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Armas e autocracia

A fixação em armas revela uma mentalidade autoritária

Há cerca de 20 anos (precisamente em 1996) li tudo que pude encontrar (e fui capaz de entender) sobre a antiga Mesopotâmia. Os relatos recuperados pelos arqueólogos e historiadores, alguns publicados por sumeriologistas e assiriologistas como Kramer (1956), em A história começa na Suméria e, depois, Leick (2001) sobre A invenção da cidade, que mais me impressionaram, foram sobre as armas (reais ou imaginárias) trazidas (ou fabricadas) pelas hierarquias que ocuparam ou se formaram na região.

Algum tempo depois, quando conheci Maturana, descobri que ele pensava que a arma é definida pela emoção (quer dizer, a disposição para a ação, não o sentimento) com que um objeto (ferramenta ou artefato) é usado. Assim, uma enxada ou até mesmo um instrumento de caça podem se transformar em armas para mutilar e matar seres vivos (não apenas com finalidades de alimentação) e, sobretudo, seres humanos.

A arma, nesse sentido, não é uma coisa boa e a sua produção em série – ou seja a produção de armas e não de artefatos que podem ser usados como arma – está ligada a um emocionar guerreiro que surgiu há alguns milênios e vem se reproduzindo até hoje.

Escrevi na ocasião em que estudava o assunto, que, segundo os historiadores, o que ocorreu de tão notável na antiga Suméria foi (além da escrita, é claro), o surgimento da cidade – a chamada “revolução urbana”. A Suméria teria sido o berço da civilização. Mas ao que tudo indica algum tipo de civilização já existia há vários milênios. Cidade por cidade, tínhamos Jericó (fundada, talvez, entre 8.350 e 7.370), Çatal Hüyük (cujas escavações arqueológicas retrocederam até a data de 6.250, ou antes) e Hacilar (que, com certeza, era habitada de 5.700 a 5.000). O que muitos historiadores não percebem na Suméria é a afirmação de um novo padrão civilizatório, em substituição ao “padrão” (neolítico, se se pode falar assim) anterior.

O notável na antiga Suméria não é a cidade em si, mas o tipo de cidade. O que caracteriza essa cidade sumeriana é o fato de ela ser uma cidade-Templo. O que o matemático da teoria do caos, Ralph Abraham (1992), em Trialogues at the Edge of the West, chamou de “precedente sumeriano” se refere ao fato de que o cosmo social na Suméria passou a ser ordenado por um cosmo sobrenatural. As pessoas não apenas serviam, mas viviam no Templo (sim, existem registros dizendo isso: as famosas “Tábuas de Fara”). O muro da cidade não separava somente o conterrâneo do estrangeiro, porém o sagrado do profano. Ao fazer isso, promovia uma equivalência de status entre os conceitos de outro e profano. Criava-se assim um pré-curso, um sulco para o futuro: o muro como símbolo do que afasta e separa do outro (o qual pode profanar ou tornar impuro o próprio modo de ser). Sem esse tipo de separação, de cuja gênese social encontramos um precedente de larga escala na antiga Suméria, não poderia ter se consolidado o poder vertical na terra dos homens.

A chamada “revolução urbana” ocorrida na Suméria foi, na verdade, um processo de aprisionamento da vida social pelos muros materiais e espirituais do Templo-Palácio. Os ritmos da vida social e pessoal neolítica foram radicalmente alterados, substituindo-se os elementos naturais que participavam da existência humana por outros elementos ‘sintéticos’ (produzidos “em laboratório”, por assim dizer). Um desses principais elementos sintéticos ou artefatos foram as armas. A pedra fundamental da cidade era a arma sagrada (Shuhadaku), quer dizer, a arma de uso restrito, que só os superiores podiam manejar.

Os registros sumérios contêm nomes de armas horríveis: o “supremo caçador” (Sarur), o “supremo exterminador” (Shargaz), a “arma de cinqüenta cabeças letais” (Ib). E dezenas de outras, como o “supremo assassino”, o “olho levantado que inspeciona a terra”, o “feixe de emissões levantado”. Para que tantas e tão terríveis armas? Segundo os textos encontrados, “para destruir as cidades más – limpá-las da oposição contra o Altíssimo” ou para “subjugar cidades más em terras estrangeiras”. A expressão “limpá-las da oposição” diz tudo. A oposição ou a não aceitação do jugo dos superiores, é o mal, a sujeira que deve ser limpada porque pode contaminar o que é puro, que precisa ser mantido separado para não ser contaminado. Nesse caso, a violação, a destruição e a morte executadas por meio da arma se justificam eticamente. Estão respaldadas pela moralidade estabelecida pelos superiores.

