No dia 25 de março de 2019 os inscritos no programa Novos Pensadores começaram a se debruçar sobre o primeiro volume de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper (1945), intitulado O Fascínio de Platão.
Entender as razões do fascínio de Platão é fundamental para a aprendizagem democrática.
Como uma canja para os que não estão fazendo o programa vamos publicar aqui os textos originais de Popper – com destaques em vermelho e os comentários provocativos em azul – que geraram conversações democráticas entre os participantes do curso.
Já publicamos os comentários à Introdução do primeiro volume. E também os comentários aos dois primeiros capítulos. E, em seguida, os comentários ao terceiro capítulo. Segue abaixo o quarto capítulo.
O FASCÍNIO DE PLATÃO
Em favor da Sociedade Aberta (cerca de 430 A. C.):
“Embora somente poucos possam dar origem a uma politica, somos todos capazes de julgá-la”.
Péricles de Atenas
Contra a Sociedade Aberta (cerca de 80 anos depois):
“O maior de todos os princípios é que ninguém, seja homem ou mulher, deve carecer de um chefe. Nem deve a mente de qualquer pessoa ser habituada a permitir-lhe fazer ainda que a menor coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra como em meio à paz, porém, deve ela dirigir a vista para seu chefe e segui-lo fielmente. E mesmo nas mais ínfimas questões deve manter-se em submissão a essa chefia. Por exemplo, deve levantar-se, ou mover-se, ou lavar-se, ou tomar refeições… apenas se lhe for ordenado que o faça. Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se totalmente incapaz disso”.
Platão de Atenas
A SOCIOLOGIA DESCRITIVA DE PLATÃO
CAPÍTULO 4
MUDANÇA E REPOUSO
PLATÃO foi um dos primeiros cientistas sociais e, sem dúvida, o de mais extensa influência. No sentido em que o termo “sociologia” é compreendido por Comte, Mill e Spencer, foi ele um sociólogo; isto é, aplicou com sucesso seu método idealista a uma análise da vida social do homem e das leis de seu desenvolvimento, assim como das leis e condições de sua estabilidade. Apesar da grande influência de Platão, esse aspecto de seu ensinamento tem sido pouco salientado. Parece isso devido a dois fatores. Em primeiro lugar, muito da sociologia de Platão foi apresentado em tão estreita conexão com seus reclamos éticos e políticos que os elementos descritivos foram em grande parte passados por alto. Em segundo lugar, tantos de seus pensamentos se aceitaram como certos que foram simplesmente absorvidos de modo inconsciente e, portanto, sem crítica. Por essa maneira, principalmente, é que suas teorias sociológicas se tornaram tão influentes.
Eis a questão. A universidade – como corporação medieval meritocrática – reproduziu o modelo da academia e a academia (fechada, selecionando quem nela podia entrar e quem não podia, arrogando-se a um saber sobre o saber, autorizando – como um tribunal epistemológico – o que era conhecimento válido e refugando o que seria inválido) é platônica (ainda que o filósofo mais influente nos seus primeiros séculos tenha sido Aristóteles, este também acadêmico). Ora, a universidade é a escola da escola, é ela que forma o professor e valida a escola como burocracia do ensinamento. Com a universalização da escola, as ideias que tinham pressupostos platônicos inundaram a sociedade. E como esses pressupostos foram tomados acriticamente (assinala Popper), o platonismo foi difundido durante o segundo milênio (e continua sendo dominante).
A sociologia de Platão é uma engenhosa mistura de especulação e aguda observação de fatos. Sua base especulativa é, naturalmente, a teoria das Formas e do fluxo e decadência universais, da geração e degeneração. Mas, sobre esse alicerce idealista, Platão constrói uma teoria da sociedade surpreendentemente realista, capaz de explicar as principais tendências de desenvolvimento histórico das cidades-estados da Grécia, assim como as forças políticas e sociais que atuavam em seu próprio tempo.
