Há muito já se sabe que as propostas bolsonaristas de armar a população não têm nada a ver nem com a defesa do regime democrático (até porque, os que as defendem, não são democratas) contra eventuais golpistas políticos organizados militarmente, nem com a defesa contra o crime organizado de bandidos comuns, nem mesmo com defesa pessoal. Elas têm a ver, isto sim, com uma mudança no emocionar social, para transformá-lo num emocionar guerreiro, cada um armado contra o outro, o qual deixa de ser um possível amigo ou parceiro para se transformar num potencial inimigo. Ora, isso é apenas um modo de configurar ambientes sociais favoráveis à autocracia. Tratei do assunto há mais de dois anos, em 23/02/2017, no artigo Armas e autocracia, que açulou a fúria do meliante ideológico Olavo de Carvalho e dos fanáticos olavistas e bolsonaristas.
Pois bem. Confirmando todas as (mais sombrias) expectativas, Bolsonaro assinou ontem um decreto ilegal (pois decreto não pode modificar lei) ampliando o porte de armas e permitindo outras barbaridades (sim, é de barbárie mesmo que se trata). Trata-se do Decreto 9.785, de 7 de maio de 2019, cuja íntegra pode ser baixada aqui: DECRETO ARMAS
Em síntese, o decreto de Bolsonaro liberando o PORTE de armas, inclusive automáticas (o que nada a ver com a legítima POSSE de armas para autodefesa) foi um truque para burlar a lei, favorecer a indústria de armas, as milícias e outros grupos criminosos e açular um emocionar adversarial na sociedade brasileira.
Leiam o Artigo 20 do Decreto assinado por Bolsonaro (com a conivência, diga-se, de Sérgio Moro):
O porte de arma de fogo, expedido pela Polícia Federal, é pessoal, intransferível, terá validade no território nacional e garantirá o direito de portar consigo qualquer arma de fogo, acessório ou munição do acervo do interessado com registro válido no Sinarm ou no Sigma, conforme o caso, por meio da apresentação do documento de identificação do portador.
§ 1º A taxa estipulada para o porte de arma de fogo somente será recolhida após a análise e a aprovação dos documentos apresentados.
§ 2º O porte de arma de fogo de uso permitido é deferido às pessoas que cumprirem os requisitos previstos no § 1º do art. 10 da Lei nº 10.826, de 2003.
§ 3º Considera-se cumprido o requisito previsto no inciso I do § 1º do art. 10 da Lei nº 10.826, de 2003, quando o requerente for:
I – instrutor de tiro ou armeiro credenciado pela Polícia Federal;
II – colecionador ou caçador com Certificado de Registro de Arma de Fogo expedido pelo Comando do Exército;
III – agente público, inclusive inativo:
a) da área de segurança pública;
b) da Agência Brasileira de Inteligência;
c) da administração penitenciária;
d) do sistema socioeducativo, desde que lotado nas unidades de internação de que trata o inciso VI do caput do art. 112 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente; e
e) que exerça atividade com poder de polícia administrativa ou de correição em caráter permanente;
f) dos órgãos policiais das assembleias legislativas dos Estados e da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
g) detentor de mandato eletivo nos Poderes Executivo e Legislativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando no exercício do mandato;
h) que exerça a profissão de advogado; e
i) que exerça a profissão de oficial de justiça;
III – proprietário de estabelecimento que comercialize armas de fogo ou de escolas de tiro; ou
IV – dirigente de clubes de tiro;
V – residente em área rural;
VI – profissional da imprensa que atue na cobertura policial;
VII – conselheiro tutelar;
VIII – agente de trânsito;
IX – motoristas de empresas e transportadores autônomos de cargas; e
XI – funcionários de empresas de segurança privada e de transporte de valores.
§ 4º A presunção de que trata o § 3º se estende aos empregados de estabelecimentos que comercializem armas de fogo, de escolas de tiro e de clubes de tiro que sejam responsáveis pela guarda do arsenal armazenado nesses locais.
Ou seja: liberou geral. Sempre alguém (com a ajuda até de um advogado armado) poderá encontrar uma brecha nesse decreto para, burlando a lei vigente, andar armado pelas ruas.
Se eu tivesse uma milícia o que faria? Ora, arrumaria uns dez laranjas (que se enquadrassem no decreto do porte de armas de Bolsonaro) e compraria 40 armas e 50 mil cartuxos (agora pode: tudo legal). Dá para fazer um belo genocídio.
NADA A VER COM DEFESA PESSOAL
Pela lei atual podem ser adquiridos por ano 50 cartuchos para armas de uso permitido. O decreto de Bolsonaro eleva esse número para 5 mil. O que isso tem a ver com defesa pessoal? Quem precisa dar anualmente 5 mil tiros para se defender de bandidos?
Leiam o que diz o parágrafo primeiro do Artigo 19.
A aquisição de munição ou insumos para recarga cará condicionada apenas à apresentação pelo adquirente de documento de identificação válido e do Certificado de Registro de Arma de Fogo no Sinarm ou no Sigma, conforme o caso, e cará restrita ao calibre correspondente à arma de fogo registrada.
§ 1º O proprietário de arma de fogo poderá adquirir até mil munições anuais para cada arma de fogo de uso restrito e cinco mil munições para as de uso permitido registradas em seu nome e comunicará a aquisição ao Comando do Exército ou à Polícia Federal, conforme o caso, no prazo de setenta e duas horas, contado da data de efetivação da compra, observado o disposto no inciso II do § 3º do art. 5º.
