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Desenhando: como pensam os bolsonaristas e por que eles estão, em tudo, errados

Vamos desenhar aqui como pensam os bolsonaristas e refutar, uma por uma, as suas crenças antidemocráticas. É uma espécie de cartilha “Caminho Suave” da política: serve como um be-a-bá de democracia para analfabetos democráticos.

As sete principais opiniões bolsonaristas, compartilhadas ad nauseam nas mídias sociais manipuladas, estão em azul, seguidas por comentários educativos.

1 – Bolsonaro é o chefe do Brasil (porque foi eleito pelo povo por maioria) e, portanto, deveria ter o poder de propor todas as medidas necessárias para salvar a pátria, sobretudo por decreto soberano.

Um país democrático não tem chefe. Um presidente eleito é chefe de governo e/ou chefe de Estado, mas não chefe das pessoas. A sociedade democrática não tem no chefe de governo um senhor e sim um servidor. Essa é a essência da democracia.

Ademais, o Brasil tem 202 milhões de habitantes e 147 milhões de eleitores (90 milhões dos quais – 61% do eleitorado – por vários motivos, não votaram em Bolsonaro).

Os eleitores de Bolsonaro, que não chegaram a 58 milhões de pessoas, somam 39% do eleitorado. E desses 58 milhões que votaram em Bolsonaro apenas cerca de 5 milhões são pessoas cuja consciência foi colonizada pelo bolsonarismo. O restante é composto por: a) antipetistas convictos (revoltados com a lambança de Dilma) e b) eleitores temerosos da volta do PT ao governo (depois dos escândalos do mensalão e do petrolão); c) moralistas revoltados com a corrupção na política e, em parte não desprezível, manipulados pela antipolítica lavajatista da pureza; d) gente apavorada com a escalada da insegurança pública; e e) pessoas normais que, simplesmente, acharam que era hora de dar uma chance a um candidato vendido como novo (embora tenha estado quase 30 anos como membro do baixo clero da velha política) e como honesto (e que talvez fosse menos pior do que o candidato do PT).

Na democracia representativa presidencialista um presidente não tem poder imperial. O poder Executivo não é soberano. Não pode governar por decretos. O poderes Executivo, Legislativo e Judiciário se relacionam de modo a criar freios e contrapesos para que quaisquer deles não invadam as atribuições dos demais e não ultrapassem suas prerrogativas. Este é o equilíbrio entre os poderes sem o qual a democracia representativa não pode funcionar.

Ainda uma nota complementar. Ninguém pode “salvar a pátria”. Nas democracias não há demiurgos, não há salvadores, muito menos míticos. Isso é matéria de religião, não de política. E é próprio de regimes autocráticos, onde os que governam – dizendo-se ungidos por deus ou pelo povo – teriam condições ou qualidades excepcionais e, por isso, estariam acima das pessoas comuns.

2 – O parlamento, se fosse patriota, deveria acatar imediatamente todos os projetos de lei de Bolsonaro, na sua forma original, integralmente – quer dizer, sem emendas (como diz o cartaz bolsonarista de uma manifestante: ver a foto).

Isso não tem nada a ver com patriotismo. O parlamento não está subordinado ao governo. No Brasil é eleito na mesma eleição que elege o presidente, no caso de Bolsonaro com cerca do dobro dos seus votos.

Parlamentos são as instituições por excelência da democracia: governos e judiciário existem também nas ditaduras, mas parlamentos livres só nas democracias. O parlamento representa a sociedade e seu papel principal não é chancelar projetos governamentais e sim, como dizia John Stuart Mill (1859): “o ofício apropriado de uma assembléia representativa é observar e controlar o governo”.

É papel precípuo do Legislativo alterar os projetos do Executivo. É assim em todas as democracias.

Bolsonaro se acha mais poderoso do que o parlamento porque – segundo disse – pode editar decretos executivos. Ora, decretos não derrubam leis (que só o legislativo pode aprovar). Parece que ele esqueceu – ou não sabia – que decretos legislativos derrubam decretos do executivo.

3 – O parlamento faz corpo mole, exige propinas em troca da aprovação das leis de Bolsonaro e ainda quer ter o desplante de alterar o que o chefe propõe, porque não é patriota, quer dizer, não está a favor do Brasil, mas só pensa em seus próprios lucros e em sabotar o país (porque está coalhado de corruptos e comunistas).

