Todo autocrata é meio maluco. Não há um que bata bem da bola. A democracia metaboliza esses tarados confinando-os nas periferias do espectro político. Nessas extremidades eles viram até personagens folclóricos, sejam considerados de extrema-esquerda ou de extrema-direita. O diabo é o que fazer quando algum deles, por acidente, chega ao poder.
Tomemos o exemplo de Jair Bolsonaro. Bolsonaro é exatamente aquele mesmo idiota de baixo-nível que conhecemos nos últimos 30 anos. É o mesmíssimo sujeito que disse que FHC deveria ser fuzilado, que elogiou ditaduras militares e torturadores, que proclamou que bandido bom é bandido morto e que condecorou e empregou milicianos. Ora, quem se comporta assim – no final da segunda década do século 21 – não bate muito bem da bola.
Se permanecesse onde estava, Jair Bolsonaro seria apenas um personagem cômico. Seria um exemplo de uma dessas disfunções que são permitidas pela democracia, desde que confinadas nos departamentos adequados. Sim, gente assim é aceita pelo regime democrático, que é tolerante, inclusive, com os inimigos da liberdade.
Todavia, quando um maluco desse tipo escapa por algum motivo da enfermaria (ou da estrebaria) onde estava alocado, hehe, a coisa se complica sobremaneira. Um maluco sem poder é uma coisa. Com poder é outra coisa: transforma-se numa ameaça e pode causar muitos malefícios à sociedade.
Sobretudo quando o maluco em questão não consegue ser domesticado, desasnado ou adestrado pela instituições, por seus conselheiros econômicos ou militares ou pelo peso do cargo que passou a ocupar. Ou seja, sobretudo quando não é capaz de aprender.
É o caso de Jair Bolsonaro, que não mudou e não vai mudar porque é uma “entidade” incapaz de aprender, quer dizer, não de apreender o mundo e sim de mudar com o mundo em que vive.
Intoxicado pela ideologia dos porões da ditadura militar (a mesma que, não aceitando a abertura democrática, acabou gerando torturadores, assassinos, esquadrões da morte e, depois, milícias) e expressando o que há de mais vil e maligno na humanidade, Bolsonaro é coerente com o que foi e com o que será. É vítima de uma maldição: a de repetir eternamente o que é.
A coerência de Bolsonaro não é, portanto, motivo para elogio e sim para lamento. Vejamos algumas consequências desastrosas da sua coerência ocupando a posição de chefe do governo.
O Brasil não é uma ditadura, mas não porque Bolsonaro não queira e sim porque ele não pode dar um golpe de Estado em termos clássicos. Quer dizer, Bolsonaro não deve ser legitimado porque, tendo sido eleito legitimamente, não rasgou a Constituição e (ainda) não derruiu as instituições do Estado de direito. Não aconteceu nada disso porque não foi possível a Bolsonaro fazê-lo, mas ele tem, inegavelmente, vocação para ditador.
O Brasil, felizmente, continua sendo uma democracia eleitoral, provavelmente Bolsonaro não conseguirá implantar no curto e médio prazos, de um ou dois mandatos, uma autocracia eleitoral, mas será uma democracia eleitoral cada vez menos liberal. Porque ainda que seja impotente para alterar significativamente a natureza do regime, Bolsonaro – atuando como chefe de facção e não como presidente da República – já tem, sim, capacidade para drenar, lenta e progressivamente, o que há de conteúdo liberal em nossa democracia.
E ele fará isso se não for parado. E o fará não violando abertamente as leis e sim esgarçando o tecido social que serve de base para qualquer democracia. Ou seja, as instituições continuarão funcionando, as eleições continuarão ocorrendo, mas as relações entre as pessoas, na base da sociedade, vão ficando cada vez mais adversariais, mais intolerantes. Aumentará o nível de inimizade nos mundos onde, cotidianamente, se movem os cidadãos. As pessoas ficarão cada vez menos dispostas a apostar na persuasão e mais preparadas para a guerra (ainda que uma guerra fria, ainda que uma guerra cultural, ainda que uma guerra política – pervertendo a política como continuação da guerra por outros meios).
Como consequência dessa postura – que reflete o modo bolsonarista de governar – a vigilância estatal e o uso político dos órgãos de controle e dos aparatos de segurança e espionagem aumentarão, a violência policial será escalada, a degradação ambiental acelerada, a imprensa sempre atacada e retaliada, a política externa cada vez mais ideologizada (prejudicando, inclusive, os interesses do país), os direitos das populações indígenas, dos quilombolas, das mulheres, da comunidade LGBT e dos pobres em geral serão – na prática, não necessariamente no papel – restringidos, as universidades terão sua autonomia reduzida, a ciência será maltratada e desacreditada, as manifestações artísticas e culturais não alinhadas ao bolsonarismo serão discriminadas, desapoiadas ou demonizadas.
É preciso entender que o modo bolsonarista de governar é um modo de enfrear o processo de democratização. A democracia formal continua vigendo. Mas a caminhada em direção às democracias que queremos será desacelerada ou até paralisada – o que, por si só, transforma qualquer democracia em uma democracia de baixa-intensidade. Pois a democracia é um tipo de regime que depende dos esforços continuados de aperfeiçoamento e inovação, de tensionamento de seus limites.
Além de tudo isso, a pobreza será esquecida. Sim, Bolsonaro está se esforçando para retirar da pauta do debate público a questão da redução da pobreza.
