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Comentários a ‘O Fascínio de Platão’ de Karl Popper – Capítulo 5

No dia 25 de março de 2019 os inscritos no programa Novos Pensadores começaram a se debruçar sobre o primeiro volume de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper (1945), intitulado O Fascínio de Platão.

Entender as razões do fascínio de Platão é fundamental para a aprendizagem democrática.

Como uma canja para os que não estão fazendo o programa vamos publicar aqui os textos originais de Popper – com destaques em vermelho e os comentários provocativos em azul – que geraram conversações democráticas entre os participantes do curso.

Já publicamos os comentários à Introdução do primeiro volume. E também os comentários aos dois primeiros capítulos. E, em seguida, os comentários ao terceiro capítulo e os comentários ao quarto capítulo. Segue abaixo o capítulo 5.

O FASCÍNIO DE PLATÃO

Em favor da Sociedade Aberta (cerca de 430 A. C.):

“Embora somente poucos possam dar origem a uma politica, somos todos capazes de julgá-la”.

Péricles de Atenas

Contra a Sociedade Aberta (cerca de 80 anos depois):

“O maior de todos os princípios é que ninguém, seja homem ou mulher, deve carecer de um chefe. Nem deve a mente de qualquer pessoa ser habituada a permitir-lhe fazer ainda que a menor coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra como em meio à paz, porém, deve ela dirigir a vista para seu chefe e segui-lo fielmente. E mesmo nas mais ínfimas questões deve manter-se em submissão a essa chefia. Por exemplo, deve levantar-se, ou mover-se, ou lavar-se, ou tomar refeições… apenas se lhe for ordenado que o faça. Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se totalmente incapaz disso”.

Platão de Atenas

CAPÍTULO 5

NATUREZA E CONVENÇÃO

PLATÃO não foi o primeiro a encarar os fenômenos sociais com o espírito de investigação científica. O início da ciência social recua, pelo menos, à geração de Protágoras, o primeiro dos grandes pensadores que se chamavam “sofistas”. Assinala-se pela verificação da necessidade de distinguir entre dois elementos diferentes no ambiente do homem: seu ambiente natural e seu ambiente social. Esta é uma distinção difícil de fazer e apreender, como se pode inferir do fato de que mesmo hoje não se acha ela claramente estabelecida em nossos espíritos. Tem sido discutida desde o tempo de Protágoras. Parece que a maioria dentre nós tem forte inclinação para aceitar as peculiaridades de nosso ambiente social como se fossem “naturais”.

Uma das características da atitude mágica de uma sociedade tribal primitiva, ou “fechada”, é a de que ela vive num círculo encantado (1) de tabus imutáveis, de leis e costumes considerados inevitáveis como o nascer do sol, ou o ciclo das estações, ou similares e evidentes acontecimentos regulares da natureza. E somente depois que tal “sociedade fechada” mágica de facto se desmorona é que se pode desenvolver uma compreensão teórica da diferença entre “natureza” e “sociedade”.

Essa distinção é da maior importância. O ‘social’ é uma outra criação.

I

Uma análise desse desenvolvimento requer, creio eu, clara apreensão de uma distinção importante. É a distinção entre (a) leis naturais, ou leis da natureza, tais como as leis que regulam os movimentos do sol, da lua e dos planetas, a sucessão das estações, etc., ou a lei da gravidade, ou, digamos, as leis da termodinâmica; e, de outro lado, (b) leis normativas, ou normas, ou proibições, ou mandamentos, isto é, regras tais que proíbem ou exigem certos modos de conduta, como por exemplo os Dez Mandamentos, ou as regras legais reguladoras do processo de eleição dos Membros do Parlamento, ou as leis que formavam a Constituição Ateniense.

Como a discussão de tais assuntos muitas vezes é viciada pela tendência a apagar essa distinção, não serão demais umas poucas palavras a respeito. Uma lei em certo sentido (a) — uma lei natural — descreve um fato regular, estrito e invariável, que ou efetivamente se realiza na natureza (e nesse caso a lei é uma afirmativa verdadeira), ou não se realiza (e nesse caso é falsa). Quando não sabemos se uma lei da natureza é verdadeira ou falsa e desejamos chamar a atenção para a nossa incerteza, muitas vezes a denominamos “uma hipótese”. Uma lei da natureza é inalterável; não tem exceções. E se verificarmos que algo sucedeu que a contradiz, então não diremos que existe uma exceção, ou uma alteração da lei, e sim que nossa hipótese foi refutada, pois se comprovou que a estrita regularidade suposta não se manteve, ou, em outras palavras, que a suposta lei da natureza não era uma verdadeira lei natural, mas uma afirmação falsa. Sendo inalteráveis as leis da natureza não podem ser quebradas nem reforçadas. Estão fora do controle humano, embora talvez possam ser por nós usadas. para fins técnicos, e ainda que nos cause dificuldades não as conhecer, ou ignorá-las.

Tudo é muito diferente se nos voltarmos para as leis da espécie (b), isto é, para as leis normativas. Seja ou não uma disposição legal ou um mandamento moral, uma lei normativa pode ser reforçada pelos homens. É, também, alterável. Pode às vezes ser descrita como boa ou má, certa ou errada, aceitável ou inaceitável; mas só em sentido metafórico poderá ser chamada “verdadeira” ou “falsa”, pois não descreve um fato, mas estabelece diretivas para nosso comportamento. Se tiver algum conteúdo ou significação, poderá ser violada; e, se não puder ser violada, então será supérflua e sem significação. “Não gastes mais dinheiro do que possuis”, eis uma significativa lei normativa; pode ser significativa como regra moral ou legal, e tão necessária é quanto mais é violada. “Não tires de tua bolsa mais dinheiro do que o que ela contém” pode ser considerado, quanto ao fraseado, também uma lei normativa: mas ninguém consideraria seriamente tal regra como parte significativa de um sistema legal ou moral, pois ela não pode ser violada. Se uma lei normativa significativa é observada, isso sempre se deve ao controle humano, a ações e decisões humanas. Deve-se, costumeiramente, à decisão de introduzir sanções, de punir ou refrear os que infringem a lei.

Creio, em conjunto com grande número de pensadores e especialmente com muitos cientistas sociais, que a distinção entre uma lei do sentido (a), isto é, afirmações que descrevem fatos regulares da natureza, e uma lei do sentido (b), isto é, normas tais como proibições ou mandamentos, é uma distinção fundamental; essas duas espécies de lei pouco mais têm em comum do que o nome. Mas esta opinião de modo algum é geralmente aceita; ao contrário, muitos pensadores acreditam que há normas — proibições ou mandamentos — que são “naturais”, no sentido de serem estabelecidas de acordo com leis naturais do sentido (a). Dizem, por exemplo, que certas normas legais estão de acordo com a natureza humana e, portanto, com psicológicas leis naturais do sentido (a), ao passo que outras normas legais podem ser contrárias à natureza humana. E acrescentam que essas normas que se demonstra estarem de acordo com a natureza humana realmente não diferem muito das leis naturais do sentido (a). Dizem outros que as leis naturais do sentido (a) são realmente muito semelhantes às leis normativas, pois foram estabelecidas pela vontade ou decisão do Criador do Universo — ponto de vista que, sem dúvida, está por trás do uso da palavra “lei”, originalmente normativa, para designar as leis da espécie (a). Todas essas opiniões podem ser dignas de discussão. A fim, porém, de discuti-las, é mister primeiramente distinguir entre as leis do sentido (a) e as leis do sentido (b), e não confundir, por meio de má terminologia, a exposição do problema. Assim, reservaremos a expressão “leis naturais” exclusivamente para as leis do tipo (a), e recusaremos aplicar tal expressão a quaisquer normas que se proclame serem “naturais”, num ou noutro sentido. A confusão é inteiramente desnecessária, visto como é fácil falar de “direitos e deveres naturais” ou de “normas naturais” se quisermos acentuar o caráter “natural” de leis do tipo (b).

II

Creio necessário, para a compreensão da sociologia de Platão, considerar como se pode ter desenvolvido a distinção entre leis naturais e normativas. Discutirei primeiramente o que parece ter sido o ponto de partida e o passe final do desenvolvimento, e depois quais parecem ter sido três passos intermediários, pois todos desempenham um papel na teoria de Platão. O ponto de partida pode ser descrito como um monismo ingênuo. Podemos considerá-lo característico da “sociedade fechada”. O último passo, que denominarei dualismo crítico (ou convencionalismo critico), é característico da “sociedade aberta”. O fato de ainda existirem muitos que evitam dar esse passo pode ser tomado como indicação de ainda nos acharmos, em meio da transição da sociedade fechada para a aberta (em relação a tudo isso, confira-se o Capítulo 10.)

O ponto de partida, que chamei “monismo ingênuo”, é a etapa em que a distinção entre as leis naturais e normativas ainda não foi feita. Experiências desagradáveis são os meios pelos quais o homem aprende a ajustar-se ao seu ambiente. Nenhuma distinção se faz entre as sanções impostas por outros homens, se for quebrado um tabu normativo, e as desagradáveis experiências sofridas no ambiente natural. Podemos, além disso, distinguir nesta etapa duas possibilidades. Uma pode ser denominada naturalismo ingênuo. Sente-se, em tal etapa, que as coisas regulares, naturais ou convencionais, estão além da possibilidade de toda e qualquer alteração. Creio, porém, que essa etapa não passa de uma probabilidade abstrata, possivelmente nunca realizada. Mais importante é uma etapa que podemos chamar convencionalismo ingênuo e na qual os fatos regulares, tanto naturais como normativos, são experimentados como expressões das decisões de homens semelhantes a deuses ou demônios, dos quais dependem. Assim o ciclo das estações, ou as peculiaridades dos movimentos do sol, da lua e dos planetas, podem ser interpretados como obedecendo às “leis”, ou “decretos”, ou “decisões”, que “governam o céu e a terra”, estabelecidos e “proferidos no princípio pelo deus criador” (2). É compreensível que os que pensam desse modo possam acreditar que mesmo as leis naturais são abertas a modificações, em certas circunstâncias excepcionais, que com a ajuda de práticas mágicas possa o homem às vezes influenciá-las e que os fatos naturais regulares são sustentados por sanções, como se fossem normativos. Esse ponto é bem ilustrado pelo dito de Heráclito: “O sol não ultrapassará a medida de seu caminho; do contrário, as deusas do Destino, ancilas da Justiça, saberão como encontrá-lo”.

O desmoronamento do tribalismo mágico liga-se estreitamente à verificação de que os tabus são diferentes em várias tribos, são impostos e mantidos à força pelo homem e podem ser violados sem desagradáveis repercussões desde que o infrator consiga escapar às sanções prescritas por seus semelhantes. Essa verificação se acelera quando se observa que as leis são alteradas e feitas por legisladores humanos. Penso não só em legisladores tais como Solon, mas também nas leis feitas e reforçadas pelo povo comum das cidades democráticas. Essas experiências podem levar a uma diferenciação consciente entre as leis normativas, prescritas pelo homem, baseadas em convenções ou decisões, e as coisas regulares naturais, que ficam além do poder humano. Quando se compreende claramente essa diferenciação, podemos descrever a posição alcançada como um dualismo crítico, ou convencionalismo crítico. No desenvolvimento da filosofia grega, esse dualismo de fatos e normas anuncia-se em termos de oposição entre natureza e convenção (3).

A despeito do fato de haver sido essa posição atingida há longo tempo pelo sofista Protágoras, contemporâneo mais velho de Sócrates, é ela ainda tão pouco entendida que parece necessário explicá-la em certas minúcias. Primeiramente, não devemos pensar que o dualismo crítico implique uma teoria da origem histórica das normas. Nada tem a ver com a asserção histórica, evidentemente insustentável, de que as normas em primeiro lugar foram conscientemente feitas ou introduzidas pelo homem, em vez de terem sido achadas por ele como simplesmente existentes (sempre que ele começou a ser capaz de achar qualquer coisa dessa espécie). Nada tem, portanto, com a asserção de que as normas se originam do homem, e não de Deus, nem subestima a importância das leis normativas. E muito menos tem algo a ver com a afirmativa de que as normas, por serem convencionais, isto é, feitas pelo homem, sejam em consequência “simplesmente arbitrárias”. O dualismo crítico apenas assevera que normas e leis normativas podem ser feitas e alteradas pelo homem, e mais especialmente por uma decisão ou convenção no sentido de observá-las ou alterá-las, sendo portanto o homem moralmente responsável por elas, não talvez pelas normas que encontra existentes na sociedade quando começa a refletir sobre elas, mas pelas normas que está capacitado a tolerar desde que verificou poder fazer algo para mudá-las. As normas são feitas pelo homem no sentido de que não podemos censurar a ninguém por elas, nem à natureza nem a Deus, mas só a nós mesmos. Cabe-nos aperfeiçoá-las tanto quanto possamos, se acharmos que merecem objeções, Esta última observação implica que, ao descrever as normas como convencionais, não quero dizer que elas devam ser arbitrárias, ou que tanto faz uma coleção de leis normativas como qualquer outra. Ao dizer que certo sistema de leis pode ser aprimorado, que certas leis podem ser melhores do que outras, implico, antes, que podemos comparar as leis normativas existentes (ou as instituições sociais) a certas normas-padrão que decidimos serem dignas de efetivação. Mesmo esses padrões, porém, são de nossa autoria, no sentido de que nossa decisão em favor deles é uma decisão propriamente nossa e só nós carregamos a responsabilidade por adotá-los. Os padrões não irão ser encontrados na natureza. A natureza consiste de fatos e de regularidades, não sendo em si mesma nem moral nem imoral. Nós é que impomos nossos padrões à natureza, desse modo introduzindo a moral no mundo natural (4), a despeito do fato de sermos parte desse mundo. Somos produtos da natureza, mas esta nos produziu juntamente com a nossa capacidade de alterar o mundo, de prever e planejar o futuro, de tomar decisões de longo alcance pelas quais somos totalmente responsáveis. E contudo as responsabilidades e decisões somente conosco penetram no mundo da natureza.

III

É importante, para compreensão dessa atitude, compreender que tais decisões nunca podem ser derivadas dos fatos (ou de asseverações sobre os fatos), embora sejam referentes a estes. A decisão, por exemplo, de opor-se à escravidão não depende do fato de que todos os homens nascem livres e iguais, de que nenhum homem nasce em cadeias. Pois embora todos nasçamos iguais, alguns homens sempre podem tentar encadear outros e podem mesmo acreditar que devem encadeá-los. Inversamente, se nascessem os homens em cadeias, muitos de nós poderiam exigir que tais cadeias fossem removidas. Ou, para expor a questão mais exatamente: se consideramos um fato como alterável — tal como o fato de que muitas pessoas sofrem de doenças — sempre podemos adotar numerosas atitudes diferentes em relação a esse fato: mais especialmente, podemos decidir fazer uma tentativa para alterá-lo; ou podemos decidir resistir a qualquer tentativa dessa espécie; ou podemos decidir não fazer qualquer intervenção.

Todas as decisões morais se relacionam desse modo a um ou outro fato, especialmente a algum fato da vida social, e todos os fatos (alteráveis) da vida social podem dar origem a muitas decisões diferentes. Isso mostra que as decisões não podem nunca derivar-se desses fatos ou de uma descrição de tais fatos.

Mas igualmente não podem ser derivadas de outra classe de fatos; refiro-me àquelas regularidades naturais que descrevemos com o auxílio das leis naturais. É perfeitamente verdadeiro que nossas decisões devem ser compatíveis com as leis naturais (incluindo as da fisiologia e psicologia humanas), se é que devem produzir efeitos; pois, se forem de encontro a tais leis, simplesmente não se poderão efetivar; uma decisão de que todos devessem trabalhar mais duramente e comer menos, por exemplo, não poderia ser efetivada, além de determinado ponto por motivos fisiológicos, isto é, porque além de determinado ponto seria incompatível com certas leis naturais de fisiologia. Semelhantemente, a decisão de que todos devessem trabalhar menos e comer mais também não poderia ser executada além de certo limite, por várias razões, incluindo as leis naturais da economia. (Como veremos mais adiante, na secção IV deste capítulo, também há leis naturais nas ciências sociais; poderemos chamá-las “leis sociológicas”.)

Certas decisões, assim, podem ser eliminadas como incapazes de execução, porque contradizem determinadas leis naturais (ou “fatos inalteráveis”). Isso não significa, porém, naturalmente, que qualquer decisão possa ser logicamente derivada de tais “fatos inalteráveis”. A situação, antes, é esta seja qual for o fato que encaremos, seja ele alterável ou inalterável, poderemos adotar várias decisões, tais como a de alterá-lo, de protegê-lo contra os que desejarem alterá-lo, de não interferir, etc. Mas se o fato em questão for inalterável, ou porque a alteração é impossível em vista das leis existentes da natureza, ou porque a alteração é por outras razões demasiado difícil para aqueles que desejem alterá-lo, então qualquer decisão de alterá-lo será simplesmente impraticável; realmente, qualquer decisão relativa a tal fato será sem conteúdo nem significação.

