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Comentários a ‘O Fascínio de Platão’ de Karl Popper – Capítulos 1 e 2

No dia 25 de março de 2019 os inscritos no programa Novos Pensadores começaram a se debruçar sobre o primeiro volume de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper (1945), intitulado O Fascínio de Platão.

Entender as razões do fascínio de Platão é fundamental para a aprendizagem democrática.

Como uma canja para os que não estão fazendo o programa vamos publicar aqui os textos originais de Popper – com destaques em vermelho e os comentários provocativos em azul – que geraram conversações democráticas entre os participantes do curso.

Já publicamos os comentários à Introdução do primeiro volume. Seguem abaixo os comentários aos dois primeiros capítulos.

PRIMEIRA PARTE

O FASCÍNIO DE PLATÃO

Em favor da Sociedade Aberta (cerca de 430 A. C.):

“Embora somente poucos possam dar origem a uma politica, somos todos capazes de julgá-la”.

Péricles de Atenas

Contra a Sociedade Aberta (cerca de 80 anos depois):

“O maior de todos os princípios é que ninguém, seja homem ou mulher, deve carecer de um chefe. Nem deve a mente de qualquer pessoa ser habituada a permitir-lhe fazer ainda que a menor coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra como em meio à paz, porém, deve ela dirigir a vista para seu chefe e segui-lo fielmente. E mesmo nas mais ínfimas questões deve manter-se em submissão a essa chefia. Por exemplo, deve levantar-se, ou mover-se, ou lavar-se, ou tomar refeições… apenas se lhe for ordenado que o faça. Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se totalmente incapaz disso”.

Platão de Atenas

O MITO DA ORIGEM E DO DESTINO

CAPÍTULO 1

O HISTORICISMO E O MITO DO DESTINO

É crença muito ampla que uma atitude verdadeiramente científica ou filosófica para com a política e uma compreensão mais profunda da vida social em geral devem basear-se na contemplação e na interpretação, da história humana. Enquanto o homem comum considera como coisas assentes o seu modo de vida e a importância de suas experiências pessoais e pequeninas lutas diz-se que o cientista ou filósofo social tem de encarar tudo de plano mais elevado. Vê ele o indivíduo como um peão, como instrumento algo insignificante no desenvolvimento geral da humanidade. E verifica que os atores realmente importantes no Palco da História são as Grandes Nações e seus Grandes Líderes, ou talvez as Grandes Classes, ou as Grandes Ideias. Seja isto como for, tentará compreender a significação da peça que se representa no Palco Histórico; tentará entender as leis do desenvolvimento histórico. Se o conseguir, naturalmente estará capacitado a predizer desenvolvimentos futuros. Poderá, então, colocar a política sobre sólida base e dar-nos conselhos práticos, dizendo-nos quais as ações políticas mais em condições de ter êxito, ou de falhar.

Esta é apenas breve descrição de uma atitude que denomino historicismo. É uma velha ideia, ou antes, um conjunto frouxamente relacionado de ideias, as quais infelizmente de tal modo se tornaram de nossa atmosfera espiritual que costumeiramente são tidas como assentes e dificilmente são discutidas.

Tentei algures mostrar que a focalização historicista das ciências sociais dá pobres resultados. Tentei também traçar um método pelo qual, acredito, melhores resultados se obteriam.

Se, entretanto, o historicismo é um método falho, que produz resultados sem valor, então pode ser útil ver como ele se originou e como conseguiu entrincheirar-se com tanto êxito. Um esboço histórico empreendido com esse alvo pode, ao mesmo tempo, servir para analisar as variadas ideias que gradualmente se acumularam em torno da doutrina historicista central: a doutrina de que a história é controlada por leis históricas ou evolucionárias específicas, cujo descobrimento nos capacitaria a profetizar o destino do homem.

O historicismo, que até aqui apenas caracterizei de modo antes abstrato, pode ser bem ilustrado por meio de uma das mais simples e antigas de suas formas, a doutrina do povo escolhido. Essa doutrina é uma das tentativas de tornar a história compreensível através de uma interpretação teística, isto é, pelo reconhecimento de Deus como o autor da peça desempenhada no Palco Histórico. Mais especificamente, a teoria do povo escolhido considera que Deus escolheu determinado povo para funcionar como o instrumento predileto de Sua vontade, e que tal povo herdará a terra.

Usa-se, em português, a expressão ‘povo eleito’.

Nessa doutrina, a lei do desenvolvimento histórico é submetida à Vontade de Deus. Essa é a diferença específica que distingue a forma teísta de outras formas de historicismo.

Um historicismo naturalista, por exemplo, poderia tratar a lei do desenvolvimento como uma lei da natureza; um historicismo espiritualista tratá-la-ia como lei do desenvolvimento espiritual; um historicismo econômico, por sua vez, como lei do desenvolvimento econômico. O historicismo teísta participa, com essas outras formas, da doutrina de que há leis históricas específicas que podem ser descobertas e sobre as quais podem basear-se predições referentes ao futuro da humanidade.

Não há dúvida de que a doutrina do povo escolhido nasceu da forma tribal da vida social. O tribalismo, isto é, a ênfase sobre a suprema importância da tribo, sem a qual o indivíduo nada é em absoluto, é um elemento que encontraremos em muitas formas de teorias historicistas. Outras formas que não mais são tribalistas podem ainda reter um elemento de coletivismo (1) ; podem ainda acentuar a significação de certo grupo ou coletividade — uma classe, por exemplo — sem a qual o indivíduo nada significa. Outro aspecto da doutrina do povo escolhido é a longinquidade do que apresenta como o fim da história. Embora, de fato, possa descrever esse fim com certo grau de definitividade, longo caminho teremos de percorrer antes de alcançá-lo. E o caminho não só é longo, como coleante, subindo e descendo, para a direita e para a esquerda. Em consequência, será possível enquadrar bem, no esquema da interpretação, qualquer acontecimento histórico concebível. Nenhuma experiência concebível pode refutá-lo (2). E os que nisso acreditam extraem daí certeza com referência ao resultado final da história humana.

