a democracia.
Mas não porque, com isso, o autor tenha fortalecido seus inimigos, dando-lhes razão para denunciar como intolerantes ou propagadores de ódio os que criticam o comportamento de Bolsonaro. Isso é verdade em termos instrumentais (da política voltada a alcançar no futuro um objetivo qualquer que não seja interagir no presente como um ser político), mas não é um argumento propriamente democrático. Do ponto de vista democrático, este seria, portanto, um argumento apolítico (para não dizer antipolítico, quer dizer, autocrático). A política instrumental, aqui como em todo lugar, já é continuação da guerra por outros meios – configuração onde falece qualquer possibilidade ética: na medida em que o nosso bem não pode ser o mesmo bem do inimigo cairíamos num dualismo acrítico, para lembrar o título de um panfleto amoral (e até imoral) de Trotski (1938), A nossa moral e a deles.
Para encerrar (e não propriamente concluir, pois a argumentação acima está longe de ser concluída), Hélio Schwartsman não pode ser julgado de um ponto de vista jurídico, nem reprovado de um ponto de vista puramente ético. Pode ser criticado de um ponto de vista ético-político.
Nesse sentido ético-político a opinião do autor não é pró-democrática, ainda que a democracia tenha que conviver com ela posto que não pode censurá-la por suas próprias razões: nem a priori, nem a posteriori.
Mas volto então ao exercício sofista. Se não há uma ordem moral extra-humana, então não há como ser eticamente reprovado por piorar as coisas em nome de qualquer princípio que adotamos (vindo de onde vier) e isso vai além dos consequencialismos (sem regras ou com regras).
Uma boa ação pode ter consequências más. Uma má ação pode ter consequências boas. Identificar consequências é uma invenção de história pois implica ligar eventos posteriores aos anteriores por algum nexo causal. E não se pode saber se o que de fato aconteceu depois é consequência, em algum sentido, do que aconteceu antes. O futuro não está predeterminado pelo passado. Existem muitas linhas de desdobramentos possíveis e escolher uma linha particular de desenvolvimento de eventos significa sempre eliminar as outras, construindo uma continuidade da frente para trás. Assim nascem as narrativas, que não retratam o que aconteceu, mas o que teria sido desejável que acontecesse, na visão do narrador, para cavar um sulco para fazer escorrer por ele as coisas que ainda virão, condicionando (e trancando) o futuro.
Abandonadas as visões consequencialistas, cai-se na ética da convicção baseada em princípios (como faz o Reinaldo Azevedo, em artigo reproduzido abaixo). Eu faço ou não faço, isso ou aquilo, porque estou convencido que isso é bom ou aquilo é ruim. Mas a ética da convicção também é problemática.
Por exemplo, por convicção adoto três princípios éticos: não atentar contra a vida, não restringir a liberdade e não infligir voluntariamente sofrimentos aos semelhantes (e aos seres sencientes em geral). São bons princípios, a meu ver. Mas de onde eles vêm? De alguma inspiração kantiana que se abate sobre o sujeito ao olhar o céu estrelado (ou ser iluminado por sua consciência moral)? Isso existe em que plano da existência?
Pode existir, sim, mas é uma construção social (cultural). Assim como o inconsciente, o consciente coletivo é formado socialmente. Não é o indivíduo que, sozinho, toma decisões éticas (olhando o céu estrelado da sua consciência moral) e sim a pessoa, um emaranhado de relacionamentos que a liga a uma comunidade (na qual ela está e é, como pessoa – quer dizer, um ser propriamente humano). E isso só se explicita e adquire sentido se estamos falando da comunidade política.
Não devemos emitir juízos éticos distônicos, que afrontem o ethos da comunidade política, mas não por razões instrumentais de realpolitik, quer dizer, de guerra, porque, com isso, ficaríamos mais fracos para alcançar nossos objetivos. E sim porque, com isso, reduzimos as possibilidades de interação com o outro-imprevisível, ou seja, qualquer outro que pertença à nossa comunidade, ficando ligados, assim, apenas aos outros escolhidos. Assim nascem as facções.
Schwartsman não cometeu um crime. Apenas se dessintonizou com a rede mais geral a que está conectado, para a qual a vida é um valor e, portanto, não se deve desejar que outras pessoas morram.