O dualismo crítico acentua assim a impossibilidade de reduzir decisões ou normas a fatos; pode, portanto, ser descrito como um dualismo de fatos e decisões.

Tal dualismo, porém, parece estar aberto ao ataque. Pode-se dizer que decisões são fatos. Se decidirmos adotar certa norma, então a tomada dessa decisão é em si mesma um fato psicológico ou sociológico e seria absurdo dizer que nada existe em comum entre tais fatos e outros fatos. E como não se pode duvidar de que nossas decisões relativas à adoção de determinadas normas dependem evidentemente de certos fatos psicológicos — tais como a influência de nossa educação, por exemplo — parece absurdo postular um dualismo de fatos e decisões, ou afirmar que as decisões não podem ser derivadas dos fatos. Tal objeção pode ser respondida indicando-se que podemos falar de uma “decisão” em dois sentidos diferentes. Podemos dizer, de uma decisão, que foi adotada, tomada, alcançada ou resolvida; ou, alternativamente, podemos falar de um ato de decidir e chamar a isso “uma decisão”. Só neste segundo caso poderemos descrever uma decisão como um fato. A situação é análoga em numerosas outras expressões. Em um sentido, podemos falar de certa resolução submetida a determinado concílio e, no outro sentido, o ato realizado pelo concílio ao tomá-la pode ser descrito como a resolução desse concílio. Similarmente, podemos falar de uma proposta ou sugestão que consideramos e, de outro lado, o ato de propor ou sugerir algo pode ser também chamado “proposta” ou “sugestão”. Análoga ambiguidade é bem conhecida no campo das afirmativas descritivas. Consideremos a afirmação: “Napoleão morreu em Santa Helena”. Será útil distinguir essa afirmação do fato que ela descreve e que podemos chamar o fato primário, isto é, o fato de haver Napoleão morrido em Santa Helena. Assim, um historiador, digamos o Sr. A., ao escrever a biografia de Napoleão, pode fazer a afirmação mencionada. Ao fazê-la, está descrevendo o que chamamos o fato primário. Mas há também um fato secundário, que é totalmente diferente do primário, a saber, o fato de que ele fez essa afirmativa. E outro historiador, o Sr. B., ao escrever a biografia do Sr. A., pode descrever esse segundo fato dizendo: “O Sr. A. afirmou que Napoleão morreu em Santa Helena”. O fato secundário, descrito desse modo, é em si mesmo uma descrição. Mas é descrição num sentido da palavra que deve ser distinguido do sentido com que chamamos descrição a afirmativa de que “Napoleão morreu em Santa Helena”. A elaboração de uma descrição, ou de uma afirmação, é um fato sociológico ou psicológico. Mas a descrição feita deve ser distinguida do fato de haver sido feita. Não pode sequer ser derivada desse fato, pois isso significaria que poderíamos deduzir com razão que “Napoleão morreu em Santa Helena” porque “o Sr. A. afirmou que Napoleão morreu em Santa Helena”, o que evidentemente não é possível.

No campo das decisões a situação, é análoga. A tomada de uma decisão, a adoção de uma norma ou padrão é um fato. Mas a norma ou padrão que foi adotado não é um fato. Muitas pessoas concordam com a norma: “não roubarás”; é um fato sociológico. Mas a norma “não roubarás” não é um fato e nunca poderá ser inferida de sentenças descritivas de fatos. Ver-se-á isto mais claramente quando lembrarmos que, com relação a certo fato relevante, são sempre possíveis decisões várias e até mesmo opostas. Por exemplo, em face do fato sociológico de que a maioria das pessoas adota a norma “não roubarás”, é possível decidir adotar essa norma, ou opor-se á sua adoção; é possível encorajar os que adotaram essa norma, ou desencorajá-los e persuadi-los a adotarem outra norma. Em suma: é impossível derivar uma sentença que expõe uma norma ou uma decisão, ou, digamos, uma proposta para determinada política, de uma sentença que expõe um fato. Isto é apenas outro modo de dizer que é impossível derivar normas, decisões ou propostas, de fatos (5).

A afirmativa de que as normas são feitas pelo homem (feitas pelo homem não no sentido de terem sido conscientemente produzidas, mas no sentido de que os homens as podem julgar e alterar, isto é, no sentido de que a responsabilidade por elas é inteiramente nossa) muitas vezes tem sido mal compreendida. Quase todas as incompreensões podem ser rastreadas a uma incompreensão fundamental, a saber, a crença de que “convenção” implica “arbitrariedade”; de que, se somos livres para escolher qualquer sistema de normas que desejemos, então um sistema é precisamente tão bom como qualquer outro. Deve-se, sem dúvida, admitir que a opinião de serem as normas convencionais ou artificiais indica a existência de certo elemento de arbítrio envolvido, isto é, pode haver diferentes sistemas de normas entre as quais não há muito onde escolher (fato que foi devidamente acentuado por Protágoras). Mas a artificialidade de modo algum implica a plena arbitrariedade. Os cálculos matemáticos, por exemplo, ou as sinfonias, ou as peças teatrais são altamente artificiais; daí não se segue que um cálculo, ou sinfonia, ou peça seja tão bom como qualquer outro. O homem criou mundos novos — de linguagem, de música, de poesia, de ciência; e o mais importante deles é o mundo das exigências morais, pela igualdade, pela liberdade, pelo amparo aos fracos (6). Ao comparar o campo da moral com o campo da música ou o da matemática, não desejo afirmar que tais similaridades vão muito longe. Há, mais especialmente, grande diferença entre decisões morais e decisões no campo da arte. Muitas decisões morais envolvem a vida e a morte de outros homens. As decisões no campo da arte são muito menos urgentes e importantes. É enganoso, portanto, dizer que um homem decide pró ou contra a escravatura do mesmo modo por que pode decidir pró ou contra certas obras de música e literatura, ou dizer que as decisões morais são apenas questões de gosto. Nem são simplesmente decisões a respeito de como tornar o mundo mais belo, ou acerca de outros refinamentos dessa espécie; são decisões de muito maior urgência (Sobre tudo isso veja-se também o Capítulo 9.) Nossa comparação apenas pretende mostrar que a consideração de dependerem de nós as decisões morais não significa que elas sejam inteiramente arbitrárias.

A consideração de serem as normas feitas pelo homem é também contestada, bastante estranhamente, por alguns que veem nessa atitude um ataque à religião. Deve-se admitir, sem dúvida, que essa consideração é um ataque a certas formas de religião, a saber: a religião da autoridade cega, da magia e dos tabus. Mas não penso que de modo algum se oponha a uma religião construída sobre a ideia de responsabilidade pessoal e da liberdade de consciência. Tenho em mente, sem dúvida, especialmente o cristianismo, pelo menos como ele é interpretado nos países democráticos, aquele cristianismo que prega, como contra todos os tabus: “Ouvistes que foi dito antigamente… Mas eu vos digo…” — opondo, em cada caso, a voz da consciência à mera obediência formal e ao cumprimento da lei.

Não posso admitir que pensar nas leis éticas como sendo feitas pelo homem, em tal sentido, seja incompatível com o ponto de vista religioso de que elas nos foram dadas por Deus. Historicamente, toda ética indubitavelmente começa com a religião; mas não lido agora com questões históricas. Não indago quem foi o primeiro legislador ético. Só assevero que nós, e somente nós, somos responsáveis pela adoção ou rejeição de certas leis morais sugeridas; somos nós que distinguimos entre os verdadeiros profetas e os falsos profetas. Todas as espécies de normas têm reivindicado serem dadas por Deus. Se aceitamos a ética “cristã” da igualdade, da tolerância e da liberdade de consciência apenas por sua reivindicação de repousar na autoridade divina, então construímos sobre fraca base, pois demasiadas vezes também tem sido reivindicado que a desigualdade é querida por Deus e que não devemos ser tolerantes para com os incréus. Se, contudo, aceitamos a ética cristã, não porque isso nos é ordenado, mas por nossa convicção de que essa é a reta decisão a tomar, então nós é que fizemos a decisão. Minha insistência em que nós é que fazemos as decisões e carregamos a responsabilidade não deve ser tomada como implicando que não possamos, ou não devamos, ser auxiliados pela fé, ou inspirados pela tradição ou pelos grandes exemplos. Nem implica ela que a criação de decisões morais seja simplesmente um processo meramente “natural”, isto é, da ordem dos processos físico-químicos. De fato Protágoras, o primeiro dualista crítico, ensinou que a natureza não conhece normas e que a introdução de normas é devida ao homem, sendo a mais importante das realizações humanas. Também asseverou que “as instituições e convenções foram o que elevou o homem acima dos brutos”, como expõe Burnet (7). Mas, a despeito de sua insistência em que o homem criou as normas, em que é o homem a medida de todas as coisas, acreditava que o homem só podia realizar a criação de normas com auxílio sobrenatural. As normas, ensinava ele, são super-impostas pelo homem ao estado natural ou original das coisas, mas com a ajuda de Zeus. É por mando de Zeus que Hermes dá ao homem uma compreensão da justiça e dá honra; e ele distribui esse dom igualmente a todos os homens. O modo pelo qual a primeira afirmação clara do dualismo abre caminho a uma interpretação religiosa de nosso senso de responsabilidade mostra quão pouco o dualismo crítico se opõe a uma atitude religiosa. Similar modo de encarar o assunto pode ser discernido, creio, no Sócrates histórico (ver o Capítulo 10), que se sentiu compelido, por sua consciência assim como por suas crenças religiosas, a questionar qualquer autoridade, e que procurava normas em cuja justiça podia confiar. A doutrina da autonomia da ética independe do problema da religião, mas é compatível com qualquer religião que respeite a consciência individual, ou talvez mesmo necessária para ela.

IV

E basta no que se refere ao dualismo de fatos e decisões, ou à doutrina da autonomia da ética, primeiramente advogada por Protágoras e Sócrates (8). Ela é, creio, indispensável para uma compreensão razoável de nosso meio social. Isso, porém, naturalmente não significa que todas as “leis sociais’’, isto é, todas as regularidades de nossa vida social sejam normativas e impostas pelo homem. Ao contrário, há também importantes leis naturais da vida social. Para estas parece apropriado o termo leis sociológicas. É justamente o fato de encontrarmos, na vida social, ambas as espécies de leis, naturais e normativas, que toma tão importante distingui-las com clareza.

Ao falar de leis sociológicas, ou leis naturais da vida social, não penso muito nas faladas leis da evolução por que se interessam historicistas tais como Platão, embora, se houvesse tais regularidades de desenvolvimentos históricos, sua formulação devesse certamente cair na categoria das leis sociológicas. Nem penso muito nas leis da “natureza humana”, isto é, nas regularidades psicológicas e sócio-psicológicas do comportamento humano. Tenho, antes, em mente leis tais como as formuladas pelas modernas teorias econômicas, por exemplo, a teoria do comércio internacional, ou a teoria do ciclo de comércio. Estas e outras importantes leis sociológicas estão ligadas ao funcionamento das instituições sociais. (Ver Capítulos 3 e 9). Tais leis desempenham em nossa vida social um papel correspondente ao, digamos, desempenhado na engenharia mecânica pelo princípio da alavanca. Pois necessitamos de instituições, como de alavancas, se quisermos realizar qualquer coisa superior à força de nossos músculos. Como máquinas, as instituições multiplicam nosso poder para o bem e o mal. Como máquinas, necessitam de supervisão inteligente por parte de alguém que compreenda seu modo de funcionar e, acima de tudo, seu objetivo, pois não as podemos construir para que trabalhem de todo automaticamente. Além do mais, sua construção requer certo conhecimento das regularidades sociais que impõem limitações ao que pode ser realizado pelas instituições (9). (Tais limitações são algo análogas, por exemplo, à lei de conservação da energia, que conduz à asseveração de não podermos construir uma máquina de movimento.) Fundamentalmente, porém, as instituições são sempre feitas estabelecendo-se a observância de certas normas, prescritas com certo alvo em mente. Isto é certo especialmente para as instituições conscientemente criadas; mas mesmo aquelas — a vasta maioria — que surgem como resultados não premeditados das ações humanas (ver Capítulo 14) são consequências indiretas de ações propositadas de uma ou outra espécie; e seu funcionamento depende, amplamente, da observância de normas. (Mesmo os engenhos mecânicos são feitos, por assim dizer, não só de ferro, mas pela combinação de ferro e normas, isto é, pela transformação de coisas físicas, mas de acordo com certas regras normativas, principalmente seu plano ou desenho). Nas instituições, as leis normativas e as leis sociológicas, isto é, naturais, estreitamente se entretecem, sendo portanto impossível compreender o funcionamento das instituições sem a capacidade de distinguir entre essas duas espécies de leis. (Estas observações, têm o propósito de sugerir certos problemas, mais que o de dar soluções. Especialmente a analogia mencionada entre instituições e máquinas não deve ser interpretada como propondo a teoria de que as instituições sejam máquinas, nalgum sentido essencialista. Naturalmente, elas não são máquinas. E embora aqui se proponha a tese de que podemos obter resultados úteis e interessantes ao indagarmos se uma instituição serve a algum propósito, e a quais propósitos pode servir, não asseveramos que toda instituição sirva a algum propósito definido, a seu propósito essencial, por assim dizer).

Além das questões lógicas, metodológicas e epistemológicas, o mais importante nos tópicos deste post é a explicitação da posição de Protágoras. Sobre isso: muita atenção para a nota 7 (abaixo).

Captar o genos da democracia não é trivial. Dificilmente o sentido desse modo de regulação de conflitos poderá ser perfeitamente percebido sem que se examine as diferenças entre platonismo e protagorismo.

Karl Popper (1945) sacou perfeitamente o que há de fundamental nessa diferença. Na nota 7 ao capítulo 5 do primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos ele escreveu:

“A diferença entre platonismo e protagorismo talvez possa ser assim expressa em resumo:

Platonismo | Há uma ordem de justiça “natural” inerente ao mundo, isto é, a ordem original ou primeira em que a natureza foi criada. Assim, o passado é bom e qualquer desenvolvimento que leva a novas normas é mau.

Protagorismo | O homem é o ser moral neste mundo. A natureza não é moral nem imoral. Assim, é possível ao homem melhorar as coisas”.

Os que se dizem conservadores deveriam mergulhar no assunto. Russell Kirk (1993), por exemplo, nos seus “Dez princípios conservadores”, escreveu o seguinte:

“Primeiramente, o conservador acredita que existe uma ordem moral duradoura. Que a ordem está feita para o homem, e o homem é feito para ela: a natureza humana é uma constante, e as verdades morais são permanentes.

A palavra ordem significa harmonia. Há dois aspectos ou tipos de ordem: a ordem interna da alma, e a ordem exterior da comunidade. Há vinte e cinco séculos, Platão ensinou esta doutrina, mas mesmo os letrados de hoje em dia encontram dificuldades em compreender. O problema da ordem tem sido uma preocupação central dos conservadores desde que o termo conservador passou a fazer parte da política”.

Ora, Platão não era nem conservador e sim retrogradador (reacionário). Sua utopia era uma retropia, uma tentativa de voltar ao Estado perfeito ideal, que era uma autocracia rigorosa (e como não se tinha acesso a esse Estado, teceu uma narrativa para enaltecer o regime ditatorial de Esparta – que, segundo ele, estava mais próximo do modelo não corrompido pelo fluxo temporal que degenera todas as coisas à medida que elas se afastam da sua origem). Aqui já reconhecemos alguns traços das filosofias da corrupção.

Pode-se dizer que é impossível estabelecer uma separação clara entre conservadorismo e reacionarismo. E que o ódio aos sofistas (como Protágoras) manifestado pelos que querem se dizer conservadores nunca passou, na verdade, de um ódio à democracia.

V

Como acima indicamos, há muitos passos intermediários no desenvolvimento de um monismo ingênuo ou mágico para um dualismo crítico que claramente compreenda a distinção entre normas e leis naturais. Muitas dessas posições intermediárias surgem da incompreensão de que, se uma norma é convencional ou artificial, deve ser inteiramente arbitrária. Para compreender a posição de Platão, que combina elementos de todas elas, é mister fazer um exame das três mais importantes dessas posições intermediárias. São elas: 1) o naturalismo biológico; 2) o positivismo ético ou jurídico; e 3) o naturalismo psicológico ou espiritual. É interessante notar que cada uma dessas posições tem sido usada para defender opiniões éticas que radicalmente se opõem a cada outra; mais especialmente, para defender a adoração do poder e para defender os direitos dos fracos.