O presidente não é chefe do Congresso e sim do governo e do Estado (do aparelho administrativo do Estado e da representação do Estado-nação na relação com outros Estados-nações). O parlamento não tem a obrigação de obedecer ao presidente. Como representação da sociedade, o Congresso é diverso, plural, e reflete as várias tendências políticas, os variados interesses econômicos, as crenças, valores e comportamentos múltiplos que estão presentes na sociedade.

Isso não tem nada a ver com patriotismo ou com estar ou não estar a favor do Brasil. Não é o presidente e sua facção política que dizem qual é o interesse do Brasil e sim o conjunto da sociedade.

Nos parlamentos democráticos podem existir pessoas que defendem o capitalismo ou o comunismo. Podem, inclusive, ser eleitas pessoas que são contrárias à democracia (o que, aliás, acontece também na eleição presidencial, como é o caso de Bolsonaro), sejam ditas “de direita” ou “de esquerda”, desde que respeitem a Constituição e as leis vigentes no Estado democrático de direito.

Toda corrupção deve ser legalmente coibida e punida, mas a democracia não é – nunca foi – o regime sem corrupção e sim o regime sem um senhor.

4 – O judiciário jamais poderia se contrapor aos decretos editados pelo governo (mesmo quando inconstitucionais) e às leis propostas por Bolsonaro. Só faz isso porque não é patriota (porque o STF está cheio de corruptos e comunistas, que são contra o Brasil).

Novamente, isso não tem nada a ver com patriotismo. A pátria, seja o que for, não é a presidência da República e os interesses e aspirações do Brasil não podem ser definidos apenas pelo chefe do governo e do Estado.

Cabe ao poder Judiciário – sobretudo ao Supremo Tribunal Federal, como intérprete da Constituição Federal – aplicar, quando competentemente acionado, as leis vigentes (que são aprovadas pelo Congresso). Se o presidente da República edita um decreto que viola a Constituição, cabe ao Congresso emendá-lo ou aboli-lo por meio de decreto legislativo. Se o presidente veta, total ou parcialmente, uma lei aprovada pelo parlamento, o Congresso pode derrubar o veto presidencial. E cabe ao judiciário corrigir inconstitucionalidades porventura existentes em decretos presidenciais ou em leis congressuais.

Nas democracias não há império de pessoas, sejam quais forem os cargos que ocupam e sim o império da lei. Todos estão submetidos à lei: presidente, congressistas e juízes.

5 – A luta contra a corrupção na política deve continuar, mas apenas contra os adversários do governo. Quando atinge a família Bolsonaro (como no caso da corrupção no gabinete de Flávio Bolsonaro) as investigações devem ser sumariamente interrompidas porque as acusações serão sempre falsas: não passam de ataques políticos contra o chefe do Brasil, quer dizer, tentativas de atingir o presidente.

Nas democracias, o correto combate à corrupção na política deve ser parte do funcionamento normal do Estado democrático de direito. Não pode ser visto como uma revolução purificadora, uma cruzada antipolítica de limpeza ética, uma campanha restauracionista de estilo jacobino. Assim, não se pode instrumentalizar a luta contra a corrupção com objetivos políticos, selecionando alvos ou determinando o timing para desfechar esta ou aquela operação policial, para uma denúncia do Ministério Público ou para uma decisão judicial. Do contrário o Estado estará sendo usado por uma facção para fazer guerra contra outras facções.

Não cabe, igualmente, à acusação pública, fazer agitação e propaganda de suas ações visando açular as massas contra alvos determinados de sorte a manipular a opinião pública explorando o moralismo popular para influenciar decisões judiciais. Novamente, a lei deve valer para todos: para os adversários do presidente, para seus aliados e para ele próprio e sua entourage, inclusive para membros de sua família.

No caso em tela há fortes indícios de que a família do presidente Bolsonaro praticou corrupção política e se envolveu em relações perigosas com a milícia e com a banda podre da polícia (as duas coisas, como sabemos, se confundem). Isso tem de ser investigado normalmente e punido caso se comprove a culpa dos suspeitos.

6 – A imprensa deveria dar destaque apenas às medidas patrióticas do governo e não deveria criticá-lo, nem mesmo quando ele age contra as leis e a Constituição. Todas as críticas dos meios de comunicação (operados por jornalistas comunistas) são fake news para prejudicar o país atingindo o legítimo presidente eleito pelo povo.

Não há democracia sem imprensa livre. Ponto. A imprensa (designação tradicional para o conjunto dos meios de comunicação) não deve fazer ou não fazer nada que interesse ao governo. Livre quer dizer: independente do governo – que não pode persegui-la, censurá-la ou tentar influenciá-la usando criminosamente verbas públicas de publicidade ou meios administrativos para favorecer alguns veículos ou prejudicar outros de acordo com seus próprios interesses políticos.

