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Comentários a ‘O Fascínio de Platão’ de Karl Popper – Capítulo 3

No dia 25 de março de 2019 os inscritos no programa Novos Pensadores começaram a se debruçar sobre o primeiro volume de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper (1945), intitulado O Fascínio de Platão.

Entender as razões do fascínio de Platão é fundamental para a aprendizagem democrática.

Como uma canja para os que não estão fazendo o programa vamos publicar aqui os textos originais de Popper – com destaques em vermelho e os comentários provocativos em azul – que geraram conversações democráticas entre os participantes do curso.

Já publicamos os comentários à Introdução do primeiro volume. E também os comentários aos dois primeiros capítulos. Segue abaixo o terceiro capítulo.

O MITO DA ORIGEM E DO DESTINO

CAPÍTULO 3 

A TEORIA PLATÔNICA DAS FORMAS OU IDEIAS

I

Platão viveu num período de guerra e de luta política que foi, tanto quanto sabemos, ainda mais instável do que o que perturbara Heráclito. Enquanto crescia, o rompimento da vida tribal dos gregos levara sua cidade natal, Atenas, a um período de tirania e mais tarde ao estabelecimento de uma democracia que tentava ciosamente resguardar-se de quaisquer tentativas para reintroduzir uma tirania ou uma oligarquia, isto é, um regime das principais famílias aristocráticas (1). Durante sua mocidade, a democrática Atenas envolveu-se em guerra mortal contra Esparta, a principal cidade-estado do Peloponeso, que preservara muitas das leis e costumes da antiga aristocracia tribal. A guerra do Peloponeso durou, com uma interrupção, vinte e oito anos. No Capítulo 10, em que examinamos mais pormenorizadamente o fundo histórico, mostrar-se-á que a guerra não terminou com a queda de Atenas em 404 A. C., como algumas vezes se assevera (2). Platão nasceu durante essa guerra e tinha cerca de vinte e quatro anos quando ela terminou. Trouxe o conflito terríveis epidemias e, no seu último ano, fome, a queda da cidade de Atenas, guerra civil e um regime de terror, costumeiramente chamado o governo dos Trinta Tiranos; eram estes dirigidos por dois tios de Platão, que perderam ambos a vida na tentativa falhada de manter seu regime contra os democratas. O restabelecimento da democracia e da paz não representou alívio para Platão. Seu amado mestre Sócrates, de quem ele mais tarde fez o principal interlocutor da maioria de seus diálogos, foi julgado e executado. O próprio Platão parece ter corrido perigo e, juntamente com outros companheiros de Sócrates, deixou Atenas.

Posteriormente, por ocasião de sua primeira visita à Sicília, emaranhou-se Platão nas intrigas políticas que se teciam na corte de Dionísio, o Velho, tirano de Siracusa, e, mesmo depois de seu retorno a Atenas e da fundação da Academia, continuou ele, juntamente com alguns de seus discípulos, a tomar parte ativa e por fim funesta nas conspirações e revoluções que constituíam a política siracusana (3).

Este breve esboço dos acontecimentos políticos pode ajudar a explicar por que encontramos na obra de Platão, como na de Heráclito, indicações de que ele sofreu desesperadamente com a instabilidade politica e a insegurança de seu tempo. Como Heráclito, Platão era de sangue real; pelo menos, diz a tradição que a família de seu pai remontava sua ascendência a Codro, último dos reis tribais da Ática. Platão orgulhava-se muito da família de sua mãe, a qual, como ele explica em seus diálogos (no Cármides e no Timeu), tinha parentesco com a de Solon, o legislador de Atenas. Seus tios, Crítias e Cármides, líderes dos Trinta Tiranos, também pertenciam à família de sua mãe. Com tal tradição familiar, era de esperar que Platão tivesse profundo interesse pelos negócios públicos; e, realmente, muitas de suas obras atendem a essa expectativa. Ele próprio relata (se é genuína a Sétima Carta) ter estado “ansiosíssimo, desde o princípio, por atividade política”, tendo sido afastado disso pelas experiências agitadas de sua juventude. “Vendo que tudo ondulava e se deslocava sem objetivo, senti-me estonteado e desesperado”. Desse sentimento de que a sociedade, e na verdade “tudo”, estava num fluxo, ergueu-se, creio, o impulso fundamental de sua filosofia, assim como da filosofia de Heráclito; e Platão sintetizou sua experiência social, exatamente como o fizera seu predecessor historicista, apresentando uma lei de desenvolvimento histórico. De acordo com essa lei, que será mais amplamente discutida no capítulo seguinte, toda mudança social é corrupção, ou decadência, ou degeneração.

Essa lei histórica fundamental forma, ao ver de Platão, parte de uma lei cósmica, lei que vigora para todas as coisas criadas ou geradas. Todas as coisas em fluxo, todas as coisas geradas, são destinadas à decadência. Platão, como Heráclito, sente que as forças que trabalham na história são forças cósmicas (4).

É quase certo, entretanto, que Platão acreditava que essa lei da degeneração não encerrava tudo. Já vimos, em Heráclito, uma tendência para visualizar as leis de desenvolvimento como leis cíclicas; são concebidas segundo a lei que determina a sucessão cíclica das estações. Similarmente, podemos encontrar, em algumas das obras de Platão, a sugestão de um Grande Ano (sua duração parece ser a de 36.000 anos comuns), com um período de aperfeiçoamento ou geração, presumivelmente correspondente à Primavera e ao Verão, e um de degeneração e decadência, correspondente ao Outono e ao Inverno. De acordo com um dos diálogos de Platão (o Estadista), uma Idade de Ouro, a era de Cronos, uma era em que o próprio Cronos rege o mundo e em que os homens nascem da terra, é seguida pela nossa própria era, a era de Zeus, um período em que o mundo é abandonado pelos deuses e só conta com seus próprios recursos, sendo, consequentemente, um tempo de acrescida corrupção. E na história do Estadista há também a sugestão de que, uma vez alcançado o mais baixo ponto da completa corrupção, voltará o bem a empunhar o leme do navio cósmico e as coisas começarão a aperfeiçoar-se (5).

Não se sabe até onde Platão acreditava na história do Estadista. Deixou ele bem claro não crer que toda ela fosse literalmente verdadeira. Por outro lado, pouca dúvida pode haver de que visualizasse a história humana num quadro cósmico; acreditava que sua própria época era de profunda depravação — possivelmente a mais profunda que pudesse ser alcançada — e que todo o período histórico precedente fora governado por uma tendência inerente para a decadência, tendência de que participavam tanto o desenvolvimento histórico quanto o cósmico (6). Se cria ou não que essa tendência necessariamente devia chegar a um fim, uma vez que se alcançara o ponto da extrema depravação, eis o que me parece incerto. Mas ele certamente acreditava que é possível a nós, por um esforço humano, ou melhor, sobre-humano, romper a fatal inclinação histórica e dar fim ao processo de decadência.

II

Por grandes que sejam as similaridades entre Platão e Heráclito esbarramos aqui com uma importante diferença. Platão acreditava que a lei do destino histórico, a lei da decadência, podia ser quebrada pela vontade moral do homem, sustentado pela força da razão humana.

Não está bem claro como Platão conciliava essa opinião com sua crença numa lei do destino. Mas há algumas indicações que podem explicar o assunto.

Platão acreditava que a lei da degeneração envolvia a degeneração moral. A degeneração política, de qualquer modo, modo, depende, a seu ver, principalmente da degeneração moral (e de falta de conhecimento); e a degeneração moral, por seu turno, deve-se principalmente à degeneração racial. Este é o modo por que a geral lei cósmica da decadência se manifesta no campo dos negócios humanos.

Compreensível é, portanto, que o grande ponto de reviravolta cósmica possa coincidir com um ponto de reviravolta no campo dos negócios humanos — o campo moral e intelectual — e que nos possa aparecer, em consequência, como produzido por um esforço humano moral e intelectual. Platão bem pode ter acreditado que, assim como a lei geral da decadência se manifesta na decadência moral que leva à decadência política, também o advento do ponto cósmico de reviravolta poderia manifestar-se na vinda de um grande legislador, cujos dotes de raciocínio e cuja vontade moral fossem capazes de encerrar esse período de decadência política. Parece plausível que a profecia, feita no Estadista, do retomo da Idade de Ouro, do novo milênio venturoso, seja a expressão de tal crença sob a forma de mito. De qualquer modo, ele por certo acreditava nestas duas coisas numa geral tendência histórica para a corrupção e na possibilidade que temos de paralisar mais ampla corrupção no campo político, detendo qualquer mudança política. Este é, consequentemente, o objetivo por ele visado. Tenta realizá-lo por meio do estabelecimento de um estado que seja livre dos males de todos os outros estados em vista de não degenerar, em vista de não mudar. O estado livre do mal da mudança e da corrupção é o melhor, o estado perfeito. É o estado da Idade de Ouro, que não conhece mudança. É o estado detido (7).

III

Acreditando nesse ideal estado imutável, Platão desvia-se radicalmente dos credos de historicismo que encontramos em Heráclito. Mas, por importante que seja esta diferença, vem ela erguer mais pontos de similaridade entre Platão e Heráclito.

A despeito da audácia de seu raciocínio, Heráclito parece ter recuado ante a ideia de substituir o cosmos pelo caos. Parece que se consolou, já o dissemos, da perda de um mundo estável, aferrando-se à opinião de que a mudança é regida por uma lei que não varia. Essa tendência para recuar das últimas consequências do historicismo é característica de muitos historicistas.

Em Platão, essa tendência torna-se extrema. (Estava ele sob a influência da filosofia do grande crítico de Heráclito, Parmênides). Heráclito generalizara sua experiência do fluxo social estendendo-o ao mundo de “todas as coisas” e Platão, como já sugeri, fez o mesmo. Mas Platão também estendeu sua crença num estado perfeito e imutável ao reino de “todas as coisas”. Acreditava que a cada espécie de coisa ordinária ou decadente corresponde também uma coisa perfeita, que não decai. Essa crença nas coisas perfeitas e imutáveis, costumeiramente chamada a Teoria das Formas ou Ideias (8), tomou-se a doutrina central de sua filosofia.