I
A base especulativa ou metafísica da teoria de mudança social de Platão já foi esboçada. É o mundo das Formas ou Ideias imutáveis, de que é fruto o mundo das coisas mutáveis no tempo e no espaço. As Formas ou Ideias não só são imutáveis, indestrutíveis e incorruptíveis, como também perfeitas, verdadeiras, reais e boas; de fato, o “bem” é certa vez, na República (1), explicado como “tudo quanto preserva”, e o “mal” como “tudo quanto destrói ou corrompe”. As Formas ou Ideias perfeitas e boas são anteriores às suas cópias, as coisas sensíveis, e são algo como progenitores ou pontos de partida (2) de todas as mudanças no mundo em fluxo. Essa concepção é utilizada para avaliar a tendência geral e a direção principal de todas as alterações no mundo das coisas sensíveis. Se, realmente, o ponto de partida de toda mudança é perfeito e bom, então a mudança só pode ser um movimento que afasta da perfeição e do bem; deve dirigir-se para o imperfeito e o mau, para a corrupção.
Eis aqui o fundamento platônico das teorias (filosóficas) da corrupção, subsumidas nos dias que correm nos discursos de limpeza e pureza.
Essa teoria pode ser desenvolvida pormenorizadamente. Quanto mais estreitamente uma coisa sensível se assemelha à sua Forma ou Ideia, menos corruptível será ela, visto como as próprias Formas são incorruptíveis. Mas as coisas sensíveis ou geradas não são cópias perfeitas; em verdade, nenhuma cópia pode ser perfeita, pois é apenas uma imitação da verdadeira realidade, apenas aparência e ilusão, e não a verdade. Consequentemente, não há coisas sensíveis (exceto talvez as mais excelentes) que se assemelhem a suas Formas de modo bastante estreito para serem imutáveis. “A imutabilidade absoluta e eterna só é dada às mais divinas de todas as coisas, e os corpos não pertencem a esta ordem”, diz Platão (3). Uma coisa sensível ou gerada, tal como um corpo físico ou uma alma humana, se for uma boa cópia, poderá mudar apenas pouquíssimo a princípio; e a mais antiga mudança, ou movimento — o movimento da alma — é ainda “divina” (em oposição às mudanças secundárias e terciárias). Cada mudança, porém, embora pequena, deve torná-la diferente e, assim, menos perfeita, reduzindo-lhe a semelhança com a Forma. Desse modo, a coisa torna-se mais mutável a cada mudança, e mais corruptível, porque cada vez mais se afasta de sua Forma, que é sua “causa de imobilidade e de estar em repouso”, no dizer de Aristóteles, que assim parafraseia a doutrina de Platão . “As coisas são geradas pela comparticipação na Forma e decaem pela perda da Forma”. Esse processo de degeneração, lento a princípio e mais rápido depois, essa lei do declínio e da queda, é dramaticamente descrito por Platão nas Leis, o último de seus grandes diálogos. O trecho trata primordialmente do destino da alma humana, mas Platão torna claro que ele é válido para todas as coisas que “compartilham da alma”, com o que quer significar todas as coisas vivas. “Todas as coisas que compartilham da alma — escreve ele — mudam… e, enquanto mudam, são arrastadas pela ordem e lei do destino. Quanto menor for a mudança em seu caráter, menos significativo será o declínio inicial no seu nível de situação. Mas, quando a mudança aumenta, e com ela a iniquidade, então elas caem no profundo abismo que conhecemos como às regiões infernais”. (Na continuação do trecho, Platão menciona a possibilidade de que “uma alma dotada de quota de virtude excepcionalmente grande pode, por força de sua própria vontade…, se estiver em comunhão com a virtude divina, tornar-se supremamente virtuosa e mover-se para uma região excelsa”. O problema da alma excepcional que pode salvar-se — e talvez a outras — da lei geral do destino será discutido no capítulo 8.) Antes, nas Leis, Platão sintetiza sua doutrina da mudança: “Toda e qualquer mudança, exceto a mudança de uma coisa má, é o mais grave de todos os perigos traiçoeiros que podem sobrevir a uma coisa — quer se trate de uma mudança de estação, ou de vento, ou da dieta de um corpo, ou do caráter da alma”. E ele acrescenta, para dar ênfase: “Esta afirmação aplica-se a tudo, com a única exceção, que acabo de citar, de algo mau”. Em suma, Platão ensina que a mudança é má e o repouso é divino.
