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Yascha Mounk: “Nenhum país está imune ao populismo. Também pode acontecer aqui”

Yascha Mounk alerta as elites portuguesas para o risco do populismo: “Estão a cometer o mesmo erro que já vimos acontecer no Reino Unido, na Alemanha, nos EUA, no Brasil, que é dizer: nós temos uma história diferente, estamos imunes, isso não vai acontecer aqui.”

Teresa de Sousa (texto) e Nuno Ferreira Santos (fotografia), Público, 30 de Setembro de 2019

Foi livro do ano do Financial Times em 2018 ou da revista Prospect. Sobre ele escreve a Economist que, “num campo em que não faltam livros, este destaca-se pela qualidade das respostas (…) Oferece-nos uma admirável combinação entre saber académico e sentido político.” O tema de Povo vs Democracia é incontornável: a crise das democracias liberais que hoje se vive nas mais velhas democracias ocidentais e um pouco pelo mundo inteiro. A doença chama-se populismo. As suas origens, segundo o autor, estão na estagnação dos rendimentos das classes médias, na passagem das nossas sociedades de relativamente homogénicas para multiétnicas, na entrada em cena da Internet e das redes sociais. Mounk nasceu na Alemanha, filho de pais polacos, estudou em Cambridge no Reino Unido, doutorou-se em Harvard e ensina na Johns Hopkins. Esteve em Lisboa para apresentar o seu livro, agora traduzido em português e editado pela Lua de Papel. Foi a oportunidade para uma longa conversa.

Há uma contradição ou uma provocação no título do seu livro: Povo versus Democracia – a democracia é o governo do povo. A sua ideia é que as democracias podem perder o apoio do povo e, um dia, morrer? Por quê este título?

É, como disse, uma provocação, um paradoxo. Mas diz alguma coisa sobre a natureza do populismo. Os populistas reclamam que eles, e apenas eles, representam o povo, como Boris Johnson, por exemplo, que acabou de declarar que o seu partido é o “Partido do Povo”. E, no entanto, vemos em muitos sítios, da Venezuela à Hungria, e cada vez mais noutros países da própria Europa Ocidental, que esses movimentos se viram contra a democracia. Começam a subverter as instituições independentes, começam a atacar a imprensa livre, e no fim deste processo, arriscamo-nos a ter de enfrentar algo semelhante a uma ditadura.

Descreve no livro três factores globais que permitem explicar esta vaga populista que vemos no mundo inteiro, mas também nas velhas democracias ocidentais: a estagnação dos níveis de vida da maioria da população; a lenta transformação de sociedades etnicamente homogénicas em sociedades multiétnicas; a entrada em cena das redes sociais. No entanto, há países ricos e igualitários em que as pessoas continuam a viver muito bem e em que os movimentos populistas são fortes. Na Suécia ou na Noruega, por exemplo, onde o aumento das desigualdades ainda não é assim tão grande.

Enquanto cientista político tenho de procurar as causas comuns. Não me parece satisfatório explicar apenas por histórias diferentes o facto de as mesmas coisas estarem a acontecer em países tão distintos. O que estes diferentes lugares têm em comum é a frustração económica, porque as desigualdades estão a aumentar e os níveis de vida, em vez de melhorarem, estagnaram; são as transformações demográficas ou culturais muito rápidas, às quais uma parte da população resiste; e, evidentemente, a introdução da Internet e das redes sociais. Podemos sempre perguntar porquê na Suécia, um país relativamente igualitário e muito rico. Mas, prestando mais atenção, vemos que a Suécia é hoje muito mais desigual em termos de rendimentos do que era. As pessoas sentem esta desigualdade, embora possa ser muito menor do que, por exemplo, nos Estados Unidos. E a segunda parte da resposta é que, apesar de tudo, os populistas são menos fortes na Suécia do que são, por exemplo, na Itália ou nos Estados Unidos.

Mesmo assim, na Suécia, ficaram em terceiro lugar nas últimas eleições, muito próximo dos dois partidos tradicionais.