A crença de Platão de que nos é possível romper a lei de ferro do destino e evitar a decadência com a detenção de qualquer mudança mostra que suas tendências historicistas tinham limitações definidas. Um historicismo rígido e plenamente desenvolvido hesitaria em admitir que o homem, por qualquer esforço, pudesse alterar as leis do destino histórico, mesmo depois que as houvesse descoberto. Sustentaria que o homem não pode trabalhar contra elas, visto como todos os seus planos e ações são meios pelos quais as leis inexoráveis do desenvolvimento realizam seu destino histórico, é assim que Édipo marchou ao encontro de seu fado por causa da profecia e das medidas que seu pai tomou para evitar-lhe o cumprimento, e não a despeito delas. A fim de que se tenha melhor compreensão dessa nítida atitude historicista e se analise a tendência oposta, inerente na crença de Platão, de que é possível influenciar o destino, poremos em contraste o historicismo, tal como o encontramos em Platão, com uma posição diametralmente oposta, que também em Platão encontramos e que pode ser chamada a atitude da mecânica social (9).

IV

O “mecânico social” não faz quaisquer indagações a respeito das tendências históricas ou do destino do homem. Acredita que o homem é o senhor de seu próprio destino e que, em concordância com os nossos alvos, podemos influenciar ou alterar a história humana do mesmo modo pelo qual mudamos a face da terra. Não acredita ele que esses fins nos sejam impostos por nossa base histórica ou pelas tendências da história, mas, antes, que sejam escolhidos, ou mesmo criados, por nós próprios, assim como criamos novos pensamentos, ou novas obras de arte, ou novas casas, ou novas máquinas. Opondo-se ao historicista, que crê que a ação política inteligente só é possível se o curso futuro da história for antes determinado, o mecânico social crê que uma base científica da política seria coisa bem diferente; consistiria na informação dos fatos necessária para a construção ou alteração das instituições sociais, de acordo com os nossos desejos e objetivos. Tal ciência deveria dizer-nos quais os passos a dar se quiséssemos, por exemplo, evitar depressões, ou produzir depressões, ou se quiséssemos tornar mais ou menos equitativa a distribuição da riqueza. Em outras palavras, o mecânico social concebe como base científica da política algo de semelhante a uma tecnologia social (Platão, como veremos, compara-a à base científica da medicina), opondo-se ao historicista, que a compreende como a ciência das tendências históricas imutáveis.

Não se deve inferir, do que tenho dito a respeito da atitude do mecânico social, que não haja divergências importantes no campo dos mecânicos sociais. Ao contrário, a diferença entre o que chamo “mecânica social gradual” e “mecânica social utópica” é um dos principais temas deste livro (ver especialmente o cap. 9, onde apresentarei minhas razões para advogar a primeira e rejeitar a última). Mas, por enquanto, preocupo-me apenas com a oposição entre o historicismo e a mecânica social. Essa oposição talvez se tome mais clara se consideramos as atitudes tomadas pelo historicista e pelo mecânico social em relação às instituições sociais, isto é, a coisas tais como uma companhia de seguros, uma força policial, um governo ou talvez uma mercearia.

O historicista inclina-se a encarar as instituições sociais principalmente do ponto de vista de sua história, isto é, de sua origem, seu desenvolvimento, sua significação presente e futura. Pode talvez insistir em que sua origem se deve a um plano ou desígnio definidos e à busca de determinados fins, humanos ou divinos; ou pode asseverar que não se destinam a servir a quaisquer fins claramente concebidos, sendo apenas a expressão imediata de certos instintos ou paixões; ou pode afirmar que alguma vez serviram de meios para alcançar certos fins, mas perderam esse caráter. O mecânico e tecnologista social, por outro lado, dificilmente terá muito interesse na origem das instituições, ou nas intenções originais de seus fundadores (embora não haja razão para que não reconheça o facto de que “só uma minoria de instituições sociais é conscientemente criada, ao passo que a vasta maioria limitou-se á crescer, como resultado sem finalidade prevista de ações humanas” (10). Preferirá ele expor assim o problema: se tais e quais são os nossos objetivos, está esta instituição bem prevista e organizada para servi-los? Como um exemplo, podemos considerar a instituição do seguro. O mecânico ou tecnologista social não se incomodará muito com a questão de saber se o seguro nasceu como um negócio à busca do lucro, ou se sua missão histórica é servir ao bem comum. Pode, porém, oferecer uma crítica de certas instituições de seguro, mostrando, talvez, como aumentar-lhes os lucros, ou, o que é bem diferente, como acentuar os benefícios que prestam ao público; e sugerirá os meios pelos quais se tornarão mais eficientes para atingir um ou outro dos fins. Como outro exemplo de instituição social, podemos considerar uma força de polícia. Certos historicistas podem descrevê-la como um instrumento para proteção da liberdade e da segurança, e outros como instrumento de predomínio e opressão de classe. O mecânico ou o tecnologista social porém, sugeriria sempre medidas que a tornassem um instrumento adequado à proteção da liberdade e da segurança, assim como poderia encarar medidas que a tomassem poderosa arma de predomínio de classe. Em sua função como cidadão que objetiva certos fins em que crê, pode pedir que esses fins, e as medidas apropriadas, sejam adotados. Mas, como tecnologista, cuidadosamente distinguirá entre a questão dos fins e sua escolha e as questões relativas aos fatos, isto é, os efeitos sociais de qualquer medida que possa ser tomada (11).

Falando de modo mais geral, podemos dizer que o mecânico ou tecnologista estuda as instituições racionalmente, como meios que servem a certos fins, e que, como tecnologista, julga-as inteiramente de acordo com sua propriedade, eficiência, simplicidade, etc. O historicista, por outro lado, simplesmente tentaria descobrir a origem e o destino dessas instituições a fim de estabelecer o “verdadeiro papel” por elas desempenhado no desenvolvimento da história — avaliando-as, por exemplo, como “da vontade de Deus”, ou como “queridas pelo Destino”, ou ainda com “a serviço de importantes tendências históricas”, etc. Não quer isso dizer que o mecânico ou tecnologista social se responsabilize pela asserção de que as instituições são meios para alcançar fins, ou instrumentos para isso; pode ele estar bem ciente do fato de que elas, a muitos e importantes efeitos, diferem bastante de instrumentos mecânicos ou máquinas. Não esquecerá, por exemplo, que elas “crescem” de um modo semelhante (embora de modo algum igual) ao do crescimento dos organismos, e que este fato é de grande importância para a mecânica social. Não está ele preso a uma filosofia “instrumentalista” das instituições sociais. Ninguém dirá que uma laranja é um instrumento ou um meio para alcançar um fim, mas muitas vezes encaramos as laranjas como meios para alcançar fins, como, por exemplo, quando desejamos chupá-las, ou, talvez, ganhar a vida a vendê-las.

As duas atitudes, o historicismo e a mecânica social, ocorrem algumas vezes em combinações típicas. Destas, o mais antigo e provavelmente mais influente exemplo é a filosofia social e política de Platão. Combina ela, com efeito, alguns evidentes elementos tecnológicos no primeiro plano, com um fundo de quadro dominado por cuidadosa exibição de elementos tipicamente historicistas. Tal combinação é representativa de bom número de filósofos sociais e políticos que produziram o que mais tarde se descreveu como sistemas utópicos. Todos esses sistemas recomendam certa espécie de mecânica social, pois reclamam a adoção de certos meios institucionais, embora nem sempre muito realistas, para a consecução de seus fins. Mas, quando passamos a uma consideração de tais fins, frequentemente verificamos então que são determinados pelo historicismo. Os fins políticos de Platão, especialmente, dependem em considerável extensão de suas doutrinas historicistas. Em primeiro lugar está seu objetivo de fugir ao fluxo do heraclitismo, manifestado na revolução social e na decadência histórica. Em segundo lugar, acredita que isso pode ser feito pelo estabelecimento de um estado tão perfeito que não participe da tendência geral do desenvolvimento histórico. Em terceiro lugar, crê que o modelo ou original de seu estado perfeito pode ser encontrado num passado distante, numa Idade Áurea que existiu na alvorada da história; pois, se o mundo entra em decadência com o tempo, devemos então encontrar perfeição acrescida à medida que recuamos no passado. O estado perfeito é algo como o primeiro ancestral, o primogênito dos estudos que se seguiram, os quais são, assim, a descendência degenerada desse estado perfeito, ou melhor, ou ideal (12), estado ideal que não é simples fantasma, nem um sonho, nem uma “fantasia de nossa mente”, mas é, em vista de sua estabilidade, mais real do que todas essas decadentes sociedades que vivem em fluxo, sujeitas a desvanecer-se a qualquer momento.

Temos aqui um fundamento para a “teoria da corrupção” (ou da filosofia metafísica da corrupção). Este fundamento se encontra no pensamento político totalitário de Platão. É um mito, por certo, fundante da autocracia. O fluxo temporal corrompe a Ideia ou a Forma perfeita, aquele Universal que é limpo, reto, puro. As opiniões desencontradas dos seres humanos, baseadas em aparências (e que não chegam a captar a essência, o que só os filósofos podem fazer), que constituem propriamente a política ex parte populis (quer dizer, a democracia) confundem tudo, sujam, curvam e tornam impuros os modelos imárcidos. Daí decorre, em linha direta, a antipolítica robespierriana, as cruzadas de limpeza ética e… os cortadores de cabeças.

Assim, mesmo o fim político de Platão, o estado melhor, depende amplamente de seu historicismo; e o que é certo com relação à sua filosofia do estado pode ser estendido, como já indicamos, à sua filosofia geral de “todas as coisas”, à sua Teoria das Formas e Ideias.

V

As coisas em fluxo, as coisas degeneradas e decadentes são (como o estado), a descendência, os filhos, por assim dizer, de coisas perfeitas. E, como filhos, são cópias de seus primogenitores originais. O pai, ou o original, de uma coisa em fluxo é o que Platão chama sua “Forma”, ou seu “Modelo”, ou sua “Ideia”. Como antes, devemos insistir em que a Forma, ou a Ideia, a despeito de seu nome, não é uma “ideia de nossa mente”; não é uma fantasia, um fantasma, nem um sonho, mas uma coisa real. Na verdade, é mais real do que todas as coisas ordinárias, que estão em fluxo e que, apesar de sua aparente solidez, estão condenadas a decair, pois a Forma, ou Ideia, é uma coisa perfeita e não perece.