1) O naturalismo biológico, ou mais precisamente, a forma biológica do naturalismo ético é a teoria de que, a despeito do fato de serem arbitrárias as leis morais e as leis dos estados, há algumas eternas e imutáveis leis da natureza das quais podemos derivar tais normas. Os hábitos alimentares, isto é, o número das refeições e a espécie de alimentos tomados são um exemplo da arbitrariedade das convenções, pode arguir o naturalista biológico; contudo, há indubitavelmente nesse campo certas leis naturais. Por exemplo, se tomar alimento insuficiente, ou demasiado, um homem morrerá. Parece justo, pois, que assim como há realidades por trás das aparências, também por trás de nossas convenções arbitrárias há certas leis naturais imutáveis, especialmente as leis da biologia.

O naturalismo biológico tem sido usado não só para defender o igualitarismo, como também para sustentar a doutrina anti-igualitária do domínio dos fortes. Um dos primeiros a utilizarem esse naturalismo foi o poeta Píndaro, que se serviu dele para apoiar a teoria de que os fortes deveriam governar. Proclamou (10) a existência de uma lei, válida em toda a natureza, pela qual o mais forte faz com o mais fraco o que lhe aprouver. Assim, as leis que protegem os fracos não são apenas arbitrárias, mas distorções artificiais da verdadeira lei natural, segundo a qual os fortes devem ser livres e os fracos devem ser seus escravos. Tal ponto de vista é amplamente discutido por Platão; é atacado no Gorgias, diálogo ainda muito influenciado por Sócrates; na República, é posto na boca de Trasímaco e identificado com o individualismo ético (ver o Capitulo seguinte); nas Leis, mostra-se Platão menos adverso à opinião de Píndaro, mas ainda a contrasta com o governo dos mais sábios, que diz ele, é melhor principio e bem mais de acordo com a natureza (ver citação mais adiante neste Capítulo).

O primeiro a apresentar uma versão humanitária ou igualitária do naturalismo biológico foi o sofista Antifonte. A ele também se deve a identificação da natureza com a verdade e da convenção com a opinião (ou “opinião enganosa” (11) ). Antifonte é um naturalista radical. Acredita que, na maioria, as normas não são simplesmente arbitrárias, mas diretamente contrárias à natureza. As normas, diz ele, são impostas exteriormente, ao passo que as regras da natureza são inevitáveis. É desvantajoso e mesmo perigoso violar as normas impostas pelo homem, se a violação for observada por aqueles que as impuseram; mas não há necessidade íntima ligada a elas e ninguém precisa envergonhar-se por violá-las; vergonha e punição apenas são sanções arbitrariamente impostas de fora. Sobre esta crítica da moral convencional, Antifonte baseia uma ética utilitária. “Das ações aqui mencionadas, verificar-se-ia serem muitas contrárias à natureza. Pois envolvem mais sofrimento onde deveria haver menos e menos prazer onde poderia haver maior, e dano onde é desnecessário” (12). Ao mesmo tempo, ensinava ele a necessidade de autocontrole. Seu igualitarismo é assim formulado: “Reverenciamos e adoramos os nascidos em nobreza, mas não os mal nascidos. Isto são hábitos bárbaros. Pois, quanto a nossos dons naturais, estamos todos no mesmo pé, em todos os sentidos, sejamos gregos ou bárbaros… Todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas”.

Igualitarismo semelhante era apregoado pelo sofista Hipias, que Platão figura como dirigindo-se assim a seu auditório: “Senhores, creio que somos todos parentes, amigos e compatriotas, se não pela lei convencional, pela natureza. Pois, pela natureza, semelhança é expressão de parentesco, mas a lei convencional, tirana da humanidade, compele-nos a fazer muita coisa contra a natureza” (13). Esse espírito se vinculava ao movimento ateniense contra a escravatura (mencionado no Capítulo 4) a que Eurípedes deu expressão: “Este simples nome lança vergonha sobre o escravo, que pode ser excelente em todos os aspectos e verdadeiramente igual ao homem nascido livre”. Em outra parte, diz ele: “A lei da natureza, para o homem, é a igualdade”. E Alcidamas, discípulo de Górgias e contemporâneo de Platão, escreveu: “Deus fez livres todos os homens; nenhum homem é escravo por natureza”. Opiniões semelhantes são também expressas por Licofronte, outro membro da escola de Górgias: “O esplendor do nascimento nobre é imaginário e suas prerrogativas se baseiam sobre meras palavras”.

Importante registro de Popper. Um movimento humanitário, anti-escravagista, surgiu no meio dos sofistas.

Reagindo contra esse grande movimento humanitário — o movimento da “Grande Geração”, como irei chamá-lo mais adiante (Capitulo 10) — Platão e seu discípulo Aristóteles apresentaram a teoria da desigualdade biológica e moral do homem. Gregos e bárbaros são desiguais por natureza; a oposição entre eles corresponde àquela entre os senhores naturais e os escravos naturais. A desigualdade natural dos homens é uma das razões para que vivam juntos, pois seus dons naturais são complementares. A vida social começa com a desigualdade natural e deve continuar sobre esse alicerce. Discutirei mais adiante estas doutrinas com maior minúcia. Aqui, servem elas para mostrar como o naturalismo biológico pode ser utilizado para sustentar as mais divergentes doutrinas éticas. À luz de nossa análise anterior sobre a impossibilidade de basear normas em fatos, esse resultado não é inesperado.

Tais considerações, contudo, talvez não sejam suficientes para derrotar uma teoria tão popular como a do naturalismo biológico; proponho, assim, duas críticas mais diretas. Primeiramente, deve-se admitir que certas formas de comportamento podem ser descritas como mais “naturais” do que outras formas; por exemplo, andar nu ou comer apenas alimentos crus; e certas pessoas julgam que isso por si mesmo justifica a escolha dessas formas. Mas, neste sentido, não é certamente natural interessar-se alguém pela arte, pela ciência, ou mesmo por argumentos em favor do naturalismo. A escolha de conformidade com a “natureza” como padrão supremo leva, em última análise, a consequências que poucos estarão preparados para enfrentar; não conduz a uma forma de civilização mais natural, mas à bestialidade (14). A segunda critica é mais importante. O naturalista biológico admite que pode deduzir suas normas das leis naturais que determinam as condições de saúde, etc., quando não acredita ingenuamente que não necessitamos de adotar norma alguma, bastando-nos viver simplesmente de acordo com as “leis da natureza”. Despreza o fato de que faz uma escolha, toma uma decisão; de que é possível haver outras pessoas que prezam certas coisas mais do que a própria saúde (por exemplo, os muitos que conscientemente têm arriscado as vidas na pesquisa médica). E está, portanto, enganado se crê que não tomou uma decisão, ou que extraiu suas normas de leis biológicas.

2) O positivismo ético compartilha, com a forma biológica do naturalismo ético, da crença de que devemos tentar reduzir as normas a fatos. Mas tais fatos são, desta vez, fatos sociológicos, a saber, as próprias normas existentes. Mantem o positivismo que não há outras normas fora das leis que efetivamente foram estabelecidas (ou “assentadas”) e que têm, portanto, existência positiva. Outros padrões são considerados como imaginações irreais. As leis existentes são os únicos paradigmas possíveis de bondade: o que existe é bom. (A força é direito). De acordo com algumas formas dessa teoria, é grosseira falta de compreensão acreditar que o indivíduo possa julgar as normas da sociedade; antes, é a sociedade que fornece o código pelo qual o individuo deve ser julgado.

Do ponto de vista dos fatos históricos, o positivismo ético (ou moral, ou jurídico) tem sido usualmente conservador, ao mesmo autoritário; e frequentemente invoca a autoridade de Deus. Seus argumentos se firmam, creio, na alegada arbitrariedade das normas. Devemos acreditar nas normas existentes, proclama, porque não há normas melhores que possamos encontrar para nosso uso. Em resposta a isso, poder-se-ia perguntar: e que dizer desta norma “devemos acreditar etc”? Se ela é apenas uma norma existente, então não deve valer como argumento em favor dessas normas; mas, se é um apelo à nossa compreensão, então admite que podemos, afinal de contas, encontrar normas por nós mesmos. E se nos é dito que aceitemos as normas na base da autoridade porque não as podemos julgar, então também não poderemos julgar se as reivindicações de autoridade são justificadas, ou se não estaremos a seguir um falso profeta. E se se sustentar que não há falsos profetas, visto como as leis são de qualquer forma arbitrárias, de modo que o principal é ter algumas leis, então poderemos perguntar-nos por que seria tão importante ter leis; pois, se não há padrões de referência, por que então não escolhermos não ter leis? (Estas observações podem talvez indicar as razões de minha crença de que os princípios autoritários ou conservadores são costumeiramente uma expressão de niilismo ético; isto é, de um extremo ceticismo moral, de uma desconfiança no homem e em suas possibilidades.)

Ao passo que a teoria dos direitos naturais, no curso da história, muitas vezes se tem apresentado em defesa de ideias igualitárias e humanitárias, a escola positivista habitualmente tem estado no campo oposto. Mas isso não passa muito de um acidente. Como foi mostrado,”o naturalismo ético pode ser usado com intenções bem diferentes”. (Recentemente, foi utilizado para transtornar toda a questão, enunciando certos pretensos direitos e obrigações “naturais” como “leis naturais”). Inversamente, também há positivistas humanitários e progressistas. De fato, se todas as normas são arbitrárias, por que não ser tolerante? Esta é uma tentativa típica para justificar uma atitude humanitária dentro de linhas positivistas.

3) O naturalismo psicológico ou espiritual é, de certo modo, uma combinação das duas posições anteriores e pode ser melhor explicado por meio de um argumento contra a unilateralidade dessas posições. O positivismo ético está certo, diz esse argumento, quando acentua serem convencionais todas as normas, isto é, produtos do homem e da sociedade humana; mas esquece o fato de que elas são, portanto, uma expressão da natureza psicológica ou espiritual do homem e da natureza da sociedade humana. O naturalista biológico está certo ao admitir que há certos alvos ou fins naturais dos quais podemos derivar normas naturais; mas esquece o fato de que nossos alvos naturais não são necessariamente alvos tais como a saúde, o prazer, o alimento, o abrigo ou a propagação da espécie. A natureza humana é tal que o homem, ou pelo menos alguns homens, não desejam viver apenas por pão, buscando alvos mais elevados, alvos espirituais. Podemos, assim, deduzir os verdadeiros alvos naturais do homem de sua verdadeira natureza, que é espiritual e social. E podemos, além disso, deduzir de seus fins naturais as normas naturais de vida.

Essa posição plausível foi, creio, formulada primeiramente por Platão, que aqui estava sob a influência da doutrina socrática da alma, isto é, do ensinamento de Sócrates de que o espírito importa mais do que a carne (15). Seu apelo a nossos sentimentos é sem dúvida muito mais forte que o das duas outras posições. Pode, porém, ser combinado, como aquelas, com qualquer decisão ética; com uma atitude humanitária, assim como com a adoração da força. De fato, podemos, por exemplo, decidir tratar todos os homens como comparticipantes desta natureza humana espiritual; ou podemos insistir, como Heráclito, que a maioria “enche as barrigas como bestas”, sendo portanto de natureza inferior, de modo que só uns poucos eleitos são dignos da comunidade espiritual dos homens. Concordantemente, o naturalismo espiritual tem sido muito utilizado, especialmente por Platão, para justificar as prerrogativas naturais dos “nobres”, dos “eleitos”, dos “sábios”, ou dos “líderes naturais”. (A atitude de Platão é discutida nos capítulos seguintes.) De outra parte, tem sido usada por formas de ética cristãs e outras (16), por exemplo, por Paine e Kant, para exigir o reconhecimento dos “direitos naturais” de todo indivíduo humano. É claro que o naturalismo espiritual pode ser utilizado para defender qualquer norma “positiva”, isto é, existente; pois sempre se poderá argumentar que tais normas não estariam em vigência se não expressassem alguns traços da natureza humana. Desse modo, o naturalismo espiritual pode, em problemas práticos, unificar-se com o positivismo, a despeito de sua oposição tradicional. E essa forma de naturalismo é realmente tão ampla e tão vaga que pode ser usada para defender qualquer coisa. Nada jamais ocorreu ao homem que não possa ser proclamado como “natural”; pois, se não estivesse em sua natureza, como lhe poderia haver ocorrido?

Voltando a vista para este breve exame, talvez possamos discernir as duas tendências principais que obstruem o caminho da adoção do dualismo crítico. A primeira é uma tendência geral para o monismo (17), isto é, para a redução de normas a fatos. A segunda é mais profunda e possivelmente forma a base da primeira. Baseia-se em nosso temor de admitir que a responsabilidade pelas nossas decisões éticas é inteiramente nossa e não pode ser desviada para ninguém mais, nem Deus, nem a natureza, nem a sociedade, nem a história. Todas essas teorias éticas tentam encontrar alguém, ou talvez algum argumento, que retire de nós essa carga (18). Mas não podemos sacudir essa responsabilidade. Seja qual for a autoridade que possamos aceitar, nós é que a aceitamos. E apenas estaremos a enganar-nos se não compreendermos este simples ponto.

Eis o ponto. Não há como retirar do homem a responsabilidade pelas suas escolhas. Sem isso, aliás, não pode haver ética.

Não se sabe bem para que servem essas classificações de Popper. O importante aqui é chegar às razões do dualismo crítico (que tem Protágoras na sua raiz) em oposição ao, vá-la, “monismo” (ingênuo ou não) platônico.

VI

Passamos agora a uma análise mais minuciosa do naturalismo de Platão e da relação que ele tem com seu historicismo. Platão, é claro, nem sempre usa a palavra “natureza” no mesmo sentido. A mais importante significação que lhe dá, creio eu, é praticamente idêntica à que atribui à palavra “essência”. Esse modo de empregar o termo “natureza” ainda sobrevive entre essencialistas, mesmo em nossos dias; ainda falam, por exemplo, da natureza das matemáticas, ou da natureza da inferência indutiva, ou da “natureza da felicidade e da miséria” (19). Quando empregada desse modo por Platão, “natureza” significa quase o mesmo que “Forma” ou “Ideia”, pois a Forma ou Ideia de uma coisa, como acima se mostrou, é também sua essência. A principal diferença entre naturezas e Formas ou Ideias parece ser esta; A Forma ou Ideia de uma coisa sensível, como vimos, não está nessa coisa; mas separada dela; é seu ancestral, seu primeiro genitor; mas essa Forma ou pai transmite algo às coisas sensíveis que são sua descendência, ou raça, a saber, sua natureza. Esta “natureza” é assim a qualidade inata ou original de uma coisa e, desse modo, sua essência inerente; é a força ou disposição original de uma coisa e determina aquelas de suas propriedades que são a base de sua semelhança com a Forma ou Ideia, ou de sua inata participação nela.

Em consequência, é “natural” o que é inato, ou original, ou divino em uma coisa, ao passo que “artificial” é o que mais tarde foi mudado pelo homem, ou por ele acrescentado ou imposto, por compulsão externa. Platão frequentemente insiste em que todos os produtos da “arte” humana, no melhor, são apenas cópias de coisas “naturais” sensíveis. Mas como estas, por sua vez, são apenas cópias das divinas Formas ou Ideias, os produtos da arte não passam de cópias duas vezes distanciadas da realidade e, portanto, menos boas, menos reais e menos verdadeiras (20) do que mesmo as coisas (naturais) em fluxo. Vemos daí que Platão concorda com Antifonte (21) em um ponto pelo menos, a saber, na admissão de que a oposição entre natureza e convenção ou arte corresponde àquela entre verdade e falsidade, entre realidade e aparência, entre as coisas primárias ou originais e as secundárias ou de autoria do homem, e ainda à oposição entre os objetos do conhecimento racional e os da opinião enganosa. A oposição corresponde também, segundo Platão, à existente entre “a descendência de feitura divina” ou “os produtos da arte divina” e “o que o homem deles faz, isto é, os produtos da arte humana” (22). Platão proclama, portanto, como naturais e opostas ao artificial, todas aquelas coisas cujo valor intrínseco deseja acentuar. Assim, insiste nas Leis em que a alma tem de ser considerada anterior a todas as coisas materiais e, por conseguinte, deve-se dizer que ela existe por natureza: “Quase todos… ignoram a força da alma e especialmente sua origem. Não sabem que ela está entre as primeiras coisas, anterior a todos os corpos… Quando se usa a palavra “natureza, quer-se descrever as coisas que foram criadas em primeiro lugar; mas, se se verifica que a alma é anterior às outras coisas (e não, talvez, o fogo ou ar)… então a alma, pode-se asseverar, existe por natureza antes de todas as outras coisas e no mais verdadeiro sentido da palavra” (23). (Platão aqui reafirma sua velha teoria de que a alma é mais estreitamente afim às Formas ou Ideias do que o corpo, teoria que é também a base de sua doutrina da imortalidade).