Vemos agora que a teoria das Formas ou Ideias de Platão implica certa tendência no desenvolvimento do mundo em fluxo. Conduz à lei de que a corruptibilidade de todas as coisas nesse mundo deve aumentar continuamente. Não é tanto uma lei de universalmente crescente corrupção, como uma lei de crescente corruptibilidade; isto é, o perigo ou probabilidade de corrupção aumentam, mas não são excluídos desenvolvimentos excepcionais em outra direção. É possível assim, como o indicam as ultimas citações, que uma alma muito boa consiga desafiar a mudança e a decadência, e que uma coisa muito má, por exemplo, uma cidade muito má, chegue a aperfeiçoar-se pela mudança. (A fim de que tal aperfeiçoamento possa ser de algum valor, teríamos de torná-lo permanente, isto é, deter qualquer mudança ulterior).
Em plena concordância com essa teoria geral situa-se a história que Platão dá, no Timeu, da origem das espécies. Segundo essa história, o homem, o mais elevado dos animais, é gerado pelos deuses; as outras espécies originam-se dele, por um processo de degeneração e corrupção. Primeiramente, certos homens — os covardes e vis — degeneraram em mulheres. Estas, privadas de sabedoria, degeneraram passo a passo em animais inferiores. As aves, conta, surgiram da transformação de pessoas inofensivas, mas demasiado condescendentes, que confiariam excessivamente nos próprios sentidos; “os animais da terra vieram de homens que não se interessavam por filosofia”; e os peixes, inclusive os moluscos, “são a degeneração dos mais tolos, estúpidos e… indignos” de todos os homens (4).
Hahaha! Esta é a base não para um pensamento conservador e sim para um pensamento reacionário.
É claro que essa teoria pode ser aplicada à sociedade humana e à sua história. Assim explica ela a lei pessimista de Hesíodo (5) sobre o desenvolvimento, a lei da decadência histórica. Se acreditarmos no relato de Aristóteles (esboçado no capítulo anterior), a teoria das Formas ou Ideias foi originalmente apresentada a fim de corresponder a uma exigência metodológica, a exigência de conhecimento puro ou racional, que é impossível no caso das coisas sensíveis em fluxo. Vemos agora que a teoria vai além disso. Além e acima de corresponder a essas exigências metodológicas, oferece uma teoria de mudança. Explica a direção geral do fluxo de todas as coisas sensíveis e, daí, a tendência histórica para a degeneração, mostrada pelo homem e pela sociedade humana. (Ainda mais: como veremos no capítulo 6, a teoria das Formas determina a tendência das exigências políticas de Platão e mesmo os meios para sua realização). Se, como creio, as filosofias de Platão e de Heráclito nasceram de sua experiência social, especialmente da experiência da guerra de classes e da abjeta sensação de que seu mundo social se despedaçava, então podemos compreender por que razão a teoria das Formas veio a desempenhar tão importante papel na filosofia de Platão, quando este verificou que ela podia explicar a tendência à degeneração. Deve tê-la saudado como a solução de um enigma dos mais desconcertantes. Ao passo que Heráclito fora incapaz de lançar uma direta condenação ética à tendência do desenvolvimento político. Platão encontrava, na sua teoria das Formas, a base teórica para um julgamento pessimista, na linha de Hesíodo.