Formas ou Ideias não devem ser imaginadas a habitar, como as coisas perecíveis, espaço e tempo. Ficam para fora do espaço, e também para fora do tempo (porque são eternas). Mas estão em contato com o tempo e o espaço, pois, como são os primogenitores ou modelos das coisas geradas e que decaem no espaço e no tempo, devem ter estado em contato com o espaço no princípio do tempo. Não se achando conosco em nosso espaço e tempo, não podem ser percebidas pelos nossos sentidos, como sucede às comuns coisas mutáveis, que agem sobre nossos sentidos e são, portanto, chamadas “coisas sensíveis”. Essas coisas sensíveis, cópias ou filhos do mesmo modelo ou original, não só se assemelham a esse original, sua Forma ou Ideia, como também umas às outras, como filhos da mesma família. E, assim como os filhos são chamados pelo nome de seu pai, também as coisas sensíveis trazem o nome de suas Formas ou Ideias. “São chamadas de acordo com elas”, como diz Aristóteles (13).

Platão encara as Formas ou Ideias como um filho pode encarar seu pai, vendo nele um ideal, um modelo único, uma personificação divinal de sua própria aspiração, a incorporação da perfeição, da sabedoria, da estabilidade, da glória e da virtude, a força que o criou antes que seu mundo começasse e que agora o preserva e sustenta, e em “virtude” do qual ele existe. A ideia platônica é o original e a origem da coisa, é a racionalidade, a razão de sua existência; o princípio estável e sustentador em virtude do qual ela existe. É a virtude da coisa, seu ideal, sua perfeição.

A comparação entre a Forma ou Ideia de uma classe de coisas sensíveis e o pai de uma família de filhos é desenvolvida por Platão no Timeu, um de seus últimos diálogos. Está este em estreito acordo (14) com muitos de seus escritos anteriores, sobre os quais lança considerável luz. No Timeu, porém, Platão vai um passo além de seu primitivo ensinamento, quando representa o contato entre a Forma ou Ideia e o mundo de espaço e tempo por meio de uma extensão de seu símile. Descreve o “espaço” abstrato em que as coisas sensíveis se movem (originalmente, o espaço ou vácuo entre o céu e a terra) como um receptáculo, e compara-o com a mãe das coisas, na qual, no início dos tempos, as coisas sensíveis foram criadas pelas Formas que se estampam ou imprimem no espaço puro, dando em consequência aos descendentes a sua forma. “Devemos conceber — escreve Platão — três espécies de coisas: primeiro, as que experimentam a geração; segundo, aquelas em que a geração se verifica; terceiro, o modelo a cuja semelhança nascem as coisas geradas. E podemos comparar o princípio receptor a uma mãe e o modelo a um pai, e seu produto a um filho”. E passa a descrever primeiro, mais amplamente, os modelos — os pais, as Formas ou Ideias imutáveis : “Há primeiro a Forma imutável, que é incriada e indestrutível … invisível e imperceptível a qualquer sentido e que só pode ser contemplada pelo puro pensamento”. À cada uma dessas Formas ou Ideias pertence sua própria descendência ou raça de coisas sensíveis, “outra espécie de coisas, que têm o nome de sua Forma e a ela se assemelham, mas perceptíveis aos sentidos, criadas, sempre em fluxo, geradas num lugar para se desvanecerem de tal lugar, e apreendidas pela opinião baseada na percepção”. E o espaço abstrato, equiparada à mãe, é assim descrito: “Há uma terceira espécie, que é espaço, e é eterno, e não pode ser destruído, e que fornece um lar para todas as coisas geradas…” (15).

Poderá contribuir para a compreensão da teoria das Formas ou Ideias de Platão uma comparação com certas crenças religiosas gregas. Como em muitas religiões primitivas, alguns pelo menos dos deuses gregos nada mais são que idealizados primogenitores e heróis tribais — personificações da “virtude” ou “perfeição” da tribo. Em consequência, certas tribos e famílias levavam sua ancestralidade até um ou outro dos deuses. (Diz-se que a própria família de Platão ligava sua origem ao deus Poseidon (16). Basta-nos considerar que esses deuses são imortais ou eternos e perfeitos — ou muito perto disso — enquanto os homens comuns se envolvem no fluxo e refluxo de todas as coisas, sujeitos á decadência (que em verdade é o derradeiro destino de cada indivíduo humano), para ver que esses deuses se relacionam com os homens comuns do mesmo modo que as Formas ou Ideias de Platão se relacionam com aquelas coisas sensíveis que são suas cópias (17) (ou o seu estado perfeito em relação aos vários estados agora existentes). Há, porém, uma diferença importante entre a mitologia grega e a Teoria das Formas e Ideias de Platão. Ao passo que os Gregos veneravam muitos deuses como ancestrais de várias tribos ou famílias, a Teoria das Ideias exige que só haja uma Forma ou Ideia do Homem (18); pois uma das doutrinas centrais da Teoria das Formas é a de que só existe uma Forma de cada “raça” ou “espécie” de coisas. A unidade da Forma, que corresponde á unidade do primogenitor, é elemento necessário a que a teoria realize uma de suas mais importantes funções, a saber, explicar a similaridade das coisas sensíveis, ao propor que as coisas similares são cópias ou impressões de uma Forma. Assim, se houvesse duas Formas iguais ou similares, sua similaridade forçar-nos-ia a admitir serem ambas cópias de um terceiro original, que, portanto, viria a ser a única Forma verdadeira e singular. Ou, como diz Platão no Timeu: “A semelhança seria assim explicada, mais precisamente, não como uma entre essas duas coisas, mas com referência à coisa superior que é o seu protótipo (19). Na República, que é anterior ao Timeu, Platão explicara sua opinião ainda mais claramente, usando como seu exemplo a “cama essencial”, isto é, a Forma ou Ideia de uma cama: “Deus…, fez uma cama essencial, e somente uma; duas ou mais ele não produziu, nem nunca o quis… Pois… mesmo se Deus viesse a fazer duas, e não mais, então uma outra seria trazida à luz, a saber, a Forma exibida por essas duas; esta, e não aquelas duas, seria então a cama essencial” (20).

Este argumento mostra que as Formas ou Ideias dão a Platão não só um ponto de origem ou partida para todos os desenvolvimentos no espaço e no tempo (e especialmente para a história humana), como também uma explicação das similaridades entre as coisas sensíveis da mesma espécie. Se as coisas são similares em consequência de alguma virtude ou propriedade de que compartilham, como, por exemplo, a brancura ou a dureza, ou a bondade, então essa virtude ou propriedade deve ser uma e a mesma em todas elas, do contrário, não as tomaria similares. De acordo com Platão, todas elas compartilham de uma Forma ou Ideia de brancura, se são brancas, de dureza, se são duras. E compartilham no mesmo sentido em que os filhos compartilham das posses e dons dos pais; assim como as muitas reproduções particulares de um desenho, que sejam todas impressões de uma só e a mesma chapa, podem compartilhar da beleza do original.

O fato de que esta teoria se destine a explicar as similaridades entre as coisas sensíveis não parece, à primeira vista, estar de qualquer modo ligado ao historicismo. Mas está, e, como nos diz Aristóteles, foi justamente essa ligação que induziu Platão a desenvolver a Teoria das Ideias. Tentarei dar um esboço desse desenvolvimento, usando a explicação de Aristóteles juntamente com algumas indicações existentes nos próprios escritos de Platão.

Se todas as coisas estão em fluxo contínuo, toma-se então impossível dizer algo de definido a seu respeito. Não podemos ter real conhecimento delas, mas, no melhor dos casos, vagas e ilusórias “opiniões”. Essa questão, como o sabemos de Platão e Aristóteles (21), incomodou muitos seguidores de Heráclito. Parmênides, um dos predecessores de Platão que grandemente o influenciaram, ensinara que o puro conhecimento da razão, como oposto à ilusória opinião da experiência, só podia ter como seu objeto um mundo que não mudasse, e que o puro conhecimento da razão de facto revelava tal mundo. Mas a realidade imutável e individida que Parmênides pensara haver descoberto por trás do mundo das coisas perecíveis (22) era inteiramente sem relação com este mundo em que vivemos e morremos. Era, portanto, incapaz de explicá-lo.

Platão não podia sentir-se satisfeito com isso. Por mais que lhe causasse desgosto e desprezo esse empírico mundo em mudança, estava, no fundo, profundissimamente interessado nele. Queria desvendar o segredo de sua decadência, de suas violentas alterações, de sua infelicidade. Esperava descobrir os meios de sua salvação. Ficara fundamente impressionado com a doutrina de Parmênides sobre um mundo imutável, real, sólido e perfeito por trás deste mundo fantasmal em que sofria; mas tal concepção não lhe resolvia os problemas, enquanto permanecesse desligada do mundo das coisas sensíveis. O que ele buscava era conhecimento, e não opinião; o puro conhecimento racional de um mundo que não mudasse; mas, ao mesmo tempo, conhecimento que pudesse ser utilizado para investigar este mundo mutável e, especialmente, esta sociedade mutável; a mudança política, com suas estranhas leis históricas. Platão visava a descobrir o segredo do real conhecimento da política, da arte de governar os homens.

Uma ciência exata da política, porém, parecia tão impossível como qualquer outro conhecimento exato num mundo em fluxo; não havia objetos fixos no campo político. Como se poderia discutir qualquer questão política, se a significação de palavras como “governo”, ou “estado”, ou “cidade” mudava a cada fase do desenvolvimento histórico? A teoria política deve ter parecido a Platão, no seu período heracliteano, tão fugidia, flutuante e insondável como a prática política.

Nessa situação, Platão obteve, como nos conta Aristóteles, importantíssima sugestão de Sócrates. Estava Sócrates interessado em assuntos éticos, era um reformador ético, um moralista que acabrunhava toda espécie de pessoas, forçando-as a pensar, a explicar, a dar contas dos princípios de suas ações. Costumava interrogá-las e não ficava facilmente satisfeito com suas respostas. A resposta típica que recebia — a de que agimos de certo modo porque é “sábio” agir desse modo, ou talvez “eficiente”, ou “justo”, ou “piedoso”, etc. — apenas o incitava a continuar as interrogações, indagando que era a sabedoria, ou a eficiência, ou a justiça, ou a piedade. Em outras palavras, era ele levado a inquirir sobre a “virtude” de uma coisa. Assim discutia, por exemplo, a sabedoria demonstrada em diversos negócios e profissões a fim de verificar o que havia de comum em todos esses vários e mutáveis modos “sábios” de comportamento, para então descobrir o que realmente é a sabedoria, ou o que “sabedoria” realmente significa, ou (usando a expressão de Aristóteles) qual é a sua essência. “Era natural — diz Aristóteles — que Sócrates procurasse a essência” (23), isto é, a virtude ou a racionalidade de uma coisa, e as significações reais, imutáveis ou essenciais dos termos. “A este respeito, tornou-se ele o primeiro a suscitar o problema das definições universais.”

