in

Relatos de um sobrevivente (por enquanto)

Chega a ser engraçado. A partir de 2004 comecei a criticar sistematicamente (e inclusive publicamente, na chamada grande imprensa) o projeto de poder do PT. Devo ter sido um dos primeiros a revelar a natureza neopopulista do projeto lulopetista, estabelecendo paralelos com o chavismo, denunciando suas ligações com a ditadura cubana et coetera. Leiam meus artigos na Folha de São Paulo (entre 2005 e 2012).

Muitas pessoas então me diziam:

“Dá uma maneirada aí, Augusto. Assim você vai se prejudicar. Ademais, temos que dar uma chance ao Lula de fazer um governo para o povo e contra as elites corruptas que nos dominam há séculos”.

Alguns amigos (e amigas) até se afastaram de mim, para não se contaminar, para não serem discriminados em seus empregos ou cargos políticos. Virei assim uma espécie de “leproso”. Naquela época o bolsonarismo e o lavajatismo não existiam e Jair Bolsonaro estava feliz como pinto no lixo na base parlamentar de Lula, só se preocupando com questões corporativas (de militares e milicianos).

Fui prejudicado, é claro. Fui perseguido, é óbvio. Chegaram a anular contratos que celebrei com organismos internacionais (o principal deles foi com o BID) para promover o desenvolvimento local. Pararam de me convidar para dar palestras, cursos e consultorias. Na Petrobrás, por exemplo, eu nem podia entrar (até recebia convites, mas logo em seguida era desconvidado). Na Vale, para dar outro exemplo, chegaram a roubar meu trabalho (intelectual e de campo) para dá-lo a amigos da corte, trabalho feito durante meses (pelo qual nunca me pagaram um tostão). Isso porque algum petista, via BNDES, vetou meu nome. Fizeram coisas muito piores (como agressões, que já contei aqui e não vou repetir agora).

Sendo escritor, palestrante e consultor, não sei como consegui sobreviver durante mais de uma década (de 2004 a 2016), pois o cerco foi geral (a ponto do próprio Lula ter interferido pessoalmente, junto a alguns dos meus empregadores ou clientes privados, para que me demitissem). Se não contasse com outros amigos, é provável que hoje estivesse morando em baixo de uma ponte ou, quem sabe, morto.

Agora, que o governo mudou, e o lulopetismo foi substituído pelo bolsonarismo, algumas daquelas pessoas (não todas, felizmente) que se afastaram de mim, há uma década e meia, para não se contaminar – pois eu estava “queimado”, como se dizia – vêm com as mesmas conversas:

“Cuidado, Augusto. Você está batendo muito no governo. Assim vai se prejudicar”.

E aí arrumam um jeito de se afastar de mim (de novo, para não se contaminar).

Ué! Dá vontade de perguntar:

Quer dizer que vocês não estavam preocupados com a democracia, com a vida das pessoas, com o desenvolvimento do país, e sim com a própria sobrevivência?

Pois eu continuo exatamente no mesmo lugar onde estava. Sou contra os populismos porque eles subvertem a democracia. Sou contra qualquer populismo, seja o neopopulismo lulopetista (que ajudei pioneiramente a desvendar e a caracterizar teoricamente), seja o populismo-autoritário bolsonarista (idem). Esses dois populismos (ditos de esquerda e de extrema-direita) não configuram ameaças iguais, mas seus efeitos autocratizantes são os mesmos: tornar a nossa democracia menos liberal (no sentido político do termo).

Continuo, portanto, com as mesmas dificuldades. Os populistas continuam me odiando porque eu sou democrata e resisto, sim, resisto pacificamente ao avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade. Investigo e identifico os padrões autocráticos que estão presentes nos discursos e comportamentos populistas, escrevo, denuncio, promovo programas de aprendizagem sobre a democracia – e faço isso diariamente, e faço isso de graça (em mais de 90% do meu tempo, dedicado voluntariamente).

Por isso tenho tanta dificuldade de continuar sobrevivendo (sem aposentadoria, sem emprego, sem poupança, sem propriedades – diga-se). E aquele cenário da ponte (de ter de viver em baixo de uma ponte) continua no horizonte. Volto ao assunto mais adiante.

