Se alguém nos pedisse para citar um personagem capaz de representar, no plano simbólico, a primeira democracia, não deveríamos hesitar em apontar: Aspasia de Mileto, aquela que foi chamada de puta (quer dizer, a hetaira ou hetera). É um símbolo por demais profano. Por isso mesmo. A democracia é profana. Terrestre. Suja, curva e imperfeita.
Carolina Sánchez Castro (2015), no artigo Aspasia de Mileto, tentou coligir alguns relatos históricos sobre ela ao estudar o papel das mulheres no cenário intelectual da antiga Grécia. Mas é bem mais divertido ver a reconstrução literária de Manfredi (2000).
A puta
Valério Massimo Manfredi (2000) escreveu mais um livro – gostoso de se ler – intitulado “Akropolis: a grande epopeia de Atenas”. O livro se equivoca em vários pontos sobre a origem e o desenvolvimento da primeira democracia e, em especial, sobre os sofistas (repetindo a maledicência de Platão, considera-os imorais e vigaristas – quando, na verdade, entre eles estavam os democratas). Mas é interessante ver que ele dedica uma página à Aspásia de Mileto, a puta (que participava dos círculos sofistas). Reproduzo as passagens abaixo:
“Uma estrela de luz e fascínio irresistível brilhou nessa galáxia de engenhos extraordinários: a maravilhosa Aspásia, uma hetera de Mileto que se tornou a companheira inseparável de Péricles e a animadora da sua roda política e cultural.
Como já vimos, as heteras eram mulheres independentes, livres, bem-educadas e cultas que, lembrando de alguma forma as gueixas japonesas, haviam sido criadas e preparadas para serem “companheiras” dos homens na diversão, nos simpósios, nas festas e nos banquetes, para animar as conversas, tocar flauta, fazer amor. Eram elegantes e requintadas e, principalmente aquelas que, como Aspásia, vinham da Jônia, mostravam tamanha elegância nas roupas, nas joias, nos penteados, tamanha fascinação nas palavras, na melodia toda participar do sotaque, que as mulheres atenienses mal podiam sonhar em competir com elas.
O próprio nome de Aspásia era alusivo e sedutor, tendo o mesmo radical do verbo aspasesthai (abraçar). Quando a conheceu, Péricles já tinha dois filhos de um casamento anterior, Xantipo e Paralo, mas como insinuava maldosamente um poeta satírico, apaixonou-se a tal ponto pela linda mulher que a visitava sempre, pelo menos duas vezes ao dia, até chegar a conviver abertamente com ela. E, quando Aspásia lhe deu um filho, chamou-o de Péricles e reconheceu-o como legítimo, embora a lei não permitisse, pois a criança havia nascido de uma concubina, ainda por cima estrangeira. Péricles conseguiu até fazer com que fosse modificada a lei sobre a nacionalidade para que o filho pudesse ser ateniense, e é provável que só tenha conseguido isto recorrendo a todo o prestígio e a toda a influência que tinha junto do povo.
É claro, entretanto, que a coisa não iria ficar apenas nisso: ele era um homem tão importante que não podia deixar de ser alvo das alfinetadas da sátira. Um fragmento de uma comédia de Eupólis apresenta em cena o próprio Péricles que, falando do filho tido com Aspásia, pergunta: “Ainda está vivo o meu bastardo?”, e o interlocutor: “Está, e até seria um homem e tanto se não fosse pelo medo que tem daquela puta da mãe”.
Cratino, outro poeta contemporâneo de Eupólis, sempre falando de Aspásia chama-a de “Concubina, cara de cadela”…
O poeta cômico Aristófanes, que alguns anos depois representou satiricamente a guerra do Peloponeso, resumiu mais ou menos assim os antecedentes do trágico conflito:
“Uns rapazes um tanto bêbedos, depois de um joguinho de cotabo, vão a Mégara e raptam uma puta chamada Simeta. Os megarenses ficam então furiosos e raptam duas putas de Aspásia. E foi assim que estourou a guerra entre todos os gregos, por causa de três marafonas! Péricles Olímpico, de fato, troveja e fulmina… e deixa os megarenses esfomeados…”
A alusão grosseira a Aspásia reafirma um boato – mais tarde aceito até por Plutarco – segundo o qual a amante de Péricles instruía e controlava jovens cortesãs”.
Fim da transcrição. Agora um breve comentário.
A tradição literária clássica, de certo modo, colocou Aspásia e os sofistas no mesmo balaio. E nisso estava correta (a primeira democracia tem muito a ver com ambos). Mas, sob a influência dos oligarcas da aristocracia fundiária revoltados com a perda do seu poder hereditário promovida pela democracia, acusou ambos (Aspásia e o sofistas) de prostituição (não apenas do corpo, mas da alma).
Há muito o que dizer sobre tudo isso. A democracia, felizmente, foi obra de corruptos, veadinhos e putas (como diziam, sobre os atenienses, os autocratas espartanos, tidos por honestíssimos – verdadeiros Varões de Plutarco). A cultura patriarcal do tribalismo dório deixa aqui suas pegadas indeléveis, que até hoje remanescem nas ideias de pureza e limpeza.
Imagem da capa: autorretrato da pintora francesa Marie-Geneviève Bouliard (1794), vestida de Aspásia.