Relembro isso tudo agora em razão da fixação de certas pessoas com as armas. Entendo as razões que levaram os americanos a introduzir emendas na sua Constituição garantindo o direito das pessoas de possuírem armas. A razão fundamental é proteger a democracia contra a tirania. A Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos – aprovada em 15 de dezembro de 1791 – protege o direito do povo de manter e portar armas. Esse direito de manter e portar armas, na verdade, já estava previsto na common-law da Inglaterra, e foi influenciada pela Declaração de Direitos de 1689, também inglesa. Esse direito teve como fundamento a autodefesa, mas sobretudo a resistência à opressão e ao dever cívico de agir coletivamente na defesa do regime democrático nascente (embora a democracia – nenhuma democracia, nem a dos ingleses, nem a dos antigos atenienses – nunca tivesse nascido da luta armada ou da guerra). Ao contrário, toda autocracia precisa de guerra. Aliás, a autocracia é a guerra, mas para entender isso é preciso entender o que é a guerra.

O fato é que as armas (assim como a guerra) não foram inventadas pelos oprimidos contra os opressores, pelo contrário. Como revelam os textos mais antigos já encontrados, as armas foram fabricadas pelos opressores para manter os oprimidos como oprimidos. Para impedir que eles se opusessem a um poder que os oprimia. Foram instrumentos de conquista, de predação e de dominação da sociedade patriarcal. Compreende-se que, quando se libertam da dominação, os ex-dominados se armem para impedir que sejam novamente dominados por um poder despótico semelhante ao que os dominava. Mas isso só se justifica diante de ameaça real e iminente (como na legítima defesa) e não perante à ameaça imaginária, como sustenta a mentalidade militar que amplia abusivamente o termo defesa para legitimar o se armar contra o outro tomado como inimigo potencial.

Aqui está o problema. A ideia de defesa – ampliada como foi pela cultura autoritária – é uma ideia de guerra. A preparação para a defesa é uma preparação para a guerra, não para a paz. Os atuais Ministérios da Defesa de vários países antes se chamavam Ministérios da Guerra (inclusive no Brasil). É a guerra que constitui a arma, não a caça, nem mesmo o enfrentamento violento entre seres humanos ou animais – como na briga entre primatas do filme 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (1968), em que o macaco transforma uma tíbia em uma arma para abater um membro do bando rival. Pode-se dizer que ali já está presente, por certo, a emoção de que falava Maturana, que pode transformar um objeto qualquer em arma, mas o confronto violento é eventual e decorre do encontro desarmônico de duas derivas (como quando animais disputam por comida, água ou outro recurso vital), pois – a rigor – não se trata de guerra na medida em que uma ordem baseada no confronto, ou melhor, na preparação para o confronto, não é essencial para a reprodução do modo de vida daqueles primatas. Logo, não há fabricação de armas como tais, nem qualquer culto às armas. Não foi a tíbia usada pelo primata – que no filme se transforma em estação espacial, sugerindo uma linha de desdobramento temporal – que se converteu nas terríveis armas dos hierarcas mesopotâmicos, que de tão importantes para a reprodução de um padrão civilizatório (patriarcal) passaram a ser atribuídas aos deuses (como aquela arma usada pelo deus da ordem Marduk para matar a deusa do caos Tiamat). Sim, o culto da ordem – autocrática – é um culto da morte trazida pela arma.

Macacos 2001

A visão de Kubrick e Arthur Clarke (autor do livro que deu base ao filme) é problemática. O macaco se transforma em homem quando mata o outro ser da sua espécie. Usando uma arma – um osso, transformado em ferramenta para matar – aquele macaco do filme de Kubrick dá início ao progresso. A história do filme 2001 apenas reflete a ideia de que todas as importantes descobertas tecnológicas primitivas foram feitas pelo caçador e pelo guerreiro, ao buscarem uma maneira mais eficaz de matança. Assim, teria sido a ferramenta (transformada em arma, usada para matar) que nos tornou humanos. A maioria das pessoas é levada a acreditar nessa ideia porque ela tem uma aparência de verdade científica. Mas a ciência não nos obriga a acreditar que a violência seja inerente ou constitutiva da natureza humana e nem que a sociedade humana tenha se desenvolvido a partir da arma ou do ato de matar. Podemos supor que algo aconteceu para que as coisas passassem a ser assim, o que significa admitir que elas não foram sempre assim. Alguns arqueólogos descobriram que os precursores dos seres humanos transportavam o alimento de um lugar para outro e distribuíam esse alimentos entre os membros do grupo. Ou seja, eles partilhavam o alimento. Apoiados em tal hipótese podemos dizer que uma das atitudes básicas que nos torna humanos é esta: a partilha do alimento, e não o uso da ferramenta para matar (a transformação da ferramenta em arma). São dois pontos de vista, completamente diferentes. Em um, como assinalou William Irwin Thompson (1987), em Gaia: uma teoria do conhecimento, temos uma definição tecnológica da cultura humana, na qual a ferramenta separa fundamentalmente a cultura da natureza. No outro, temos uma definição social da cultura humana, na qual o ato de partilhar o alimento estabelece uma relação entre natureza e nutrição.