Mas, pelo menos até agora, continuo respirando. E caminhando.

COMO SOBREVIVI

Escrevo diariamente, cerca de 8 horas por dia (às vezes, muito mais), artigos teóricos e políticos. Isso faço há mais de 15 anos, em blogs, sites, na grande imprensa e no Facebook. Só recentemente – a partir de abril de 2016 – passei a publicar meus textos políticos no site Dagobah.

Jamais ganhei um tostão por esse trabalho, embora tenha um número razoável de leitores. Também investigo e escrevo sobre outros assuntos (nova ciência das redes, democracia como modo-de-vida, desenvolvimento local, reconhecimento de padrões autocráticos, aprendizagem tipicamente humana ou teoria interativista da aprendizagem, open science etc.), o que aumenta bastante esse tempo diariamente dedicado à produção intelectual (nas 17 horas em que fico acordado). Mais de 90% desse esforço é pro bono (ou pro scientia). Não sei bem por que faço isso, mas faço. Sou assim. Ou fiquei assim.

Fui formado numa geração muito diferente das que vieram depois. Não que ela fosse melhor ou pior do que as outras, em algum sentido. Simplesmente movia-se e comovia-se por emoções e valores diferentes. Era inconcebível para nós, que começamos a atuar politicamente a partir de 1964, ganhar dinheiro com qualquer coisa que tivesse a ver com nossa atividade política. A rigor, não pensávamos em ganhar dinheiro com coisa alguma e mesmo quando tivemos de trabalhar para sobreviver (eu, por exemplo, comecei a lecionar em 1972), não o fazíamos pensando principalmente no resultado financeiro.

Também tive a sorte de ser filho do meu pai, o velho Chico, sapateiro e alpinista (mas que nunca foi alpinista social), que só viu uma bola quicando no chão em Nápoles, já aos 10 anos, antes de embarcar num navio que o traria de volta ao Largo do Machado, no Rio. Vivia pelo prazer de viver, para se comprazer no encontro com os amigos (e comigo, que era seu amigo mais do que filho) escalando uma montanha, fazendo churrasco ao final de uma excursão. Durante toda a sua infância, ao que eu saiba, ele não teve dinheiro para comprar uma bola.

Não éramos empreendedores no sentido que, depois, essa palavra adquiriu (e reconheço isso não me vangloriando, mas até lamentando um pouco). Tudo que fazíamos, até o trabalho remunerado para pagar o aluguel e a feira, o cigarro e a cerveja, não era encarado por nós como negócio remunerado. Não pensávamos como seria o amanhã e, assim, não dávamos a menor importância para coisas como planejamento financeiro, poupança, aquisição de patrimônio, aposentadoria. O resultado é que, meio século depois, alguns de nós não temos nada disso.

Ontem, como hoje, vivo cada dia de uma vez. Todo dinheiro que entra, sai na hora. É uma vida temerária, alguém poderia dizer. Ou irresponsável, avaliariam outros. Pode ser mesmo. Mas é assim. Por outro lado, o grau de liberdade que esse estilo de vida que não constrói açudes, mas se deixa levar pela correnteza, proporcionou, dificilmente teria sido alcançado se eu ficasse administrando o futuro, fazendo carreira em uma organização hierárquica e tendo senhores.

Em 1982 decidi nunca mais trabalhar para alguém, ter um patrão e até hoje, quase 40 anos depois, venho mantendo a decisão: desde aquela época não fui mais empregado. Ou seja, só faço o que quero, o que me dá na telha, o que combino com meus pares ou parceiros e não em obediência a alguma ordem de cima. Isso, é claro, dificulta tudo em termos de sobrevivência (só estou vivo porque tenho amigos), mas sempre pagamos algo quando nos enquadramos… Se eu fosse executivo de uma multinacional, ganhando 25 mil dólares mensais, teria de pagar, com partes da minha alma, esse dinheiro. Alma é uma moeda muito cara. Pagar com alma é equivalente a morrer, cada vez um pouco, enquanto se está vivo.