O ARTIGO DO HÉLIO QUE ABRIU A POLÊMICA
Por que torço para que Bolsonaro morra
Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo (07/07/2020)
O presidente prestaria na morte o serviço que foi incapaz de ofertar em vida
Jair Bolsonaro está com Covid-19. Torço para que o quadro se agrave e ele morra. Nada pessoal.
Como já escrevi aqui a propósito desse mesmo tema, embora ensinamentos religiosos e éticas deontológicas preconizem que não devemos desejar mal ao próximo, aqueles que abraçam éticas consequencialistas não estão tão amarrados pela moral tradicional. É que, no consequencialismo, ações são valoradas pelos resultados que produzem. O sacrifício de um indivíduo pode ser válido, se dele advier um bem maior.
A vida de Bolsonaro, como a de qualquer indivíduo, tem valor e sua perda seria lamentável. Mas, como no consequencialismo todas as vidas valem rigorosamente o mesmo, a morte do presidente torna-se filosoficamente defensável, se estivermos seguros de que acarretará um número maior de vidas preservadas. Estamos?
No plano mais imediato, a ausência de Bolsonaro significaria que já não teríamos um governante minimizando a epidemia nem sabotando medidas para mitigá-la. Isso salvaria vidas? A crer num estudo de pesquisadores da UFABC, da FGV e da USP, cada fala negacionista do presidente se faz seguir de quedas nas taxas de isolamento e de aumentos nos óbitos.
Detalhe irônico: são justamente os eleitores do presidente a população mais afetada.
Bônus políticos não contabilizáveis em cadáveres incluem o fim (ou ao menos a redução) das tensões institucionais e de tentativas de esvaziamento de políticas ambientais, culturais, científicas etc.
Numa chave um pouco mais especulativa, dá para argumentar que a morte, por Covid-19, do mais destacado líder mundial a negar a gravidade da pandemia serviria como um “cautionary tale” de alcance global. Ficaria muito mais difícil para outros governantes irresponsáveis imitarem seu discurso e atitudes, o que presumivelmente pouparia vidas em todo o planeta.
Bolsonaro prestaria na morte o serviço que foi incapaz de ofertar em vi
O OUTRO ARTIGO DO HÉLIO, DEPOIS DA ABERTURA DA POLÊMICA
Esperando o japonês da Federal
Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo (09/07/2020)
Bolsonaro poderá encrencar-se se ministro conseguir emplacar sua tese
O ministro da Justiça, André Mendonça, diz que pedirá a abertura de um inquérito para que eu seja investigado por violação ao artigo 26 da velha LSN dos tempos dos militares, que imaginávamos já ter ido para a reserva.
Não sei bem o que há a investigar. Acreditava que o texto falasse por si só. Mas vou colaborar, prestando esclarecimentos. O artigo foi escrito na manhã do dia 7/7, num processador Word. Eu me encontrava sobre o deck da piscina sem nenhuma companhia que não a de uma incontrolável matilha de cães. Ah, o computador era um Dell.
É preciso muita criatividade jurídica para ver na minha coluna original alguma calúnia ou difamação, que é o que possibilitaria o uso do artigo 26. E o ministro Mendonça, sempre cioso de agradar ao patrão, deveria ser mais cauteloso. Se conseguir emplacar sua tese de que desejar a morte de alguém é crime, então seu chefe poderá encrencar-se. Bolsonaro, afinal, torceu pela morte de Dilma, “infartada ou com câncer”, e defendeu o fuzilamento de FHC.
Fui bem mais gentil com o presidente do que ele fora com seus predecessores. Afirmei textualmente que sua vida tem valor e que sua perda seria lamentável. O ponto é que, no consequencialismo (assim como na República, se levássemos seus princípios a sério), seu valor não é maior do que o de qualquer outra vida.
Assim, se estamos convencidos de que as atitudes negacionistas de Jair Bolsonaro dão causa a um excesso de óbitos na pandemia, torcer por seu desaparecimento é não só lógico como ético, na perspectiva consequencialista.
Quando o problema é apresentado de forma abstrata, sem o nome Bolsonaro, como ocorre na literatura dos dilemas morais (“trolleyology”), a maioria das pessoas não pestaneja antes de puxar uma alavanca que sela o destino de uma pessoa para salvar a vida de um número maior de indivíduos. E eu não acionei nenhuma alavanca. Até onde sei, o vírus é indiferente a meus desejos.
