Não vamos falar aqui das cinco principais forças que compõem o governo Bolsonaro, um governo imerso em disputa, e sim de apenas uma dessas forças, chamada de bolsonarismo (ou olavismo-bolsonarismo).
As principais forças que se enfrentam no governo são: os bolsonaristas, os militares, os liberais-econômicos, os lavajatistas e os evangélicos. A rigor, existem outros setores corporativos apoiando o governo, como os ruralistas mais atrasados, o empresariado que vive do Estado, os fabricantes e comerciantes de armas, os milicianos, os caminhoneiros etc. – mas todos estes alinham-se a Bolsonaro movidos por interesses mais econômicos do que políticos e, portanto, não chegam a compor propriamente uma força política autônoma e minimamente coesa.
Muita gente se impressiona com a militância virtual bolsonarista, sobretudo no WhatsApp e no Twitter. Mas não se deve ligar muito para os Trending Topics do Twitter, pois eles são manipulados pelos milicianos virtuais bolsonaristas. Vamos falar a verdade: com apenas 5 mil pessoas dedicadas (metade das quais podem ser bots, como de fato são) podemos subir artificialmente, 24 horas por dia x 7 dias por semana, qualquer hashtag (de #BolsonaroTemRazão, passando por #VamosInvadirOCongresso até #ForaSantosCruz).
São poucos milhares de pessoas que podem ser instruídas (ou conduzidas, comandadas-e-controladas) facilmente pelo WhatsApp: essa estrutura em árvore, que permite o fluxo descendente descentralizado e o broadcasting privado, já está montada (pois foi organizada durante e para a campanha eleitoral de Bolsonaro). Elas estão no terceiro nível da pirâmide bolsonarista (ver Figura 1). De estrutura organizativa o que o bolsonarismo tem, de facto, é isso. Não tem partido, não tem dispositivos de mobilização, não tem corporações sindicais e entidades da sociedade civil que atuem como correias de transmissão na sociedade e tem muito poucas empresas (ou empresários realmente dispostos a financiar operações).
O que o bolsonarismo tem é a velha estrutura de campanha, alimentada no segundo nível (no primeiro estão Olavo, Jair e os filhos presidenciais) diariamente por cerca de 40 hubs (talvez um pouco mais, mas que não ultrapassam 100) e por isso Bolsonaro, seu guru, seus filhos e seus sequazes, têm que continuar o tempo todo em campanha.
Fig. 1 – A pirâmide bolsonarista
Quem são tais pessoas do segundo nível?
Entre outras, Allan dos Santos, Bernardo Küster, Leandro Ruschel, Bia Kicis, Carla Zambelli (criticada por Olavo de Carvalho por não ser suficientemente subserviente ao olavismo), Bruno Garschagen, Ernesto Araújo, Fabio Wajngarten, Flavio Morgenstern (Flávio Azambuja Martins), Filipe Martins, Filipe Valerim. E também José Carlos Sepúlveda, Joice Hasselmann, Ana Caroline Campagnolo, Bene Barbosa, Daniel Lopez, Ítalo Lorenzon, Luiz Philippe de Orleans e Bragança, Marcelo Reis, Nando Moura, Roger Moreira, Danilo Gentili, Flávio Gordon, Ricardo de Aquino Salles, Felipe Moura Brasil. E entre os empresários mais salientes: Luciano Hang, Emilio Dalçoquio, Flavio Rocha (talvez mais por oportunismo), Meyer Nigri e Sebastião Bomfim. Ainda falta gente como o incrível Abraham Weintraub, o Alexandre Borges (embora diga que não é bolsonarista, é certamente olavista e exerce a patética profissão de passador de pano), a Ana Paula (do Vôlei), a Letícia Catelani, o Sandro Rocha (o capitão miliciano do Tropa de Elite). E, igualmente, não está incluída nas listas acima uma parte dos jornalistas que aderiram ao bolsonarismo – talvez por tais jornalistas terem ficado reféns do antipetismo (sim, o antipetismo cega) -, como Alexandre Garcia, Augusto Nunes (já criticado pelos bolsonaristas-raiz), José Roberto Guzzo e, infelizmente, Guilherme Fiuza.