THE BEGINNING IS NEAR

Nas circunstâncias descritas acima, é preciso perguntar: como consegui chegar até aqui? Bem, eu comecei a fazer três coisas: 1) dar palestras sobre redes sociais, desenvolvimento local e desenvolvimento social por meio do investimento em capital social, democracia e aprendizagem tipicamente humana; 2) Ministrar programas de aprendizagem sobre estes assuntos; e 3) Prestar consultorias para organizações (empresariais, sociais e governamentais) e também para pessoas, sobre alguns temas conexos com minhas investigações e experimentações.

A questão é que o mercado para esse tipo de atividade foi ficando menor (e não maior, como se esperava) com o tempo, sobretudo nos últimos 4 anos, mas não só. Chega a ser espantoso afirmar isso, mas há dez anos havia muito mais receptividade à inovação do que hoje. Se o conceito de evolução se aplicasse a sociedades humanas (e não se aplica), diria que involuímos. Há dez anos convocávamos um evento para conversar sobre a nova ciência das redes ou sobre cidades inovadoras e apareciam, em menos de um mês, mais de duas mil pessoas inscritas. Hoje mal aparecem vinte.

Há evidências fortíssimas de que uma deformação profunda ocorreu no campo social. Estamos na borda de um buraco negro que continua engolindo tudo vorazmente. Além da desconsolidação democrática, que é global, no Brasil o fenômeno (sim, pois é um fenômeno social) aprofundou-se nos governos do PT, não há dúvida, ficou mais intenso no segundo semestre de 2014, com a campanha eleitoral de Dilma, que dilapidou capital social e dilacerou relações humanas. Mas se escalou com o bolsonarismo, que se revela mais claramente, a cada dia que passa, como uma força avessa à configuração de ambientes democráticos e inovadores.

Entre 2003 e 2017 ministrei centenas de palestras para empresas (praticamente para todas as trinta maiores corporações privadas do país). Fui consultor de algumas dessas grandes empresas (que não vou citar aqui para não constranger quem precisa de Estado para fazer negócios) e também de governos (federal e municipais) e organizações do Sistema S. Desenhei e ajudei a organizar iniciativas importantes de cocriação interativa, como as quatro edições do Festival de Ideias. Formulei e ajudei a implementar novos programas governamentais e sociais. Tudo isso, porém, em razão da mudança negativa do “clima” social, foi ficando cada vez raro (e mais ralo). O fluxo de demandas tornou-se progressivamente (ou regressivamente) mais tênue.

De sorte que, nos últimos quatro anos, fui sendo levado a me concentrar em uma atividade que não exigia grandes investimentos (e grandes deslocamentos, que também foram ficando mais difíceis por razões óbvias): ministrar cursos online. É claro que, sem fontes de renda fixas, fui obrigado a me endividar para continuar fazendo o que eu faço, que é, basicamente, investigar redes e democracia e escrever sobre isso. Muitas pessoas que hoje se matriculam nos meus programas de aprendizagem o fazem para me ajudar, sabem que estão financiando indiretamente minhas atividades de pesquisa, estão comprando (e doando) para mim mais tempo de elaboração teórica (ou seja, de vida intelectualmente produtiva).

Aqui cheguei, entretanto. Sei que não conseguirei mais pagar minhas dívidas e não tenho (porque aliás nunca tive) sonhos de estabilidade financeira. Mas, em compensação (pelo menos para mim), ainda não vendi um grama de minha alma. Vamos ver o que vem agora. The beginning is near.

COMEÇAR TUDO DE NOVO

Estava dizendo recentemente a um amigo que vamos ter que começar tudo de novo. A consequência da política de terra arrasada foi que… a terra ficou arrasada. Os que estamos convencidos de que não há saída fora da democracia, o que podemos fazer além de investir mais ainda em aprendizagem da democracia?

Há mais de dez anos, em 2007, ministrei um curso presencial de alfabetização democrática, em várias turmas, para cerca de quatro centenas de pessoas (e também publiquei um volumoso livro em papel com esse título). Nos anos seguintes, disponibilizei gratuitamente um programa autodidático de aprendizagem sobre democracia. A partir de meados do segundo semestre de 2014, quando o tempo se fechou, promovi com alguns amigos o programa Redes Sociais e Democracia.