Uma crítica da interpretação teística da história será tentada no último capítulo deste livro, onde também mostraremos que alguns dos maiores pensadores cristãos repudiaram essa teoria como idólatra. O ataque a essa forma de historicismo, portanto, não deve ser interpretado como ataque à religião. Neste capítulo, utilizamos apenas como ilustração a doutrina do povo escolhido. Seu valor como tal pode ser observado pelo fato de que suas principais características (3) são partilhadas pelas duas versões modernas mais importantes do historicismo, cuja análise forma a maior parte deste livro: a filosofia histórica do racismo ou fascismo, o de um lado (a direita) e a filosofia histórica marxista do outro (a esquerda). De fato, o racismo do povo escolhido substitui a raça escolhida (da preferência de Gobineau), selecionada como instrumento do destino, para por fim herdar a terra. A filosofia histórica de Marx dá-lhe como substituto a classe escolhida, o instrumento para a criação da sociedade sem classes, e, ao mesmo tempo, a classe destinada a herdar a terra. Ambas as teorias baseiam suas predições históricas numa interpretação da história que conduz à descoberta de uma lei de seu desenvolvimento. No caso do racismo, é ela considerada como uma espécie de lei natural; a superioridade biológica do sangue da raça escolhida explica o curso da história, o passado, o presente e o futuro; resume-se apenas à luta das raças pela hegemonia. No caso da filosofia da história de Marx, a lei é econômica; toda a história deve ser interpretada como uma luta de classes pela supremacia econômica.

O caráter historicista desses dois movimentos localiza nossa investigação. Voltaremos a eles nas últimas partes deste livro. Cada um deles retorna diretamente à filosofia de Hegel. Devemos, portanto, lidar também com essa filosofia. E visto como Hegel (4), de modo geral, segue certos filósofos antigos, ser-nos-á necessário discutir as teorias de Heráclito, Platão e Aristóteles, antes de voltar às formas mais modernas do historicismo.

Aqui Popper explica por que se dedicou à investigação de Platão (tão importante que reservou para ela todo o primeiro volume da obra).

CAPÍTULO 2

HERÁCLITO

Antes de Heráclito, não encontramos na Grécia teorias que possam ser comparadas, em seu caráter historicista, à doutrina do povo escolhido. Na interpretação teísta, ou antes, politeísta de Homero, a história é o produto da vontade divina. Mas os deuses homéricos não estabelecem leis gerais para seu desenvolvimento. O que Homero tenta salientar e explicar não é a unidade da história, mas antes a sua falta de unidade. O autor da peça no Palco Histórico não é um Deus: toda uma variedade de deuses nela se intromete. A interpretação homérica compartilha, com a judaica, de certo vago sentimento do destino, da ideia de forças por trás do cenário. Mas o destino final, segundo Homero, não é revelado; diversamente de seu comparsa judaico, permanece misterioso.

O primeiro grego a introduzir uma doutrina mais acentuadamente historicista foi Hesíodo, provavelmente influenciado por fontes orientais. Fez ele uso da ideia de um impulso ou tendência geral no desenvolvimento histórico. Sua interpretação da história é pessimista. Acredita que a humanidade, em seu desenvolvimento a partir da Idade Áurea, está destinada à degeneração, tanto física como moral. A culminação das várias ideias historicistas apresentadas pelos primitivos filósofos gregos chega com Platão, que, numa tentativa para interpretar a história e a vida social das tribos gregas, e especialmente dos atenienses, pintou um grandioso retrato filosófico do mundo. Foi ele fortemente influenciado em seu historicismo por vários precursores e especialmente por Hesíodo; mas a influência mais importante veio de Heráclito.

Foi Heráclito o filósofo que descobriu a ideia de mudança. Até então, os filósofos gregos, influenciados por ideias orientais, encaravam o mundo como um vasto edifício, de que as coisas materiais constituíam o material de construção (1). Era a totalidade das coisas, o cosmos (que originalmente parece ter sido uma tenda ou pálio oriental). As perguntas que se faziam os filósofos eram: “De que é feito o mundo?” ou “Como é ele construído, qual o seu verdadeiro plano básico?” Consideravam a filosofia, ou a física (ambas permaneceram indiferenciadas por longo tempo) como a investigação da “natureza”, isto é, do material original com que esse edifício, o mundo, fora construído. Quanto aos processos considerados, eles o eram ou como parte integrante do edifício, ou então como destinados a construí-lo ou mantê-lo, perturbando e restaurando a estabilidade ou equilíbrio de uma estrutura considerada fundamentalmente estática. Eram processos cíclicos (separados dos processos relacionados com a origem do edifício; a indagação “quem fez isto?” era discutida pelos orientais, por Hesíodo e por outros). Essa focalização naturalíssima, natural mesmo hoje para muitos de nós, foi superada pelo gênio de Heráclito. O aspecto que ele introduziu foi o de que não havia tal edifício, não havia estrutura estável, nenhum cosmos. O cosmos, no melhor dos casos, é como uma pilha de entulhos reunidos ao acaso, eis um de seus ditos (2). Visualizou ele o mundo não como um edifício, mas antes como um processo colossal; não como a soma total de todas as coisas, mas antes como a totalidade de todos os acontecimentos, ou mudanças, ou fatos. “Tudo está em fluxo e nada está em repouso”, eis o lema de sua filosofia.

A descoberta de Heráclito influenciou por longo tempo o desenvolvimento da filosofia grega. As filosofias de Parmênides, Demócrito, Platão e Aristóteles podem ser, todas elas, apropriadamente descritas como tentativas para resolver os problemas desse mundo em mutação que Heráclito descobrira. Dificilmente se poderá superestimar a grandeza dessa descoberta. Foi ela considerada terrificante e seu efeito comparado ao de “um terremoto, em que tudo… parece oscilar” (3). E não tenho dúvida de que essa descoberta se impôs a Heráclito por terríficas experiências pessoais sofridas como resultado das perturbações políticas e sociais de seu tempo. Heráclito, o primeiro filósofo a lidar não só com a “natureza”, mas mesmo mais com problemas ético-políticos, viveu numa era de revolução social. Foi no seu tempo que as aristocracias tribais gregas começaram a ceder passo à força nova da democracia.