Se essas pessoas deixarem de cumprir o papel de correias de transmissão entre o comando (o primeiro nível, composto por Olavo, Jair, Flávio, Carlos e Eduardo) e o terceiro nível (que abarca um contingente de alguns milhares, provavelmente inferior a 50 mil pessoas), quebra-se o fluxo vertical que sustenta o bolsonarismo.
Cabe ressaltar que o bolsonarismo não é homogêneo. A seita bolsonarista é uma sopa bacteriana que contém muitos ingredientes: olavistas (quer dizer, conspiracionistas antiglobalistas, anticomunistas ainda na vibe da guerra fria, ou seja, macarthistas, nacionalistas-populistas autoritários na linha de Steve Bannon), sendo que os demais grupos reacionários ou retrogradadores que estavam submersos no pântano no último meio século, alinharam-se aos bolsonaristas: os monarquistas-tradicionalistas, os católicos ultraconservadores tipo TFP, os hierarcas ocultistas et coetera. Um curioso fator de unidade entre esses grupos é que, além de serem adversários da democracia liberal, são, todos, trumpistas.
Quem é o terceiro nível?
No terceiro nível estão os milicianos das mídias sociais, como a tiazinha do zap e os falsificadores tuiteiros, em suma, os chamados bolsominions, mas também algumas categorias que, por alguma razão, se apaixonaram por Bolsonaro (com estranho destaque para os médicos). Esse terceiro nível, porém, não tem preparo nem autonomia intelectual para manter ativa a corrente bolsonarista de opinião.
Mas, atenção! Há uma base social que fornece gado humano para o que seria um quarto nível da pirâmide bolsonarista (composto por arrebanhados ou capturados, numa quantidade que pode, talvez, ser estimada em 5 milhões de pessoas).
Quem é o quarto nível?
Algumas visitas sistemáticas aos perfis dos bolsonaristas do quarto nível revelarão padrões que se repetem com alta frequência. Em número expressivo (é até engraçado dizer isso, mas é verdade) eles aparecem de óculos escuros, às vezes em carros bacanas, lanchas, motos, às vezes em praias, clubes de tiro e outros clubes e academias de ginástica. Ou então com a família. Há também uma quantidade considerável de torcedores meio fanáticos de clubes de futebol. Está na cara que não são – em sua maioria – trabalhadores braçais, gente que ganha salário mínimo ou um pouco mais. São parte da chamada classe média, média e alta (gente que, se quiser, pode comprar mais de uma arma de fogo nova com munição suficiente para atirar todo dia ou toda semana).
Não se fala aqui das pessoas-bot, dos moleques que compõem as milícias virtuais (que estão no terceiro nível da pirâmide, como vimos acima). Nem dos eleitores normais de Bolsonaro (porque aí – nestes quase 57 milhões – tem de tudo). Fala-se genericamente daquela pessoa que nunca se interessou por política, que é analfabeta democrática ou contrária mesmo à democracia e que, com a possibilidade de emitir sua opinião nas mídias sociais, passou a publicizar suas convicções privadas, em geral preconceituosas, alterando e deformando os fluxos interativos que geram a opinião pública.
Mas elas, essas pessoas, não tiveram tais opiniões de repente, estimuladas pela onda reacionária bolsonarista em curso. Elas sempre pensaram mais ou menos assim: bandidos têm que morrer, a política é uma pouca vergonha porque todo mundo rouba, cada um deve cuidar de si, temos que defender o que é nosso, se preciso for à bala, comunista ou esquerdista é vagabundo e ladrão, pobre vive na merda porque não quer trabalhar e não se esforça, gays e lésbicas são sem-vergonhas e deveriam ser fisicamente punidos ou presos e várias outras barbaridades fascistoides semelhantes.