Essas tentativas de Sócrates para discutir termos éticos como “justiça”, ou “modéstia”, ou “piedade” têm sido com razão comparadas às modernas discussões sobre a Liberdade – por Mill, por exemplo (24), ou sobre a Autoridade, ou o Indivíduo e a Sociedade (por exemplo, Catlin). Não é necessário admitir que Sócrates, em sua procura da significação imutável ou essencial de tais termos, os personificasse, ou os tratasse como coisas. O comentário de Aristóteles, pelo menos, sugere que ele não o fazia e que foi Platão quem desenvolveu o método socrático de busca do significado ou essência num método de determinar a natureza real, a Forma ou Ideia de uma coisa. Platão conservou “as doutrinas heraclitanas de que todas as coisas sensíveis estão sempre num estado de fluxo e que não há conhecimento sobre elas”, mas achou no método de Sócrates um meio de sair dessas dificuldades. Embora “não pudesse haver definição de qualquer coisa sensível, pois estavam sempre em mudança”, podia haver definições e verdadeiro conhecimento de coisas de uma espécie diferente: as virtudes das coisas sensíveis. “Se o conhecimento ou o pensamento devem ter um objeto, tem ele de ser o de certas entidades diferentes, imutáveis, à parte das que são sensíveis”, diz Aristóteles (25). E comenta que Platão, “assim, chamava Formas ou Ideias as coisas de outra espécie, dizendo que as coisas sensíveis eram distintas delas e delas recebiam seus nomes. E as muitas coisas que têm o mesmo nome de certa Forma ou Ideia existem porque compartilham dela”.

Essa exposição de Aristóteles corresponde de perto aos próprios argumentos de Platão apresentados no Timeu (26) e mostra que o problema fundamental de Platão era encontrar um método científico de lidar com as coisas sensíveis. Queria obter conhecimento puramente racional e não mera opinião; e como não se podia obter conhecimento puramente racional das coisas sensíveis, insistia ele, como acima mencionamos, em obter pelo menos um conhecimento puro que de certo modo se relacionasse e aplicasse às coisas sensíveis. O conhecimento das Formas e Ideias atendia a essa exigência, visto como a Forma se relacionava com suas coisas sensíveis como um pai com seus filhos menores. A Forma era o representante explicável das coisas sensíveis e podia, portanto, ser consultada em questões de importância relativas ao mundo em fluxo.

De acordo com a nossa análise, a teoria das Formas ou Ideias tem pelo menos três funções diferentes na filosofia de Platão.

I) É um importantíssimo instrumento metodológico, pois torna possível o puro conhecimento científico, e mesmo um conhecimento que pode ser aplicado ao mundo de coisas mutáveis das quais não podemos de modo imediato obter qualquer conhecimento, mas apenas opinião. Assim, possibilita inquirir sobre os problemas de uma sociedade mutável e edificar uma ciência política.

II) Fornece a chave da urgentemente requerida teoria da mudança e da decadência, de uma teoria da geração e da degeneração e, especialmente, a chave da história.

III) Abre caminho, no reino social, a certa espécie de mecânica social, e torna possível forjar instrumentos para deter a mudança social, visto como sugere o plano de um “estado melhor” que estreitamente se assemelha à Forma ou Ideia de um estado que não pode decair.

Temos aqui um bom resumo, feito por Popper, do que ele chama de “funções” da teoria platônica das Formas ou Ideias: 1) ciência política, 2) leis da história e 3) instrumentos de ação usados voluntariamente para modificar o destino. Isso desqualifica a opinião em relação ao saber, tira dos homens comuns a possibilidade de alterar o destino e confere aos sábios a capacidade de fazê-lo. Conclusão: os ignorantes devem ser governados pelos sábios. É o fundamento do seu pensamento autocrático e, mais do que isso, totalitário.

No entanto, há uma ontologia em que se baseia tal visão, estruturada a partir de ideias de perfeição e de pureza. No mundo produzido (se realizando no espaço e no tempo) tudo está em fluxo (como disse Heráclito). Mas o que é puro é o que não está em fluxo. O fluxo corrompe, suja. À política do sábio cabe deter a degeneração, o que significa uma não-política, ou melhor, uma antipolítica. A (verdadeira) ciência política é assim, na verdade, uma ciência da antipolítica. Ela consiste na capacidade de alguns (os únicos que podem saber e, portanto, governar) de conhecer a chave da história. E que, tendo tal conhecimento, será capaz de intervir (mecanicamente, quer dizer, construindo mecanismos) para conter a degeneração, tendo como modelo e alvo a perfeição e a pureza originais (que estão fora da história). Essa intervenção dos que conhecem acabará também com a história como campo do contingente ao levá-la de volta (juntamente com todas as coisas manifestadas e, inexoravelmente, corrompidas) ao seu modelo ou protótipo. Há uma kabbalah aqui (as coisas são emanadas, criadas, formadas e chamadas a existir no mundo concreto), quer dizer, há uma visão mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática própria da tradição dita espiritual – na verdade, porém, patriarcal – que é bem anterior a Platão e deve ter suas raízes no pensamento babilônico (como já apontou Popper, comentando Heráclito) ou sumério.

O problema II, a teoria da mudança e da história, será tratado nos próximos capítulos 4 e 5, onde cuidamos da sociologia descritiva de Platão, isto é, de sua descrição e explicação do mutável mundo social em que viveu. O problema III, da detenção da mudança social, será tratado nos capítulos 6 a 9, em que examinamos o programa político de Platão. O problema I, o da metodologia de Platão, foi brevemente esboçado no presente capítulo, com a ajuda do relato de Aristóteles sobre a história da teoria platônica. A essa discussão desejo acrescentar aqui umas poucas observações [no tópico VI que encerra este Capítulo 3].

VI

Emprego o nome essencialismo metodológico para caracterizar o ponto de vista, sustentado por Platão e muitos de seus seguidores, de que é tarefa do conhecimento puro, ou “ciência”, descobrir e descrever a verdadeira natureza das coisas, isto é, sua realidade ou essência ocultas. Era crença peculiar de Platão que a essência das coisas sensíveis podia ser encontrada em outras coisas mais reais, em seus primogenitores, ou Formas. Muitos dos posteriores essencialistas metodológicos, Aristóteles por exemplo, não o acompanharam nisso de todo; mas todos concordaram com ele em determinar a tarefa do conhecimento puro como a descoberta da natureza oculta da Forma, ou da essência das coisas. Todos esses essencialistas metodológicos também concordavam com Platão em sustentar que essas essências podem ser descobertas e discernidas com o auxílio da intuição intelectual; que cada essência tem um nome que lhe é próprio, o nome pelo qual são chamadas as coisas sensíveis, e que pode ser descrita em palavras. A uma descrição da essência de uma coisa todos eles chamaram “definição”. De acordo com o essencialismo metodológico, pode haver três modos de conhecer uma coisa: “Quero dizer que podemos conhecer sua realidade ou essência imutável; e que podemos conhecer a definição da essência; e que podemos conhecer seu nome. Em consequência, duas questões podem ser formuladas acerca de qualquer coisa real… : uma pessoa pode dar o nome e pedir a definição; ou pode dar a definição e pedir o nome.” Como exemplo desse método, Platão usa a essência de “par” (em oposição a “ímpar”): “O número… pode ser uma coisa capaz de divisão em partes iguais. Se é assim divisível, o número é chamado “par”; e a definição do nome “par” é “um número divisível em partes iguais”… E quando nos é dado o nome e pedida a definição, ou quando nos é dada a definição e pedido o nome, falamos, em ambos os casos, de uma só e mesma essência, quer digamos “par” ou “um número divisível em partes iguais”. Depois desse exemplo, passa Platão a aplicar tal método a uma “prova” relativa à verdadeira natureza da alma, de que falaremos mais adiante (27).

O essencialismo metodológico, isto é, a teoria de que o alvo da ciência é revelar essências e descrevê-las por meio de definições, pode ser melhor compreendido quando contrastado com seu oposto, o nominalismo metodológico. Em vez de visar a descobrir o que uma coisa realmente é, definindo-lhe a verdadeira natureza, o nominalismo metodológico objetiva descrever como uma coisa se comporta em várias circunstâncias e, especialmente, se há quaisquer regularidades nesse comportamento. Em outras palavras, o nominalismo metodológico vê com alvo da ciência a descrição das coisas e acontecimentos de nossa experiência e uma “explicação desses acontecimentos, isto é, sua descrição com o auxílio das leis universais” (28). E vê na nossa linguagem, e especialmente nas suas regras que distinguem sentenças devidamente construídas e inferências de um simples montão de vocábulos, o grande instrumento da descrição científica (29); considera as palavras antes como instrumentos subsidiários dessa tarefa do que como nomes de essências. O nominalista metodológico nunca pensará que sejam importantes para a física perguntas como: “Que é energia?”, ou “que é movimento?”, ou “que é um átomo?”. Dará, porém, importância a questões como: “De que modo pode ser utilizada a energia do sol?”, ou “como se move um planeta?”, ou “sob que condições um átomo irradia luz?” E àqueles filósofos que lhe dizem que, antes de haver respondido ao “quê” da questão, não poderá esperar dar respostas exatas a quaisquer dos “como”, replicará ele, se replicar, mostrando que prefere muito mais o modesto grau de exatidão que pode alcançar por seus métodos à pretensiosa confusão a que levaram os deles.

Muito importante a observação epistemológica do parágrafo acima.