Sim, mas é menos do que ganhar as eleições nos Estados Unidos ou estar no Governo de Itália ou no Brasil. É verdade que vemos hoje movimentos populistas em quase toda a parte. Na Suécia ou na Alemanha, esses partidos são uma preocupação, mas até ver não vão conseguir ganhar eleições. E nos países que têm vivido uma maior estagnação económica, como França, ou países que sejam muito mais desiguais, como o Brasil ou mesmo os EUA, vemo-los muito mais perto de ganhar ou a ganhar eleições.

Por vezes, ainda é difícil usar os novos termos que invadiram o discurso político nestes últimos anos: populismo, nacionalismo, extrema-direita. Corremos o risco de os utilizar de forma inapropriada. Um exemplo: o Cinco Estrelas em Itália é um partido populista, mas a Liga de Salvini é um partido nacionalista?

São dois conceitos diferentes, mas acontece que muitos partidos populistas são também nacionalistas, mesmo que não tenham necessariamente de sê-lo. Para mim, o populismo é a pretensão de que os populistas, e apenas eles, representam o povo. É o mesmo que dizer que estar em desacordo com eles passa a ser ilegítimo. E isso torna-se perigoso para os valores fundamentais do sistema político democrático: nomeadamente para a liberdade de cada um e para o pluralismo. Hugo Chávez era uma espécie de nacionalista, mas essa não era a sua característica fundamental. Era claramente populista porque, desde o início, declarou que era o único legítimo representante do povo venezuelano e quem discordasse dele era um golpista, um traidor, um inimigo do povo. Foi isso que o colocou desde o início no caminho da destruição da democracia venezuelana. Eu diria mais ou menos o mesmo sobre o Cinco Estrelas, em Itália. Não é um partido de extrema-direita, tem elementos nacionalistas, mas não é o seu nacionalismo que me preocupa, é o seu populismo – denigre os media independentes, o Parlamento, os juízes.

E a Liga de Salvini é outra coisa? É um partido nacionalista no sentido tradicional do terno?

Salvini é um nacionalista radical, mas é também um populista extremista.

Como foi possível a Liga e o Cinco Estrelas coligarem-se? E o governo de coligação só caiu porque Salvini achou que poderia vencer novas eleições. O Cinco Estrelas, pelo contrário, queria a todo o custo manter a coligação.

Como é que foi possível, na Grécia, Alexis Tsipras, que é tudo menos nacionalista, governar com um partido de extrema-direita nacionalista? A minha resposta, num caso e noutro, é que são ambos populistas. Têm em comum o ataque às instituições, mesmo que um seja um nacionalista radical e o outro não.

Depois da queda do Muro acreditámos que a História chegava ao fim e que a democracia seria o futuro da humanidade. E de repente tudo isto mudou. A democracia está a ser desafiada. A História fez o seu regresso em força. Tudo aconteceu muito rapidamente. Antes da sua eleição, ninguém acreditava que Trump poderia ser eleito.

Isso é o que as pessoas dizem em toda a parte. No Brasil, também se dizia que Bolsonaro nunca ganharia. Na Alemanha, também se dizia que a extrema-direita nunca entraria no Bundestag.
As pessoas começaram a dar os valores da democracia liberal como garantidos e isso abre as portas à instabilidade dos sistemas políticos. Mas também penso que quando a maioria das pessoas começa a ter consciência de que esses valores estão em causa – quando vivem na Venezuela, na Rússia ou na Hungria – acabam por sentir a sua falta e lutam por eles. O problema é que, nessa altura, pode ser tarde demais.

A questão mais difícil de responder é como foi possível eleger Trump depois de Obama. Tem uma explicação?

Há uma velha teoria segundo a qual, nos Estados Unidos, os eleitores preferem sempre o oposto do último Presidente. Se formos à procura do oposto de Barack Obama, talvez Donald Trump se aproxime bastante.

Voltando à questão do fim da História, hoje a grande questão é: até que ponto os cidadãos estão comprometidos com os valores fundamentais da democracia liberal.