Mas a grandeza de Platão como sociólogo não reside nas suas especulações gerais e abstratas sobre a lei da decadência social. Está, antes, na riqueza e pormenor de suas observações e na surpreendente acuidade de sua intuição sociológica. Viu ele coisas que antes não haviam sido vistas e que só em nossos próprios tempos foram redescobertas. Como exemplo, posso mencionar sua teoria dos inícios primitivos da sociedade, do patriarcado tribal e, em geral, sua tentativa de esboçar os períodos típicos do desenvolvimento da vida social. Outro exemplo é o historicismo sociológico e econômico de Platão, sua ênfase sobre o fundo econômico da vida política e do desenvolvimento histórico, teoria que Marx reviveu sob o nome de “materialismo histórico”. Terceiro exemplo é a interessantíssima lei de Platão sobre as revoluções políticas, de acordo com a qual todas as revoluções pressupõem uma classe governante (ou “elite”) desunida; lei que forma a base de sua análise dos meios de deter a mudança política e criar um equilíbrio social, e que foi recentemente redescoberta pelos teóricos e do totalitarismo, especialmente por Pareto.
Bem assinalado. Aqui aparece, pela primeira vez em Popper, a relação com o patriarcado (que às vezes era tratado apenas como modo tribal de existência social).
Passarei agora a mais minuciosa discussão desses pontos, em especial do terceiro, a teoria da revolução e do equilíbrio.
II
Os diálogos em que Platão discute essas questões são, na ordem cronológica, a República, o diálogo de data muito posterior chamado O Estadista (ou O Político), e as Leis, a última e mais longa de suas obras. Apesar de certas diferenças menores, há muita concordância entre esses diálogos, que são, em certos aspectos, paralelos e, em outros, complementares. Por exemplo, as Leis (6) apresentam a história da decadência e queda da sociedade humana como um relato da pre-história grega a emergir na história sem qualquer interrupção; ao passo que as passagens paralelas da República dão, de modo mais abstrato, um traçado sistemático do desenvolvimento do governo; o Estadista, ainda mais abstrato, apresenta uma classificação lógica de tipos de governo, contendo apenas poucas alusões a acontecimentos históricos. Similarmente, as Leis formulam o aspecto historicista da investigação de maneira muito clara. “Qual é o arquétipo ou origem de um estado ?” — indaga aí Platão, ligando essa pergunta à outra: “O melhor método de buscar resposta a esta pergunta não será… o de contemplar o crescimento dos estados à medida que mudam, ou para o bem, ou para o mal?” Mas, dentro das doutrinas sociológicas a única diferença maior surge como devida a uma dificuldade puramente especulativa que parece ter afligido Platão. Adotando como ponto de partida do desenvolvimento um estado perfeito e, portanto, incorruptível, achou ele difícil explicar a primeira mudança, a Queda do Homem, por assim dizer, que pôs tudo a marchar (7). Falaremos, no próximo capítulo, da tentativa de Platão para solver esse problema; antes, porém, apresentarei um exame geral de sua teoria do desenvolvimento social.
De acordo com a República, a forma original ou primitiva de sociedade, e ao mesmo tempo aquela que mais de perto se assemelha à Forma ou Ideia de um estado, o “estado melhor”, é um reinado dos homens mais sábios e mais parecidos aos deuses. Essa cidade-estado ideal está tão próxima da perfeição que é duro compreender como pode vir a mudar. Contudo, verifica-se uma mudança; e com ela entra a luta de Heráclito, a força impulsionadora de todo movimento. De acordo com Platão, a luta interna, a guerra de classes, fomentada por interesses pessoais e especialmente por esses interesses no campo material ou econômico, é a principal força da “dinâmica social”. A fórmula marxista — “A história de todas as sociedades até agora existentes é uma história de luta de classes” — (8) convém quase tão bem ao historicismo de Platão quanto ao de Marx. Os quatro mais eminentes períodos ou “marcos da história da degeneração política” e ao mesmo tempo “as mais importantes… variedades de estados existentes” (9) são descritos por Platão na ordem seguinte; primeiro, após o estado perfeito, vem a “timarquia”, ou “timocracia”, o governo dos nobres que buscam honra e fama; depois, a oligarquia, o governo das famílias ricas; “a seguir, em ordem, nasce a democracia”, o regime da liberdade, que significa a ausência de leis; finalmente vem “a tirania… quarta e final enfermidade da cidade” (10).