Elas não compartilham, porém, das ideias propriamente políticas do bolsonarismo, nem sequer entendem a via revolucionária (para trás, quer dizer, reacionária) proposta por Olavo de Carvalho: instalar um governo plebiscitário (uma espécie de chavismo de extrema-direita), para bypassar as instituições da democracia representativa (o parlamento, o judiciário, a imprensa) e desativar o sistema imunológico do Estado de direito, estabelecendo uma ligação direta – sem os mecanismos de freios e contrapesos próprios do regime democrático – entre o führer e as massas, o líder salvador e o povo arrebanhado, com o objetivo de dar um curto circuito no sistema para, supostamente, exterminar as elites corruptas e comunistas, o “estamento burocrático” e as corporações que não deixariam o presidente governar como um ditador.
Todavia, isso não quer dizer que não há, realmente, uma base social para o bolsonarismo (que é muito semelhante àquela que foi capturada e aproveitada pelo fascismo, ainda que o fenômeno político em tela não seja, a rigor, fascismo). Todo esse contingente, entretanto, é pequeno em relação à população total do país (e ao próprio eleitorado de Bolsonaro). Mas o nível de ativismo individual (atenção: individual, não grupal) que alcançou, quando foi arrebanhado ou capturado pelo terceiro nível, é suficiente para promover um perigoso avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade. Eis o problema.
O problema, portanto, não são os eleitores de Bolsonaro. Os eleitores de Bolsonaro já votaram e agora estão esperando os resultados (que não aparecem): eles, mais de 90% dos que votaram em Bolsonaro, não têm nada a ver com isso. Eles não pertencem à pirâmide bolsonarista.
As ligações orgânicas entre o terceiro e o quarto níveis são frágeis. Não são vínculos orgânicos, quer dizer, não há uma organização de milhões (nem de centenas de milhares, nem de muitas dezenas de milhares) de militantes, estruturados segundo um padrão hierárquico. A maior parte da pirâmide bolsonarista (o terceiro e o quarto níveis) ainda é composta por eleitores que estão experimentando opinar fora das urnas, mas, ainda assim, eleitores, não militantes, funcionários políticos ou apparatchiks.
Seria facílimo desconstituir os laços entre os quatro níveis, sobretudo entre o terceiro e o quarto, derrubando a pirâmide. Considere-se que o bolsonarismo tem duas grandes fraquezas, uma interna, descrita acima, e outra externa: ele não consegue estabelecer uma aliança estratégica, com reciprocidade, com as demais forças que estão no governo e, muito menos, com as forças que apoiam o governo (como a base parlamentar no Congresso).
O que mais prejudica a expansão do bolsonarismo é seu espírito de seita. A visão política de um bolsonarista é primária. Todo mundo que não acha que ‘Olavo Tem Razão’ ou que não é macaca de auditório de Bolsonaro, é corrupto, comunista ou traidor. Sobra o quê? Uma extrema minoria sectária (que não alcança nem mesmo 5% dos eleitores do capitão).
O quadro abaixo (ver Figura 2), já publicado no artigo O pântano: uma análise da correlação interna de forças no governo Bolsonaro, dá uma ideia da situação. Ou seja, não há projeto estratégico comum, com reciprocidade, entre quaisquer pares de forças políticas que disputam o governo Bolsonaro. Com tal deficit interno de alianças estratégicas é muito difícil o governo Bolsonaro, cuja direção é bolsonarista, dar certo.
Fig. 2 – Cruzamentos de expectativas das forças políticas que compõem o governo Bolsonaro
Ademais, os bolsonaristas não conseguem – sobretudo diante da desorganização e da paralisia do governo, consumido por uma luta ideológica estranha às pessoas ajuizadas e sem resultados econômicos para apresentar – ganhar os eleitores normais de Bolsonaro convertendo-os (ou pervertendo-os) em bolsonaristas. O aprovação ao governo e ao presidente, nos níveis de ótimo e bom, nas pesquisas de opinião, não reflete uma adesão ao bolsonarismo e sim a esperança difusa de que o governo vai melhorar, mas mesmo essa aprovação é cadente.
Em suma, a força bolsonarista é, na verdade, um “tigre virtual” que só se exerce plenamente por meio da manipulação das mídias sociais. Em outras palavras, é um Tigre de Papel (para usar, mutatis mutandis, uma antiga expressão chinesa consagrada pelo ditador Mao Tsé-tung).