Como nosso exemplo indica, o nominalismo metodológico é hoje plena e geralmente aceito nas ciências naturais. Os problemas das ciências sociais, por outro lado, são ainda na maior parte tratados por métodos essencialistas. Esta é, em minha opinião, uma das principais razões de seu atraso. Mas muitos que observaram essa situação (30) julgam de modo diferente. Acreditam que a diferença de método é necessária e que ela reflete uma diferença “essencial” entre as “naturezas” desses dois campos de pesquisa.

Os argumentos habitualmente apresentados em apoio desse ponto de vista dão ênfase à importância da mudança na sociedade e exibem outros aspectos de historicismo. O físico, diz um desses argumentos típicos, lida com coisas como a energia ou os átomos, as quais, embora mutáveis, conservam certo grau de constância. Pode descrever as mudanças verificadas por essas entidades relativamente imutáveis sem precisar construir ou descobrir essências, ou Formas, ou entidades imutáveis similares, para obter algo de permanente sobre que possa fazer pronunciamentos definidos. O cientista social, entretanto, está em posição muito diferente. Todo o seu campo de interesse é mutável. Não há entidades permanentes no campo social, onde tudo se encontra sob o impulso do fluxo histórico. Como, por exemplo, podemos estudar o governo? Como podermos identificá-lo na diversidade de instituições governamentais encontradas em diferentes estados, diferentes períodos históricos, sem admitir que têm alguma coisa essencialmente em comum? Podemos dizer que uma instituição é um governo se pensamos que ela é essencialmente um governo, isto é, se se adapta à nossa intuição do que é um governo, intuição que podemos formular numa definição. O mesmo argumento serve para outras entidades sociológicas, tais como “civilização”. Devemos aprender sua essência, conclui o argumento historicista, para expô-la em forma de uma definição.

Esses argumentos modernos são, creio eu, muito semelhantes aos citados acima e que, de acordo com Aristóteles, levaram Platão à sua doutrina das Formas ou Ideias. A única diferença é que Platão (que não aceitava a teoria atômica e nada sabia a respeito de energia) aplicava sua doutrina também ao mundo da física e, assim, ao mundo como um todo. Temos aqui uma indicação do facto de que, nas ciências sociais, uma discussão dos métodos de Platão pode ser de interesse mesmo nos dias de hoje.

Antes de passar á sociologia de Platão e ao uso que ele fez de seu essencialismo metodológico nesse campo, desejo tornar bem claro que estou limitando meu tratamento de Platão ao seu historicismo e ao seu “estado melhor”. Devo, pois, advertir o leitor a que não espere uma exposição de toda a filosofia platônica, ou o que pode ser chamado “um completo e justo” tratamento do platonismo. Minha atitude para com o historicismo é de franca hostilidade, baseada na convicção de que o historicismo é fútil, senão pior do que isso. O exame que faço dos aspectos historicistas do platonismo é, em consequência, fortemente crítico. Embora muito admire na filosofia de Platão, bem além daquelas partes que acredito serem socráticas, não considero minha tarefa vir trazer acréscimos aos incontáveis tributos a seu gênio. Sinto-me inclinado, antes, a destruir o que, em minha opinião, é maléfico nessa filosofia. A tendência totalitária da filosofia política de Platão é que tentarei analisar e criticar (31).

Notas

1 – Com esta explicação à palavra “oligarquia”, cf. também o final das notas 44 e 47 ao cap. 8.

2 – Cf. especialmente a nota 48 ao cap. 10.

3 – Cf. o final do cap. 7. especialmente a nota 25, e o cap. 10, especialmente a nota 69.

4 – Cf. Diog. Laer., III, 1; Quanto às vinculações da família de Platão e especialmente a pretensa descendência de Codro e “até do deus Poseidon” por parte de sua família paterna, ver, de G. Grite, a obra Plato and Other Companions of Socrate (ed. 1875), vol. 1, 114. (Veja-se, entretanto, a observação semelhante acerca da família de Crítias, isto é, sobre o ramo materno de Platão, na obra de E. Meyer, Geschichte des Altertums, vol. V, 1922, pag. 66). Eis o que diz Platão de Codro, no Banquete (208d): “Supondes acaso que Alcestes… ou Arquiles… ou que o próprio Codro teriam buscado a morte – a fim de salvar o reino para seu filhos – se não tivessem esperado conquistar a memória imortal de sua virtude, pela qual, em verdade, ps recordamos?” Platão louva a família de Crítias, (isto é, a de sua mãe), no Cármides, obra dos primeiros tempos (157e segs.) e no Time», de tempo posterior (20e), em que faz a família remontar ao governante ateniense (arconte) Drópides, amigo de Sólon.

5 — As duas citações autobiográficas que se seguem neste parágrafo são extraídas da Sétima Carta (325). Alguns eruditos puseram em dúvida a autenticidade dessas Cartas (talvez sem bastante fundamento; considero que o estudo de Field sobre esse problema é sumamente convincente; cf. nota 57 ao cap. 10; por outro lado, até a Sétima Carta me parece um pouco suspeitosa, pois repete em demasia o que já sabemos pela Apologia, e diz muito mais do que a ocasião requer; procurei, portanto, basear fundamentalmente minha interpretação do platonismo em alguns dos diálogos mais famosos; ela, entretanto, não está em contradição com as Cartas. Para facilitar o trabalho do leitor, daremos aqui uma lista dos diálogos platônicos que o texto menciona com maior frequência, seguindo sua mais provável ordem histórica; (cf. nota 56 (8) ao cap. 10) Criton, Apologia, Eutifron, Protágoras, Menon, Górgias, Cratilo, Menexeno, Fédon, República, Parmênides, Teetetes, Sofista, o Estadista (ou o Político), Filebo, Timeu, Crítias, as Leis.

6 — Ver abaixo:

(1) Em parte alguma Platão expressou muito claramente que os desenvolvimentos históricos possam ter um caráter cíclico. A isso se alude, entretanto, pelo menos em quatro diálogos, a saber: no Fedon, na República, no Estadista (ou Político) e nas Leis. Em todas essas obras, talvez a teoria de Platão aluda ao Grande Ano de Heráclito (cf. nota 6 ao cap. 2). Pode ser, no entanto, que a alusão não se refira diretamente a Heráclito, mas a Empédocles, cuja teoria (cf. também Arist., Met., 1000a25 e segs.) era considerada por Platão como uma simples teoria “mais suave” da teoria heraclitiana da unidade do- fluxo. É o que expressa em famoso trecho do Sofista (242e). De acordo com esse trecho, e com Aristóteles (De Gen. Corr., á B6, 33416) histórico abarcando um período em que o amor governa, e um período em que governa a luta de Heráclito; ou, como Aristóteles nos diz, segundo Empédocles o presente período é agora “um período de Luta, como foi outrora um de Amor”. Essa insistência em que o fluxo de nosso próprio período cósmico seja uma espécie de luta, e portanto mau, está de estreito acordo com as teorias de Platão e com suas experiências. A extensão do Grande Ano é provavelmente o período de tempo após o qual todos, os corpos celestes retornam às mesmas posições mutuamente relativas que tinham a partir do momento de que se começa a contar esse período. (Isto o tornaria igual ao mínimo múltiplo comum dos períodos dos “sete planetas”).

(2) O trecho do Fedon mencionado em (1) alude, primeiramente, à teoria heraclitiana da mudança que conduz de um estado ao estado oposto ou, simplesmente, de um polo a outro: “aquilo que se torna mínimo deve ter sido grande alguma vez”. (70e/71a). Passa a seguir a indicar uma lei cíclica da evolução: “Não há dois processos que nunca cessam, desenvolvendo-se de um extremo a seu oposto e logo em sentido inverso…?” (ob. cit.). E pouco depois 72a/b) o argumento adquire a seguinte forma: “Se a evolução só se desenvolvesse em uma linha reta e não houvesse qualquer compensação ou ciclo da natureza… então, no fim, todas as coisas acabariam por tomar as mesmas propriedades, cessando qualquer evolução.” Ao que parece, a tendência geral do Fedon é mais otimista (e revela mais fé no homem e na razão humana) que a dos últimos diálogos, mas nele não encontramos qualquer referência direta ao desenvolvimento histórico do homem.

(3) Referências tais, contudo, são feitas na República, onde, nos livros VIII e IX encontramos trabalhada descrição da decadência histórica, que aqui tratamos no capitulo 4. Essa descrição começa com a narrativa da Queda do Homem e da Teoria do Número, que examinamos mais demoradamente nos capítulos S e 8. J. Adam, em sua edição da República de Platão (1902, 1921), chama com razão essa história o “marco em que se enquadra a “filosofia da história” de Platão”, (vol. II, 210) Esse relato não contém qualquer afirmação explícita a respeito do caráter cíclico da história, mas apenas uns poucos indícios, que, segundo a interessante mas incerta explicação de Aristóteles, (e Adam) constituem alusões ao Grande Ano de Heráclito, isto é, à evolução cíclica (cf. nota 6 ao cap. 2 e Adam, ob. cit, vol. II, 303; a observação que ali se faz acerca de Empédocles, 303 e segs., deve ser corrigida; ver (1) desta mesma nota).

(4) Temos ainda o mito do Estadista (268e a 274e). Segundo esse mito, o próprio Deus conduz o mundo durante metade do ciclo do grande período do mundo. Quando o abandona, o universo, que até então sempre avançou, começa a voltar para trás. Temos, pois, as duas metades de um período, ou hemiciclos, dentro do ciclo total, a saber, um movimento de avanço conduzido por Deus e que representa o período bom em que â guerra e a luta estão ausentes, e outro de retrocesso em que Deus entregou o mundo a si mesmo; este equivale ao período de crescente desorganização e guerras. É claro que este último coincide com o período em que vivemos. Por fim, as coisas ficarão tão mal que Deus terá novamente de empunhar o leme e inverter o movimento, para salvar o mundo da destruição total. Esse mito apresenta grandes semelhanças com o de Empédocles, mencionado acima em (1), e também, provavelmente, com o Grande Ano de Heráclito. Adam (ob. cit., vol. II, 296 e segs.) assinala, também, sua semelhança com o relato de Hesíodo.

Um dos pontos que aludem a Hesíodo é a referência a uma era de ouro de Cronos, e é importante destacar que os homens dessa era são terrígenos. Isto estabelece um ponto de contacto com o Mito dos Terrígenos e dos metais do homem, que desempenham importante papel na República (414b e segs., e 546e e segs.). Mais adiante, no capítulo 8, analisa-se este papel. Também se alude ao Mito dos Terrígenos no Banquete (191b) ; esta referência deve obedecer à crença dos atenienses de que, “ como as cigarras” eles são autóctones, (cf. notas 32 (1, e) ao cap. 4 e 11 (2) ao cap. 8).