O que Fukuyama escreveu foi que as pessoas, em toda a parte, estariam tão motivadas para viver em liberdade – escolher o que pensar, o que dizer, como viver as suas vidas, decidir colectivamente quem a governa, em vez de aceitar um ditador, um general ou um padre que para tomar decisões por elas -, que as democracias se revelariam muito mais estáveis do que qualquer outro regime. Creio que isso se provou errado num sentido, mas não noutro. O que se verifica é que, quando as pessoas têm acesso a estes valores, vão-se esquecendo deles, começam a dá-los como adquiridos. Há uma coisa que ouço constantemente quando falo com gente nova: com todas as injustiças, com todos os problemas do nosso sistema politico, o que é que temos a perder? Não é porque não apreciem a liberdade, é que nem sequer imaginam uma situação em que deixe de estar disponível.

Mas esse é o sentimento que se vive nas democracias. Não, por exemplo, na China, onde a realidade é, por vezes, difícil de compreender à luz das previsões de Fukuyama.

Deixemos a China para mais adiante. O que creio que acontece é que as pessoas começaram a dar os valores da democracia liberal como garantidos e isso abre as portas à instabilidade dos sistemas políticos. Mas também penso que quando a maioria das pessoas começa a ter consciência de que esses valores estão em causa – quando vivem na Venezuela, na Rússia ou na Hungria – acabam por sentir a sua falta e lutam por eles. O problema é que, nessa altura, pode ser tarde demais. Não quero ser demasiado optimista, mas penso que ainda é muito cedo para julgar se o populismo se conseguirá instalar no poder por muito tempo.

Falei da China porque há 20 anos, acreditava-se que o desenvolvimento económico levaria à abertura politica. As pessoas começariam a ser mais exigentes. Não foi assim.

Creio que fomos demasiado optimistas sobre a possibilidade de a China se transformar numa democracia. A ideia de que os países se transformariam em democracias quando enriquecessem nunca foi sustentada pela evidência empírica. Há muitos países relativamente ricos, não apenas a China, mas a Arábia Saudita e outros, que continuam a ser ditaduras. Mas também creio que hoje há um excesso de pessimismo sobre o futuro da China. Os jovens chineses são a primeira geração a realmente ter crescido com relativa abundância – pelo menos uma boa parte. Não se interessam muito por politica porque estão agradecidos ao regime que permitiu que muita coisa mudasse para melhor. Mas quando chegar a geração seguinte, que toma a abundância como garantida, que será mais influenciada pela abertura cultural que já hoje se vê um pouco por toda a parte, vão começar a sentir-se oprimidos? É possível. Não creio que devamos afastar pura e simplesmente esta possibilidade.

E há o que se passa em Hong-Kong, que é extraordinário e que põe sérios problemas a Pequim.

Sim. Em 1997, pensava-se que, do ponto de vista económico, o resta da China iria seguir Hong-Kong. Hoje, parece que será Hong-Kong a seguir o resto da China. Mas a História é complicada. Creio que ainda não sabemos quem será o modelo e quem será o que imita.

Mas é uma enorme dificuldade para Xi Jinping. Usar a violência de Tiananmen parece já não ser uma possibilidade.

Sim. No curto prazo, penso que é claro que a China está determinada a manter Hong-Kong sob estrito controlo e é provavelmente o que acabará por acontecer. Mas claro que há um enorme risco para o regime. A ascensão chinesa foi facilitada pela percepção exterior de que não é uma potência expansionista e que não quer impor o seu modelo político aos outros. Se reagir ao que se passa em Hong-Kong com uma mão demasiado pesada, a mudança de atitude dos outros países pode ser bastante forte. A China também tem muito a perder.

Está numa posição privilegiada para compreender o que se passa nos EUA, que prende diariamente a nossa atenção – não apenas por causa de Trump, mas agora por causa das eleições presidenciais de 2020. Há um número muito elevado de candidatos a candidatos no Partido Democrata, quase todos vindos da esquerda do partido. No passado, as eleições ganhavam-se ao centro, com candidatos mais moderados. Esta aparente radicalização quer dizer a paisagem política americana mudou de tal forma com Trump, que um candidato democrata mais radical pode vencê-lo?