Não se limita Platão, porém, a ensinar que a alma é anterior às outras coisas e, portanto, existe “por natureza”; utiliza a palavra “natureza”, quando aplicada ao homem, também frequentemente como um nome para os poderes espirituais, ou dons, ou talentos naturais, de modo a podermos dizer que a “natureza” de um homem é o mesmo que sua “alma”, é o princípio divino pelo qual ele compartilha da Forma ou Ideia, do divino progenitor de sua raça. E a palavra “raça”, com frequência, também é usada em sentido muito semelhante. Se uma “raça” é unida pelo fato de ser a descendência do mesmo progenitor, deve também ser unida por uma natureza comum. Assim, os termos “natureza” e “raça” são comumente usados por Platão como sinônimos; por exemplo, quando fala da “raça dos filósofos” e daqueles que têm “naturezas filosóficas”. De tal modo, ambos os termos são estreitamente aparentados aos termos “essência” e “alma”.

A teoria platônica da “natureza” abre outro caminho para sua metodologia historicista. Parecendo a tarefa da ciência em geral ser o exame da verdadeira natureza de seus objetos, a tarefa de uma ciência política ou social será examinar a natureza da sociedade humana e do estado. Mas a natureza de uma coisa, segundo Platão, é sua origem, ou, pelo menos, é determinada por sua origem. Assim, o método de qualquer ciência será a investigação da origem das coisas (ou suas “causas”). Este princípio, quando aplicado à ciência da sociedade e da política, conduz à exigência de que a origem da sociedade e do estado deva ser examinada. A história não é, portanto, estudada por si mesma, mas serve como o método das ciências sociais. É esta a metodologia historicista.

Qual é a natureza da sociedade humana, do estado? De acordo com os métodos historicistas, esta questão fundamental de sociologia deve ser reformulada deste modo: qual é a origem da sociedade na República, assim como nas Leis (24), [que] concorda com a posição acima descrita como naturalismo espiritual. A origem da sociedade é uma convenção, um contrato social. Mas não é só isso: é, antes, uma convenção natural, isto é, uma convenção que se baseia na natureza humana e, mais precisamente, na natureza social do homem.

Esta natureza social do homem tem origem na imperfeição do indivíduo humano. Em oposição a Sócrates (25), Platão ensina que o indivíduo humano não pode ser autossuficiente, devido às limitações inerentes à natureza humana. Embora Platão insista na existência de graus muito diferentes de perfeição humana, verifica-se que mesmo os raríssimos homens relativamente perfeitos ainda dependem dos outros (que são menos perfeitos); quando nada, para que estes façam o trabalho sujo — o trabalho manual (26). Desse modo, mesmo as “naturezas raras e incomuns”, que se aproximam da perfeição, dependem da sociedade, do estado. Só através do estado e no estado podem alcançar a perfeição; o estado perfeito deve oferecer-lhes o “habitat social” adequado, sem o qual se tomarão corruptas e degeneradas. Deve o estado, portanto, ser colocado acima do indivíduo, visto como só o estado pode ser auto-suficiente (“autárquico”), perfeito e capaz de tomar boa a imperfeição necessária do indivíduo.

Sociedade e indivíduo são, assim, interdependentes. A sociedade deve sua existência à natureza humana e especialmente à sua falta de autossuficiência; e o indivíduo deve sua existência à sociedade, visto como não é autossuficiente. Dentro, porém, dessa relação de interdependência a superioridade do estado sobre o indivíduo se manifesta de diversas maneiras: por exemplo, no fato de que a semente da decadência e desunião de um estado perfeito não nasce do próprio estado, mas antes, de seus indivíduos; está enraizada na imperfeição da alma humana, da natureza humana, ou, mais precisamente, no fato de que a raça dos homens é passível de degenerar. Voltarei logo a este ponto da degeneração da natureza humana; antes, porém, desejo fazer alguns comentários sobre certas características da sociologia de Platão, especialmente sobre sua versão da teoria do contrato social, e sobre sua consideração do estado como um super-indivíduo, isto é, sua versão da teoria biológica ou orgânica do estado.

Não é certo ter sido Protágoras o primeiro a propor uma teoria de que as leis se originam de um contrato social, ou ter sido Licofronte (cuja teoria será discutida no capítulo seguinte) o primeiro a fazê-lo. Em qualquer caso a ideia prende-se estreitamente ao convencionalismo de Protágoras. O fato de haver Platão determinadamente combinado certas ideias convencionalistas, e mesmo uma versão da teoria do contrato, com seu naturalismo, é por si mesmo uma indicação de que o convencionalismo, em sua forma original, não asseverava serem as leis inteiramente arbitrárias; confirmam-no as observações de Platão a respeito de Protágoras (27). De um trecho das Leis pode-se ver quanto estava Platão consciente de um elemento convencionalista em sua versão do naturalismo. Ali dá ele uma lista dos vários princípios sobre que se poderia basear a autoridade política, mencionando o naturalismo biológico de Píndaro (ver acima), isto é, “o princípio de que os mais fortes devem governar e os mais fracos ser governados”, o qual descreve como um princípio “de acordo com a natureza, como o poeta tebano Píndaro certa vez asseverou”. Platão põe em contraste esse princípio com outro, que recomenda, mostrando que ele combina o convencionalismo com o naturalismo: “Mas há também uma concepção que é o maior de todos os princípios, a saber, a de que os sábios devem dirigir e governar e de que os ignorantes os seguirão; e isto, ó Píndaro, o mais sábio dos poetas, certamente não é contrário à natureza, mas conforme à natureza, pois o que exige não é a compulsão externa, mas a soberania verdadeiramente natural de uma lei que se baseia no consenso mútuo” (28).

Na República encontramos elementos da teoria convencionalista do contrato combinados de modo semelhante com elementos do naturalismo (e o utilitarismo). “A cidade se origina — ouvimos ali — do fato de não sermos autossuficientes;… ou haverá outra origem do estabelecimento das cidades?… Os homens reúnem dentro de um estabelecimento muitos… auxiliares, porque necessitam de muitas coisas… E quando compartilham esses bens uns com os outros, um dando, o outro compartilhando, não espera cada um promover desse modo o seu próprio interesse?” (29). Assim, os habitantes se reúnem a fim de que cada qual possa promover seu próprio interesse, o que é um elemento da teoria do contrato. Mas por trás disso fica o fato de não serem eles autossuficientes, fato da natureza humana, que é um elemento do naturalismo. E tal elemento é ainda mais desenvolvido. “Por natureza, não há dois dentre nós exatamente iguais. Cada um tem sua natureza peculiar, alguns sendo capacitados: para certa espécie de trabalho e outros para outra… Será melhor que um homem trabalhe em muitos ofícios ou que trabalhe em um só?… Certamente, mais será produzido, e melhor e mais facilmente, se cada homem trabalhar numa só ocupação, de acordo com seus dons naturais”.

Introduz-se, dessa maneira, o principio econômico da divisão do trabalho (lembrando-nos a afinidade entre o historicismo de Platão e a interpretação materialista da história). Esse princípio, todavia, baseia-se aqui num elemento de naturalismo biológico, a saber, a desigualdade natural dos homens. De início, esta ideia é introduzida sem relevo e, por assim dizer, inocentemente. Mas veremos no próximo capítulo que ela tem consequências de longo alcance; em verdade, verifica-se que a única divisão do trabalho realmente importante é a existente entre governantes e governados, que se afirma alicerçada na desigualdade natural de amos e escravos, de sábios e ignorantes.

Vimos que há considerável elemento de convencionalismo, assim como de naturalismo biológico, na posição de Platão, observação que não surpreende quando consideramos que tal posição, em conjunto, é a do naturalismo espiritual, o qual, em razão de sua vaguidão, facilmente permite todas essas combinações. É talvez nas Leis que melhor se ache formulada essa versão espiritual do naturalismo. Diz Platão: “Os homens falam que as coisas maiores e mais belas são naturais… e as coisas menores artificiais“. Até aí ele concorda; mas a seguir ataca os materialistas que dizem que “o fogo e a água. e a terra e o ar, todos existem por natureza… e que todas as leis normativas são completamente antinaturais e artificiais, baseadas em superstições que não são verdadeiras”. Contra essa opinião, mostra ele que nenhum corpo ou elemento, mas só a alma, verdadeiramente “existe por natureza” (30), trecho que acima citei. E daí conclui que a ordem e a lei devem também existir por natureza, uma vez que nascem da alma. “Se a alma é anterior ao corpo, então as coisas dependentes da alma (isto é, as questões espirituais) são também anteriores às dependentes do corpo… E a alma ordena e dirige todas as coisas”. Isto fornece o solo teórico para a doutrina de que “as leis e as instituições de fins deliberados existem; por natureza e não por algo mais baixo do que a natureza visto como nascem da razão e do verdadeiro pensamento”. Eis uma afirmação clara de naturalismo espiritual, que se combina também com crenças positivistas de natureza conservadora: “Uma legislação prudente e meditada encontrará a mais poderosa ajuda no fato de que as leis permanecerão sem ser modificadas uma vez que sejam escritas”.

De tudo isto pode-se ver que os argumentos derivados do naturalismo espiritual de Platão são completamente incapazes de auxiliar a responder a qualquer indagação que se possa suscitar com relação ao caráter “justo” ou “natural” de qualquer lei determinada. O naturalismo espiritual é por demais vago para ser aplicado a qualquer problema prático. Não pode ir muito além de fornecer certos argumentos gerais em favor do conservadorismo. Na prática, tudo é deixado à sabedoria do grande legislador (um filósofo deiforme, cuja descrição, especialmente nas Leis, é indubitavelmente um autorretrato; veja-se também o capítulo 8). Em oposição a seu naturalismo espiritual, contudo, a teoria de Platão da interdependência da sociedade e do indivíduo oferece resultados mais concretos, com também o faz seu naturalismo biológico anti-igualitário.

VII

Indicou-se acima que, em razão de sua autossuficiência, o estado ideal aparece a Platão como o indivíduo perfeito, sendo o cidadão individual, consequentemente, uma cópia imperfeita do estado. Esta opinião, que faz do estado uma espécie de superorganismo ou Leviatã, introduz no ocidente a chamada teoria orgânica ou biológica do estado. Criticaremos adiante o princípio de tal teoria (31). Antes, desejo chamar aqui a atenção para o fato de que Platão não defende a teoria e realmente mal a formula de modo explícito. Mas está implícita, de maneira bastante clara; com efeito, a analogia fundamental entre o estado e o indivíduo humano é um dos tópicos típicos da República. Vale a pena mencionar, a tal respeito, que a analogia serve mais para a análise do indivíduo que a do estado. Poderia alguém defender a opinião de que Platão (talvez sob a influência de Alcmeão) não oferece tanto uma teoria biológica do estado como uma teoria política do indivíduo humano (32). Tal opinião, creio, está em plena concordância com sua doutrina de que o indivíduo é inferior ao estado e uma espécie de cópia imperfeita deste. Platão utiliza desse modo sua analogia fundamental no próprio ponto em que a apresenta, isto é, como um método de explicar e elucidar o indivíduo. A cidade, diz, é maior que o indivíduo e, portanto, mais fácil de examinar. Platão dá isto como seu motivo para sugerir que “devemos começar nosso inquérito” (quer dizer, sobre a natureza da justiça) “na cidade e continuá-lo depois no indivíduo, sempre observando pontos de similaridade… Não podemos esperar dessa maneira discernir mais facilmente aquilo que procuramos?”

Isso lembra a concepção de Estado de Mussolini, que pode ser evocada pelo batido lema: “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”. A citação completa – Benito Mussolini (1931) em O Fascismo – é a seguinte: 

“Para o fascismo, o Estado é absoluto: perante ele os indivíduos e os grupos não são mais que o relativo. Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado. (…) O indivíduo só existe enquanto está no Estado: está subordinado às necessidades do Estado e, à medida que a civilização toma formas cada vez mais complexas, a liberdade do indivíduo restringe-se sempre mais. (…) Neste sentido, o fascismo é totalitário (…). Nem partidos, associações, sindicatos nem indivíduos fora do Estado. (…) Nós representamos um princípio novo no Mundo, representamos a antítese nítida, categórica, definitiva da democracia (…)”.

Por esse modo de apresentá-la, vemos que Platão considera assentada a existência de sua analogia fundamental. Creio ser tal fato uma expressão de seu anelo por um estado unificado e harmonioso, um estado “orgânico”, por uma sociedade de espécie mais primitiva (ver cap. 10). A cidade-estado deveria permanecer pequena, diz ele, só crescendo à medida que seu desenvolvimento não lhe pusesse em perigo a unidade. Toda a cidade deveria, por sua natureza, ser uma e não dividida em muitas (33). Platão acentua assim a “unicidade” ou individualidade de sua cidade. Mas também acentua a “multiplicidade” do indivíduo humano. Em sua análise da alma individual e de sua divisão em três partes — razão, energia e instinto animal — correspondentes às três classes de seu estado — guardiães, guerreiros e trabalhadores (que ainda continuam a “encher as barrigas como bestas”, no dizer de Heráclito) — Platão vai ao ponto de opor essas partes uma à outra, como se fossem “pessoas distintas e em conflito” (34). “É-nos dito assim — diz Grote — que embora o homem seja aparentemente Um, é na realidade Muitos… ao passo que a Comunidade perfeita, sendo aparentemente Muitos, é na realidade Um”. É claro que isto corresponde ao caráter ideal do estado, de que o indivíduo é uma espécie de cópia imperfeita. Tal ênfase sobre a unicidade e a totalidade, especialmente do estado, ou talvez do mundo, pode ser descrita como “holismo” (do grego holos, todo.). O holismo de Platão, creio, liga-se estreitamente ao coletivismo tribal mencionado em capítulos anteriores. Platão ansiava pela unidade perdida da vida tribal. Uma vida de mutações, no meio de uma revolução social, parecia-lhe irreal. Só um todo estável, o coletivo permanente, tem realidade, não os indivíduos que passam. É “natural” para o indivíduo submeter-se ao todo, que não é mera assembleia de indivíduos, mas uma unidade “natural” de ordem superior.

Aqui a desqualificação da Ecclesia (a assembleia democrática).

Platão dá muitas e excelentes descrições sociológicas desse modo de vida social “natural”, isto é, tribal e coletivista. “A lei — escreve ele na República — tem por objetivo produzir o bem estar do estado como um todo, enquadrando os cidadãos numa unidade, tanto pela persuasão quanto pela força. Faz com que todos compartilhem de qualquer benefício com que cada um deles possa contribuir para a comunidade. E é efetivamente a lei que cria para o estado homens de mentalidade apropriada; não com o propósito de deixá-los a seu lazer, de modo a fazer cada qual o que lhe aprouver, mas a fim de utilizá-los a todos para unir intimamente o conjunto da cidade” (35). A existência, nesse holismo, de um esteticismo emocional, de uma aspiração de beleza, pode ser vista, por exemplo, em uma observação nas Leis: “Cada artista… executa a parte em proveito do todo, e não o todo em proveito da parte”. No mesmo lugar também encontramos uma formulação verdadeiramente clássica do holismo político: “Fostes criados em função do todo, e não o todo em função de vós”. Dentro desse todo, os diferentes indivíduos e grupos de indivíduos, com suas desigualdades naturais, devem prestar ser serviços, específicos e muito desiguais.

Tudo isto indicaria que a teoria de Platão era uma forma da teoria orgânica do estado, ainda que ele não tivesse algumas vezes falado do estado como um organismo. Como, porém, ele o fez, não resta dúvida de que deve ser classificado como um expoente, ou antes, como um dos criadores dessa teoria. Sua versão de tal teoria pode ser caracterizada como personalista ou psicológica, visto como não descreve o estado de modo geral como similar a um ou outro organismo, mas como análogo ao indivíduo humano, ou mais especificamente à alma humana. Especialmente a enfermidade do estado, a dissolução de sua unidade, corresponde à enfermidade da alma humana, da natureza humana. De fato, a enfermidade do estado, além de relacionada, é diretamente produzida pela corrupção da natureza humana, mais especialmente dos membros da classe dirigente. Todo e qualquer um dos graus típicos na degeneração do estado é produzido por um grau correspondente na degeneração da alma humana, da natureza humana, da raça humana. E visto como esta degeneração moral é interpretada como baseada na degeneração racial, podemos dizer que o elemento biológico do naturalismo de Platão demonstra, no fim ter a parte mais importante no alicerce de seu historicismo. Pois a história da queda do primeiro estado, ou estado perfeito, nada mais é do que a história da degeneração biológica da raça dos homens.

Tratar os conflitos sociais e políticos como sintomas de enfermidades é muito problemático. Isso está na base de todas as teorias da corrupção (e da regeneração).