Quando, porém, mais tarde, no Político (302b segs.) se ordenam as seis formas de governo imperfeito de acordo com seu grau de imperfeição, já não há qualquer indício da teoria cíclica da história. As seis formas, que são outras tantas cópias do estado perfeito ou ideal (cf. Pol., 293d/c; 297c; 303b) apresentam-se, antes, como etapas escalonadas do processo de degeneração; por exemplo, tanto aqui como na República, Platão se limita, quando aborda problemas históricos mais concretos, àquela parte do ciclo que leva à decadência.

(5) Com relação às Leis cabem observações análogas. No livro III, 676b/c a 677b, esboça-se algo semelhante a uma teoria cíclica, na qual Platão se dedica à análise pormenorizada dos começos de um dos ciclos; e em 678e a 679c esses começos são os de uma era de ouro, de modo que a parte restante novamente corresponde ao período da decadência. Observe-se que a doutrina de Platão de que os planetas são deuses, juntamente com a teoria de que os deuses influem sobre as vidas humanas (a crença de que as forças cósmicas incidem sobre a história) desempenhou importante papel nas especulações astrológicas dos neo-platônicos. As três doutrinas podem encontrar-se nas Leis (ver, p. ex., 821b/d e 899b; 899d a 90Sd; 677a e segs.) Não devemos esquecer que a astrologia compartilha com o historicismo da crença em um destino determinado, susceptível de ser predito, e, com algumas importantes versões do historicismo (especialmente com o platonismo e o marxismo) da crença de que, apesar da possibilidade de predizer o futuro, podemos exercer sobre ele certa influência, especialmente se soubermos de antemão o que irá ocorrer.

(6) Fora essas escassas alusões, quase nada priticamente há que indique que Platão levava a sério a parte ascendente ou progressiva do ciclo. Em compensação, existem muitos exemplos, além da trabalhada descrição na República e da citada em (5), que nos mostram que ele acreditou seriamente no movimento descendente, na decadência da história. Neste sentido devemos considerar especialmente o Timeu e as Leis.

(7) No Timeu (42b sg.; 90e segs. e especialmente 91 e sg.; cf. também ò Fedon, 238b e segs.), Platão descreve o que se poderia chamar a origem das espécies por uma degeneração (cf. texto correspondente à nota 4 do cap. 4 e nota 11) : os homens degeneram em mulheres e estas últimas em animais inferiores.

(8) No livro III das Leis (cf. também o livro IV, 713a segs.; ver, entretanto, a breve alusão a um ciclo acima feita) encontramos uma teoria bastante completa da decadência histórica, consideravelmente semelhante à da República. Ver também o capítulo seguinte, especialmente as notas 3, 6, 7, 27, 31 e 44.

7 – G. C. Field expressa opinião semelhante acerca dos objetivos políticos de Platão em sua obra Plato and His Contemporaries (1930, pág. 91): “Pode-se considerar como principal objetivo da filosofia de Platão a tentativa de restabelecer as normas do pensamento e da conduta para uma civilização que parecia prestes a dissolver-se”. Ver também a nota 3 ao cap. 6 e o texto.

8 — Acompanho a maioria das autoridades antigas e bom número das contemporâneas (p. ex. G. C. Field, F. M. Comford e A. K. Rogers), ao crer, diferentemente de John Burnet e A. E. Taylor, que a teoria das Formas ou Ideias pertence quase exclusivamente a Platão e não a Sócrates, apesar do facto de que Platão a ponha na boca de Sócrates. Embora os diálogos de Platão constituam a nossa única fonte de informação direta a respeito das doutrinas socráticas, é possível distinguir neles, a meu ver, entre os traços “socráticos”, isto é, historicamente certos, e os “platônicos”, atribuídos arbitrariamente a “Sócrates” em sua qualidade de porta-voz do pensamento de Platão. O chamado problema socrático foi analisado nos capítulos 6, 7, 8 e 10; cf. especialmente a nota 56 ao cap. 10.

9 – A expressão “mecânica social” parece ter sido utilizada pela primeira vez por Roscoe Pound, em sua Introduction to the Philosophy of Law (1922, p. 99). Este autor utiliza o termo no sentido de “ gradual”. M. Eastman, contrariamente, confere-lhe outro sentido em seu livro Marxism: is it Science? (1940). Quando li o livro de Eastman já havia escrito o meu, de modo que o emprêgo da expressão “mecânica social” em meu texto não pretende aludir à terminologia de Eastman. Até onde posso ver, este autor advoga a concepção que critico no capítulo 9, sob o título de “mecânica social utópica”; cf. nota 1 a esse capítulo. Ver também a nota 18 (3) ao capítulo 5. Talvez pudéssemos considerar Hipódamo de Mileto, o desenhador de cidades, como o primeiro mecânico social da história (cf. Política, de Aristóteles, 1276b22 e o Jesus Basileus, de R. Eisler, vol. II, pág. 754). A expressão “ tecnologia social” me foi sugerida por G G. F. Simkin. Eu desejaria deixar bem claro que, ao analisar problemas de método, minha intenção primordial é ganhar experiência prática institucional. Cf. cap. 9 esp. nota 8 àquele capítulo. Para mais minuciosa análise dos problemas de método relativos à mecânica social, e a tecnologia social, ver a II parte de meu “Pobreza do Historicismo” (Econômica, 1944-45).

10 — O trecho citado é do meu Pobreza do Historicismo, parte II (cf. Econômica, N. S., vol. XI, 1944, pág. 122). Os “resultados involuntários das ações humanas são mais plenamente discutidos no capitulo 14. Ver especialmente nota 11 e texto.

11 — Creio num dualismo de factos e decisões ou exigências (ou do “é” e “deve ser”); em outras palavras, creio na impossibilidade de reduzir as decisões ou exigências a factos, embora, por certo, possam ser tratadas como factos. Nos capítulos 5 (texto correspondente às notas 4 e 5), 22 e 4 voltamos a esse ponto.

12 — Nos três capítulos seguintes trazemos as provas que dão apôio a essa interpretação da teoria platônica do estado perfeito; entretanto, mencionaremos o Político, 293d/e; 297c; as Leis, 713b/c; 139e; o Timeíi, 22d segs., esp. 25e e 26d.

13 — Cf. o famoso informe de Aristóteles, parcialmente citado mais adiante neste mesmo capítulo (ver esp. nota 25 e o texto).

14 — Isto foi demonstrado no Platão de Grote, vol. III, nota u, pág. 276 segs.

15 — As citações são do Timeu, 50c/d e 51e-52b. O símile que descreve as Formas ou Ideias como os pais e o Espaço como a mãe dos objetos sensíveis reveste-se de suma importância e apresenta relações de alto alcance. Cf. também as notas 17 e 19 a este capítulo e a nota 59 ao capítulo 10.

(1) Assemelha-se ao mito do caos de Hesíodo, o abismo hiante (espaço, receptáculo) corresponde à mãe e o deus Eros corresponde ao pai, ou às Ideias. O caos é a origem e o problema da explicação causal (caos = causa) continua sendo durante longo tempo uma questão de origem (arché) ou nascimento, ou geração.

(2) A mãe ou espaço corresponde ao indefinido ou ilimitado de Anaximandro e dos pitagóricos. A Ideia, que é masculina, deve corresponder, por conseguinte, ao definido (ou limitado) dos pitagóricos. Com efeito, o definido em oposição ao limitado, o masculino em oposição ao feminino, a luz à obscuridade e o bom ao mau, pertencem todos ao mesmo setor da tábua pitagórica dos opostos. (Cf. a Metafísica de Aristóteles, 986a22 e seg.). Podemos portanto esperar ver as Ideias associadas à luz e à bondade (Cf. final da nota 32 ao cap. 8).

(3) As Ideias são fronteiras ou limites, são definidas, em contraposição ao Espaço indefinido, e se imprimem (ver nota 17 (2) a este capítulo) como sêlos adesivos, ou antes, como moldes, sobre o Espaço- (que não é somente espaço, mas também, ao mesmo terripo, a matéria amorfa de Anaximandro, isto é, matéria sem propriedades), gerando assim as coisas sensíveis.

J. D. Mabbott chamou-me amavelmente a atenção para o facto de que as Formas ou Ideias, segundo Platão, não se imprimem por si mesmas sobre o Espaço, mas antes são impressas pelo Demiurgo. Como assinala Aristóteles (na Metafísica, 1080a2), já no Fedon se encontram rastros da teoria de que as Formas são “ causa ao mesmo tempo do ser e da geração (ou transformação)”.

(4) Como consequência do ato da geração, o Espaço, isto é, o* receptáculo, começa a trabalhar de modo que todas as coisas entrem em movimerito, num fluxo heraclitiano. ou empedocliano que é verdadeiramente universal à medida em que esse fluxo se comunica, inclusive, própria estrutura, isto é, ao próprio espaço (ilimitado). (Para a última ideia heraclitiana do receptáculo cf. Cratilo, 412d).

(5) Esta descrição tem também algumas reminiscências do “ Método da Opinião Enganosa” de Parmênides, segundo a qual o mundo da experiência e do fluxo é criado mediante a fusão dos opostos, a luz (ou calor, ou fogo) e a escuridão (ou frio, ou a terra). É claro que as Formas ou Ideias de Platão correspondem ao primeiro membro, e o espaço, o ilimitado, ao segundo, especialmente se consideramos que o espaço puro de Platão se encontra estreitamente ligado à matéria indeterminada.