Creio que até agora os factos demonstram que essa possibilidade continua a ser muito escassa. Quando os democratas escolheram os seus candidatos ao Congresso nas eleições intercalares (2018), quem ganhou foram os moderados. Todos os candidatos moderados ganharam e apenas um dos cinco mais à esquerda conseguiu ganhar. O que as eleições do ano passado demonstram é que a esquerda radical não é a melhor via para os democratas ganharem. O problema é que muitos dos estrategos e dos decisores do Partido Democrata convenceram-se de que lhes basta mobilizar as bases para derrotar Trump, ignorando completamente os eleitores que podem mudar o sentido do seu voto e os mais moderados. Esta estratégia preocupa-me. Pode ser que qualquer candidato possa ganhar a Trump, mas é preciso maximizar essa possibilidade, precisamos de um candidato que possa mobilizar as bases, mas também fazer sentido para os votantes moderados e os que balançam entre os dois partidos. O que me preocupa é que os democratas apostem tudo numa estratégia de pura mobilização das bases e que acabem por perder para Trump. O que seria trágico.

Até que ponto pode ser difícil substituir um populista no poder, se ele se mantiver lá por demasiado tempo? O caso mais evidente na Europa é Viktor Orbán. Pensa que aceitará a derrota pacificamente?

Essa é a grande questão. No actual regime húngaro será altamente improvável que Viktor Orbán venha a ser derrotado. Porque tem o controlo dos media, porque controla as instituições públicas, porque há fortes suspeitas de que subornou alguns membros da oposição – o que quer dizer que o primeiro obstáculo para afastá-lo do poder é ter deixado de haver condições iguais para quem se candidata. A segunda questão importante é que já vimos exemplos de governantes que anularam os resultados de eleições quando não gostaram deles. Foi o caso de Erdogan na Turquia, por exemplo. Creio que será preciso mais do que uma simples eleição para retirar o poder a Orbán. Será provavelmente necessária uma eleição mais um movimento de protesto massivo e generalizado. Mas não temos a certeza. Vim agora da Polónia, que também se está a transformar num caso muito preocupante. É um país muito maior e mais importante para a União Europeia, que está agora na situação em que a Hungria estava depois de quatro anos de poder de Orbán. Vai haver eleições em Outubro e, até agora, parece ser altamente provável que o Governo seja reeleito. Podemos assistir em breve à emergência de uma semiditadura em Varsóvia, juntando-se a Budapeste. E isso terá fortes implicações, não apenas para a democracia na Polónia, mas para a própria legitimidade da União Europeia.

Justamente, União Europeia parece não ter forma de reagir. Há uma espécie de paralisia.

Há duas coisas, creio eu. Uma é a paralisia das instituições europeias; a outra é a questão de saber por que razão hei-de partilhar a minha soberania com países com governos não democráticos. Como cidadão alemão, compreendo por que devo partilhar a minha soberania consigo, por exemplo. Porque há problemas urgentes que as nossas duas nações enfrentam e que não podem ser resolvidas ao nível nacional. Em conjunto, teremos uma voz mais audível no mundo do que individualmente. Por isso, faz sentido partilharmos as nossas soberanias e os nossos recursos para podemos determinar o nosso futuro. É uma narrativa razoável. Mas porque é que eu, como cidadão de uma democracia, partilho a minha soberania com a Hungria, que é uma semiditadura? Não há uma boa resposta para esta questão. Creio que isto coloca um problema sério de legitimidade à União Europeia, que é preciso reconhecer.

Parte da paralisia institucional também se deve ao facto de termos sido ingénuos, quando decidimos alargar a União Europeia a leste. Não ocorreu a ninguém que poderia haver uma reversão democrática e não há mecanismos institucionais para o impedir.

Pensou-se que integrá-los era a garantia da consolidação das suas democracias. Por isso eu digo que houve ingenuidade.

Como sabe, há hoje um debate no mínimo curioso sobre o nome que a presidente eleita da Comissão resolveu dar ao pelouro que vai tratar da imigração: “Proteger o modo de vida europeu”. Há quem veja no nome uma conotação excludente. Como vê este debate inesperado, mesmo que seja completamente normal falar-se do American way of life.