Ao descobrirmos – eu e alguns amigos – que aprender democracia é desaprender autocracia, ofertamos, em seguida, na passagem de 2014 para 2015, o programa 100 Dias de Verão, que era, basicamente, a leitura das grandes distopias, começando com A Nova Utopia de Jerome K. Jerome, passando pelo Nós do Zamyatin, pela Revolução dos Bichos e pelo 1984 de Orwell, pelo Escuridão ao Meio Dia de Koestler e o Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, até o Um dia na vida de Ivan Denisovich de Alexander Soljenítsin. Além dessas leituras, abrimos também o acesso a dez grandes filmes sobre esses livros e sobre temas correlatos. Já em 2017 fundamos a iniciativa Democracy Unschool que começou com o curso de introdução à democracia chamado Sem Doutrina. E desde o início de 2016, num trabalho insano e, obviamente, pro bono, tenho publicado diariamente textos políticos e teóricos no site Dagobah.

Há pouco mais de um ano inauguramos um programa – de estilo, digamos, neosofista – chamado Novos Pensadores que já está na sexagésima-segunda sessão, mas não tem dia para terminar. Estamos revisitando cerca de 50 conceitos fundamentais e a obra de 70 pensadores heterodoxos em todas as áreas, sobretudo em redes e democracia. Tudo ao vivo, por meio de webinars em que os participantes aparecem não só vendo e ouvindo, mas também falando sobre o que leram e as investigações que fizeram.

Neste momento nos preparamos para começar (na semana que vem) um curso para estudar como surgiu a democracia, tomando como base o magnífico livro de I. F. Stone (1988), O Julgamento de Sócrates (além de parte da bibliografia que ele cita). Serão dez módulos semanais para tentar captar o “DNA” da democracia. O percurso vai até 26 de junho de 2019.

Esta tem sido a minha contribuição, inevitavelmente modesta, no que diz respeito à aprendizagem da democracia (não vou contar tudo que fiz em outras áreas de atividade: em parte, pelo menos, isso já está relatado na minha bio-bibliografia – ainda incompleta -, disponível neste link).

Mas, além disso, juntamente com alguns amigos, estamos promovendo uma série de conversações criativas para tentar responder não apenas à difícil situação política do Brasil (onde o campo social foi deformado pela polarização entre dois populismos que subvertem a democracia), senão também a questões muito mais globais – de vez que o retrocesso atual não atinge somente o nosso país – do tipo:

Como sobreviver, viver, conviver e inovar numa época de recessão e desconsolidação democrática, de declínio do capital social e de reação exacerbada do velho mundo hierárquico à emergência da sociedade-em-rede?

√ Qual o formato possível para novos empreendimentos políticos, sociais e empresariais distribuídos e democráticos num mundo que retrograda?

√ Quando se abrirá uma nova “janela” e como devemos nos preparar para aproveitá-la?

Há uma regressão brutal no que chamamos de inovação, sobretudo de inovação social. Depois da descoberta das redes, dos processos de open space e de cocriação interativa, dos festivais de ideias, da ocupação criativa de lugares apenas nominalmente públicos para criar ambientes comuns (como os vários “Vou pra Praça”), das casas colaborativas e do boom das startups, a única coisa que apareceu de realmente nova foi, a partir de 2008-2010, o Blockchain (embora tomado apenas como mais uma tecnologia e usado de maneira antiga, quer dizer, de modo mais centralizado do que distribuído). O que há de realmente novo além disso? Ou seja, não é que nós nos desatualizamos e ficamos para trás. É que o mundo se desatualizou e nos deixou perdidos lá na frente.

Sabemos que as pessoas que interagem conosco, em sua maioria, não estão interessadas nestes temas, muitas vezes não sabem (nem entendem) do que se trata, talvez por não estarem vivendo no mesmo tempo em que vivemos. Vamos assim nos esgueirando pelas frestas, rastejando e palmilhando na escuridão um caminho que ainda não existe, levando apenas nossas lanterninhas de bolso cujas pilhas já estão se esgotando.

O fim está próximo

Sim, defendemos a liberdade até mesmo do jornalismo de facção, como o de O Antagonista