UM ARTIGO DO REINALDO
Torço para Bolsonaro viver e pagar por seus crimes
Reinaldo Azevedo, Folha de S. Paulo (10/07/2020)
Quero que o presidente responda pelos crimes tipificados no Código Penal e na lei do impeachment
André Mendonça, ministro da Justiça, já confundiu crime com liberdade de expressão. Assim, não me surpreende que confunda liberdade de expressão com crime.
Há menos de um mês, passou a mão na cabeça de delinquentes que dispararam fogos de artifício contra o Supremo, simulando um ataque armado. Agora, quer enquadrar Hélio Schwartsman, articulista da Folha, na Lei de Segurança Nacional porque este afirmou em artigo que torce para que Jair Bolsonaro morra em decorrência da Covid-19.
Eu não torço. Quero que responda pelos crimes tipificados no Código Penal, na lei 1.079 e no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional para punir indivíduos, não países, por crimes de guerra, de genocídio, de agressão e contra a humanidade.
No dia seguinte ao ataque ao STF, o ministro divulgou uma nota simpática aos agressores: “Devemos agir por este povo, compreendê-lo e ver sua crítica e manifestação com humildade. Na democracia, a voz popular é soberana.” Chamava “povo” aos lunáticos golpistas e reconhecia a soberania da súcia sobre a Constituição. Eram dias anteriores à prisão de Fabrício Queiroz, marco da conversão de Bolsonaro à democracia. Aposto que a ida do primeiro-amigo do presidente e das milícias para a prisão domiciliar vai baixar o índice de apreço do ogro pelas instituições.
Mendonça tratava crime como liberdade de expressão e ainda convidava o agredido a um mea-culpa. E quer agora enquadrar Schwartsman no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional, o que, além de evidenciar a sua falta de credenciais democráticas, levanta suspeita sobre a sua sanidade jurídica. A referida disposição pune crimes de calúnia e difamação contra presidentes de Poderes. Desejar a morte de alguém pode não ser fofo. Mas calúnia e difamação não é. A acusação é tão exótica que nem errada chega a ser.
Para que o autor do texto representasse ameaça ao presidente, forçoso seria que tivesse algum comando sobre o coronavírus. Não tem. O troço vitima, a gente vê, gregos e troianos, guelfos e gibelinos, gênios e idiotas, insanos e insanáveis. Patógenos não têm moral nem fornecem uma aos doentes.
O artigo de Schwartsman é o mais equivocado que já saiu de sua pena inteligente.
O autor apela à ética consequencialista para explicar a sua torcida. Pode-se resumir assim: o comportamento de Bolsonaro contribui para espalhar a doença e, pois, a morte. Se a Covid-19 o matasse, vidas seriam poupadas. E é bom notar que o articulista não fez arminha com os dedos, mirando o presidente.
O consequencialismo é matéria controversa. A sua principal fragilidade está na abolição dos princípios em favor da eficácia. Ocorre que aquele que tem o poder de fazer escolhas não detém o monopólio do bem universal, e tais escolhas, medidas apenas pelo resultado, podem ser um atalho para a barbárie, ainda que supostamente iluminista.
Não terá o próprio Bolsonaro sido “consequencialista” a seu modo quando fez reiterados flertes ao morticínio em massa, alegando que a paralisação da economia geraria mais estragos do que a própria doença? A diferença entre as duas proposições pode estar apenas no preço a pagar pelo alegado bem a ser alcançado: o jornalista tratou da morte de um homem que resultaria na salvação de milhares. O presidente preferiu apostar na morte de milhares para, segundo diz, salvar os empregos.
Sou um anticonsequencialista. No direito, por exemplo, o consequencialismo — que já chegou ao Supremo — tem produzido desastres em série. Não raro, relativiza-se a letra da lei em favor de uma noção de eficácia que resulta em solipsismo e desordem. Maquiavel nunca escreveu que os fins justificam os meios. Deve ter sido obra de algum candidato a tirano. O que o meu anticonsequencialismo me diz é que os meios qualificam os fins.
A tese de Schwartsman é ruim, mas, obviamente, não é criminosa. Ocorre que Mendonça não sabe a diferença entre crime e liberdade de expressão e entre liberdade de expressão e crime. E só por isso é ministro de Bolsonaro.