A fim de compreender o efeito dessa revolução, devemos recordar a estabilidade e a rigidez da vida social numa aristocracia tribal. A vida social é determinada por tabus sociais e religiosos; cada um tem seu lugar marcado no conjunto da estrutura social; cada um sente que esse seu lugar é o adequado, o lugar ‘‘natural”, que lhe foi destinado pelas forças que regem o mundo; cada um “conhece o seu lugar”.

De acordo com a tradição, o lugar próprio de Heráclito era o de herdeiro da família real de reis sacerdotes do Éfeso, mas ele renunciou a seus direitos em favor de seu irmão. A despeito de sua orgulhosa recusa a tomar parte na vida política de sua cidade, sustentou ele a causa dos aristocratas, que em vão tentavam conter a onda ascendente das novas forças revolucionárias. Essas experiências no campo social ou político refletem-se nos fragmentos restantes de sua obra (4). ‘’Todos os Efésios adultos, homem por homem, deveriam enforcar-se e deixar que a cidade seja governada pelas crianças”, é uma de suas explosões, ocasionada pela decisão do povo de expatriar Hermódoro, um dos amigos aristocratas de Heráclito. Sua interpretação das razões do povo é mais interessante, pois mostra que as provisões disponíveis dos argumentos anti-democráticos não mudaram muito desde os primeiros dias da democracia. “Dizem eles: ninguém deve ser o melhor entre nós; e se alguém se salienta, que vá salientar-se em outra parte, entre outra gente”. Essa hostilidade para com a democracia irrompe em toda parte, nos fragmentos de sua obra: “o populacho enche as barrigas como os animais… Escolhem os bardos e as crenças populares como guias, esquecidos de que os muitos são maus e só os poucos são bons… Em Priena vivia Bias, filho de Teutames, cuja palavra vale mais que a de outros homens (Disse ele: “a maioria dos homens é má”)… O populacho não se importa sequer com as coisas em que tropeça; não é capaz de aprender uma lição, embora pense que é capacitado”. No mesmo sentido acrescenta: “A lei pode exigir, também, que a vontade de Um Só Homem seja obedecida”. Outra expressão da tendência conservadora e antidemocrática de Heráclito é, incidentalmente, inteiramente aceitável para os democratas, no seu fraseado, embora não na sua intenção: “Um povo deve lutar pelas leis da cidade como se fossem as muralhas dela”.

De certo modo o surgimento (a invenção) da democracia se contrapôs não somente ao historicismo, mas desabilitou a filosofia como modo de desvendamento do mundo, preparando o terreno para o advento da ciência. Isso não pode ser derivado apenas do texto de Popper ora em exame, mas há aqui indícios, sementes de ideias que sugerem tal interpretação.

Mas a luta de Heráclito em favor das leis antigas de sua cidade era vã, e a transitoriedade de todas as coisas se lhe impunha fortemente ao espírito. Sua teoria da mudança dá expressão a esse sentimento (3) : “Tudo está em fluxo”, diz ele; e aduz: “Não podem mergulhar duas vezes na mesma água do rio”. Desiludido, contesta a crença de que a ordem social existente pode permanecer para sempre: “não devemos agir como crianças que se obstinam na estreita opinião de que ‘foi assim que encontramos as coisas’”.

Essa ênfase sobre a mudança, e especialmente a mudança na vida social, é uma característica importante não só da filosofia de Heráclito como do historicismo em geral. A mutabilidade das coisas, e mesmo dos reis, é uma verdade que se toma mister gravar sobretudo naqueles que têm como estabelecido o meio social em que vivem. Isso deve ser admitido. No entanto, na filosofia de Heráclito, manifesta-se uma das características menos recomendáveis do historicismo, a saber, a excessiva ênfase na mudança, combinada com a crença complementar numa inexorável e imutável lei do destino.

Nessa crença damos de frente com uma atitude que, embora à primeira vista contraditória da super-acentuação que os historicistas atribuem à mutabilidade, é peculiar à maioria dos historicistas, senão a todos eles. Poderemos talvez explicar essa atitude se interpretarmos a insistência dos historicistas na mudança como sintoma de um esforço requerido para dominar sua resistência inconsciente à ideia de mudança. Isso explicaria também a tensão emocional que leva tantos historicistas (mesmo hoje) a acentuarem a novidade da inaudita revelação que têm a fazer. Tais considerações sugerem a possibilidade de que esses historicistas têm medo da mudança, de que não podem aceitar a ideia de mudança sem séria luta interior. Parece muitas vezes que tentam consolar-se da perda de um mundo estável aferrando-se ao pensamento de que a mudança é regida por uma lei imutável. (Em Parmênides e em Platão encontramos mesmo a teoria de que o mundo mutável em que vivemos é uma ilusão, existindo um mundo mais real, que não muda).

No caso de Heráclito, a insistência sobre a mutabilidade leva-o à teoria de que todas as coisas materiais, sejam sólidas, liquidas ou gasosas, são como chamas: são antes processos do que coisas e não passam, todas, de transformações do fogo; a terra, aparentemente sólida (que consiste de cinzas) é apenas um fogo em estado de transformação, e mesmo os líquidos (a água, o mar) são fogo transformado (e podem tornar-se combustíveis, talvez sob a forma de óleo). “A primeira transformação do fogo é o mar; mas, do mar, metade é terra e metade é ar quente” (6). Assim todos os outros “elementos” — terra, água e ar — são fogo transformado: “Tudo é uma troca por fogo, e de fogo por tudo; assim como de ouro por mercadorias e de mercadorias por ouro”.

Havendo, porém, reduzido todas as coisas a chamas, a processos, como a combustão, Heráclito discerne nos processos uma lei, uma medida, uma razão, uma sabedoria; e, tendo destruído o cosmos como um edifício, declarando-o montão de entulhos, reintrodu-lo como a ordem predestinada dos acontecimentos no processo universal.