(6) A oposição entre o determinado e o indeterminado parece corresponder também, especialmente depois da descoberta fundamental da irracionalidade da raiz quadrada de 2, à oposição entre o racional e o irracional. Visto, porém, Parmênides identificar o racional com o ser, isto nos leva a interpretar o espaço, ou o irracional, como o não-ser. Em outras palavras, a tábua pitagórica dos opostos deve estender-se até abarcar a racionalidade, contraposta à irracionalidade, e o ser, contraposto ao não-ser. (Isto concorda com a Metafísica, 1004b27, onde Aristóteles expressa que “todos os contrários são redutíveis ao ser e ao não-ser”; 1072a31, onde um lado da tábua — o do ser — é descrito como o objeto do pensamento (racional) ; e 1093bl3, onde se acrescentam a esse mesmo lado os poderes de certos números, contrapostos provavelmente a suas raízes. Isto explicaria a observação de Aristóteles, na Metafísica, 986b27, e talvez não fosse necessário supor, como F. M. Cornford em seu excelente artigo “ Os Dois Caminhos de Parmênides” (Class. Quart. XVII, 1933, pag. 108), que Parmênides, fr. 8, 53/54, “tenha sido erroneamente interpretado por Aristóteles e Teofrasto”, pois, se ampliarmos desse modo a tábua dos opostos, a convincente interpretação que Cornford faz da passagem crucial do fr. 8 se toma compatível com a observação de Aristóteles).

(7) Cornford explicou (ob. cit., 1Q0) que existem três “métodos” em Parmênides, o da Verdade, o do Não-Ser e o da Aparência (ou, como’também se poderia chamar, da opinião enganosa). Mostra este autor (101) que esses métodos correspondem a três regiões examinadas na República, a saber, a do mundo perfeitamente racional e real das Ideias, a do mundo perfeitamente irreal e a da opinião (baseada na percepção dos objetos sujeitos a fluxo). Mostra-nos também (102) que, no Sofista, Platão altera sua posição. A isto poderíamos ajuntar alguns comentários do ponto de vista dos textos do Timeu a que esta nota se refere.

(8) A diferença principal entre as Formas ou Ideias da República e as do Timeu baseia-se em que, na primeira, as Formas (e também Deus; cf. Rep., 380d) se acham petrificadas, por assim dizer, ao. passo que no segundo foram divinizadas. Naquela, conservam semelhança muito mais estreita com o Um de Parmênides (cf. nota de Adam à Rep., 380d28, 31), do que no Timeu. Esta evolução conduz às Leis, onde as Ideias são substituídas, em ampla medida, pelas almas. A diferença decisiva está em que as ideias se convertem, cada vez mais, em pontos de partida do movimento e nas causas da geração ou, como diz o Timeu, nos pais dos objetos em movimento. O maior contraste talvez se observe entre o Redon (79e) : “ A alma se parece infinitamente mais ao inalterável; até o indivíduo mais estúpido admitiria issó” (cf. também Rep., 585c, 609b segs.) e as Leis, 895e 896a (cf. Fedro, 245c e segs.) : “Qual é a definição daquilo que chamamos alma?

Pode-se acaso imaginar outra definição que’ não “o movimento que se move a’si mesmo” ? A transição entre essas duas posições talvez se ache ‘ no Sofista, (que introduz a própria ideia da Forma ou Ideia do movimento) e no Timeu, 35a, que descreve as “divinas e inalteráveis” Formas e os corpos mutáveis e corruptíveis. Isto parece explicar por que, nas Leis, se diz que o movimento da alma é “o primeiro na origem e no poder’’ e por que se descreve a alma (966e) como “ mais antiga e divina de todas as coisas, cujo movimento constitui uma fonte perene de existência real”. (Visto como, segundo Platão, todos os objetos viventes têm alma, pode-se afirmar que ele admitiu a presença de um princípio pelo menos parcialmente formal nas coisas, ponto de vista que se acha muito próximo do aristotelismo, especialmente se se leva em conta a primitiva e difundida crença de que todas as coisas têm vida). (Cf. também ã nota 7 ao capítulo 4).

(9) Nesta evolução do pensamento platônico tendente a explicar o mundo do fluxo com a ajuda das Ideias, isto é, a tomar compreensível, pelo menos, a brecha entre o mundo da razão e o mundo da opinião, mesmo que não seja possível lançar sobre ela uma ponte, o Sofista parece desempenhar um papel decisivo. Além de abrir espaço, como diz Cornford (ob. cit. 102) para a pluralidade das Ideias, no-las apresenta, num argumento contra a posição inicial do próprio Platão (248a e segs.): a) como causas ativas, capazes de interação com a mente; b) como entes inalteráveis apesar disso, embora haja agora uma Ideia do movimento da qual participam todas as coisas que se movem e que não se acham em repouso; c) como entes capazes de combinar-se entre si. Introduz, ainda, o Não-Sêr, identificado no Timeu com o Espaço (cf. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge, 1935, nota da pág. 24) tornando possível assim que as Ideias se combinem com ele (cf. também Filolau, frag. 2, 3, 5, Diels 5) e produzam o mundo do fluxo, com sua característica posição intermediária erítre o sêr das Ideias e o não ser do Espaço ou matéria.

(10) Por fim, desejo defender minha asserção, contida no texto, de que as Ideias estão fora não só do espaço, como também do tempo, embora se achem em contacto com o mundo no começo dos tempos. A meu ver, isto permite compreender com maior facilidade como atuam sem estar em movimento, pois todo movimento ou fluxo se dá no espaço e no tempo. Platão supõe — em minha opinião — que o tempo tem um principio. Creio ser esta a interpretação mais direta das Leis (721c) : “A raça do homem é gêmea com todo o tempo”, tendo em conta as muitas indicações de que Platão cria que o homem havia sido um dos primeiros sêres criados. (Neste ponto, afasto-me ligeiramente de Cornford, Plato’s Cosmology, 1937, pág. 145 e págs. 26 e segs.).

(11) Em suma: as Ideias são mais antigas e melhores do que suas cópias mutáveis e decadentes, e elas próprias não estão em fluxo (ver também nota 3 ao cap. 4).

16 — Cf. nota 4, a este capítulo.

17 — Ver abaixo:

(1) O papel dos deuses no Timeu é similar ao descrito no texto. Assim como as ideias modelam as coisas, assim também os deuses formam os corpos dos homens. Somente a alma humana é criada pelo próprio Deminurgo, que também cria o mundo e os deuses (Para outra sugestão de que os deuses são patriarcas, ver Leis, 713c/d). Os homens, os fracos e degenerados filhos dos deuses são então susceptíveis de maior degeneração; cf. nota 6 (7) a este capítulo e 37-41 ao cap. 5.

(2) Num interessante trecho das Leis (618b; cf. também a nota 32 (I, a) ao capítulo 4) encontramos outra alusão ao paralelismo entre a relação Ideia-coisas e a relação pai-filhos. Nesse trecho explica-se a origem da lei por influência da tradição e, mais especialmente, pela’ transmissão de uma ordem rígida de pais a filhos, fazendo-se a seguinte observação: “E eles (os pais) assegurar-se-ão de imprimir sobre seus filhos, e sobre os filhos de seus filhos, seu próprio molde de espírito”.

18 — Cf. nota 49, especialmente (3), ao cap. 8.

19 — Cf. Timeu, 31a. A palavra que livremente traduzi por “ coisa superior que é seu protótipo” é uma freqüentemente usada por Aristóteles com a significação de “universal” ou “termo genérico”. Significa uma “coisa que é geral”, ou que “ultrapassa”, ou “abrange”; e suspeito de que originalmente significasse “abranger” ou “cobrir”, no sentido em que um molde abrange ou cobre aquilo que modela.

20 — Cf. República, 597e. Ver também 596a (e a segunda nota de Adam a 596a5: “Temos o costume, como vos lembrais, de postular uma Forma ou Ideia para cada grupo de várias coisas particulares a que aplicamos o mesmo nome”.

21 — Há inúmeros trechos em Platão; só mencionarei o Fedon (por exemplo, 79a); a República (544a); o Teetetes (249b/c); o Timeu (28b/c, 29c/d, 5ld sg.). Aristóteles o menciona, por exemplo, na Metafísica: 987a32, 999a25-999bl0, 1010a6-15, 1078bÍ5; ver também as notas 3 e 25 a este capítulo.

22 — Parmênides ensinava, como diz Burnet (Early Greek Philosophy, 2,208), que “o que é… é finito, esférico, imóvel, corpóreo”, isto é, que o universo é um globo completo, um todo sem partes, e que “nada existe fora dele”. Cito Burnet porque: a) sua descrição é, excelente; e b) porque destrói sua própria interpretação (E. G. P., 208-11) do que Parmênides chama a “Opinião dos Mortais” (ou o Método da Opinião Enganosa). Com efeito, Burnet repele ali todas as interpretações de Aristóteles, Teofrasto, Simplício, Gomperz e Meyer, considerando-as “anacronismos palpáveis”. Ora, a interpretação que Burnet repele é priticamente a mesma aqui proposta no texto, a saber, a de que Parmênides cria um mundo real por trás deste mundo de aparências. Burnet afasta esse dualismo, que poderia justificar a concepção de Parmênides do mundo das aparências, considerando-o irremediavelmente anacrônico. Sugiro, porém, que se Parmênides somente houvesse acreditado no seu mundo imóvel, e não, em absoluto, no mundo mutável, então ele teria sido realmente louco (como Empédocles sugere). Mas, de fato, já há indicação de semelhante dualismo em Xenofanes, frag. 23-6, se confrontado com o frag. 34 (esp. “ Mas todos podem ter suas opiniões fantasiosas”), de modo que dificilmente poderemos falar em anacronismo. — Como indicado na nota 15 (6-7), acompanho a interpretação de Parmênides dada por Cornford (ver também nota 41 ao cap. 10).

23 — Cf. Aristóteles, Metafísica, 1078b23; a citação seguinte é: ob. cit. 1078M9.

24 — Esta valiosa comparação é devida a G. C. Field em Plato and His Contemporaries, 211.

25 — A citação anterior pertence a Aristóteles, Metafísica, 1078bl5; a seguinte à mesma obra, 987b7.

26 — Na análise que Aristóteles (na Metafísica, 987a30-bl8) faz dos argumentos que levaram à teoria das Ideias (cf. também nota 56 (6) ao cap. 10), podemos distinguir os seguintes passos: a) o fluxo de Heráclito; b) a impossibilidade de verdadeiro conhecimento das coisas em fluxo; c) a influência das essências éticas de Sócrates; d) as Ideias como objetos do verdadeiro conhecimento; e) a influência dos pitagó- ricos; f) os “matemáticos” como objetos intermediários.” — (Não mencionei e e f no texto, onde, em vez disso, mencionei g, a influência de Parmênides). Pode ser interessante mostrar como esses mesmos passos se identificam na própria obra de Platão, quando ele expõe sua teoria, especialmente no Fedon e na República, no Teetetes, no Sofista e no Timeu.