Aqui fica claro que a explicação historicista de Platão é autocrática. Na ordem da degeneração crescente a democracia vem depois do governo dos nobres e da oligarquia. Como se os governos dos nobres e dos oligarcas não fossem autocráticos. Outro ponto importante a destacar é que o reinado dos sábios é o que há de mais parecido com um governo dos deuses. Essa é uma ideia ancestral: as cidades sumerianas (três milênios antes de Platão) eram governadas por deuses (ou, o que é a mesma coisa, por sacerdotes que intermediavam a relação dos humanos com os seres superiores, que depois foram chamados, pelos gregos, de deuses).
Como se pode ver da última observação, Platão encara a história, que para ele é uma história de decadência social, como se fosse a história de uma doença: o paciente é a sociedade; e, como veremos mais adiante, o estadista deveria ser um médico (e vice-versa) — um curador, um salvador. Assim como a descrição do curso típico de uma enfermidade não é sempre aplicável a cada paciente individual, também a teoria histórica da decadência social de Platão não pretendia aplicar-se a cada cidade individualmente. Pretendia, porém, descrever tanto o curso original de desenvolvimento pelo qual primeiramente se geraram as formas principais de decadência constitucional, quanto o curso típico da mudança social (11). Vemos que Platão objetivava estabelecer um sistema de períodos históricos, governado por uma lei de evolução; em outras palavras, visava a uma teoria historicista da sociedade. Essa tentativa foi revivida por Rousseau e posta em moda por Comte e Mill, por Hegel e Marx; considerando, porém, a evidência histórica então disponível, o sistema de períodos históricos de Platão era tão bom como o de qualquer desses modernos historicistas. (A diferença principal reside na avaliação do curso tomado pela história. Ao passo que o aristocrata Platão condenava o desenvolvimento que descrevia, esses autores modernos o aplaudem, por acreditarem numa lei de progresso histórico).
Antes de discutir em minúcias o estado perfeito de Platão, darei breve escorço de sua análise do papel desempenhado pelos motivos econômicos e pela luta de classes no processo de transição entre as quatro formas decadentes do estado. A primeira forma em que degenera o estado perfeito, a timocracia, o regime dos nobres ambiciosos, é apresentada como quase a todos os respeitos similar ao próprio estado perfeito. É importante notar que Platão, de modo explícito, identificou esse melhor e mais antigo dos estados existentes com a constituição dórica de Esparta e Creta, e que essas duas aristocracias tribais de facto representam as mais velhas formas de vida política existentes na Grécia. A maior parte da excelente descrição que Platão faz de suas instituições é dada em certos trechos de seu relato sobre o estado melhor ou perfeito, a que tanto se assemelha a timocracia. (Por sua doutrina da similaridade entre Esparta e o estado perfeito, tornou-se Platão um dos propagandistas de maior sucesso do que eu gostaria de chamar “o Grande Mito de Esparta”, o perene e influente mito da supremacia da constituição e do modo de vida espartanos).
Essa similaridade do regime político (ou antipolítico) espartano com o imaginário estado perfeito (original) diz tudo sobre a filosofia política totalitária de Platão. Esparta e talvez Creta (antes da chegada dos Aqueus, pelo menos) tinham, para todos os efeitos, governos sacerdotais-militares.