Todo processo no mundo, e especialmente o próprio fogo, desenvolve-se de acordo com uma lei definida; que é sua “medida” (7). É uma lei inexorável e irresistível, e nesse sentido assemelha-se à nossa moderna concepção de lei natural, assim como a concepção de leis históricas ou evolucionárias dos historicistas modernos. Difere, porém, dessas concepções no fato de ser decreto da razão, reforçado pela punição, tal como a lei imposta pelo estado. Essa incapacidade de distinguir entre leis ou normas legais de um lado e as leis ou métodos naturais de outro é característica do tribalismo de tabus: ambas as espécies de lei são igualmente tratadas como mágicas, o que torna as críticas racionais aos tabus de feitura humana inconcebíveis, como tentativas para aprimorar a sabedoria definitiva e razão última das leis ou métodos do mundo natural: “Todos os acontecimentos ocorrem com a necessidade do destino… O sol não ultrapassará a medida de seu caminho; do contrário, irão buscá-lo as deusas do Destino, as ancilas da Justiça”. Mas o sol não se limita a obedecer à lei; o Fogo, sob a forma do sol e (como veremos) a do raio de Zeus, zela pela lei e profere julgamentos de acordo com ela. “O sol é o conservador e guardião dos períodos, limitando, julgando, anunciando e manifestando as mudanças e estações que dão origem a todas as coisas… Esta ordem cósmica, que é a mesma para todas as coisas, não foi criada, nem por deuses, nem por homens; sempre houve, há e haverá um Fogo imorredouro, inflamando-se de acordo com uma medida e abatendo-se de acordo com uma medida… Em seu avanço, o Fogo tomará, julgará e executará todas as coisas”.

Em combinação com a ideia historicista de um destino inexorável encontramos frequentemente um elemento de misticismo. Uma análise crítica do misticismo será apresentada no Capítulo 24. Aqui apenas desejo mostrar o papel do anti-racionalismo e do misticismo na filosofia de Heráclito (8): “A Natureza ama ocultar”, escreve ele; e diz: “O Senhor cujo oráculo está em Delfos não revela nem oculta, mas indica o que quer dizer por meio de sugestões”. O desprezo de Heráclito pelos cientistas de espírito mais empírico é típico dos que adotam essa atitude: “quem sabe muitas coisas não precisa ter muito cérebro; do contrário, Hesíodo e Pitágoras teriam tido mais, e também Xenófanes… Pitágoras é o avô de todos os impostores”. Ao lado desse desdém pelos cientistas marcha a teoria mística de uma compreensão intuitiva. A teoria da razão de Heráclito tem como ponto de partida o fato de que, se estamos despertos, vivemos num mundo comum. Podemos comunicar-nos, controlar-nos e verificar-nos mutuamente; e nisso está a segurança de que não somos vítimas de ilusão. Mas a essa teoria é dado um segundo significado, simbólico, místico. É a teoria de uma intuição mística de que são dotados os escolhidos, aqueles que estão despertos, os que têm o poder de ver, ouvir e falar: ‘‘Não se deve agir e falar como se a dormir… Os que estão despertos têm um mundo em comum; os que estão a dormir voltam-se para seus mundos privados… São incapazes tanto de ouvir como de falar… Mesmo quando ouvem, são como os surdos. A eles se aplica o dito: estão presentes e contudo não estão presentes… Só uma coisa é sabedoria: compreender o pensamento que conduz tudo através de tudo.” O mundo, cuja experiência é comum àqueles que estão despertos, é a unidade mística, a unicidade de todas as coisas, que só pode ser apreendida pela razão: “Deve-se seguir o que é comum a todos… A razão é comum a todos… Todos se tomam Um e Um torna-se Todos. O Único que, só ele, é sabedoria, deseja e não deseja ser chamado pelo nome de Zeus… É o raio que conduz todas as coisas”.

E basta quanto aos aspectos mais gerais da filosofia de mudança universal e destino oculto de Heráclito. Dessa filosofia surge uma teoria sobre a força diretiva que está por trás de qualquer mudança, teoria que exibe seu caráter historicista pela ênfase dada à importância da “dinâmica social” como oposta à “estática social”. A dinâmica da natureza em geral e especialmente da vida social, em Heráclito, confirma a opinião de que sua filosofia foi inspirada pelas perturbações sociais e políticas que ele experimentou. Declara ele que a luta ou a guerra é o princípio dinâmico e criador de qualquer mudança e particularmente de todas as diferenças entre os homens. E, sendo um historicista típico, aceita como moral o julgamento da história (9), pois sustenta que o resultado da guerra é sempre justo (10): “A guerra é a origem e o governo de todas as coisas. Prova que uns são deuses e outros meramente homens, fazendo destes escravos e, daqueles, senhores. Deve-se saber que a guerra é universal e que a justiça é luta; todas as coisas se desenvolvem através da luta e por necessidade”.

Isso mereceria uma consideração mais extensa. Aqui está o fundamento da autocracia.

Mas se a justiça é luta ou guerra, se as “deusas do Destino” são ao mesmo tempo as “ancilas da Justiça”, se a história, ou mais precisamente, se o sucesso, isto é, o sucesso na guerra, é o critério do mérito, então o padrão do mérito deverá estar, ele próprio, “no fluxo”. Heráclito enfrenta esse problema por meio de seu relativismo e por sua doutrina da identidade dos opostos. Isso decorre de sua teoria da mudança (que permanece sendo a base da teoria de Platão e mais ainda da de Aristóteles). Uma coisa mutável deve ceder alguma propriedade e adquirir a propriedade oposta. Não é tanto uma coisa, quanto um processo de transição de um estado para um estado oposto; daí a unificação dos estados opostos (11): “As coisas frias tornam-se quentes e as coisas quentes tornam-se frias; o que é úmido torna-se seco e o que é seco toma-se úmido. A doença nos capacita a apreciar a saúde… Vida e morte, estar desperto ou adormecido, juventude e velhice, tudo isso é idêntico; pois um se transforma no outro e o último retorna ao primeiro… os divergentes concordam entre si; é uma harmonia resultante das tensões opostas, como no arco, ou na lira… Os opostos pertencem-se mutuamente, a melhor harmonia resulta da discórdia e tudo se desenvolve pela luta… O caminho que leva ao alto e o que leva para baixo são idênticos… O caminho reto e o coleante são um só e o mesmo… Para os deuses, todas as coisas são belas, boas e justas; os homens, porém, adotaram algumas coisas como justas e outras como injustas… O bem e o mal são idênticos”.