VIII

Mencionou-se no último capítulo que o problema dos inícios da mudança e decadência é uma das maiores dificuldades que a teoria historicista de Platão sobre a sociedade encontra. Não se pode supor que o primeiro estado, a natural e perfeita cidade-estado, carregue dentro de si mesmo o germe da dissolução, “pois uma cidade que traz dentro de si o germe da dissolução é, por esse próprio motivo, imperfeita” (36). Platão tenta superar a dificuldade lançando a culpa antes sobre sua lei evolucionária da degeneração, universalmente válida, histórica, biológica e talvez mesmo cosmológica, do que sobre a constituição particular da cidade primeira ou perfeita (37): “Tudo que foi gerado deve decair.” Mas essa teoria geral não oferece solução plenamente satisfatória, pois não explica por que razão mesmo um estado suficientemente perfeito não pode escapar à lei da decadência. Na verdade, Platão sugere que a decadência histórica poderia ter sido evitada (38) se os governantes do primeiro estado, ou natural, fossem experientes filósofos. Mas não eram. Não eram adestrados (como exige ele que o devam ser os governantes de sua cidade celestial) na matemática e na dialética; e, a fim de evitar a degeneração, deveriam ter sido iniciados nos mais elevados mistérios da eugenia, da ciência de “conservar pura a raça dos guardiães”, evitando que se misturassem aos nobres metais de suas veias os baixos metais dos trabalhadores. São, porém, difíceis de revelar esses mistérios mais elevados. Platão distingue agudamente, no campo da matemática, da acústica e da astronomia, entre a simples opinião (enganosa) que é tingida pela experiência e que não pode alcançar a exatidão, permanecendo portanto em baixo nível, e o puro conhecimento racional, exato e liberto de experiência sensorial. Aplica também esta distinção ao campo da eugenia. Uma arte puramente empírica de criar não pode ser precisa, isto é, não pode conservar a raça perfeitamente pura. Isso explica a queda da cidade original que é tão boa, isto é, tão semelhante à sua Forma ou Ideia que uma “cidade assim constituída dificilmente será abalada”. “Mas isto, continua Platão, é o que a faz dissolver-se”, e continua a traçar sua teoria da educação, do Número e da Queda do Homem.

A perigosa ideia de eugenia como conceito explicativo (ou norma operativa) da política é anti-humana. Aliás, toda a construção platônica em política (ou antipolítica) é uma tentativa de desvalorização e mesmo de desconstrução da humanidade.

Todas as plantas e animais, diz-nos, devem ser criados de acordo com períodos de tempo definidos, se se quiser evitar a esterilidade e a degeneração. Certo conhecimento desses períodos, que se ligam à extensão da vida da raça, estará ao alcance dos dirigentes do estado melhor e eles o aplicarão ao desenvolvimento da raça governante. Não será, porém, um conhecimento racional, mas apenas empírico; será um “cálculo ajudado por (ou baseado em) percepção” (ver a citação seguinte). Mas, como acabamos de ver, a percepção, e a experiência nunca podem ser exatas e dignas de confiança, pois seus objetos não são as puras Formas ou Ideias, mas o mundo de coisas em fluxo; e como os guardiães não têm à sua disposição melhor forma de conhecimento, a criação não pode ser mantida pura e a degeneração racial deve insinuar-se. Eis como Platão explica a questão: “Com referência à vossa própria raça (isto é, à raça dos homens, em oposição aos animais), os governantes da cidade, a quem adestrastes, devem ser bastante sábios; mas, visto como utilizam o cálculo ajudado pela percepção, acidentalmente não acertarão no modo de obter boa descendência, ou absolutamente nenhuma”. Por falta de um método puramente racional (39), equivocar-se-ão e algum dia gerarão filhos de maneira errada”. No que vem a seguir, Platão sugere, um tanto misteriosamente, já existir um meio de evitá-lo, pela descoberta de uma ciência puramente racional e matemática, que possui, no “Número Platônico” (número que determina o Verdadeiro Período da raça humana) a chave da lei dominante da eugenia superior. Como, porém, os guardiães dos tempos antigos ignorassem o misticismo numérico dos Pitagóricos e, com isso, a chave do superior conhecimento da criação, o que de outra maneira seria o estado natural perfeito não podia escapar à decadência. Depois de parcialmente revelar o segredo de seu misterioso Número, Platão continua: “Este… número rege os melhores ou os piores nascimentos; e sempre que os guardiães, ignorando (como deveis lembrar) estes assuntos, unirem esposo e esposa de modo errado (40), seus filhos nem terão boa natureza nem boa sorte. Mesmo os melhores dentre eles mostrar-se-ão indignos quando herdarem o poder de seus pais; e logo que forem guardiães não nos darão mais ouvidos” — isto é, em questões de educação musical e ginástica e, como Platão especialmente acentua, na supervisão da criação. “Eis porque serão indicados governantes que absolutamente não estão capacitados a desempenhar suas tarefas como guardiães; a saber, inspecionar e experimentar os metais nas raças (que são as raças de Hesíodo assim como as vossas), o ouro e a prata, o bronze e o ferro.

A raiz pitagórica do pensamento platônico, pelo menos neste aspecto, fica evidente. Cabe acrescentar que é uma raiz mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática, como o é toda a tradição herdada das narrativas legitimadoras da civilização patriarcal, surgidas, talvez, no Estado-Palácio-Templo da Mesopotâmia antiga. Este, ao que tudo indica, era o Estado perfeito pelo qual Platão ansiava: a cidade do deus e comandada pelo deus. Na falta dele (e dos deuses ou seres superiores presentes na Terra), Platão ficou com o “modelo” que, a seu ver, mais se aproximava da perfeição anterior: a ditadura espartana.

Assim, o ferro misturar-se-á à prata, e o bronze ao ouro, e dessa mistura nascerá a Variação e a absurda Irregularidade; e onde quer que elas nascerem, engendrarão a Luta e a Hostilidade. Desse modo é que podemos descrever a ascendência e o nascimento da Dissensão, onde quer que ela surja”.

Tal é a história de Platão sobre o Número e a Queda do Homem. Esta é a base de sua sociologia historicista, especialmente de sua lei fundamental das revoluções sociais, discutida no último capítulo (41). A degeneração racial explica a origem da desunião na classe governante e com ela a origem de todo o desenvolvimento histórico. A desunião interna da natureza humana, o cisma da alma, leva ao cisma da classe dirigente. E, assim como em Heráclito, a guerra de classe é o pai e promotor de toda mudança e da história do homem que nada mais é do que a história do desmoronamento da sociedade. Vemos que, em última análise, o historicismo idealista de Platão não repousa sobre uma base espiritual, mas biológica; repousa sobre uma espécie de metabiologia (42) da raça dos homens. Platão não era apenas um naturalista que apresentava uma teoria biológica do estado; foi também o primeiro a expor uma teoria biológica e racial da dinâmica social, da história política. “O Número Platônico — diz Adam (43) — é assim a moldura em que se enquadra a “Filosofia da História” de Platão.

Creio conveniente concluir este esboço da sociologia descritiva de Platão com um sumário e uma apreciação.

Platão logrou dar-nos uma reconstrução surpreendentemente verdadeira, embora sem dúvida um tanto idealizada, de uma primitiva sociedade grega tribal e coletivizada, semelhante à de Esparta. Uma análise das forças, especialmente das forças econômicas, que ameaçam a estabilidade política de tal sociedade, capacita-o a descrever a política geral assim como as instituições sociais que são necessárias para deter essa ameaça. E ele dá, além disso, uma reconstrução racional do desenvolvimento econômico e histórico das cidades-estados da Grécia.

Esses sucessos são prejudicados por seu ódio à sociedade em que vivia e por seu romântico amor à velha forma tribal de vida social. Esta atitude é que o leva a formular uma insustentável lei de desenvolvimento histórico, a saber, a lei da universal degeneração ou decadência. E a mesma atitude é também responsável pelos elementos irracionais, fantásticos e românticos de sua análise, de outro modo excelente. Por outra parte, foi precisamente seu interesse pessoal e sua parcialidade que lhe aguçaram os olhos, tornando assim possíveis os seus acertos. Derivou ele sua teoria historicista da fantástica doutrina filosófica segundo a qual o mundo visível e mutável não passa de uma cópia decadente de um mundo invisível e imutável. Mas essa engenhosa tentativa de combinar um pessimismo historicista com um otimismo ontológico conduz, quando elaborada, a dificuldades. Tais dificuldades forçaram-no à adoção de um naturalismo biológico, que levou (juntamente com o “psicologismo” (44), isto é, a teoria de que a sociedade depende de “natureza humana” de seus membros) ao misticismo e à superstição, culminando numa pseudo-racional teoria matemática da criação. Chegaram elas a por em perigo a impressionante unidade de seu edifício teórico.

IX

Volvendo os olhos para esse edifício, podemos considerar de modo breve a sua planta (45). Esta planta, concebida por um grande arquiteto, exibe um fundamental dualismo metafísico no pensamento de Platão. No campo da lógica, esse dualismo apresenta-se como a oposição entre o universal e o particular. No campo da especulação matemática, surge como a oposição entre a Unidade e a Pluralidade. No campo da epistemologia, é a oposição entre o conhecimento racional baseado no pensamento puro e a opinião baseada nas experiências particulares. No campo da ontologia, é a oposição entre a realidade una, original, invariável e verdadeira, e as aparências múltiplas, variáveis e enganosas; entre o puro ser e o tornar-se, ou mais precisamente, a mutação. No campo da cosmologia, é a oposição entre o que gera e o que é gerado e que deve decair. Na ética, é a oposição entre o bem, isto é, o que preserva, e o mal, isto é, o que corrompe. Na política, é a oposição entre a unidade coletiva, o estado, que pode alcançar a perfeição e a autarquia, e a grande massa do povo, a pluralidade individual, os homens particulares que devém permanecer imperfeitos e dependentes, e cuja particularidade deve ser suprimida em benefício da unidade do estado (ver o capítulo seguinte). E toda essa filosofia dualista, creio, originou-se do urgente desejo de explicar o contraste, entre a visão de uma sociedade ideal e o odioso estado de coisas que se via no campo social — o contraste entre uma sociedade estável e uma sociedade em processo de revolução.

Excelente este último parágrafo de Popper. O mal-estar de Platão com a democracia explica, de certa forma, o seu reacionarismo ou retrogradacionismo. Ele não era um conservador, não queria apenas preservar o status quo, mas restaurar a ordem ancestral do patriarcalismo dório, a qual, por sua vez, conteria mais elementos da tenebrosa mudança de sociedades de parceria para sociedades de dominação que provavelmente acompanhou a ereção do Estado-Palácio-Templo.

Notas

As notas ainda estão sem revisão em sem organização (por culpa do próprio Popper, que fez uma balbúrdia nas convenções adotadas, do tradutor e do editor da versão brasileira)

1 — O “círculo encantado” é uma citação de Burnet, Greek Philosophy, I, 106, onde são tratados problemas similares. Não concordo, porém, com Burnet em que “ nos tempos primitivos a regularidade da vida humana havia sido apreendida com muito maior clareza do que o curso uniforme da natureza”. Isto pressupõe uma diferenciação que, segundo creio, é característica de um período posterior, isto é, do período correspondente à dissolução do “ círculo encantado da lei e do costume”. Além disso, os períodos naturais (as estações, etc.; cf. a nota 6 ao cap. 2 e Epinomis, de Platão (?) 978d sgs.) devem ter sido apreendidos desde época muito primitiva. — Para a distinção entre leis naturais e normativas ver esp. a nota 18 (4) a este capítulo.

2 — Cf. R. Eisler, The Royal Art of Astrology. — Diz Eisler que as peculiaridades do movimento dos planetas foram interpretadas, pelos “escritores das tabuinhas que redigiram a Biblioteca de Assurbanipal’’ em Babilônia (ob. cit. p. 288) como “ditadas pelas “leis” ou “decisões” governantes “do céu e da terra” (pirishtê sharne u irsiti) pronunciadas no início pelo deus criador” (ibid. 232 sg.). E mostra (ibid. 288) que a ideia das “leis universais” (da natureza) origina-se deste “mitológico… conceito de …“decretos do céu e da terra”.

Para a passagem de Heráclito, cf. D5, B29 e nota 7 (2) ao cap. 2; também a nota 6 a esse capítulo, e texto. Ver também Burnet, loc. cit., que dá uma interpretação diferente; pensa ele que “quando começou a observar-se o curso regular da natureza, não se. podia encontrar nenhum nome melhor para ele que o de Direito ou de Justiça…, que em realidade significavam a norma inalterável que guiava a vida humana.” Não creio que o termo começasse por ter um significado social, para ser depois ampliado, mas acho que tanto as regularidades sociais como as naturais (“ ordem”) foram originalmente indiferenciadas e interpretadas como mágicas.

3 — A oposição é às vezes expressa como existindo entre “natureza” e “lei” (ou “norma”, ou “convenção”), ou às vezes entre “natureza” e a “colocação” ou “assentamento” (isto é, das leis normativas), e às vezes ainda entre “natureza” e “arte” ou “o natural” e “o artificial”.
A antítese entre natureza e convenção é muitas vezes dada (com base na autoridade de Diógenes Laércio, II, 16 e 4, e Doxogr., 564b) como tendo sido introduzida por Arquelau, que se diz ter sido mestre de Sócrates. Penso, porém, que, nas Leis, 690b, Platão deixa bastante claro que ele considera “o poeta tebano Píndaro” como o autor da antítese. (Cf. notas 10 e 28 a este capitulo). Além dos fragmentos de Píndaro (citados por Platão; ver também Herodoto, III, 38) e de algumas observações de Herodoto, ob. cit., uma das primeiras fontes originais que se conservam é o conjunto de fragmentos do sofista Anti- fonte, Acerca da Verdade (ver notas 11 e 12 a este capítulo). Segundo o Protágoras de Platão, o sofista Hípias parece ter sido um precursor de opiniões similares (ver nota 13 a este capítulo). Mas o tratamento antigo mais influente do problema parece ter sido o do próprio Protagoras, embora possivelmente ele tenha usado terminologia diferente. (Podemos mencionar que Demócrito tratou da antítese, que também aplicou a instituições “ sociais” tais como a linguagem; e Platão fez o mesmo no Crátilo, p. ex. em 384e).

4 — Ponto de vista muito semelhante pode ser encontrado em “A Free Man’s Worship”, de Russell (em Mysticism and Logic), e no último capítulo de Man on His Nature, de Sherrimgton.

5 — Ver abaixo:

(1) Os positivistas replicarão, sem dúvida, que a razão pela qual as normas não podem ser derivadas de proposições factuais está em serem as normas sem significação; mas isto apenas indica que eles (com o Tractatus de Wittgenstein” definem “significação” arbitrariamente, de modo tal que só as proposições factuais são chamadas “significativas”. (Para este ponto, ver também minha obra Logik der Forschung, p. 8 sgs. e 21). Os seguidores do psicologismo, por outro lado, tratarão de explicar os imperativos como expressão de sentimentos, as normas como hábito, os padrões como pontos de vista. Mas embora o hábito de não roubar seja certamente um fato, é necessário distinguir esse fato, tal como se explica no texto, da norma correspondente. Quanto à questão da lógica das normas, estou inteiramente de acordo com a maior parte das ideias expressas por K. Menger em sua obra Moral, Wille und Weltgestaltung, 1935. Foi ele um dos primeiros, creio, a desenvolver os fundamentos da lógica das normas. Talvez caiba expressar aqui a opinião de que a renúncia a admitir as normas como algo importante e irredutível constitui uma das principais fontes das fraquezas intelectuais e de outra espécie dos círculos mais “progressistas”, nos dias que correm.

(2) Relativamente à minha afirmação de que é impossível derivar uma sentença afirmativa de uma norma ou decisão de uma sentença afirmativa de um fato, pode-se acrescentar o seguinte: Analisando as relações entre as sentenças e os fatos, move-nos naquele campo da indagação lógica que A. Tarski chamou Semântica (cf. nota 29 ao cap. 3 e nota 23 ao cap. 8). Um dos conceitos fundamentais da semântica é o conceito de verdade. Como Tarski mostra, é possível (dentro do que Carnap chama um sistema semântico) derivar uma afirmação descritiva, tal como “ Napoleão morreu em Santa Helena”, da afirmativa “ O sr. A. disse que Napoleão morreu em Santa Helena”, em conjunção com a afirmação acrescida de que o que o sr. A disse era verdadeiro. (E se usarmos o termo “ fato” em sentido tão amplo que não só fale acerca do fato descrito por uma sentença mas também acerca do fato de ser essa sentença verdadeira, então podemos até dizer que é possível derivar “Napoleão morreu em Santa Helena” dos dois “fatos” de haver o sr. A. dito isso e de haver ele falado a verdade.) Ora, não há razão para que não possamos proceder de modo exatamente análogo no domínio das normas. Podemos, então, introduzir, em correspondência com o conceito de verdade, o conceito da valides ou retidão de uma norma. Isto significaria que certa norma N poderia ser derivada (numa espécie de semântica das normas) de uma sentença asseverando que N é válida ou reta; ou, em outras palavras, a norma do mandamento “ Não furtarás” seria considerada como equivalente à asserção: “A norma “não furtarás” é válida, ou reta.” (E, uma vez mais, se usarmos o termo “ fato” em sentido tão amplo que falemos a respeito do fato de que uma norma i válida, ou reta, então poderemos mesmo derivar normas de fatos: Isto, porém, não prejudica a correção de nossas considerações no texto, que se relacionam exclusivamente com a impossibilidade de derivar normas de fatos psicológicos, ou sociológicos, ou semelhantes, isto é, fatos não semânticos.