Não pode haver interferência governamental nos meios de comunicação e nem perseguição ou apadrinhamento de jornalistas, comentaristas e analistas políticos. Já há sinais de que isso começou a acontecer no governo Bolsonaro, que, além de manipular as mídias sociais, resolveu agora investir contra profissionais de comunicação (pedindo a cabeça de alguns, ou seja, pressionando seus empregadores para demitir jornalistas que criticam o governo), nem para favorecer algumas empresas alinhadas ao governo (por exemplo, incluindo apenas algumas e excluindo as demais de entrevistas coletivas com o presidente sob o argumento de que são contrárias ao governo ou produtoras de fake news).

Nas democracias não é proibido ser capitalista ou comunista. Ninguém deve ser proibido de pensar, divulgar ou ensinar o que quiser. Ninguém deve pensar sob comando. Como escreveu Baruch de Spinoza (1670) – um dos teóricos da reinvenção da democracia pelos modernos – “o mais violento dos Estados é aquele que nega aos indivíduos a liberdade de dizer e de ensinar o que pensam” e “deve ser permitida a liberdade de pensamento, que é sem dúvida uma virtude e não pode reprimir-se. Acresce ainda que ela não provoca nenhum inconveniente que não possa… ser evitado pela autoridade dos magistrados”. Ou seja, nesta matéria, o único dever do cidadão é respeitar as leis, ainda que lhe seja também facultado transgredi-las arcando com as consequências de seus atos.

7 – O povo brasileiro, composto pelas pessoas de bem e de direita, deve obrigar as instituições a fazer o certo e o certo é o que propõe o presidente Bolsonaro. O povo brasileiro é aquele que foi às ruas no dia 26 de maio (os que se manifestaram no dia 15 de maio, embora em maior quantidade, não são o povo e sim idiotas úteis e imbecis manipulados por professores comunistas).

Há aqui várias mentiras. Em primeiro lugar “o povo brasileiro” não é o povo que votou em Bolsonaro (como vimos acima), nem o povo que apoia Bolsonaro comparecendo em manifestações chapa-branca convocadas por ele, nem, muito menos, os fanáticos bolsonaristas. Todos esses são parcelas minoritárias da população do país.

Segundo algumas estimativas, o comando e os hubs (com 1 grau de separação) da rede descentralizada bolsonararista tem cerca 50 pessoas (no máximo 100, vá-la). Os militantes bolsonaristas, ativistas full time (com 2 e 3 graus de separação), não ultrapassam 50 mil pessoas. A base social colonizada pelo bolsonarismo chega no máximo a 5 milhões de pessoas, muito menor, portanto, do que o tamanho da base social total (composta por setores médios e – atenção! – não pelos pobres que compõem a imensa maioria: 60 a 80% da população) predisposta, por interesses sócio-econômicos e outros fatores identitários, a se deixar influenciar pelo discurso bolsonarista, a qual deve perfazer entre 20 a 30 milhões de pessoas. E esses números ficam muito mais longe, ainda, dos eleitores de Bolsonaro, que não chegaram a 58 milhões de pessoas (39% do eleitorado).

Assim, dos 58 milhões que votaram em Bolsonaro temos apenas cerca de 5 milhões de pessoas cuja consciência foi colonizada pelo bolsonarismo. Ou seja, quando Bolsonaro diz “o povo me apoia”, está simplesmente mentindo.

A segunda mentira é que o povo seria composto por “pessoas de bem e de direita”. Não há pessoas do bem (as que apoiam Bolsonaro) e pessoas do mal (as que são contra ele). As pessoas, tenham posições políticas consideradas de direita ou de esquerda (e a maioria não tem nada disso), são simplesmente pessoas que podem cometer boas ações e más ações, dependendo das circunstâncias e de uma variedade de outros fatores. Ninguém é, intrinsecamente ou por natureza, inteiramente bom ou mau.

A terceira mentira, já comentada, é que o que é “certo” é o que pensa e propõe Bolsonaro e os bolsonaristas (que não comandam senão 5 milhões de pessoas e que podem expressar os interesses e os desejos de, no máximo, 30 milhões de pessoas, num país de mais de 200 milhões). Vencer uma disputa por maioria eleitoral (39% do colégio eleitoral) não confere ao eleito o atributo de dizer o que é certo e o que é errado. Se faz isso é um usurpador em termos político-morais.

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