Mas o relativismo dos valores (que pode mesmo ser descrito como um relativismo ético) expresso no último fragmento citado não impede Heráclito de desenvolver, sobre o fundo de sua teoria da justiça da guerra e do veredito da história, uma ética romântica e tribalista da Fama, do Destino, da superioridade do Grande Homem, muito estranhamente parecida com certas ideias moderníssimas (12) : “Quem cai em combate será glorificado por deuses e homens… Quanto maior a queda, mais glorioso o destino… Os melhores buscam uma coisa sobre todas as outras: a fama eterna… Um homem, se é Grande, vale mais do que dez mil”.

É surpreendente encontrar nesses antigos fragmentos, que datam de cerca do ano 500 antes de Cristo, tanto do que é característico das modernas tendências historicistas e antidemocráticas. Posto de parte, porém, o fato de que Heráclito era um pensador de força e originalidade insuperadas e, em consequência, muitas de suas ideias (por intermédio de Platão) se tornaram parte do corpo principal da tradição filosófica, a similaridade de doutrina pode talvez ser explicada, com certa extensão, pela similaridade de condições sociais nos períodos importantes. Parece que as ideias historicistas facilmente se salientam em tempos de grande mudança social. Surgem quando se rompe a vida tribal dos gregos, assim como quando a dos judeus é destroçada pelo impacto da conquista babilônica (13). Pouca dúvida pode haver, creio eu, de que a filosofia de Heráclito é expressão de um sentimento de derivação, sentimento que parece ser reação típica à dissolução das antigas formas tribais de vida social. Na moderna Europa, as ideias historicistas foram revividas durante a revolução industrial, e especialmente pelo impacto das revoluções políticas na América e na França (14). Parece mais do que simples coincidência o fato de Hegel, que adotou tanto do pensamento de Heráclito e o transmitiu a todos os modernos movimentos historicistas, ter sido um porta-voz da reação contra a Revolução Francesa.

Na verdade, Popper acaba fazendo uma crítica ao modo filosófico de abordagem do mundo (em contraposição ao científico – mas ele não diz isso claramente: não, pelo menos, até aqui). O que ficou conhecido como filosofia no Ocidente, sobretudo no que se aplica à história (e à política) foi, basicamente, Platão e Aristóteles (com elementos heraclíticos e desdobramentos hegelianos).

Notas do Capítulo 1

Para a epígrafe de Péricles, ver a nota 31 ao cap. 10 e o texto. O lema de Platão é analisado com algum vagar nas notas 33 e 34 ao cap. 6, bem como no texto correspondente.

1 — Uso o termo “coletivismo” só para designar a doutrina que acentua a significação de alguma entidade coletiva ou grupo, por exemplo, o “estado” (ou um estado determinado, uma nação, uma classe, etc.) em contraposição à do indivíduo. O problema coletivismo versus individualismo foi explicado mais detidamente no cap. 5, última parte: ver especialmente as notas 26 e 8 a esse capítulo e o texto. Quanto ao tribalismo, cf. cap. 10 e especialmente a nota 38 a esse capítulo (lista dos tabus tribais pitagóricos).

2 — Isto significa que a interpretação não encerra qualquer informação empírica, como demonstrei em minha obra Logik der Forschung (1935).

3 — Um dos traços que têm em comum as doutrinas do povo eleito, da raça eleita e da classe eleita é o de que as três se originaram e adquiriram importância como reações contra certo tipo de opressão. A doutrina do povo eleito adquiriu relevo na época da fundação da igreja judaica, isto é, durante o cativeiro babilônico; a teoria da raça ariana dominante do Conde Gobineau foi uma reação do emigrado aristocrático ante a afirmação de que a Revolução Francesa havia expulsado com êxito os senhores teutônicos. A profecia marxista da vitória do proletariado é a resposta a um dos mais sinistros períodos de opressão e exploração da história moderna. Comparem-se a respeito os capítulos 10, especialmente a nota 39, e 17, especialmente as notas 13 e 15, assim como o texto.

Achar-se-á um dos resumos mais sucintos e melhores do credo historicista no folheto radicalmente historicista que se cita em forma mais completa no final da nota 12 ao cap. 9 e que tem o nome de Christians in the Class Struggle, de Gilbert Cope, com orefácio do Bispo de Bradford (Publicação “Magnificai” n.° 1 editada pelo Conselho do Clero e dos Ministros em Prol da Propriedade Comum, 1942, Maypole Lane, 28, Birmingham 14). Nas páginas 5 e 6 dessa publicação lemos o seguinte: “Comum a todas essas concepções é certa qualidade de “inevitabilidade mais liberdade”. A evolução biológica, a sucessão do conflito de classes, a ação do Espírito Santo, tudo isso se acha caracterizado por um avanço definido no rumo de certo fim. Esse movimento pode ser impedido ou desviado temporariamente por uma ação humana deliberada, mas seu impulso crescente não pode ser detido e, embora só se vislumbre confusamente a meta final… (é) possível saber o bastante acerca do processo para facilitar ou dificultar o fluxo inevitável. Em outras palavras, as leis naturais do que chamamos “progresso” são compreendidas em grau suficiente… pelos homens, de modo que podem fazer esforços para deter ou desviar a corrente principal, esforços que por algum tempo parecem ter êxito, mas são realmente fadados ao fracasso”.

4 — Hegel disse, em sua Lógica, que preservara integralmente o ensinamento de Heráclito. Também disse que devia tudo a Platão. — Pode ser digno de nota acentuar que Ferdinand von Lassalle, um dos fundadores do movimento social democrático alemão (e, como Marx, um hegeliano) escreveu dois volumes sobre Heráclito.