A diferença principal entre o estado melhor ou ideal e a timocracia é que esta última contém um elemento de instabilidade; a classe patriarcal governante, outrora unida, está agora desunida e é essa desunião que leva ao passo seguinte, à sua degeneração em oligarquia. A desunião é produzida pela ambição. “Primeiramente — diz Platão, falando do jovem timocrata — ele ouve sua mãe queixar-se de que seu pai não seja um dos governantes…” (12). Assim, torna-se ambicioso e anseia distinguir-se. Decisivas, porém, na produção da mudança seguinte são as tendências sociais competitivas e aquisitivas. “Devemos descrever — diz Platão — como a timocracia se transforma em oligarquia… Mesmo um cego verá como se opera essa mudança… É a casa do tesouro que arruína essa constituição. Eles (os timocratas) começam por criar oportunidades para exibir-se e gastar dinheiro, e com tal fim torcem as leis, e desobedecem a elas, eles e suas mulheres … ; e tenta cada qual ultrapassar o outro”. Desse modo suscita-se o primeiro conflito de classe: o conflito entre a virtude e o dinheiro, ou entre os tradicionais modos de simplicidade feudal e os novos modos de riqueza. A transição para a oligarquia se completa quando os ricos estabelecem uma lei que “desqualifica para os cargos públicos aqueles cujos recursos não alcançarem determinado total. Essa mudança é imposta por força das armas, se não obtiverem sucesso as ameaças e a extorsão…”
Com o estabelecimento da oligarquia, alcança-se um estado de potencial guerra civil entre os oligarcas e as classes mais pobres: “tal como um corpo enfermo… está às vezes em luta consigo mesmo… assim está a cidade enferma. Cai doente e trava guerra consigo mesma, pelo mais leve pretexto, sempre que um ou outro dos partidos consiga obter auxílio de fora, um de uma cidade oligárquica, outro de uma democracia. E não irrompe por vezes a guerra civil nesse estado enfermo, mesmo sem qualquer ajuda exterior?” (13). Essa guerra civil gera a democracia: “Nasce a democracia… quando os pobres vencem, matando uns… banindo outros, e compartilhando com os restantes dos direitos de cidadania e dos cargos públicos, em termos de igualdade…”
Isso é rigorosamente falso. A democracia não nasceu – e nunca nasce – da guerra. Platão assume aqui, desavergonhadamente, o papel de falsificador da história.
A descrição que Platão faz da democracia é uma paródia viva, mas intensamente hostil e injusta, da vida política de Atenas e do credo democrático que Péricles formulara, de modo que nunca foi ultrapassado, cerca de três anos antes que Platão nascesse. (No capítulo 10, parte final (14) discutimos o programa de Péricles). A descrição de Platão é uma brilhante peça de propaganda política e podemos avaliar quanto mal deve ter causado se considerarmos, por exemplo, que um homem com Adam, erudito excelente e editor da República, foi incapaz de resistir à retórica com que Platão denuncia sua cidade natal. “A descrição da gênese do homem democrático feita por Platão — escreve Adam (15) — é uma das mais régias e magníficas peças escritas de toda a literatura, antiga ou moderna”. E quando o mesmo autor continua: “a descrição do homem democrático como o camaleão da sociedade humana retratado para sempre” — vemos então que Platão, pelo menos, teve êxito em voltar contra a democracia esse pensador, não sendo de admirar quanto dano têm feito seus venenosos escritos quando apresentados, sem contestação, a mentalidades inferiores…
Platão deve ter nascido cerca de um ano depois da morte de Péricles, mas as instituições erigidas durante o protagonismo político do segundo perduravam ainda durante a vida do primeiro. Deve-se dar um desconto para a expressão “mentalidades inferiores” usada por Popper (isso é um preconceito para designar os menos letrados). Mas ele tem razão ao assinalar o dano causado pelos venenosos escritos de Platão.