Claro que não se fala aqui de usar a pobreza para objetivos político-ideológicos, como fazia a esquerda, focalizando principalmente a redução de desigualdades, colocando a igualdade (sócio-econômica) como pré-condição para a liberdade política e insinuando que o problema só teria solução numa futura sociedade igualitária (onde, estão, seria possível adentrar triunfalmente o reino da liberdade e da abundância). Abordar a questão dessa maneira era também um modo de não enfrentar a questão premente da pobreza no presente. Ademais, as desigualdades econômicas costumam ser muito baixas em países de extrema-pobreza. A Nova Zelândia é mais desigual do que a Etiópia: e daí? Em qual das duas qualquer pessoa (que não é maluca) gostaria de morar?
A questão da pobreza só pode ser resolvida pelo desenvolvimento social (que não é sinônimo de crescimento, como acreditam os economistas do governo Bolsonaro). Pobreza não é apenas insuficiência de renda. É incapacidade de desenvolver as próprias potencialidades. Somente o crescimento econômico não conseguirá reverter automaticamente a pobreza porque ele não se distribuirá mais equitativamente enquanto a riqueza, o conhecimento e o poder estiverem tão concentrados. E até para alcançar patamares mais altos de crescimento econômico sustentado (com aumento de produtividade e inovatividade) é necessário reduzir a pobreza.
A maioria da nossa população é pobre de renda: mais de 60% das famílias brasileiras ganham até 3 mil reais mensais, mas como não são a base do bolsonarismo – composta, em sua maioria, por brancos escolarizados que ganham acima de 5 salários mínimos – o governo não está se preocupando com essa realidade. Mas nossa população não é pobre somente em termos de falta de capital financeiro (renda) e sim também em termos de insuficiência de capital humano e de capital social (quer dizer, de falta de rede ou de conexões ou atalhos entre os clusters de pobreza e outros clusters que compõem a sociedade: ou seja, o pobre é pobre porque seus amigos e parentes são pobres e, assim, reproduz socialmente e inter-geracionalmente a pobreza). No dia em que Bolsonaro e os bolsonaristas entenderem o que está escrito neste parágrafo, cai um pedaço de céu velho.
Sim, só o desenvolvimento social pode quebrar esse círculo vicioso e reduzir significativamente a pobreza e isso não é a mesma coisa que manter ou turbinar programas compensatórios de transferência de renda, que são necessários, por certo, mas cujos resultados são, via de regra, não a diminuição significativa da pobreza e sim a manutenção da pobreza em patamares aceitáveis (ou não tão escandalosos). Embora tenham alergia de pobre, os bolsonaristas não abolirão programas como o Bolsa Família por medo das consequências eleitorais adversas. Mas isso, como sabemos, não basta!
Com tudo isso é improvável que nossos índices de direitos políticos e de liberdades civis não decaiam após a passagem desse maluco pelo governo. O que significa, na melhor hipótese, que cairemos em todos os rankings internacionais de democracia (mesmo continuando a ser considerados uma democracia – mas menos liberal do que somos hoje, por certo). E, na pior hipótese (felizmente a menos provável), que deixaremos de ser uma democracia eleitoral para virar uma autocracia eleitoral, como estão na iminência de se transformar países como a Hungria e a Polônia.
Pode-se contra-argumentar dizendo que Bolsonaro não é maluco porque é bastante esperto, do contrário não teria sido eleito tantas e tão seguidas vezes. E que, assim, ele tem lá suas razões. Claro que tem. Como escreveu Gilbert Keith Chesterton (1908), em Ortodoxia, “louco não é o homem que perdeu a razão. Louco é o homem que perdeu tudo menos a razão”.
Ele tem (sua) razão, por exemplo, em apostar na onda reacionária que varre o mundo na última década, com a recessão e a desconsolidação democráticas. Ele tem (sua) razão ao querer seguir ou imitar os seus sensates – os populistas autoritários, sobretudo Trump e Steve Bannon e a turma do Brexit, como Farage (outro doido), mas também gente como Anders Vistisen, Andrej Babis, Geert Wilders, Gyöngyösi Márton, Heinz-Christian Strache, Jaroslaw Kaczynski, Jörg Meuthen, Marine Le Pen, Matteo Salvini, Olli Kotro, Recep Erdogan, Rodrigo Duterte, Santiago Abascal, Tomio Okamura, Viktor Orbán e Vlaams Belang. Olhando de perto, o que tem de maluco nessa lista não está no gibi.
Ocorre que ele é ainda mais toscamente reacionário do que boa parte desses seus parças populistas-autoritários. E não é capaz de ver que esse tipo de aventura de destruição que quer empreender, num país do tamanho do Brasil, enfrentará fortíssima resistência de uma sociedade civil ativa e vibrante que não existe, com o mesmo nível de interatividade, na maioria dos lugares que estão sendo vítimas da ação dos líderes da onda reacionária mencionados acima. A maluquice vem, em parte, de distorções ou distúrbios, tanto na percepção da realidade, quanto na consciência de si.
Por isso, é claro que Bolsonaro não durará muito tempo. A regressão que está impondo ao país terá fim. Ele será impedido, interditado, compelido a se conformar ou não será reeleito. É sempre assim: o maluco vem, faz seu estrago e desaparece. Mas o malfeito já estará feito e, se não for parado o quanto antes, a recuperação pode levar muito tempo, dependendo de quanto tempo fique produzindo seus malefícios, talvez o tempo de uma geração.
Nada há de prosaico na loucura de Bolsonaro, como talvez pensasse Chesterton. Bolsonaro é maluco, mas não é um maluco beleza. Entre tudo o que ele perdeu estão, inegavelmente, alem da percepção da realidade e a consciência de si, aquelas qualidades e características que são mais caras à humanidade, como o bom senso, a bondade, a compaixão, a tolerância com o diferente e a empatia com o semelhante. É um sujeito mau, um maluco malvadeza. E por isso tem que ser parado – por meios pacíficos e legais – o quanto antes.