A Europa é diferente de outros continentes em muitos aspectos. E há um conjunto de valores europeus e também um conjunto de convenções e de normas culturais e creio que não há nada de mal em querer perpetuá-los. Passei uns dias maravilhosos em Lisboa, mas a cidade parece muito diferente de Washington D.C., Nova Iorque ou Tóquio e eu adoro estas três cidades. O problema do título surge quando se deduz que a imigração é automaticamente uma ameaça ao modo de vida europeu. Mas não tenho problema nenhum em que um comissário seja responsável pelo modo de vida europeu. Não sei bem o que isso implica, mas não me choca.

Há 20 anos tínhamos diferentes modelos de integração dos imigrantes – o melting pot americano, o multiculturalismo britânico, o republicanismo francês. Hoje, pelas mais variadas razões, todos os modelos estão a ser postos em causa. Temos aqui uma questão vital para a qual não temos resposta?

Tenho pensado nisso muito e será o tema do meu próximo livro. O que me chama a atenção no debate actual é a extensão do pessimismo de todas as partes envolvidas. A extrema-direita diz que é impossível ter uma democracia multiétnica que funcione – o que é a negação da realidade. Muita gente das mais diferentes origens vive perfeitamente na França, na Alemanha, no Reino Unido. Também na esquerda há um crescente pessimismo sobre se vamos ser capazes de defender os nossos valores contra estas tendências. Ambas as visões estão erradas.

Creio que Boris Johnson se reinventou como líder populista. Não é um populista de extrema-direita – nas questões culturais, apesar de algumas declarações, é bastante moderno. Mas é um populista, porque o seu discurso assenta na ideia de que ele e só ele interpreta a vontade do povo britânico, ao ponto de passar a chamar ao seu partido o Partido do Povo.

Temos de pensar como é que devemos construir uma vida em comum e isso significa obviamente que as nossas culturas vão mudar em certos aspectos – já não pode ser um modelo em que quem chega não vai influenciar o que já existe, e que isso implica uma verdadeira diversidade cultural. Eu adoro viver nos Estados Unidos, porque posso ir aos restaurantes chineses, europeus, georgianos e gosto da maneira como estas culturas se influenciam umas às outras. Mas temos de ser capazes de construir uma vida em comum. Não podemos criar bairros segregados ou comunidades que se fechem umas às outras e precisamos de garantir que se mantêm os melhores valores que as nossas sociedades sempre tiveram – a liberdade individual, a liberdade de expressão, a autodeterminação colectiva, a liberdade religiosa, a protecção das minorias sejam elas quais forem, os direitos das mulheres. Não é um caminho fácil, mas estou hoje mais optimista em relação a ele.

Não há realmente alternativa a isso.

É isso. Não há alternativa. Não porque haja uma superioridade ética das sociedades multiétnicas sobre as monoétnicas, mas porque as nossas sociedades já são multiétnicas. A solução não é certamente expulsar as pessoas ou criar cidadãos de segunda porque, nos próximos 200 anos, será assim.

O Reino Unido parecia ser, há meia dúzia de anos, a mais estável e sólida das democracias. Hoje é um país completamente polarizado em torno da questão do “Brexit”. A primeira pergunta que me ocorre é como devemos qualificar um político como Boris Johnson? Apenas como um líder oportunista que se aproveitou do “Brexit” para chegar ao poder ou como um político populista?

Creio que Boris Johnson se reinventou como líder populista. Não é um populista de extrema-direita – nas questões culturais, apesar de algumas declarações, é bastante moderno. Reverteu e bem uma medida muito restritiva de Theresa May, segundo a qual os estudantes estrangeiros que acabem os seus cursos só podem ficar no Reino Unido mais dois anos. Na economia, creio que está a definir um caminho interessante, aumentando a despesa social, por exemplo, na educação ou na polícia.

