Sob o pretexto de defender a Lava Jato, a reforma da Previdência e o pacote anticrime, houve ontem mais uma manifestação de apoio ao governo. Foi meia-boca.
Os democratas sempre desconfiamos de protestos a favor, manifestações chapa-branca, de apoio a governantes, seja aqui, na Venezuela, na China ou na Rússia. Quem já foi eleito não precisa disso, a menos que queira usar as massas para acuar as instituições de sorte a neutralizá-las.
Vejamos os 10 pontos principais que caracterizam o ato de 30 de junho como um espasmo antidemocrático:
1 – Não foi um swarming, um enxameamento de multidões, com uma dinâmica emergente e sim um convescote de convertidos (como aquelas marchas de evangélicos puxados pelo nariz por seus pastores vigaristas). Além disso, o comparecimento dos fiéis está caindo. Até agora foram quatro as manifestações de rua ocorridas durante o governo Bolsonaro. Os números, do G1, falam por si: 1) Dia 15 de maio: protesto, em grande parte espontâneo, contra o corte de verbas na educação | 222 cidades. 2) Dia 26 de maio: manifestação chapa-branca bolsonarista (ou protesto a favor de Bolsonaro e para atacar o Congresso e o STF) = 156 cidades. 3) Dia 30 de maio: manifestação contra a reforma da Previdência instrumentalizada pela esquerda = 136 cidades. 4) Dia 30 de junho: segunda manifestação chapa-branca (para apoiar Bolsonaro, atacar o Congresso e o STF e cultuar a personalidade do herói Moro) = 88 cidades.
2 – Tivemos, assim, mais um protesto a favor, típico de regimes autoritários que levam seus esbirros para as ruas. E quem compunha o grosso dos contingentes que pontificaram nas 88 cidades? Viu-se alguns bolsominions típicos (de óculos escuros), viu-se uns fortinhos de academia, viu-se uma multidão de tiazinhas do zap e de aposentados meio histéricos.
Não se viu propriamente o chamado povo brasileiro, na sua diversidade, e sim parte dos setores médios que são “o povo” do Bolsonaro. O “povo” de Bolsonaro, que compareceu ontem mais uma vez às ruas para fazer um protesto a favor, foi das classes A e B, na sua maioria gente madura, com mais de 40 anos. Pode-se até fazer um exercício: basta examinar todas as fotos que se conseguir encontrar da manifestação e contar a porcentagem de pobres, negros e jovens que possam ser identificados. O resultado, provavelmente, não chegará a 10%. Depois é bom comparar tal resultado com a porcentagem desses setores na população total do Brasil.
3 – A pauta programática da manifestação – que alguns chamam de “virtuosa” – foi mero pretexto. A reforma da Previdência será aprovada pelo Congresso (já há maioria para isso). O projeto anticrime (retiradas as ilegalidades, como a legítima defesa preventiva e a justiça policial preemptiva) também será aprovado pelo parlamento sem grandes dificuldades. Tudo isso foi desculpa dos bolsonaristas para atacar as instituições da democracia. Não devemos nos iludir. Esses ataques da manifestação pelega de ontem contra o Congresso e o STF são comandados pela família Bolsonaro. Não há alas extremistas do bolsonarismo agindo à revelia de Bolsonaro.
4 – O que mais se viu ontem foi o endeusamento de Moro (tratado como herói ou super-homem, que nunca falha). Ora… Moro, agora auxiliar de Bolsonaro, é um ator político como qualquer outro. Não pode estar imune à críticas.
5 – Viu-se ontem também ataques ao Congresso, pedidos de demissão de ministros do STF e revogação da PEC da Bengala (o cúmulo da cara de pau: uma proposta para Bolsonaro poder fazer maioria no tribunal). Isso não foi uma maluquice qualquer cometida por algum extremista ou radical infiltrado. Teve até general de alto escalão do governo discursando raivosamente em cima de palanque. No relato publicado pela Veja (mas há gravação), “o general [Augusto Heleno] subiu em um carro de som, onde também estava o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e fez um discurso acalorado no ato de apoio ao ex-juiz da Lava Jato, e afirmou ainda ser uma “calhordice” querer transformar o colega de herói nacional para acusado. “O ministro Moro teve a coragem de abandonar 22 anos de magistratura para se entregar à pátria sem ganhar nada. E esse homem está sendo colocado na parede para tirarem da cadeia um bando de canalhas que afundaram o país”, disse, bastante festejado pelo público presente. O ato deste domingo foi convocado após virem à tona conversas atribuídas a Moro e integrantes da Lava Jato que reforçam as suspeitas de que o ex-juiz agiu com parcialidade no julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Acho que é uma calhordice quererem colocar o ministro Sergio Moro na situação de julgado ao invés de ser juiz. Estão querendo inverter os papéis e transformar um herói nacional num acusado”, falou Heleno aos manifestantes. Eduardo Bolsonaro complementou: “Alguém aí gosta de bandido, alguém aqui é amigo de bandido? (…) Jair Bolsonaro já falou, Sergio Moro não sai. Nosso total apoio ao ministro Sergio Moro”, discursou um dos filhos do presidente da República”. Caberia perguntar: o Exército brasileiro perdeu completamente o juízo? Está realmente disposto a investir numa guerra civil fria que dilacerará o país? Ou se desvencilha dos arroubos autoritários do general Heleno (essa história de reserva é conversa para boi dormir) ou vai se desmoralizar.
6 – Viu-se até pedidos de prisão e de deportação do jornalista Glenn Greenwald, pelo fato do Intercept Brasil estar divulgando diálogos pouco republicanos de Moro com a força-tarefa da Lava Jato.
7 – E não se viu nada – nem um miserável cartaz ou faixa, nem um discurso, nem um pio – sobre o caso Queiroz-Bolsonaros, nem sobre o ministro do Turismo, nem mesmo gozações (que são próprias de manifestações populares mais espontâneas) sobre os 39 Kg de cocaína no avião presidencial.
8 – E também não se disse uma palavra sobre o óbvio: a inépcia do governo para combater o desemprego e impulsionar o crescimento econômico.
9 – Ou seja, foi uma manifestação tipicamente chapa-branca, de sequazes, organizada pela família Bolsonaro e pelos bolso-lavajatistas, com a contribuição de organizações perdidas no espaço, como o MBL (que disputa com o bolsonarismo, pedindo pelo amor de deus para ter um lugar ao sol na “nova” direita) e como o Vem Pra Rua (hoje degenerado como uma força auxiliar do lavajatismo), com o apoio de militares da ala mais asquerosa da ditadura (como o general Augusto Heleno, antigo auxiliar de Sylvio Frota que agora virou militante bolsonarista).
10 – Ora, o presidente Bolsonaro já foi eleito. Não precisa manter o povo nas ruas a seu favor. A menos que esteja querendo acuar as instituições para que elas não possam mais cumprir o seu papel em uma democracia que é o de controlar o poder. As instituições existem precipuamente para isso. São parte do sistema imunológico da democracia que Bolsonaro e o bolsonarismo querem desativar. Portanto, o que aconteceu ontem (30/06/2019) foi mais um ataque direto às instituições do Estado democrático de direito.
Uma nota. A presença do general Augusto Heleno, chefe da casa militar (atualmente chamada de Gabinete de Segurança Institucional), na manifestação do dia 30 de junho dos bolso-lavajatistas, fazendo discurso de guerra em palanque, com voz de comando, ultrapassa um limite: atravessa as margens do que é legítimo em uma democracia. Escala a polarização. Perigo à vista! Acordem democratas.