Notas do Capítulo 2

1 — A indagação “de que é feito o mundo?” é mais ou menos geralmente aceita como o problema fundamental dos primitivos filósofos iônicos. Se admitirmos que eles encaravam o mundo como um edifício, a questão da planta do mundo seria complementar à de seu material de edificação. E, na verdade, sabemos que Tales não só se interessava pelo material de que era feito o mundo, mas também pela astronomia e geografia descritivas, e que Anaximandro foi o primeiro a desenhar uma planta, isto é, um mapa, da terra. Mais algumas observações sobre a escola iônica (e especialmente sobre Anaximandro como predecessor de Heráclito) serão encontradas no cap. 10; cf. notas 38-40 a esse capítulo, e especialmente a nota 39.

De acordo com R. Eisler (Weltenmantel und Himmelszelt, pág. 693) o sentimento do destino de Homero (“moira”) pode ser remontado ao misticismo astral oriental que deifica o tempo, o espaço e o fado. Segundo o mesmo autor (Revue de Synthèse Historique, 41, ap. pág. 16 seg.), o pai de Hesíodo era natural da Ásia Menor e as fontes de sua ideia da idade de ouro e dos metais no homem são orientais. (Cf. sobre esta questão o importante estudo póstumo de Eisler sobre Platão, Oxford, 1950,) Eisler também mostra (Jesus Basileus, vol. II, 618 sg.) que a ideia do mundo como uma totalidade de coisas (“cosmos”) recua à teoria política babilônica. A ideia do mundo como um edifício (casa ou tenda) é tratada em seu Weltenmantel.

2 — Ver Diels, Die Vorsokratiker, 5.a ed., 1934 (abreviado aqui como “D5”) fragmento 124; cf. também D5, vol. II, pág. 423, linhas 21 sg. (A negação interpolada parece-me metodologicamente tão infeliz como as tentativas de certos autores para desacreditarem inteiramente o fragmento; fora isso, acompanho a emenda de Rüstow.) Para as duas outras citações neste parágrafo ver Platão, Cratilo, §01 d, 402 a/b.

Minha interpretação do ensinamento de Heráclito é talvez diferente daquela comumente admitida hoje, por exemplo, a de Burnet. Os que puserem em dúvida a plausibilidade dessa interpretação devem recorrer às notas, especialmente a que agora nos ocupa e as 6, 7 e 11, em que examinamos a filosofia natural de Heráclito, circunscrevendo nosso texto à exposição do aspecto historicista dos ensinamentos de Heráclito e à sua filosofia social. Remeto-os, também, às provas aduzidas nos capítulos 4 e 9, e especialmente no capítulo 10, a cuja luz a filosofia de Heráclito parece adquirir o caráter de uma reação típica à revolução social que teve ensejo de presenciar. Cf. ainda as notas 39 e 59 a esse capítulo (e o texto) e a crítica geral dos métodos de Burnet e Taylor, na nota 56.

Segundo está indicado no texto, sustento (juntamente com muitos outros autores, por exemplo, Zeller e Grote) que a doutrina do fluxo universal constitui a medula do pensamento de Heráclito. Burnet, ao contrário, afirma que “ dificilmente pode ser este o ponto central do sistema” de Heráclito (cf. Early Greek Philosophy, 2.a ed. 163). Mas um exame mais minucioso de seus argumentos (158 e sgs.) torna duvidoso que o descobrimento fundamental de Heráclito fosse a doutrina metafísica abstrata de que “a sabedoria não é o conhecimento de muitas coisas, mas a percepção da unidade subjacente dos opostos em conflito”, como diz Burnet. A unidade dos opostos constitui, certamente uma parte importante dos ensinamentos de Heráclito, mas pode derivar-se (na medida em que se podem derivar tais assuntos; cf. nota 11 a este capítulo e o texto) da teoria mais concreta e intuitivamente mais compreensível do fluxo; e outro tanto poderíamos dizer da doutrina heracliteana do fogo (cf. nota 7 a este cap.).

Os que sugerem, com Burnet, que a doutrina do fluxo universal não era nova, mas já havia sido sustentada pelos jônios primitivos, são, a meu ver, inconscientes testemunhas da originalidade de Heráclito, pois não conseguem captar, após 2.400 anos, sua ideia principal. Não notam esses autores a diferença que existe entre um fluxo, ou circulação, dentro de um recipiente, edifício ou estrutura cósmica, isto é, dentro de uma totalidade de coisas (por certo uma parte da teoria de Heráclito pode ser assim interpretada, mas só se trata da menos original; ver mais abaixo), e um fluxo universal, que abarca todas as coisas, inclusive o recipiente e a própria estrutura (cf. Luciano, em D5, I, pág. 190) e que está expresso na negação de Heráclito de que exista qualquer coisa permanente. (De certo modo, Anaximandro dera o primeiro passo ao dissolver a estrutura, mas daí à teoria do fluxo universal havia ainda muito que andar. Cf. também nota 15 (4) ao cap. 3).

A doutrina do fluxo universal obriga Heráclito a tentar uma explicação da estabilidade aparente dos objetos do universo e certas uniformidades típicas. Esta tentativa leva-o a desenvolver teorias subsidiárias, especialmente a doutrina do fogo (cf. nota 7 a este cap.) e das leis naturais (cf. nota 6). É nesta explicação da estabilidade aparente do mundo que ele faz maior uso das teorias de seus predecessores, adaptando destes a teoria da rarefação e da condensação, juntamente com a doutrina da revolução dos céus, que desenvolveu numa teoria geral da circulação da matéria e da periodicidade. Em minha opinião, porém, esta parte de seu ensinamento não constitui seu núcleo central, mas tão só um elemento subsidiário. É, por assim dizer, eclética, pois cuida de conciliar a nova e revolucionária doutrina do fluxo com a experiência comum e também com o que ensinaram seus predecessores. Creio, pois, que Heráclito não é um materialista mecânico que tenha ensinado algo como a conservação e circulação da matéria e da energia; de fato, parece forçoso abandonar essa ideia ante a consideração de sua atitude mágica para com as leis e de sua teoria da unidade dos opostos, que dá maior relevo a seu misticismo.