Mas é um populista, porque o seu discurso assenta na ideia de que ele e só ele interpreta a vontade do povo britânico, ao ponto de passar a chamar ao seu partido o Partido do Povo. E, naturalmente, no confronto entre a soberania popular – que é o resultado do referendo, tal como ele o interpreta – e a soberania parlamentar, que é o direito do Parlamento de decidir sobre os assuntos do país, ele colocou-se claramente do lado da soberania popular. Foi por isso que suspendeu o Parlamento. Pela primeira vez desde Carlos I alguém suspende o Parlamento britânico com o objectivo evidente de impedi-lo de tomar algumas decisões que não queria que tomasse. Johnson é ideologicamente moderado, mas é um verdadeiro populista, deste ponto de vista. E se ele conseguir levar a sua avante nos próximos meses, o que não é certo, posso perfeitamente imaginá-lo como primeiro-ministro por uma década ou mais.

Abandonou o SPD quando, durante a crise do euro, foram impostos os programas de austeridade aos países que viveram a crise da dívida soberana – Grécia, Portugal, Irlanda e Chipre. Em Portugal, apesar de temos passado por um período extremamente difícil para a maioria das pessoas, o apoio à União Europeia continua a ser muito elevado. Como vez esta aparente contradição?

Deixei o SPD por um conjunto de razões, incluindo o facto de não ter um perfil ideológico, não sabendo bem o que anda a fazer e porquê.

Mas também pensei que os programas de austeridade foram um erro. Em cada um dos momentos mais graves da crise – por exemplo, quando tudo levava a crer que a Grécia poderia sair do euro e arrastar o resto da economia europeia consigo –, Angela Merkel fez as concessões mínimas para evitar uma catástrofe iminente. Mas nunca fez o suficiente para permitir que a Grécia ou Portugal tivessem uma oportunidade para crescer e regenerar a sua economia. Foi uma política de curto prazo, que provocou muito sofrimento nesses países e que, no longo prazo, nem sequer era do interesse da Alemanha. E quando Sigmar Gabriel, o então líder do SPD, e Martin Schultz, o presidente do Parlamento Europeu, publicaram um artigo proclamando que o acordo com Alexis Tsipras era uma das grandes realizações históricas da social-democracia alemã, achei que era ir longe de mais, que era insultar as pessoas. Foi quando atingi o ponto de ruptura.

Em 2014, numa visita à Alemanha, avisou que havia um risco sério de a AfD vir a crescer o suficiente para entrar no Parlamento. A resposta que obteve foi: “Isso aqui não é possível”. Por razões históricas, naturalmente. Hoje, a AfD é o principal partido de oposição no Bundestag. Como explica que isto tenha acontecido no país que considerava que era impossível?

Parte da explicação é que o consenso sobre como pensar a História da Alemanha e a importância dessa História na identidade alemã sempre ficou mais ou menos restrito à classe média-alta e às elites. Mas começou a tornar-se visível nas sondagens que um número cada vez maior de alemães queria traçar uma linha sobre o nosso passado, começando a considerar que não era esse passado que definia a Alemanha. Pensavam: “Já chega”. Portanto, passou a haver um grande número de alemães que deixaram de se sentir impedidos pelo passado de aderir a partidos extremistas. Também houve, para além disso, a crise migratória em 2015, durante a qual quem abriu as portas a um milhão de pessoas foi o partido que tradicionalmente atraía mais votos de direita, impedindo que fossem para um partido mais extremista. Isso criou um terreno de recrutamento fácil para os populistas e os extremistas.

E também porque os Länder de Leste ainda são diferentes dos Länder da antiga República Federal?

Claro que a parte Leste não viveu a desnazificação da mesma forma que a Alemanha Ocidental, nem tem a mesma vivência democrática. Ainda hoje, especialmente as zonas rurais e menos desenvolvidas, as pessoas têm mais receio do futuro. Mas é conveniente não exagerar na dimensão desta divisão. A AfD tem algumas praças-fortes na Alemanha Ocidental e é bom recordar que está presente em todos os parlamentos regionais.

Escreveu um livro, há já algum tempo, com o título Stranger in my own country. Porque é que sentiu a necessidade de escrever este livro? Por ser judeu?