Parece que muitas vezes, quando o estilo de Platão, para usar uma frase de Adam, se torna “maré alta de elevados pensamentos, imagens e palavras”, está ele em urgente necessidade de uma capa para encobrir os farrapos e estilações de sua argumentação, ou mesmo, como no caso presente, a completa ausência de argumentos racionais. Em vez destes, usa a invectiva, identificando a liberdade com a ausência de lei, a livre iniciativa com a licença e a igualdade perante a lei com a desordem. Os democratas são descritos como libertinos e miseráveis, como insolentes, sem lei e sem vergonha, como implacáveis e terríveis bestas-feras, satisfazendo cada capricho, vivendo só para o prazer e para os desejos desnecessários e imundos. (“Enchem as barrigas como as bestas”, era o modo por que se expressava Heráclito). São acusados de chamar “à reverência uma loucura…; à temperança chamam covardia…; à moderação e aos gastos ordenados chamam mesquinharia e rusticidade” (17), etc. “E há mais leviandades dessa espécie — diz Platão, quando a maré de seu ataque retórico começa a diminuir —; o mestre receia e adula seus discípulos… e os velhos condescendem ante os jovens… para evitar a aparência de serem acerbos ou despóticos”. (É Platão, Mestre da Academia, quem põe isto na boca de Sócrates, esquecendo que este nunca fora um mestre e que, mesmo quando velho, nunca parecera ser acerbo ou despótico. Fora sempre amado, não por “condescender” ante os jovens, mas por tratá-los, como por exemplo ao jovem Platão, como seus companheiros e amigos. Temos razão para crer que o próprio Platão fosse menos disposto a “condescender” e a discutir questões com seus discípulos). “Mas o cúmulo de toda essa abundância de liberdade… se alcança — continua Platão — quando os escravos, tanto homens quanto mulheres, que foram comprados no mercado, são em todos os pontos tão livres quanto os seus proprietários… E qual é o efeito cumulativo de tudo isso? Que os corações dos cidadãos se tornam tão enternecidos que se irritam à simples vista da escravidão e não suportam que ninguém se submeta a ela, nem mesmo sob as mais suaves formas”. Aqui, afinal de contas, Platão presta homenagem à sua cidade natal, embora o faça involuntariamente. Um dos maiores triunfos da democracia ateniense será para sempre o de haver tratado os escravos com humanidade, e o de, apesar da desumana propaganda de filósofos como Platão e Aristóteles, haver chegado, como ele testemunha, muito perto de abolir a escravidão (18).
Outra falsificação platônica. Só num regime de liberdade – sem um senhor – pode haver o império da lei (não a ausência de lei, como ele diz caluniosamente). Em qualquer regime sob o comando de um senhor, a lei se confunde com a vontade do senhor (quer dizer, quando há o império de homens, não há o império da lei).
De muito maior mérito, embora também inspirada pelo ódio, é a descrição que Platão faz da tirania e especialmente da transição para ela. Insiste em estar descrevendo coisas que ele próprio viu (19); alusão, sem dúvida, a suas experiências na côrte de Dionísio, o Velho, tirano de Siracusa. A transição da democracia para a tirania, diz Platão, é mais facilmente produzida por um líder popular que saiba como explorar o antagonismo de classe entre ricos e pobres dentro do estado democrático e que consiga organizar um corpo de guarda ou um exército privado, seu. O povo, que o saudou a princípio como o campeão da liberdade, é logo escravizado; e a seguir deve lutar por ele, “em uma guerra após outra, que ele deve provocar… porque precisa fazer o povo sentir a necessidade de um general” (20). Com a tirania, chega-se ao estado mais abjeto.
Exame bem semelhante das várias formas de governo pode ser encontrado no Estadista, onde Platão discute “a origem do tirano e do rei, das oligarquias e aristocracias, e das democracias” (21). De novo verificamos que as diversas formas de governo existentes são explicadas como cópias degradadas do verdadeiro modelo ou Forma do estado, do estado perfeito, o paradigma de todas as imitações, que se diz ter existido nos antigos tempos de Cronos, pai de Zeus. A diferença é que, aqui, Platão distingue seis tipos de estados degradados; mas essa diferença é sem importância, especialmente se lembrarmos que ele diz, na República (22), que os quatro tipos discutidos não são exaustivos e que há algumas etapas intermediárias. Os seis tipos são alcançados, no Estadista, primeiro distinguindo entre três formas de governo, o regime de um homem, o de poucos e o de muitos. Cada um destes é então subdividido em dois tipos, um dos quais é comparativamente bom e o outro mau, conforme imitem ou não “o único original verdadeiro”, copiando e preservando suas antigas leis (23), Desse modo, distinguem-se três formas conservadoras ou legais e três outras extremamente depravadas e sem lei; monarquia, aristocracia e uma forma conservadora de democracia são as imitações legais, em ordem de mérito. Mas a democracia se transmuda na sua forma ilegítima se deteriora mais, através da oligarquia, o regime sem lei dos poucos, no regime sem lei de um só, a tirania, que, como disse Platão na República, é o pior de todos.