Nossa afirmação de que o fluxo universal constitui a teoria central de Heráclito está corroborada, a nosso ver, por Platão. A esmagadora maioria de suas referências explícitas a Heráclito (Crat. 401 d, 402 a/b, 411, 437 sgs., 440; Teetetes, 153 c/d, 160 d, 177 c, 179 d sgs., 182 a sgs., 183 a sgs.; cf. ainda O Banquete, 207 d, Fil., 43 a.; cf. também a Metafísica de Aristóteles, 987a33, 1010al3, 1078bl3) dá testemunho da tremenda impressão ocasionada por essa teoria central nos pensadores daquela época. Esses testemunhos claros e diretos são muito mais veementes do que o trecho de reconhecido interesse em que não se menciona o nome de Heráclito (Sof. 242d sgs., já citado, a propósito de Heráclito, por Ueberweg e Zeeler), no qual Burnet procura basear sua interpretação. (Seu outro testemunho, Filon Judeu, não pode ser de grande peso em face dessa evidência oferecida por Platão e Aristóteles). Mas mesmo este trecho coincide por inteiro com a nossa interpretação. (Quanto ao juízo algo vacilante de Burnet sobre o valor do trecho, cf. nota 56 (7) ao cap. 10.) A descoberta feita por Heráclito de que o universo não é a totalidade das coisas, mas dos acontecimentos ou factos, de modo algum é trivial; talvez dê ideia disso o facto de que Wittgenstein achou necessário reafirmá-lo em data bem recente: “O universo é a totalidade dos acontecimentos, não das coisas”. (Cf. Tractatus Logico-Philosophicus, 1921/22, frase 1,1; o grifo é meu).

Resumindo: considero fundamental a doutrina do fluxo universal e julgo que emerge do domínio das experiências sociais de Heráclito. Todas as outras suas doutrinas são, de certo modo, subsidiárias desta. A doutrina do fogo (cf. Metafísica, de Aristóteles, 984a7, 1067a2; também 989a2, 996a9, 1001al5; Física, 205a3), considero-a sua doutrina central no campo da filosofia natural; é uma tentativa para reconciliar a doutrina do fluxo com a nossa experiência das coisas estáveis, um elo com as teorias mais antigas da circulação e leva à teoria das leis. E a doutrina da unidade dos opostos, considero-a como algo menos central e mais abstrato, como precursora de uma espécie de teoria lógica ou metodológica (como tal, inspirou Aristóteles a formular sua lei da contradição) e como ligada a seu misticismo.

3 — W. Nestle, Die Vorsokratiker (1905), 35.

4 — A fim de facilitar a identificação dos fragmentos citados, dou os números da edição de Bywater (adotados, em sua tradução inglesa dos fragmentos, por Burnet, Early Greek Philosophy) e também os números da quinta edição de Diels.

Dos oito trechos citados no presente parágrafo, 1) e 2) são dos fragmentos BÍ14 (= Bywater e Burnet) e D5-121 (= Diels, 5.a ed.). Os outros são dos fragmentos: 3) Blll — D5-29; cf. República, de Platão, 586 a/b…; 4) Blll, D5-104…; 5) B112, D5-39, (cf. D5 vol. I, pág. 65, Bias, I) ; 6) B5, D5-17; 7) B110, D5-33; 8) B100, D5-44.

5 — Os três trechos citados neste parágrafo são dos fragmentos 1) e 2′); cf. B41, D5-91; para 1) cf. também nota 2 a este capítulo 3) D5-74.

6 — Os dois trechos são B21 e D5-31; e B22 e D5-90.

7 — Para as “medidas” (ou leis, ou períodos) de Heráclito, ver B20, 21, 23, 29; D5-30, 31, 94. — D 31 traz juntamente “medida” e “lei” (logos).

As cinco passagens citadas depois nesse parágrafo são dos fragmentos: I) D5, vol. I, p. 141, 1.10 (cf. Diog. Laert., IX, 7) ; 2) B 29, D”-94 (cf. nota 2 ao cap. 5) ; 3) B20, D”-30; 3) B34, D5-100; 4) B26, D2-66.

(1) A ideia de lei é correlativa à de mudança ou fluxo, visto como só as leis ou regularidades dentro do fluxo podem explicar a aparente estabilidade do mundo. As regularidades mais típicas dentro do mundo mutável que o homem conhece são os períodos naturais: o dia, o mês lunar e o ano (as estações). A teoria da lei de Heráclito é, creio eu, logicamente intermediária entre as concepções relativamente modernas das “leis causais” (mantidas por Leucipo e especialmente por Demócrito) e os sombrios poderes do fado, de Anaximandro. As leis de Heráclito são ainda “ mágicas”, isto é, ele ainda não distinguiu entre as regularidades causais abstratas e as leis impostas, como os tabus, por sanções (cf. cáp. 5, nota 2). Parece que sua teoria do fado se ligava a uma teoria de um “Grande Ano” ou “Grande Ciclo” de 18.000 ou 36.000 anos comuns. (Cf., p. ex., a edição de J. Adam da República de Platão, vol. II, 303). Certamente não penso que essa teoria seja uma indicação de que Heráclito não acreditasse realmente num fluxo universal, mas apenas em várias circulações que sempre restabeleciam a estabilidade do arcabouço; mas acho possível que ele tivesse dificuldades em conceber uma lei da mudança, e mesmo do destino, a não ser que envolvesse certa quantidade de periodicidade (cf. também nota 6 ao cap. 3).