Era sobretudo para dar sentido à minha vida e partilhar com o leitor a minha experiência de ter crescido judeu na Alemanha moderna. Mas correspondia também a um interesse profundo – compreender por que razão alguém que nasceu na Alemanha, que não parecia diferente, que falava alemão sem acento, que tinha sido criado por país educados, mesmo assim acabava por sentir que a sua pertença à nação alemã estava em dúvida ou, pelo menos, era parcial. Era uma oportunidade interessante para perceber o tema ao qual estou agora a regressar – os desafios das sociedades multiétnicas e como permitir que pessoas de diferentes grupos e de diferentes origens possam construir uma vida em comum. Penso que foi essa a mais profunda motivação para o escrever.

No seu livro, na parte final, fala de várias soluções para responder a estes tempos difíceis. São muitas. Uma das últimas é como reconstruir a confiança na política e nos políticos. Numa versão curta, pode desenvolver um pouco o que é essencial?

É difícil, mas vou tentar. Há duas coisas diferentes. Uma é que precisamos de derrotar o populismo no curto prazo. E isso significa que precisamos de informar as pessoas sobre os perigos que o populismo representa para as instituições democráticas. Precisamos de reconquistar as pessoas que votam nos partidos populistas porque continuam a ser os nossos compatriotas. E temos também de apresentar uma visão positiva – dar às pessoas uma razão para fazer isso. Isto é sobre como ganhar as próximas eleições. Mas, ao mesmo tempo, também precisamos de fazer algumas mudanças estratégicas. Precisamos de políticas que garantam que o enorme crescimento que obtivemos do comércio livre, que melhorou muito a vida de muitos países – na Europa, mas ainda mais na Índia ou na China – chegue realmente aos bolsos das pessoas comuns e isso envolve investimento na educação, nas infra-estruturas, envolve políticas muito mais corajosas para garantir que as grandes corporações paguem impostos mais justos.

Tenho a sensação de que as elites portuguesas estão a cometer o mesmo erro que já vimos acontecer no Reino Unido, na Alemanha, nos EUA, no Brasil, que é dizer: nós temos uma história diferente, estamos imunes, isso não vai acontecer aqui. Quando olhamos à nossa volta, há uma elevada probabilidade de que, mais cedo ou mais tarde, surja um partido populista.

Em segundo lugar, creio que temos de mudar a forma como falamos das questões culturais. Tenho alguma simpatia pelas pessoas que querem que deixemos de nos sentir alemães ou portugueses para passarmos a ser apenas europeus, mas creio que é uma batalha que não podemos e que, se calhar, não devemos ganhar. As identidades são múltiplas e a melhor maneira de ser um europeu é ser também um alemão ou um português ou um orgulhoso habitante de Lisboa, seja de onde for que venha. E finalmente, não é nem possível nem recomendável pensar que podemos impedir o discurso do ódio e da ofensa na Internet. O que podemos fazer é defender as nossas ideias e os nossos valores com muito mais paixão. Podemos ser muito mais convincentes e empenhados na defesa da tolerância, na defesa da verdadeira liberdade, na insistência de que temos de nos governar a nós próprios em vez de ceder esse poder a alguém que se transforme num ditador. E a propósito, apesar das aparências, acho que era a isto que Ursula von der Leyen se referia com a protecção do modo de vida europeu.

E também precisamos de bons líderes? Há vinte ou trinta anos, os programas políticos eram, no mínimo, tão importantes como os líderes. Hoje, dá ideia de que as pessoas olham mais para os líderes.

Não tenho tanto a certeza disso. Acho que continua a ser as duas coisas. Como é que explica que pessoas como Bernie Sanders e Jeremy Corbyn tenham uma multidão a segui-los? Não é porque sejam bem-parecidos ou carismáticos. É porque têm um programa político claro. Aliás, creio que quanto mais de perto as pessoas virem os seus programas, menos apelo eles terão. Um programa político não tem de parecer bom à primeira vista, tem de se manter apelativo durante bastante tempo e congregar cada vez mais pessoas à sua volta. Mas isso mostra que o problema não está apenas nos líderes, o problema é que nos faltam lideres autênticos que lutem por ideias claras.

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