(3) Em minha primeira discussão destes problemas, falei de normas ou decisões, mas nunca de propostas. A proposta para faiar, em vez daquelas, de “propostas” é devida a L. G. Russell; ver seu artigo “Proposições e Propostas” em Library of the Tenth International Congress of Philosophy (Amsterdão, 11-18 de agosto, 1948), vol. L, Proceedings of the Congress. Neste importante artigo, as exposições de fatos, ou “ proposições”, são distinguidas das sugestões para a adoção de uma linha de conduta (de uma certa política, ou de certas normas, ou de certos alvos ou fins), sendo estas últimas chamadas “propostas”. A grande vantagem desta terminologia é que, como todos sabem, pode-se discutir uma proposta, ao passo que não é tão claro se se pode, e em que sentido, discutir uma decisão ou uma norma; assim, falando de “normas” ou “decisões”, corre-se o risco de apoiar aqueles que dizem que tais coisas estão fora de discussão (ou acima dela, como alguns teólogos dogmáticos ou metafísicos podem dizer, ou abaixo dela — por falta de sentido — como podem dizer alguns positivistas).

Adotando a terminologia de Russell, diríamos que uma proposição pode ser asseverada ou enunciada (ou uma hipótese aceitada), ao passo que uma proposta é adotada; e poderemos distinguir o fato de sua adoção da proposta que foi adotada.

Nossa tese dualista torna-se, então, a tese de que as propostas são irredutíveis a fatos (ou a afirmações de fatos, isto é, proposições), ainda que pertençam a fatos.

6 — Cf. também a última nota ao cap. 10. Embora minha posição esteja, cano creio, bastante claramente implícita no texto, talvez caiba formular resumidamente os princípios que me parecem mais importantes da ética humanitária e igualitária.

(1) Tolerância para com todos os que não são intolerantes e não propagam a intolerância. (Para esta exceção, cf. o que é dito nas notas 4 e 6 ao cap. 7). Isto implica, especialmente, que as decisões morais dos outros sejam tratadas com respeito, enquanto tais decisões não colidirem com o princípio da tolerância.

(2) O reconhecimento de que toda premência moral tem sua base na premência do sofrimento ou da dor. Sugiro, por essa razão, substituir a fórmula utilitária “aspiremos à maior quantidade de felicidade para o maior número de pessoas”, ou mais sinteticamente “felicidade ao máximo”, pela fórmula: “a menor quantidade possível de dor para todos”, ou, em resumo, “dor ao mínimo”. Esta fórmula tio simples pode-se converter, creio, num dos princípios fundamentais (por certo que não o único) da política pública. (O princípio da “ felicidade ao máximo” parece tender, pelo contrário, a produzir ditaduras benevolentes.) É mister compreender, além disso, que do ponto de vista moral não podemos tratar simetricamente a dor e a felicidade; isto é, que a promoção da felicidade é, em todo caso, muito menos urgente que a ajuda àqueles que padecem e a tentativa de prevenir sua dor. (Esta última tarefa pouco tem a ver com as “questões de gosto”; a primeira, tem muito). Cf. também nota 2 ao cap. 9.

(3) A luta contra a tirania; ou, em outras palavras, a tentativa de salvaguardar os outros princípios pelos meios institucionais de uma legislação em vez de pela benevolência dos que estejam no poder (cf. secção II do cap, 7).

7 — Cf. Burnet, Greek Philosophy, I, 117. — A doutrina de Protágoras ferida neste parágrafo encontra-se no diálogo de Platão, Protágoras, 322a sgs.; cf. também o Teetetes, esp. 172b (ver ainda nota 27 a este capítulo).

A diferença entre platonismo e protagorismo talvez possa ser assim expressa em resumo:

(Platonismo). Há uma ordem de justiça “natural” inerente ao mundo, isto é, a ordem original ou primeira em que a natureza foi criada. Assim, o passado é bom e qualquer desenvolvimento que leve a novas normas é mau.

(Protagorismo). O homem é o ser moral neste mundo. A natureza não é moral nem imoral. Assim, é possível ao homem melhorar as coisas. — Não é improvável que Protágoras fosse influenciado por Xenofanes, um dos primeiros a expressar a atitude da sociedade aberta e a criticar o pessimismo histórico de Hesíodo: “No princípio, os deuses não mostraram ao homem tudo o que lhe faltava; mas, no decurso do tempo, ele pode procurar o melhor e encontrá-lo”. (Cf. Diels 5, 18). Parece que o sobrinho e sucessor de Platão, Espeusipo, voltou a esta concepção progressista (cf. Aristóteles, Metafísica, 1072b30 e nota 11 ao cap. 11) e que a Academia, com ele, adotou atitude mais liberal também no campo da política.

Com referência à relação da doutrina de Protágoras com os dogmas da religião, pode-se notar que ele acreditava que Deus operava através do homem. Não vejo como esta posição possa contradizer a do cristianismo. Compare-se com ela, por exemplo, a afirmação de K. Barth (Credo, 1936, p. 188); “A Bíblia é um documento humano” (isto é, o homem é instrumento de Deus).

8 — A defesa, por Sócrates, da autonomia da ética (estreitamente relacionada com sua insistência em que os problemas da natureza não importam) está expressa especialmente em sua doutrina da auto-suficiência ou autarquia do indivíduo “virtuoso”. Veremos depois que essa teoria contrasta fortemente com a concepção de Platão sobre a vontade individual; cf. esp, notas 25 a este capítulo e 36 ao seguinte, e texto. (Cf. também 56 ao cap. 10).

9 — Não podemos, por exemplo, construir instituições que trabalhem independentemente de como agem nelas os “homens”. Para estes problemas cf. cap. 7 (textos de notas 7-8, 22-23) e especialmente o cap. 9.

10 — Para a discussão que faz Platão do naturalismo de Píndaro, ver esp. Górgias, 484b, 488b; Leis, 690b (citado abaixo neste capítulo, cf. nota 28), 714e, 715a; cf. também 890a/b. (Ver ainda nota de Adam à Rep., 359c20).

11 — Antifonte usa o termo que, em conexão com Parmênides e Platão, traduzi por “opinião enganosa” (cf. nota 15 ao cap, 3) ; e igualmente o opõe à “verdade”. (Cf. também a tradução de Barker em Greek Political Theory, I — Plato and Hís Predecessors (1918), 83.

12 — Ver Antifonte, Acerca da Verdade; cf. Barker, ob. cit, 83-5. Ver também a próxima nota (2).

13 — Hípias é citado no Protágoras de Platão, 337e. Para as quatro citações seguintes cf. 1) Eurípides, lon, 854 sgs.; e 2) suas As fenícias, 538; cf. também Gomperz, Greek Thinkers (ed. alemã, I, 325); e Barker, ob. cit. 75; cf. também o violento ataque de Platão contra Eurípides na República, 568a-d. Além disso, 3) Alcidamas em Bscol. à Ret. de Aristóteles, I, 13, 1373M8; 4) Licofronte nos Fragm. de Aristóteles, 91 (Rose) ; (cf. igualmente o Pseudo Plutarco, De Nobil., 18.2). Quanto ao movimento ateniense contra a escravidão, cf. O texto correspondente à nota 18 do cap. 4 e à 29 (com ulteriores referências) do mesmo capítulo; e ainda a nota 18 ao cap. 10.

(1) É bom notar que muitos platônicos mostram pouca simpatia para. com esse movimento igualitário. Barker, por exemplo, discute-o sob o título “ Iconoclastia geral”; cf. ob. cit., 75. (Ver também a segunda citação do Platão de Field, citado no texto de nota 3, cap. 6). Esta falta de simpatia é indubitavelmente devida à influência de Platão.

(2) Para o anti-igualitarismo de Platão e Aristóteles mencionado no parágrafo seguinte do texto, cf. também especialmente a nota 49 (e texto) ao cap. 8 e notas 3 e 4 (e texto) ao cap. 11.

Esse anti-igualitarismo e seus devastadores efeitos foram claramente descritos por W. W. Tarn em seu excelente artigo “Alexandre Magno e a Unidade da Humanidade” (Proc. of the British Acad., XIX, 1933, p. 123 sgs.). Tarn reconhece que no século V pode ter havido um movimento para “ algo melhor do que a rude e rígida divisão entre gregos e bárbaros; mas — diz — esse movimento não teve importância para a história, porque todas as iniciativas desse tipo eram estranguladas pelas filosofias idealistas. Platão e Aristóteles não deixaram dúvidas a respeito de suas opiniões. O primeiro afirmou que todos os bárbaros eram inimigos por natureza e que o justo era fazer-lhes guerra para subjugá-los e convertê-los em escravos. Aristóteles disse que todos os bárbaros eram escravos por natureza…” (p. 124; os grifos são meus). Concordo plenamente com a avaliação de Tarn da perniciosa influência anti-humanitária dos filósofos idealistas, isto é, de Platão e Aristóteles. Também concordo com a ênfase que Tarn dá à imensa significação do igualitarismo, da ideia da unidade da humanidade (cf. ob. cit., p. 147). O único ponto com que não posso concordar plenamente é com o julgamento de Tarn sobre o movimento igualitário do século quinto e os cínicos primitivos. Suponho que ele tenha razão em sustentar que a influência histórica desse movimento foi pequena em comparação com a de Alexandre. Mas acredito que ele teria avaliado mais altamente esses movimentos se apenas tivesse acompanhado o paralelismo entre o movimento cosmopolita e o anti-escravagista. O paralelismo entre as relações Gregos: bárbaros e homens livres: escravos é mostrado por Tarn com bastante clareza no trecho aqui citado; e se considerarmos a inquestionável força do movimento contra a escravidão (ver esp. nota 18 ao cap. 4) então as observações esparsas contra a distinção entre gregos e bárbaros ganha muita significação. Cf. também Aristóteles, Pd., III, 5,7 (1278a); IV (VI), 4,16 (1319b) e III, 2,2 (1275b). Ver ainda nota 48 ao cap. 8.

14 — Para o tema “volta às bestas”, cf. cap. 10, nota 71 e texto.

15 — Para a doutrina da alma de Sócrates ver texto de nota 44 ao cap. 10.

16 — O termo “ direito natural” num sentido igualitário chegou a Roma através dos Estóicos (deve ser considerada a influência de Antístenes; cf. nota 48 ao cap. 8) e foi popularizada pelo Direito Romano (cf. Institutiones, II, 1, 2; I, 2, 2). É também usado por Tomás de Aquino (Summa, II, 91,2). O confuso uso do termo “lei natural” em vez de “ direito natural” pelos modernos tomistas é de lastimar, assim como a pequena ênfase que eles dão ao igualitarismo.

17 — A tendência monística que primeiro levou à tentativa de interpretar as normas como naturais conduziu recentemente à tentativa oposta, a saber, de interpretar as leis naturais como convencionais. Este tipo (físico) de convencionalismo foi baseado, por Poincaré, no reconhecimento do caráter convencional ou verbal das definições. Poincaré, e mais recentemente Eddington, apontam que definimos as entidades naturais pelas leis a que elas obedecem. Daí se extrai a conclusão de que essas leis, isto é, as leis da natureza, são definições, isto é, convenções verbais. Cf. carta de Eddington em Nature, 148 (1941), 141; “Os elementos (da teoria física)… só podem ser definidos… pelas leis a oue obedecem; de modo que nos encontramos como um cão a perseguir a própria cauda, num sistema puramente formal”. — Análise e crítica dessa forma de convencionalismo podem ser encontradas em minha obra Logik der Forschung, esp. p. 40 sgs.

18 — Ver abaixo:

(1) A esperança de obter algum argumento ou teoria para compartilhar de nossa responsabilidade é, creio, um dos motivos básicos da ética “científica”. A ética “científica” é, em sua absoluta esterilidade, um dos mais espantosos fenômenos sociais. A que visa? A dizer-nos o que devemos fazer, isto é, a construir um código de normas sobre base científica, de modo que nos baste recorrer ao índice do código sempre que enfrentarmos uma difícil decisão moral? Isto seria claramente absurdo, sem contar de modo algum com o fato de que, se isso pudesse ser realizado, destruiria toda responsabilidade pessoal e, portanto, toda ética. Ou daria ela critérios científicos da verdade e da falsidade dos julgamentos morais, isto é, de julgamentos envolvendo termos tais como “bom” ou “mau”?

Mas é claro que julgamentos morais são inteiramente despropositados. Só um mexeriqueiro se interessa em julgar as pessoas por suas ações; “não julgueis” parece ser, a muitos de nós, uma das leis fundamentais e demasiado pouco apreciadas da ética humanitária. (Podemos ter de desarmar e aprisionar um criminoso a fim de impedir que ele repita seus crimes, mas demasiado julgamento moral, e especialmente indignação moral, é sempre sinal de hipocrisia e farisaísmo). Assim uma ética de julgamentos morais seria não só despropositada como, em verdade, uma coisa imoral. A importância total dos problemas morais repousa, aliás, no fato de que podemos agir com previsão inteligente, e de que podemos indagar de nós mesmos quais devem ser nossos alvos, isto é, como devemos agir.

Quase todos os filósofos morais que trataram do problema de como devemos agir (com a possível exceção de Kant) tentaram dar-lhe resposta ou referindo-se à “natureza humana’-’ (como mesmo Kant fez, ao referir-se à razão humana), ou à natureza “do bem”. O primeiro desses caminhos não conduz a parte alguma, visto todas as ações que nos são possíveis serem baseadas na “ natureza humana”, de modo que o problema da ética poderia também ser expresso indagando que dementas da natureza humana deveríamos seguir e desenvolver e que lados deveríamos suprimir ou controlar. Mas o segundo desses caminhos também não leva a parte alguma, pois, dada uma análise do “bem” em forma de uma sentença como: “ O bem é isto e aquilo” (ou “isto e aquilo é bom”), sempre teríamos de perguntar: E daí? Por que isto me diria respeito? Apenas quando a palavra “bom” é usada num sentido ético, isto é, apenas quando é usada para indicar “ o que eu devo fazer”, posso eu extrair da informação de que “x é bom” a conclusão de que devo fazer x. Em outras palavras, se o termo “bom” tiver de possuir algum significado ético, deverá ser definido como “aquilo que se deve fazer (ou promover”. Mas, assim definido, todo o seu sentido é esgotado pela frase definidora e poderá ele, em cada contexto, ser substituído por essa frase; vale dizer que a introdução do termo “bom” não pode contribuir materialmente para solver nosso problema (cf. também nota 49 (3) ao cap. 11).

Todas as discussões acerca da definição do bem (e do bom) ou acerca da possibilidade de definí-lo são, portanto, inteiramente inúteis. Só mostram quanto a ética “ cientifica” está afastada dos problemas prementes da vida moral. E assim indicam que a ética “científica” é uma espécie de evasão, de fuga às realidades da vida moral, isto é, de nossas responsabilidades morais. (Em vista destas considerações, não é surpreendente verificar que o começo da ética “científica”, sob a forma de naturalismo ético, coincide no tempo com o que se pode chamar a descoberta da responsabilidade pessoal. Cf. o que vem dito no cap. 10, texto de notas 27-28 e 55-7, sobre a sociedade aberta e a Grande Geração.

(2) Pode ser cabível, nesta conexão, a referência a uma forma particular de evasão da responsabilidade aqui discutida, como a exibida especialmente peio positivismo jurídico da escola hegeliana, assim como por um naturalismo espiritual que lhe é estreitamente aliado. Que o problema ainda é significativo, isso se pode ver do fato de que um autor da excelência de Catlin continua, neste ponto importante (como em numerosos outros), dependente.de Hegel; e minha análise tomará a forma de uma crítica dos argumentos de Catlin em favor do naturalismo espiritual e contra a distinção entre leis da natureza e leis normativas (cf. G. E. G. Catlin, A Study of the Principies of Politics, 1930, p. 96-99).