(2) O fogo desempenha um papel central na filosofia da natureza de Heráclito. (Aí pode existir alguma influência persa). A chama é o símbolo óbvio de um fluxo ou processo que a muitos respeitos parece uma coisa. Isso explica assim a experiência das coisas estáveis e reconcilia essa experiência com a doutrina do fluxo. Esta ideia pode ser facilmente estendida aos corpos vivos que são como chamas, apenas ardendo mais vagarosamente. Heráclito ensina que todas as coisas estão em fluxo, todas são como o fogo; seu fluxo apenas tem diversas “medidas” ou leis de movimento. A “pira” ou “fornalha” em que o fogo arde estará em fluxo muito mais lento do que o fogo, mas, não obstante, estará em fluxo. Muda-se, tem seu destino e suas leis, deve ser queimada e consumida pelo fogo, ainda que seu destino leve muito tempo a cumprir-se. Deste modo, “em sua marcha, o fogo julgará e condenará tudo” (B26, D£-66).

Em consequência, o fogo é o símbolo e a explicação do aparente repouso das coisas, apesar de seu estado real de fluxo. Mas é também um símbolo da transmutação da matéria de um estado (combustível) para outro. Isto dá, assim, o elo entre a teoria intuitiva da natureza, de Heráclito, e as teorias da rarefação e condensação, etc., de seus predecessores. Mas seu esplendor e apagamento, de acordo com a medida de combustível fornecido, é também um exemplo da lei. Se esta se combina com alguma forma de periodicidade, então, pode ser empregada para explicar as regularidades dos períodos naturais, como os dias e os anos. (Esta tendência do pensamento torna improvável que Burnet tenha razão em descrer dos relatos tradicionais da crença de Heráclito numa conflagração periódica, que provavelmente se liga com seu Grande Ano; cf. Aristóteles. Fis., 205a3 com D5-66).

8 — Os treze trechos citados neste parágrafo são dos fragmentos: 1) B10, D5-123; 2) Bll, D5-93; 3) B16, D5-40; 4) B94, D5-73; 5) B95, D5-89 ; com 4) e 5), cf. Platão, Rep., 476c sg. e 502c; 6) B6, D5-19; 7) B3, D5-34; 8) B19, D5-41 ; 9) B92, D5-2; 10) B91a, D5-113; 11) B59, D5-10; 12) B65, D5-32; 13) B28, D5-64.

9 — Mais consequente do que a maioria dos historicistas morais, Heráclito é também um positivista ético e jurídico (para este termo, cf. cap. 5) : “Para os deuses, todas as coisas são formosas, boas e justas; os homens, entretanto, a algumas consideram justas e a outras injustas”. (D5-102, B61; ver o trecho 8 da nota 11). O testemunho de que Heráclito foi o primeiro positivista jurídico encontra-se em Platão (Teet. 177 c/d). Quanto ao positivismo moral e jurídico em geral, cf. cap. 5 (texto correspondente às notas 14 e 18) e o cap. 22.

10 — Os dois trechos citados neste parágrafo são: 1) B44, D5-53; 2) B62, D5-80.

11 — As nove passagens citadas neste parágrafo são: 1) B39, D5-126; 2) B104, D5-111; 3) B78, D5-88; 4) B45, D5-51 ; 5) D5-8; 6) B69, D5-60; 7) B50, D5-59; 8) B61, D5-102 (cf. nota 9); 9) B57, D5-58 (Cf. Arist. Fis. 185b20).

O fluxo ou mudança deve ser a transição de um estado, propriedade ou posição, a outro. Na medida em que o fluxo pressupõe algo que muda, esse algo deve permanecer idêntico, ainda que suponha uma propriedade, estado ou posição opostos. Isto vincula a teoria do fluxo à da unidade dos opostos (cf. Arist., Metaf., 1005b25, Lo24a24 e 34; 1062a32, 1063a25), assim como à doutrina da unidade de todas as coisas; todas são fases ou aspectos diferentes, tão só, de um ente único e em perpétua mudança (o fogo).

Se “o caminho que sobe” e “o caminho que desce” eram concebidos originalmente como uma estrada comum, dirigida primeiro para o cume de uma montanha e logo, de novo, para baixo (ou, se não assim, dirigido para cima, do ponto de vista do homem situado em um nível baixo, e para baixo, do ângulo de visão de um homem colocado em nível superior), e se essa metáfora só posteriormente foi aplicada aos processos da circulação, ao caminho que sobe da terra e através da água (combustível líquido dentro de um recipiente?) para o fogo, e logo volta para baixo, do fogo para a terra através da água (chuva?) ; ou se o caminho heraclitiano que sobe e desce foi originalmente aplicado por este filósofo ao processo da circulação da matéria, isso tudo são coisas que, sem dúvida, não podemos decidir. (Creio, entretanto, que a mais provável é a primeira alternativa, em vista do grande número de ideias similares que se encontram nos fragmentos que conservamos de Heráclito; cf. o texto).

12 — Os quatro textos são: 1) B103, D5-24; 2) B101, D5-2S (uma versão mais estrita, que preserva mais ou menos o jogo de palavras de Heráclito, seria: “ Morte maior conquista maior destino”. Cf. também as Leis de Platão, 903 d/e; em sentido contrário, veja-se Rep., 617 d/e; 3) Bill, D5-29 (acima citamos parte da continuação; veja-se o trecho 3) da nota 4) ; 4) B113, D5-49.

13 — Parece muito provável (cf. Meyer, Geschichte des Altertums, esp. Vol. I) que ensinamentos tão característicos como o do povo eleito se hajam originado nesta época, que, além disso, produziu muitas outras religiões de salvação que não a judaica.

14 — Comte, que desenvolveu na França uma filosofia historicista não muito diferente da versão prussiana de Hegel, tratou, como esta, de conter a maré revolucionária (cf. de F. A. von Hayek a obra The Counter-Revolution of Science, Economica, N. S. vol. VIII, 1941, págs. 119, segs., 281 segs.) Quanto ao interesse de Lassalle por Heráclito, veja-se a nota 4 ao cap. 1. É interessante notar nesse sentido o paralelismo entre as ideias historicistas e as evolucionistas. Tiveram origem na Grécia, com o semi-heraclitiano Empédocles (para a versão de Platão, ver a nota 1 ao cap. 11) e foram ressuscitadas, tanto na Inglaterra como na França, na época da Revolução Francesa.


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