Por que tudo isso? Porque a cultura autocrática se reproduz, não apenas nas alegações sobre a necessidade das pessoas portarem armas para se defender ou para defender o regime democrático contra eventuais tiranos que queiram assaltá-lo (que é o espirito da segunda emenda). Não! O emocionar que levou à criação da National Rifle Association of America, continua presente nos autocratas de hoje: tais como os de 1871, que fundaram a organização, eles prosseguem cultuando a arma. Eles colecionam armas, dedicam tempo limpando e polindo seus queridos instrumentos criados para mutilar e matar, posam com elas para fotos, assinam catálogos, frequentam exposições e fóruns virtuais para se gabar do arsenal que possuem e disputar entre si concursos de beleza (das armas). Parecem psicopatas infantis, crianças patriarcais maravilhadas com seus brinquedos mortais, ainda que, na maioria, não passem de velhos senis embevecidos com “próteses”, instrumentos substitutivos para a potência que, talvez, já lhes falte.

Armas

Mas o pior disso tudo é que eles são agentes da reprodução da cultura autocrática (que é a mesmíssima cultura da guerra que cultua a arma). Os que cultuam a arma, invariavelmente, também cultuam a ordem (imposta top down) e demonizam o que julgam ser desvios comportamentais (como o homossexualismo e o feminismo) como violações de alguma lei alegadamente natural ou divina. Por isso, via de regra, defendem o que chamam de valores da civilização judaico-cristã, a tradição, a família, a propriedade, a religião, a hierarquia, a disciplina, a obediência e a fidelidade.

Basta um rápido passeio pelos grupos do Facebook que se dizem de direita no Brasil de hoje para constatar a profusão de posts e comentários feitos por pessoas imbuídas da necessidade de defender esses alegados valores da civilização (que é a civilização patriarcal, mas isso não as incomoda, pelo contrário) contra a grande conspiração universal globalista, comunista, capitalista bilderberguista, trilateralista ou, nas versões mais piradas, dos illuminati que, financiados por Soros e pelos Clinton, querem instaurar uma nova ordem mundial.

O que é mais espantoso é que muitas dessas pessoas, que tiram fotos segurando uma arma, se dizem cristãs. Contra todos os relatos da vida disruptiva daquele judeu marginal que ficou conhecido como Jesus de Nazaré, elas são cristãs por uma necessidade lógica e axiológico-normativa: elas querem mesmo é a religião – não o Jesus dos evangelhos – porque acham que só a religião será capaz de domar a besta-fera humana, só a religião poderá colocar ordem no mundo, evitando que as pessoas cometam más ações pelo medo de ser punidas por um poder sobre-humano. Que se danem os exemplos de vida daquele homem concreto que apareceu na periferia da periferia da Palestina dominada pelos romanos no século 1 (que não tinha nenhuma propriedade, nem onde repousar a cabeça e que se recusou a usar armas, como faziam os zelotas com sua adagas – sim eram armas -, na luta contra os opressores).

A militância contra o chamado estatuto do desarmamento não tem quase nada a ver com a Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos (ou com a common-law britânica que lhe deu origem). Não é para defender o regime democrático contra supostos tiranos (até porque os que defendem isso não são democratas). Não é nem para a defesa pessoal contra os bandidos comuns (sim, porque contra os bandidos políticos é medida ineficaz). Não há evidências científicas de que uma sociedade em que o povo está armado seja necessariamente mais segura ou pacífica do que qualquer outra. Depende muito das circunstâncias. Se for como na Suíça, tudo bem. Se for como nos USA do final do século 18, tudo bem. Se for como nos USA do início do século 21, tudo mal.

Os autocratas que querem agora enfiar, como contrabando, na pauta das manifestações de rua de apoio à Lava Jato – como a convocada para o dia 26 de março de 2017 -, a luta contra o estatuto do desarmamento, querem, na verdade (ainda quando não saibam disso), introduzir nos movimentos um outro tipo de emocionar, para alterar a vibe pacífica, colaborativa e amistosa que vem caracterizando o comportamento das multidões que se constelaram no Brasil desde 2013. Tal como a esquerda, essa autoproclamada direita não quer a festa: quer a luta, a guerra. Tal como a esquerda, quer se habilitar como arrebanhadora de gente, condutora de massas para algum tipo de sociedade purificada, limpa, ordenada a partir de cima por um poder restaurador, garantidor e mantenedor dos valores da civilização patriarcal.

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What’s Left of Communism