Catlin começa fazendo clara distinção entre as leis da natureza e as “leis… que os legisladores humanos fazem”; e ele admite que, à primeira vista, a expressão “lei natural”, se aplicada às normas, “surge como patentemente anti-cientifica, pois parece deixar de fazer uma distinção entre aquela lei humana que exige imposição e as leis físicas que são incapazes de rompimento”. Mas ele tenta mostrar que isso só parece ser assim e que “ nossa critica” de tal modo de usar o termo “lei natural” foi “demasiado apressada”! E passa a uma clara enunciação do naturalismo espiritual, isto é, a uma distinção entre a “lei sã”, que está de “acordo com a natureza” e a outra lei: “A lei sã, assim, envolve uma formulação de tendências humanas, ou, em suma, é uma cópia da lei “natural” a ser “encontrada” pela ciência política. A lei sã é, nesse sentido, enfaticamente encontrada e não feita. É uma cópia da lei social natural” (isto é, do que chamei “leis sociológicas”, cf. texto de nota 8 neste capítulo). E ele conclui insistindo em que, na medida em que o sistema legal se torna mais racional, suas regras (deixam de assumir o caráter de mandamentos arbitrários e se tornam meras deduções extraídas das leis sociais primárias” (isto é, das que eu chamaria “leis sociológicas”).

(3) Esta é uma exposição muito forte de naturalismo espiritual. Sua crítica é tanto mais importante quanto Catlin combina sua doutrina com uma teoria de “mecânica social” que talvez à primeira vista pode parecer semelhante à aqui propugnada (cf. texto de nota 9 ao cap. 3 e texto de notas 1-3 e 8-11 ao cap. 9). Antes de discuti-la, quero explicar por que considero a opinião de Catlin como dependente do positivismo de Hegel. Ta! explicação é necessária porque Catlin emprega seu naturalismo a fim de distinguir entre lei “sã” e outras leis; em outras palavras, usa-o para distinguir entre leis “justas” e “injustas”; e esta distinção certamente não tem o aspecto de positivismo, isto é, do reconhecimento das leis existentes como o único padrão de justiça. A despeito de tudo isso, creio que as concepções de Catlin muito se aproximam do positivismo e pela razão de que ele acredita que só a lei “si” pode ser efetiva e, em tal medida, “existente”, precisamente no sentido de Hegel. Catlin, de fato, diz que, quando nosso código legal não é “ são”, isto é, não está de acordo com as leis da natureza humana, então “nosso estatuto permanece no papel”. Esta afirmativa é do positivismo mais puro, pois nos permite deduzir que certo código é “são” pelo fato de não ficar apenas “no papel”, mas ser imposto com sucesso; em outras palavras, que toda legislação que não fique simplesmente no papel é uma cópia da natureza humana e, portanto, justa.

(4) Passo agora a uma breve crítica dos argumentos apresentados por Catlin contra a distinção entre (a) leis da natureza que não podem ser violadas e (b) leis normativas, que são de autoria humana, isto é, impostas por sanções, distinção que ele mesmo, a princípio, tornou tão clara. O argumento de Catlin é de dois gumes. Mostra ele (a’) que as leis da natureza também são de autoria humana, em certo sentido, e que podem, em certo sentido, ser violadas; e (b’) que em certo sentido as leis normativas não podem ser violadas. Começo com (a’): “As leis naturais do físico — escreve Catlin — não são fatos brutos, são racionalizações do mundo físico, quer super-impostas pelo homem ou justificadas por ser o mundo inerentemente racional e ordenado”. E passa a mostrar que, as leis naturais “podem ser anuladas” quando “fatos recentes” nos compelem a refundir a lei. Minha resposta a esse argumento é esta: um enunciado entendido como uma formulação de uma lei da natureza é certamente de autoria humana. Nós fazemos a hipótese de que existe certa regularidade invariável, isto é, descrevemos a suposta regularidade com o auxílio de um enunciado como lei natural. Mas, como cientistas, estamos dispostos a aprender da natureza que erramos; estamos dispostos a refundir a lei se fatos recentes que contradisserem nossa hipótese mostrarem que a nossa suposta lei não era lei, porque foi violada. Em outras palavras, aceitando a anulação da natureza, o cientista mostra que aceita uma hipótese apenas enquanto ela não foi desmentida; o que equivale a dizer que ele encara uma lei da natureza como uma regra que não pode ser violada, visto como aceita a quebra de sua regra como uma prova de que essa regra não formulava uma lei da natureza. Ainda mais: embora a hipótese seja de autoria humana, podemos ser incapazes de impedir sua refutação. Isso mostra que, criando a hipótese, não criamos a regularidade que ela se propunha descrever (embora tenhamos criado um novo conjunto de problemas e possamos ter dado origem a novas observações e interpretações), (b’) “Não é verdade — diz Catlin — que o criminoso “viole” a lei quando comete o ato proibido… O estatuto não diz: “não podes”; diz: “não farás, ou esta punição te, será infligida”. Como mandamento — prossegue Catlin — pode ser violado, mas, como lei, num sentido muito real, só será violado se a punição não for infligida… Na medida em que a lei é perfeita e suas sanções se executam… ela se aproxima da lei física”. A respostá a isto é simples. Em qualquer sentido em que falemos de “violação” da lei, pode a lei jurídica ser violada: não há arranja verbal que altere isso. Aceitemos a opinião de Catlin de que um criminoso não pode “violar” a lei e que esta só é “violada” se o criminoso não receber a punição que a lei prescreve. Mas mesmo deste ponto de vista a lei pode ser violada; por exemplo, pelos funcionários do estado que recusem punir o criminoso. E mesmo num estado em que todas as sanções sejam, de fato, executadas, os funcionários poderiam, se quisessem, impedir tal execução e, assim, “violar” a lei no sentido de Catlin. (Outra questão inteiramente diversa é o fato de eles também, por isso, “ violarem” a lei no sentido comum, isto é, tornarem-se criminosos e poderem acabar por ser punidos.) Em outras palavras: uma lei normativa é sempre imposta pelos homens e por suas sanções, e é, portanto, fundamentalmente diferente de uma hipótese. Legalmente, podemos impor a supressão do assassínio, ou dos atos de bondade, da falsidade, ou da verdade, da justiça, ou da injustiça. Mas não podemos forçar o sol a alterar seu curso. Não há quantidade de argumentação que preencha esse abismo.

19 — A “natureza de felicidade e desgraça” é referida no Teetetes, 175c. Para a estreita relação entre “natureza” e “Forma” ou “Ideia”, cf. esp. República, 597a-d, onde Platão primeiro discute a Forma ou Ideia de uma cama, para depois referir-se a ela como “a cama que existe por natureza e que foi feita por Deus” (597b). No mesmo lugar, ele apresenta a distinção correspondente entre o “artificial” (ou a coisa “fabricada”, que ê uma “imitação”) e a “verdade”. Cf. também Adam, nota à Rep., 597M0 (com a citação de Burnet ali dada) e as notas a 476bl3, 501b9, 525cI5; e mais Teetetes, 174b (e a nota 1 de Cornford à pág. 85 de seu Plato’s Theory of Knowledge). Ver igualmente Arist, Met, 1015al4.

20 — Para o ataque de Platão à arte, ver o último livro da República e especialmente as passagens Rep., 600a-605b mencionados na nota 39 ao cap. 4.

21 — Cf. notas 11, 12 e 13 a este capítulo, e o texto. Minha afirmação de que Platão concorda pelo menos em parte com as teorias naturalistas de Antifonte (embora ele, sem dúvida, não concorde com o igualitarismo de Antifonte) parecerá estranha a muitos, especialmente aos leitores de Barker, ob. cit. E talvez os surpreenda ainda mais ouvir a opinião de que o principal desacordo não foi tanto teórico, mas antes de moral prática, sendo Antifonte, e não Platão, quem estava moralmente certo, até onde há referência ao problema prático do igualitarismo. (Para a concordância de Platão com o princípio de Antifonte de que a natureza  é verdadeira e reta, ver também texto de notas 23 e 28 e, nota 30 a este capitulo).

22 — Estas citações são do Sofista, 266b e 2ó5e, Mas a passagem também contém (265c) uma crítica (semelhante a Leis, citada no texto de notas 23 e 30 neste capítulo) do que se pode descrever como uma interpretação materialista do naturalismo tal como era sustentado, talvez, por Antifonte; quero dizer, “a crença… de que a natureza… gera sem inteligência.”

23 — Cf. Leis, 892a e c. Para a doutrina da afinidade da alma com as Ideias ver também nota 15 (8) ao cap. 3. Sobre a afinidade de “naturezas” e “almas”, ver Aristóteles, Met., 10l5al4, com os trechos das Leis citados e com 896d/e: “a alma habita em todas as coisas moventes”…

Comparecem-se mais especialmente as seguintes passagens em que “naturezas” e “almas” são usadas de um modo que é evidentemente sinônimo: Rep., 485a/b e 485e/486a e d; 486b (“ natureza”); 486b e d (“alma”); 490e/491a (ambas); 491b (ambas) e muitos outros pontos (cf. também nota de Adam a 370a7). A afinidade é diretamente afirmada em 490b (10). Sobre a afinidade entre “natureza” e “alma” e “raça”, cf. 501e, onde a expressão “naturezas filosóficas”, ou “almas”, encontrada em passagens análogas, é substituída por “raça de filósofos”.

Há também uma afinidade entre “alma” ou “natureza” e a classe social ou casta; ver, p. ex., Rep., 43Sb. A conexão entre casta e raça é fundamental, pois, desde o início (41Sa) casta é identificada com raça. “ Natureza” é usada no sentido de “talento” ou ” condição da alma” em Leis, 648d, 650b, 65Se, 710b, 766a, 87Sc. A prioridade e superioridade da natureza sobre a arte é exposta em Leis, 899a sgs. Para “ natural” ou “ verdadeiro” ver Leis, 686d e 818e, resp.

24 — Cf. as passagens citadas na nota 32 (1), (o) e (c) ao cap. 4.

25 — A doutrina socrática da autarquia é mencionada na Rep., 387d/e (cf. Apologia, 41c sgs., e nota de Adam à Rep., 387d25). Esta é apenas uma dás poucas passagens esparsas reminiscentes do ensinamento socrático, mas está em contradição direta com a doutrina principal da República, tal como é exposta no texto (ver também nota 36 ao cap. 6 e texto) ; pode-se ver isto contrastando a passagem citada com 369c sgs. e muitas outras passagens semelhantes.

26 — Cf. p. ex. a passagem citada, no texto de nota 29 ao cap. 4. Sobre as “naturezas raras e incomuns”, cf. Rep., 491a/b e muitas outras passagens, como Timeu, 51e: “a razão é compartilhada pelos deuses com pouquíssimos homens’’. Quanto ao “ habitat social”, ver 491d (cf. também cap. 23).

Enquanto Platão (com Aristóteles, cf. esp. nota 4 ao cap. 11 e texto) insistia em que o trabalho manual é degradante, Sócrates parece ter adotado atitude bem diferente. (Cf. Xenofonte, Memorabilia, II, 7; 7-10; a narrativa de Xenofonte é em certa extensão confirmada por Antístenes e Diógenes, em sua atitude para com o trabalho manual; cf. também nota S6 ao cap. 10).

27 — Ver esp. Tectetes, 172b (cf. ainda os comentários de Cornford a este trecho, em Plato’s Theory of Knowledge). Ver ainda nota 7 a este capítulo. Os elementos de convencionalismo no ensinamento de Platão talvez possam explicar por que alguns que ainda possuíam escritos de Protágoras disseram que a República se assemelhava a estes. Sobre a teoria do contrato de Licofronte ver notas 43 a 54 ao cap. 6 (esp. nota 46) e o texto.

28 — Cf. Leis, 690b/c; ver nota 10 a este capítulo. Platão também menciona o naturalismo de Pfndaro em Górgias, 484b, e Leis, 714c, 890a. Para a oposição entre “compulsão interna”, de um lado, e (o) “ação livre” e (b) “natureza”, do outro, cf. também Rep., 603c, e Tirneu-, 64d. (Cf. ainda Rep. 466c-d, cit. na nota 30 â este capítulo).

29 — Cf. Rep., 369b-c. Isto faz parte da teoria do. contrato. A citação seguinte, que é a primeira enunciação do princípio naturalista no estado perfeito, é de 370 a/b-c. (O Naturalismo é primeiramente mencionado na República por Glaucon, em 358e sgs.; mas esta, sem dúvida não é a própria doutrina de Platão sobre o naturalismo).

(1) Para maior desenvolvimento do princípio naturalista da divisão do trabalho e da parte que esse princípio desempenha na teoria da justiça de Platão, cf. esp. texto de notas 6, 23 e 40 ao cap. 6.

(2) Sobre uma versão radical moderna do princípio naturalista, ver a fórmula de Marx para a sociedade comunista: “De cada um segundo sua capacidade; a cada um segundo sua necessidade!” (Cf. p. ex. A Handbook of Marxism, E. Burns, 1935; p. 752; e nota 8 ao cap. 13; ver ainda nota 3 ao cap. 13 e nota 48 ao cap. 24 e texto).

Quanto às raízes históricas desse “princípio do comunismo”, ver a máxima de Platão: “Os amigos têm ém comum todas as coisas que possuem” (v. nota 36 ao cap. 6 e texto; sobre o comunismo de Platão, ver ainda notas 34 ao cap. 6 e 30 ao cap. 4 e textos) e compare-se esta passagem com os Atos dos Apóstolos: “E todos os que criam estavam juntos e tinham todas as coisas em comum… e as repartiam entre todos, conforme a necessidade de cada um” (II, 44-45). “E não havia entre eles quem sofresse faltas: pois … era feita a distribuição a cada um, de acordo com a sua necessidade” (IV, 34-35).

30 — Ver nota 23 e texto. As citações do presente parágrafo são todas de Leis: (1) 889a-d (cf. a passagem muito semelhante em Teet., 172b); (2) 896c-e; (3 ) 890e/891a.

Sobre o parágrafo que se segue no texto (isto é, sobre minha afirmação de que o naturalismo de Platão é incapaz de resolver problemas práticos) pode servir de ilustração o seguinte: Muitos naturalistas têm afirmado que homens e mulheres são “por natureza” diferentes, tanto física como espiritualmente, e que devem, portanto, desempenhar funções diversas na vida social. Platão, contudo, usa o mesmo argumento naturalista para provar o contrário, pois, indaga, não são os cães de ambos os sexos úteis tanto para vigiar como para caçar? “Não concordais — escreve ele (Rep., 466c-d) — em que as mulheres… devam participar com os homens da vigilância, assim como da caça, como se dá com os cães;… e que, assim fazendo, estarão elas agindo do modo mais desejável, pois isto não será contrário à natureza, mas de acordo com as relações naturais dos sexos?” (Ver também texto de nota 28 a este capítulo; para o cão como guardião ideal, cf. cap. 4, esp. nota 32 (2) e texto).

31 — Para breve crítica da teoria biológica do estado, ver nota 7 ao cap. 10 e texto. Sobre a origem oriental da teoria, ver R. Eisler, Revue de Synthèse Historique, vol. 41, p. 15.

32 — Quanto a algumas aplicações da teoria política da alma, de Platão, e quanto às influências daí extraídas, ver notas 58-9 ao cap. 10 e texto. Para a fundamental analogia metodológica entre cidade e indivíduo, ver esp. Rep., 368e, 445c, 577c. Para a teoria política de Alcmeon sôbr«, o indivíduo humano, ou a fisiologia humana, cf. nota 13 ao cap. 6.

33 — Cf. Rep. 423b e d.

34 — Esta citação, assim como a seguinte, é de G. Grote, Plato and the Other Companions of Sócrates (1875), vol. III, 124. — As principais passagens da Rep. são 439c sg. (a história de Leôncio); 571c sg. (a parte bestial contra a parte racional); 588c (o Monstro Apocalíptico, cf. a “Bêsta” que possui um número Platônico, no Apocalipse, XIII, 17 e 18) ; 603d e 604b (o homem em guerra consigo mesmo). Ver ainda Leis, 689a-b e notas 58-9 ao cap. 10.

35 — Cf. Rep., 519e sg. (e também nota 10 ao cap. 8). As duas citações seguintes são ambas de Leis, 903c (inverti a ordem). Pode-se mencionar que o “todo” a que se referem essas duas passagens (“pan” e “holon”) não é o estado, mas o mundo; contudo, não há dúvida de que a tendência subjacente desse holismo cosmológico é um holismo político; cf. Leis, 903d-e (onde o médico e o artífice são associados ao estadista) ; e de fato Platão muitas vezes usa “holon” (esp. no (plural) para significar “estado”, tanto quanto “mundo”. Além do mais, a primeira destas duas passagens (na minha ordem de citação) é uma versão abreviada de Rep., 420b-421c; a segundá, de Rep., 520b sgs. (“Nós vos criamos por causa do estado, tanto quanto por vossa própria causa”). Outras passagens sobre o holismo ou coletivismo são: Rep., 424a, 449e, 462b; Leis, 715b, 739c, 875a sg., 903b, 923b, 942a sg. (Ver também notas 31/32 ao cap. 6). Para a observação deste parágrafo de que Platão falava do estado como de um organismo, cf. Rep., 462c, e Leis, 964e, onde o estado é até comparado com o corpo humano.

