Os democratas que restamos não vamos sobreviver por muito tempo
Avançamos cada vez mais na escuridão. Messianismos populistas – todos estatistas – estão disputando a condução das massas para se manter no governo ou conquistá-lo. Isso praticamente inviabiliza, no curto prazo, qualquer saída democrática. Agora é política balcanizada. Quer dizer, guerra. Quer dizer, antipolítica.
Dark age ahead. Os democratas devem se preparar para os tempos que virão. Ou melhor, que já vieram. A não ser que ocorra um fato extraordinário, uma catástrofe (no sentido de René Thom, como mudança de estado do sistema), não vai se abrir tão cedo uma janela pela qual possa entrar o ar fresco da inovação política e social. A rigor, desde o final de 2014, estão sendo forjados, nos porões fétidos da psico-história, hehe, exércitos tenebrosos, legiões de orcs preparados para cancelar qualquer amanhã que cante.
Por outro lado, talvez este seja este mesmo o nosso tempo. Afinal, a democracia sempre foi um processo de desconstituição de autocracia. E a hora mais escura ainda não chegou. Para atravessá-la vamos precisar proteger e conduzir nossas pequenas luzes. E multiplicá-las.
Nesta época obscura em que vivemos, qualquer otimismo exagerado na análise presta um serviço à obra de destruição. E ela está em curso.
O futuro como projeção ideal de tempos melhores não existe mais. Aliás, nunca houve. Só o que fazemos no presente conta, enquanto dura. Não há acúmulo automático de coisas boas, não há qualquer evolução inercial.
Se houvesse, aquela primeira democracia, do século de Péricles, não teria desembocado nas investidas autoritárias do populista e golpista Alcebíades no final do século 5, ex-ensinado de Sócrates, para um século depois, em 322 a.C., desaparecer da face da Terra por mais de dois milênios.
Se houvesse, as realizações dos Pais Fundadores ao erigirem a democracia na América não teriam resultado em que quase metade da sociedade americana sucumbisse à sedução mais boçal do trumpismo. Pode-se dizer que uma coisa (que fortuitamente veio antes) não tem nada a ver com a outra (que ocorreu depois por outras razões). Exatamente! Não existe evolução para melhor. Existe variação, que pode ser para melhor ou para pior.
Se houver ainda algum presente mais luminoso, isso depende do que formos capazes de fazer agora nesta travessia pelo reino das sombras. Com algum pessimismo na análise. E muito otimismo na ação.
Sim, ação. Mas o que fazer?
Não há nada que possamos fazer nesta dark age em que já entramos senão conectar os democratas existentes para configurar novos ambientes de aprendizagem permanente da democracia e multiplicar o número de democratas em todos os lugares, de baixo para cima, em cada cidade.
Não se trata de arrebanhar pessoas que concordem formalmente com a democracia. A maioria sempre concorda da boca para fora. Trata-se de ensejar o surgimento de novos agentes democráticos, que tomem a democracia como valor universal e principal valor da vida pública.
Agentes democráticos que sejam capazes de reconhecer e desconstruir os padrões autocráticos presentes nos populismos que assolam a democracia, sejam ditos de esquerda ou de direita.
Esses agentes democráticos não precisam ser maioria (nunca foram e nunca serão), mas têm que alcançar um número mínimo para ser capazes de cumprir o papel de fermento (e fermento não é massa) no processo de formação de uma opinião pública democrática.
Agentes democráticos que possam se candidatar a cargos legislativos ou executivos do Estado, mas que também atuem na sociedade: nas mídias tradicionais e sociais, nas escolas, nas igrejas, nas organizações civis, nas empresas, nas comunidades de vizinhança, nas redes cidadãs.
Não existe democracia sem democratas. Ou fazemos isso, ou multiplicamos o número de democratas, ou podemos nos preparar para uma travessia na escuridão por longo tempo. E nós – os democratas que restamos – não vamos sobreviver todo esse tempo.
Mas o analfabetismo democrático é tão generalizado e profundo que não adianta – para os movimentos de renovação política – fazer testes para selecionar democratas ou ministrar vários cursos de democracia. É necessário um processo de aprendizagem contínua. Como diz o amigo Gabriel Azevedo, vereador em Belo Horizonte, tem que ser uma espécie de hemodiálise.
Eu e alguns amigos e amigas estamos propondo que os democratas se conectem numa grande rede distribuída de aprendizagem permanente da democracia (a tal “hemodiálise”) e de inovação política por meio de novos experimentos societários glocais. E que, assim, se multipliquem para chegar, algum dia, a 1% dos eleitores em cada cidade. Mas 0,1% já é um começo.
O que você acha da ideia?
Felizmente a ideia já saiu do papel e virou um projeto. Neste momento quase duas dezenas de voluntários estão preparando oito itinerários de aprendizagem da democracia, alguns deles com propostas práticas de ações locais (de aprender-fazendo).
Apesar da pandemia, que atrasou bastante os trabalhos, estamos nos preparando para lançar o projeto no final de 2020.
Quem topa vir (ou ir) junto?
Escreva para [email protected]