O Decreto também prevê – ver o Artigo 32 – a posse e o porte de armas de repetição e semiautomáticas. Ora, por que uma pessoa precisaria de armas desses tipos para defesa pessoal?
Mas, com isso, os bolsonaristas estão colocando em circulação armas que hoje são de uso restrito das forças armadas: com qual objetivo (já que para defesa pessoal não é)?
Milicianos e narcotraficantes terão agora muito menos dificuldades para adquirir armamento pesado.
E a importação de armas também está liberada (até pela indústria armamentista, provavelmente com algum benefício fiscal). Leiam o parágrafo 2º do Artigo 43 do Decreto:
§ 2º Serão, ainda, autorizadas a importar armas de fogo, munições, acessórios e demais produtos controlados:
I – pessoas jurídicas credenciadas no Comando do Exército para comercializar armas de fogo, munições e produtos controlados;
II – os integrantes das instituições a que se referem os incisos I a XI do caput; e
III – pessoas físicas autorizadas a adquirir arma de fogo, munições ou acessórios, de uso permitido ou restrito, conforme o caso, nos termos do disposto no art. 9º e no art. 11, nos limites da autorização obtida.
Mas não para por aí. Há, talvez, intenções mais malignas na medida.
OS CLUBES DE TIRO
Examinemos esse estranho negócio dos clubes de tiro. O Decreto, além de ampliar a aquisição de munição, também permitiu o transporte de arma carregada (o que equivale a porte).
A cidadania precisa ficar atenta. Se os clubes de tiro começarem a proliferar poderemos ter o embrião de uma rede de milícias, já armadas e municiadas para qualquer eventualidade. E com porte de arma legalizado. Um levantamento do perfil dos seus donos e frequentadores certamente revelará alguma coisa. Quem frequentar os clubes de tiro e participar das conversações recorrentes que rolam nesses ambientes, captará sinais preocupantes… Para começar, pode fazer uma simples pesquisa nos clubes de tiro perguntando aos seus donos e frequentadores em quem votaram nas últimas eleições no primeiro turno (para não deformar demais a pesquisa com o voto puramente antipetista). Depois pode comparar o porcentual com o resultado eleitoral oficial de 2018. É preciso bola de cristal para prever os resultados?
Veja-se o que diz o parágrafo 3 do Artigo 36 do Decreto:
Os colecionadores, os atiradores e os caçadores poderão portar uma arma de fogo curta municiada, alimentada e carregada, pertencente a seu acervo cadastrado no Sinarm ou no Sigma, conforme o caso, sempre que estiverem em deslocamento para treinamento ou participação em competições, por meio da apresentação do Certificado de Registro de Colecionador, Atirador e Caçador, do Certificado de Registro de Arma de Fogo e da Guia de Tráfego válidos.
Com o drible-Bolsonaro, só nessa categoria, no mínimo, 250 mil pessoas poderão andar armadas nas ruas. Os tais CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores) compraram em 2018 mais munições do que as Forças Armadas. E os registros para essa categoria especial cresceram 879% nos últimos cinco anos.
Se o Decreto 9.785, de 7 de maio de 2019, não for derrubado por decreto legislativo do Congresso Nacional ou pelo Supremo Tribunal Federal, tente calcular o número de pessoas que poderão andar armadas, com munição suficiente para deflagar uma verdadeira guerra civil no país.
Pergunta ao Jair Bolsonaro e Sérgio Moro. Advogados de milícias e caminhoneiros arruaceiros, que bloqueiam estradas e impedem a população de comprar alimentos e remédios, vão agora poder andar armados nas vias públicas?
Em tudo o Decreto é perverso. Trata-se de uma proposta tenebrosa dos bolsonaristas, que não poupa nem mesmo crianças e jovens. Os parágrafos 6 e 7 do Artigo 36 deixam isso claro:
§ 6º A prática de tiro desportivo por menores de dezoito anos de idade será previamente autorizada por um dos seus responsáveis legais, deverá se restringir tão somente aos locais autorizados pelo Comando do Exército e será utilizada arma de fogo da agremiação ou do responsável quando por este estiver acompanhado.
§ 7º A prática de tiro desportivo por maiores de dezoito anos e menores de vinte e cinco anos de idade poderá ser feita com a utilização de arma de fogo de propriedade de agremiação ou de arma de fogo registrada e cedida por outro desportista.
Ou seja, trata-se de ir acostumando as novas gerações com as armas. Armas, armas, armas… tiros, tiros, tiros… para quê? Para corromper as suas almas com uma pulsão de morte? E em quem eles vão atirar? Nos comunistas? É um mundo horroroso o que prevê a distopia bolsonarista.
Por que o olavismo-bolsonarismo insiste tanto no armamentismo? A ideia básica desses malfeitores – repetida ad nauseam por Olavo de Carvalho e por seus pupilos Jair, Flávio, Carlos e Eduardo Bolsonaro – é armar o povo para lutar contra o comunismo (ou seja, no horizonte eles têm a luta armada e não os processos legais previstos pelo Estado democrático de direito). Certamente, não é para defender a democracia, já que – como dissemos no início deste artigo – eles não são democratas. Deve ser então para colocar no lugar do imaginário comunismo um regime autocrático de extrema-direita, com milícias e colectivos armados nas ruas (dos quais os clubes de tiro e outras organizações legais poderão ser os embriões).
Tem focinho de porco, rabo de porco, pé de porco, orelha de porco, mas só não é uma feijoada porque, teoricamente, o populismo-autoritário bolsonarista não pode ser caracterizado como fascismo. Fascistoide, entretanto, ele é: não há a menor dúvida.