36 — Cf. Adam em sua edição da Rep., vol. II, 303; ver também nota 3 ao cap. 4 e texto.

37 — Este ponto é acentuado por Adam, ob. cit, nota 546a, b7 e p. 288 e 307. A citação seguinte neste parágrafo é de Rep., 546a; cf. Rep. 485a/b, cit. na nota 26 (1) ao cap. 3 e no texto de nota 33 ao cap. 8.

38 — Este é o principal ponto em que me devo desviar da interpretação de Adam. Acredito que Platão indicou que o rei filósofo dos livros VI-VII, cujo principal interesse está nas coisas que não são geradas e não decaem (Rep. 485b; ver a nota anterior e as passagens ali referidas), obtém, por seu adestramento matemático e dialético, o conhecimento do Número Platônico e, com este, os meios de deter a degeneração social e, portanto, a decadência do estado. Ver especialmente o texto de nota 39.

As citações que se seguem neste parágrafo são: “conservando pura a raça dos guardiães”; cf. Rep., 460c e texto de nota 34, cap. 4; “uma cidade assim constituída” etc.: 546a.

A referência à distinção feita por Platão, no campo da matemática, acústica e astronomia, entre conhecimento racional e opinião enganosa baseada na experiência ou percepção está em Rep., 523a, sgs., 525d sgs. (onde o cálculo é discutido; ver esp. 526a) ; 527d sgs., 529b sg. 531a sgs. (até 534a e 537d) ; e ver ainda 509d-511e.

39 — Fui censurado por “acrescentar” as palavras (que nunca apresentei como citações) sobre “falta de um método puramente racional”; mas, em vista de Rep. 523a a 537d, parece-me claro que a referência de Platão a percepção implica precisamente esse contraste.

As citações deste parágrafo são de Rep., 546b sgs. Em minha interpretação da História da Queda e do Número, cuidadosamente evitei o difícil, não decidido e talvez insolúvel problema da computação do próprio Número. (Pode ser insolúvel, pois Platão pode não ter revelado inteiramente seu segredo). Limito minha interpretação inteiramente às passagens imediatamente antes e depois da que descreve o próprio Número; creio serem tais passagens bastante claras. Apesar disso, minha interpretação se desvia, tanto quanto sei, de tentativas anteriores.

(1) O enunciado crucial em que baseio minha interpretação é (A) o de que os guardiães operam por “cálculo ajudado pela percepção”, Junto a isto, estou usando os enunciados (B) de que eles não “darão acidentalmente com (o meio correto de) obter boa descendência”; (C) de que eles “se enganarão e engendrarão filhos erradamente”; (D) de que são “ignorantes” de tais assuntos (como o Número).

Com relação a (A), deve ser claro para qualquer leitor cuidadoso de Platão que tal referência à percepção tenciona se.r uma crítica do método em aprêço. Esta concepção da passagem em consideração 546a sg.) é sustentada pelo fato de que ela vem imediatamente após as passagens 523a-537d (ver o fim da nota anterior), em que a oposição entre o puro conhecimento racional e a opinião baseada na percepção é um dos temas principais, e em que, mais especialmente, a palavra “ cálculo” é usada num contexto que acentua a oposição entre o conhecimento racional e a experiência, ao passo que ao termo “percepção” (ver também 511c/d) é dado um sentido técnico definido e pejorativo. (Cf. também, p. ex., a redação de Plutarco ao discutir essa oposição, em sua Vida de Marcelo, 306). Sou, portanto, de parecer — e esta opinião é reforçada pelo contexto, especialmente por (B), (C) e (D), de que a observação de Platão (A) implica: («) que o “cálculo baseado na percepção” é um método pobre; e (b) que há métodos melhores, a saber, os métodos da matemática e da dialética, que permitem o puro conhecimento racional. O ponto que tento salientar é, na verdade, tão simples que eu não me deveria ter incomodado tanto a seu respeito, se não fosse pelo fato de que mesmo Adam não deu com ele. Em sua nota a 546a, b7, ele interpreta “cálculo” como uma referência à tarefa dos governantes de determinar o número de casamentos que poderiam permitir, e “ percepção” como o meio pelo qual “decidem quais os casais que se devem unir, quantos filhos seriam tidos”, etc. Isto é, Adam toma a observação de Platão como uma simples descrição, e não como uma polêmica contra a fraqueza do método empírico. Em consequência, não lhe relaciona a afirmação (C) de que os governantes “se enganarão”, nem a observação (D) de que eles são “ ignorantes” do fato de usarem métodos empíricos. (A observação (B) de que eles não “darão com” o método certo “por acaso” ficaria simplesmente sem tradução, se acompanhássemos a sugestão de Adam).

Ao interpretar nossa passagem, devemos conservar em mente que no livro VIII, imediatamente antes da passagem em questão, Platão volta ao caso da primeira cidade dos livros II a IV. (Ver as notas de Adam a 449a sgs. e 543a sgs). Mas os guardiães desta cidade não são matemáticos nem dialéticos. Assim, não têm ideia dos métodos puramente racionais tão salientados no livro VIT, 525-534. Relativamente, é inegável a importância das observações sobre a percepção, isto é, sobre a pobreza dos métodos empíricos a ignorância resultante dos guardiães.

A afirmativa (B) de que os governantes não “darão acidentalmente com” (o meio correto de)“ obter boa descendência, ou nenhuma em absoluto” fica perfeitamente clara em minha interpretação. Como os governantes apenas têm a seu dispor métodos empíricos, seria apenas um feliz acidente se dessem com um método cuja determinação exige métodos matemáticos ou outros racionais. Adam sugere (nota a 546a, b7) a tradução: “muito menos obterão, pelo cálculo juntamente com a percepção, boa descendência”; e só entre parênteses acrescenta: “ Literalmente, acertarão em obter”. Acho que essa sua falha em ver qualquer sentido no “acertar” ou “dar com” é uma consequência de sua falha em ver as implicações de (A).

A interpretação aqui sugerida torna (C) e (D) perfeitamente compreensíveis; e a observação de Platão de que seu Número é “senhor do melhor ou pior nascimento” cabe aí perfeitamente. Pode-se observar que Adam não comenta (D), isto é, a ignorância, embora tal comentário fosse muito necessário em vista de sua teoria (nota a 546d22) de que “o número não é nupcial” e de que não tem significação técnica eugênica.

Creio ser claro que a significação do Número é na verdade técnica e eugênica, se considerarmos que a passagem contendo o Número vem encerrada nas que contêm referências ao conhecimento eugênico, ou antes, á falta de conhecimento eugênico.

Imediatamente antes do Número, ocorrem (A), (B) e (C); (D) ocorre imediatamente depois, assim como a história, dos nubentes e de sua descendência degenerada. Além disso, (C) antes do Número e (D) depois do Número referem-se um ao outro; pois (C), o “engano”, é relacionado com uma referência a “engendrar do modo errado”, e (D), a “ignorância”, relata-se a uma referência exatamente análoga, a saber, “ unir esposo e esposa da maneira errada” (ver também a nota seguinte).

O último ponto em que devo defender minha interpretação é minha afirmação de que aqueles que conhecem o Número obtêm, em consequência, o poder de influenciar “o melhor ou o pior nascimento”. Isto, sem dúvida, não decorre da afirmativa de Platão de que o próprio Número tem esse poder, pois, a ser certa a interpretação de Adam, então o Número apenas regularia os nascimentos, por determinar um período inalterável após o qual se inicia a degeneração. O que eu afirmo, porém, é que as referências de Platão ao “engano”, á “ percepção” e á “ignorância” como causas imediatas dos erros eugenésicos careceriam de sentido de sua intenção não tivesse sido a de que os guardiães, uma vez possuidores dos adequados conhecimentos dos métodos matemáticos e puramente racionais mais adequados, não errariam. Mas isto torna inevitável a inferência de ou» o Número tem um significado eugênico técnico e de que seu conhecimento é a chave da faculdade de deter a degeneração. (Esta inferência é a única que me parece compatível com tudo o que conhecemos a respeito dessa espécie de superstição; a astrologia, por exemplo. Leia-se na concepção, aparentemente um tanto contraditória; de que o conhecimento de nosso destino nos pode ajudar a influir sobre ele.

Acho que as tentativas de explicar o Número como algo que não seja um secreto tabu de procriação vêm da relutância em creditar a Platão idéias tão cruas, mesmo embora ele as expresse claramente. Em outras palavras, nascem da tendência para idealizar Platão.

(2) A este respeito, devo referir-me a um artigo de A. E. Taylor, “ O Declínio e Queda do Estado na República, VIII” (Mind, N. S., 48, 1939, p. 23 sgs.). Neste artigo, Taylor ataca Adam (a meu ver, injustamente) e argumenta contra ele: “ É verdade, sem dúvida, que a decadência do Estado ideal é expressamente declarada em 546b como tendo início quando a classe dirigente “ gera filhos fora da época devida”… Mas isso não necessita significar, e em minha opinião não significa, que Platão aqui se esteja preocupando com problemas de higiene da reprodução. O pensamento principal é muito simples, a saber, o de que, se o estado, como tudo quanto é de procedência humana, traz em si o germe de sua própria destruição, isto deve sem dúvida significar que, tarde ou cedo, os que detêm o poder supremo terão de ser inferiores aos que os precederam” (pág. 25 sg.). Ora, esta interpretação não só me parece insustentável em razão das declarações perfeitamente definidas de Platão, como também tipicamente ilustrativa da tentativa de eliminar dos escritos de Platão todos aqueles elementos embaraçadores, como o racismo e a superstição, Adam começou por negar que o Número tivesse uma importância eugênica técnica, afirmando que não era um “número nupcial”, mas somente um período cosmológico. E agora Taylor continua negando que Platão se interesse de qualquer modo pelos “ problemas da higiene da reprodução”. Entretanto, o texto de Platão está repleto de alusões a estes problemas e o próprio Taylor admite, duas páginas antes (p. 23) que “em parte alguma se insinua” que o Número “ seja determinante de outra coisa que não melhores e piores nascimento”. Além disso, não só a passagem em apreço mas toda a República (e de modo semelhante o Estadista, esp. 310b, 310e) se acha simplesmente saturada com a ênfase dada aos “problemas de higiene da reprodução”. A teoria de Taylor de que Platão, quando fala da “criatura humana” (ou, como Taylor diz, de “uma coisa de geração humana”), quer referir-se ao estado,, e de que Platão deseja aludir ao fato de que o estado é criação de um legislador humano, parece-me não ter apoio no texto de Platão. A passagem inteira começa com uma referência às coisas do mundo sensível em fluxo, às coisas que são geradas e que decaem (ver notas 37 e 38 a este capítulo, e mais especialmente às coisas vivas, plantas assim como animais, e a seus problemas raciais. Além disso, uma coisa “ feita pelo homem”, se acentuada por Platão em tal contexto, significaria uma coisa “artificial”, que é inferior porque “duas vezes distanciada” da realidade. (Cf. texto de notas 22-23 deste capítulo e todo o livro X da República até o fim de 608b). Platão jamais esperaria que alguém interpretasse a expressão “ uma coisa de autoria humana” como significando o estado “ natural” e perfeito; antes, esperaria que se pensasse em algo muito inferior (como a poesia; cf. nota 39 ao cap. 4). A expressão que Taylor traduziu como “ coisa de geração humana” é, normal e simplesmente traduzida como “criatura humana” e isso remove todas as dificuldades.

(3) Admitindo que a minha interpretação da passagem em questão é correta, uma sugestão pode ser feita com propósito de relacionar a crença de Platão na significação da degeneração racial com sua reiterada advertência de que o número de membros da classe dirigente deveria ser mantido constante) advertência que mostra que o sociólogo Platão compreendia o efeito perturbador do aumento populacional). O modo de pensar de Platão, descrito no fim do presente capítulo, (cf. texto de nota 45 e nota 37 ao cap. 8), especialmente o modo por que ele opõe o único monarca e os Poucos timocratas aos Muitos que não passam de uma multidão, pode ter-lhe sugerido a crença de que um aumento de número é equivalente a um decréscimo de qualidade. (Algo nessa linha, cm verdade, é sugerido nas Leis, 710d). Se esta hipótese é correta, então ê’.e podia ter concluído facilmente que o acréscimo de população é interdependente da degeneração racial ou talvez mesmo causado por ela. Sendo, de fato, o acréscimo da população a principal causa da instabilidade e da dissolução das .primitivas sociedades tribais gregas (cf. notas 6, 7 e 63 ao cap. 10 e texto), esta hipótese explicaria a razão de Platão acreditar que a causa “ real” era a degeneração racial (em correspondência com sua teoria geral da “natureza” e da “mudança”).

40 — Ver abaixo:

(1) Ou “na ocasião errada”. Adam insiste (nota a 546d22) em que não devemos traduzir “na época errada”, mas “ inoportunamente”. Posso observar que minha interpretação é inteiramente independente desta questão; é plenamente compatível com “inoportunamente”, ou “ erroneamente”, ou “ na ocasião errada”, ou “ fora da época devida”, etc. (A expressão em apreço significa originalmente algo como “ contrário à medida adequada”; habitualmente quer dizer “ na época errada”).

(2) Com respeito às observações de Platão acerca de “mescla” e “mistura”, pode-se notar que ele parece ter mantido uma teoria primitiva mas popular de hereditariedade (ao que parece ainda sustentada por criadores de cavalos de corrida) de acordo com a qual o descendente é uma mescla ou mistura equilibrada dos caracteres ou “ natureza” de seus dois pais e que suas características, ou naturezas, ou “virtudes” (vigor, velocidade, etc., ou, de acordo com a República, o Estadista e as Leis, gentileza, bravura, audácia, auto-domínio etc.) nele se misturam em proporção ao número de ancestrais (avós, bisavós etc.) que possuíram essas características. Em consequência, a arte de criar é a de uma judiciosa e matemático-científica ou harmoniosa mescla ou mistura de naturezas. Ver especialmente o Estadista, onde o ofício real do estadista ou pastor é comparado ao do tecelão e onde o tecelão régio deve misturar a audácia ao auto-domínio. (Ver também Rep., 375c-e e 410c sgs.Leis, 731b; e notas 34 sg. ao cap..4, 13 e 39 sg. ao cap. 8 e texto).

41 — Sobre a lei de Platão das revoluções sociais, ver esp. nota 26 ao cap. 4 e texto.

42 — O termo “ metabiologia” é usado por G. B. Shaw neste sentido, isto é, como denotando uma espécie de religião (Cf. o prefácio de Back to Methuselah; ver também nota 66 ao cap. 12).

43 — Cf. nota de Adam a Rep., 547a3.

44 — Para uma crítica do que chamo “ psicologismo” no método da sociologia, ver o texto de notá 19, cap. 13 e o cap. 14, onde é discutido o ainda popular psicologismo metodológico de Mill.

45 — Muitas vezes se tem dito que o pensamento de Platão não deve ser apertado num “sistema”; em consequência, provavelmente suscitarão críticas as minhas tentativas neste parágrafo (e não só neste parágrafo) para mostrar a unidade sistemática do pensamento de Platão, que é evidentemente baseado na tábua pitagórica dos opostos. Acredito, porém, que tal sistematização é uma prova necessária de qualquer interpretação. Os que acreditam não necessitar de uma interpretação, podendo “conhecer” um filósofo ou sua obra e tomá-lo “tal como era”, ou sua obra “ tal como era”, esses estão enganados. Apenas podem interpretar tanto o homem como sua abra; mas, como não levam em consideração o fato de que interpretam (de que sua opinião é colorida pela tradição, temperamento, etc.) sua interpretação necessariamente terá de ser ingênua e não crítica (Cf. também cap. 10 — notas 1 a 5 e 56 — e cap. 25). Uma interpretação crítica, entretanto, deve tomar a forma de uma reconstrução racional, deve ser sistemática; deve tentar reconstruir o pensamento do filósofo como um edifício consistente. Cf. ainda o que A. C. Ewing diz de Kant (A Short Commentary on Kant’s Critique of Pure Reason, 1938, p. 4) : “… devemos partir da suposição de que um grande filósofo não corre o risco de estar sempre a contradizer-se e, consequentemente, onde houver duas interpretações, uma das quais tornará Kant consistente e a outra inconsistente, preferiremos a primeira à última, se razoavelmente isso for possível”. Isto, por certo, aplica-se também a Platão e mesmo à interpretação em geral.


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