(1) No Fedon encontramos indicações de todos os pontos acima, inclusive e. Em 65a-66a, predominam os passos d e c, com uma alusão a b. Em 70e vem o passo a, a saber, a teoria de Herádito combinada com certo grau de pitagorismo O). Isto leva a 74 e segs., com seu enunciado do passo d. Em 99-100 acha-se uma consideração de d através de c, etc. Quanto a a e d, cf. também o Cratilo, 439c e segs.

Na República, especialmente é o livro IV o que corresponde mais estreitamente, sem dúvida, à informação de Aristóteles, (o) No começo do livro IV, 485a/b (cf. 527a/b) alude-se ao fluxo de Herádito (que é contraposto ao mundo inalterável das Formas). Platão fala ali de uma “realidade que existe eternamente e se acha isenta de geração e degeneração” (cf. as notas 2 (2) e 3 ao cap. 4 e a nota 33 ao cap. 8, bem como os textos correspondentes). Os passos b, d e, especialmente, f desempenham papel bastante evidente no famoso Símile da Linha e, em particular, imediatamente antes, isto é, em 508b e segs., onde se insiste no papel do bem; ver, especialmente, 508b/c: “Eis o que sustento com relação à descendência do bem. O que o bem gera à sua própria semelhança se acha relacionado, no mundo inteligível, com a razão (e seus objetos) do mesmo modo que, no mundo visível”, aquilo que constitui a descendência do sol “ está relacionado com a vista (e seus objetos)”. O passo e se acha implícito em f, mas alcança seu desenvolvimento completo no livro VII, no famoso Curriculum (cf. esp. 523-527c) que é amplamente baseado no Símile da Linha no livro VI.

(2) No Teetetes, a e b são tratados extensamente; c é mencionado em 174b e 17Sc, No Sofista, todos os passos, incluindo g, são mencionados, ficando de fora apenas e e f; ver especialmente 247a (passo c) ; 249c (passo b); 253d/e (passo d). No Filebo encontramos indícios de todos os passos, salvo talvez }; insiste-se especialmente nos passos o e â, em 59a/c.

(3) No Timeu observam-se todos os passos mencionados por Aristóteles, com a possível exceção de c, a que só indiretamente se alude na recapitulação preliminar acerca do conteúdo da República e em 9d. Ao passo e, por assim dizer, alude-se permanentemente, visto como “ Timeu” é um filósofo “ ocidental” fortemente influenciado pelo pitagorismo. Os outros passos se apresentam duas vezes em forma quase totalmente coincidente com a resenha de Aristóteles; primeiro em resumo, em 28a-29d e, mais tarde, com mais cuidado, em 48e-55c. Imediatamente depois, de «, isto é, uma descrição heracliteana (49a segs.; cf. Comford, Plato’s Cosmology, 178) do mundo em fluxo, o argumento b é suscitado (51c-e) indicando que, se temos o direito de distinguir entre ã razão (ou o verdadeiro conhecimento) e a mera opinião, deveremos admitir a existência das formas imutáveis; estas (em 51e-f) são apresentadas a seguir em concordância com o passo d. Volta então o fluxo heraclitiano (como espaço operante), mas desta vez é explicado como uma consequência cio ato da geração. E como passo seguinte aparece f em 53c. (Suponho que as “linhas e planos e sólidos” mencionados por Aristóteles em Metafísica, 992bl3 referem-se a 53c sgs.).

(4) Parece que este paralelismo entre o Timeu e o relato de Aristóteles não tem sido até agora suficientemente acentuado; pelo menos, não é usado por G. C. Field em sua excelente e convincente análise do relato de Aristóteles (Flato and His Contemporaries, 202 segs.). Mas teria reforçado os argumentos de Field (os quais, aliás, não necessitariam de reforço, por serem pràticamente conclusivos) contra as concepções de Burnet e Taylor, segundo as quais a Teoria das Ideias é socrática (cf. nota 56 ao cap. 10). Pois no Timeu Platão não põe essa teoria na bôca de Sócrates, facto que, de acordo com os princípios de Burnet e Taylor, provaria não ser de Sócrates a teoria. (Eles evitam essa inferência afirmando que “Timeu” é um pitagórico e que não desenvolve a filosofia de Platão, mas a sua própria, Mas Aristóteles conheceu Platão pessoalmente por vinte anos e deveria sér; capaz de julgar tais assuntos; e ele escreveu sua Metafísica num tempo em que membros da Academia poderiam ter contestado sua apresentação do platonismo).

(5) Burnet escreve, em Greek Philosophy, I, 15S (cf. também p. XLIV de sua edição do Fedon, 1911) : “A teoria das formas, no sentido em que sustentada no Fedon e na República, ausenta-se por completo daquela parte que poderíamos considerar mais distintivamente platônica dos diálogos, isto é, daquelas em que não é mais Sócrates o expositor principal. Neste sentido nunca é ela sequer mencionada em diálogo posterior ao Parmenides, exceto no Timeu, (51c), onde o expositor é um pitagórico.” Mas se no Timeu ela é exposta com o mesmo sentido que na República, também é por certo assim sustentada no Sofista, 253d/e, no Político, 269c/d, 286a, 297b/c, e c/d, 301a e, 302e, e 303b; e no Filebo, 15a sg., 59a/d; e nas Leis, 713b, 739d/e, 962c sg., 963c sgs., e, mais importante ainda, 965b/c (cf. Filebo, 16d), 965d e 966a; ver também a nota ao texto. (Burnet acredita na genuinidade das Cartas, especialmente da Sétima; mas a teoria das Ideias é mantida ali, em 342a segs.; ver também a nota 56 (5,d) ao capitulo 10).

27 — Cf. Leis, 895d-e, Não concordo com a nota de England (em sua edição das Leis, vol. II, 472) de que a palavra “essência” não nos serve de ajuda. Na verdade, se entendermos por essência alguma importante parte sensível da coisa sensível (que talvez pudesse purificar-se e obter-se mediante alguma distilação) então “essência” teria conceito equívoco. Mas a palavra “essencial” é amplamente usada em uma forma que se adapta perfeitamente, sem dúvida, ao que aqui queremos expressar: algo oposto ao aspecto mutável empírico, acidental, que carece de importância da coisa, quer concebido como residindo nessa coisa ou num mundo metafísico de Ideias.

Estou usando o termo essencialismo em oposição à “nominalismo”, a fim de evitar e substituir o equívoco termo tradicional de “realismo”, onde quer que ele seja usado como antônimo, não de “idealismo”, mas de “nominalismo”. Ver também as notas 26 e seguintes ao capítulo 11 e o texto e, em particular, a nota 38. Quanto à aplicação que faz Platão de seu método essencialista, por exemplo, como se menciona no texto, à teoria da alma, ver Leis, 895e segs., citada na nota 15 (8) a este capítulo e no cap. 5, especialmente a nota 23. Ver também, p. ex., o Menon, 86d/e, e o Banquete, 199c/d.

28 — Com relação à teoria da explicação causal, cf. meu Logik der Forschung, especialmente a secção 12, pág. 26 e segs. Ver também a notá 6 ao cap. 25.

29 — A teoria da linguagem aqui indicada é a da semântica, especialmente como a desenvolveram A. Tarski e R. Camap, Introduction to Semantics, 1942; ver nota 23 ao cap. 8.

30 — A teoria de que, enquanto as ciências físicas se baseiam num nominalismo metodológico, as ciências sociais devem adotar métodos essencialistas (“realistas”) foi-me explicada por K. Polanyi (em 1925); nessa oportunidade, sustentou ele que, abandonando-se essa teoria, poder-se-ia obter uma reforma da metodologia das ciências sociais. Essa teoria é sustentada, em certa medida, pela maioria dos sociólogos, especialmente por J. S. Mill (por exemplo, na Lógica, VI, cap. VI, 2; ver também suas declarações historicistas, por ex. em VI, cap. X, 2, último parágrafo: “O problema fundamental da ciência social consiste em achar as leis de acordo com as quais determinado estado da sociedade produz o estado seguinte…”), por Karl Marx (ver mais abaixo), por M. Weber (cf. p. ex. suas definições no começo de Metodische Grundlagen der Soziologie, em Wirtschaft und Gesellschaft, I, e em Ges. Aufsaete zur Wissenschaftslehere,) por G. Simmel, A. Vierkandt, R. M. Maclver e muitos outros. A expressão filosófica de todas essas tendências é a “Fenomenologia” de E. Husserl, uma sistemática ressurreição do essencialismo metodológico de Platão e Aristóteles. (Ver também o cap. 11, esp. nota 44).

A meu ver, a atitude oposta, isto é, a nominalista, só se pode desenvolver em sociologia como uma teoria tecnológica das instituições sociais.

Cabe mencionar, a tal respeito, como rastreei o historicismo até Platão e Heráclito. Ao analisar o historicismo, verifiquei que ele necessita do que agora chamo essencialismo metodológico, isto é, vi que os argumentos típicos em favor do essencialismo estão ligados ao historicismo (cf. meu livro A Pobreza do Historicismo). Isso me levou a considerar a teoria do essencialismo. Impressionou-me o paralelismo entre o relato de Aristóteles e a análise que eu desenvolvera originalmente, sem qualquer referência ao platonismo. Desse modo, recordei-me dos papéis de Heráclito e de Platão nesse desenvolvimento.

31 — O livro Plato Today (1937) de R. H. S. Crossman foi o primeiro (excetuado o Platão, de Grote) que encontrei contendo uma interpretação política de Platão que em parte é semelhante à minha. Ver também notas 2-3 ao cap. 6 e texto. A partir de então verifiquei que concepções semelhantes de Platão haviam sido expressas por diversos autores. C. M. Bowra (Ancient Greek Literature, 1933) é talvez o primeiro; sua breve mas completa crítica de Platão como escritor e filósofo (págs. 186-190) parece-me tão justa como penetrante. Os outros são W. Fite (The Platonic Legend, 1934), B. Farrington (Science and Politics in the Ancient World, 1939, livro com o qual não concordo em grande número de pontos); A. D. Winspear (The Genesis of Plato’s Thoughts, 1940) e H. Kelsen (Platonic Love, em The American Imago, vol. III, 1942).


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