Essa história de que existiu um Estado perfeito nos tempos antigos (no caso, de Cronos, pai de Zeus) é um mito recorrente de caráter sacerdotal-hierárquico-autocrático.
A tirania, o estado péssimo, não necessita ser o fim do desenvolvimento; isso se indica num trecho das Leis, que em parte repete e em parte (24) se liga com a história do Estadista. “Dai-me — exclama aí Platão — um estado governado por um jovem tirano… que tenha a boa sorte de ser contemporâneo de um grande legislador e o encontre por algum feliz acaso. Que mais poderia um deus fazer em favor de uma cidade que deseje tomar feliz?” A tirania, o péssimo estado, pode ser reformada desse modo. (Isso concorda com a observação das Leis, anteriormente citada, de que toda mudança é má, “exceto a mudança de uma coisa má”. Pouca dúvida há de que Platão, ao falar do grande legislador e do jovem tirano, devesse estar pensando em si mesmo e em suas várias experiências com jovens tiranos, especialmente em suas tentativas para reformar a tirania de Dionísio, o Moço, em Siracusa. Discutiremos mais, tarde essas malfadadas experiências).
Um dos principais objetivos da análise platônica do desenvolvimento político é verificar a força impulsionadora de toda mudança histórica. Nas Leis, o exame histórico é explicitamente empreendido com esse alvo em vista: “Não nasceram, durante esse templo, incontestáveis milhares de cidades… e não esteve cada uma delas sob todas as espécies de governo?… Apreendamos, se pudermos, a causa de tantas mudanças. Esperemos que assim poderemos revelar tanto o segredo do nascimento das constituições como o de suas alterações” (25). Como resultado de tais investigações, descobre ele a lei sociológica de que a desunião interna, a guerra de classes fomentada pelo antagonismo dos interesses econômicos de classe, é a força impulsionadora de todas as revoluções políticas. Mas, ao formular essa lei fundamental, Platão vai ainda além. Insiste em que só a sedição interna dentro da própria classe governante pode enfraquecê-la tanto que seja possível a derribada de seu regime. “As mudanças em qualquer constituição originam-se, sem exceção, dentro da própria classe governante, e só quando essa classe se toma a sede da desunião” (26), eis sua fórmula na República. E, nas Leis, ele diz possivelmente referindo-se a esse trecho da República: ‘’Como pode um reinado, ou qualquer outra forma de governo, ser destruído por alguém, que não os próprios governantes ? Esquecemos acaso o que dissemos recentemente, ao tratar desse assunto, como há dias o fizemos?” Essa lei sociológica, juntamente com a observação de que os interesses econômicos são as mais prováveis causas de desunião, é a chave de Platão para a história. É também a chave de sua análise das condições necessárias para o estabelecimento do equilíbrio político, isto é, para deter a mudança política. Admite ele que tais condições foram realizadas no estado melhor ou perfeito dos tempos antigos.
Essa interpretação de que Platão achava – em virtude de uma “lei sociológica” por ele descoberta ou formulada – que a guerra de classes fomentada pelo antagonismo dos interesses econômicos de classe, era a força impulsionadora de todas as revoluções políticas, parece um pouco forçada. Popper está querendo ver no historicismo de Platão um precursor do historicismo de Marx (e a ideia de que a luta de classes é o motor da história), mas aqui forçou a barra. Não havia, ao que tudo indica, o conceito (marxiano) de classe na época de Platão, e nem de luta de classes. Entenda-se como uma comparação para efeitos demonstrativos e não um juízo analítico.
III
A descrição que Platão faz do estado perfeito ou melhor tem sido costumeiramente interpretada como o programa utópico de um progressista. A despeito de suas reiteradas asserções, na República, no Timeu e no Crítias, de que está descrevendo o passado distante, e apesar das passagens paralelas, nas Leis, cuja intenção histórica é manifesta, muitas vezes se interpreta sua intenção como a de dar uma velada descrição do futuro. Acho, porém, que Platão disse o que queria dizer, e que muitas características de seu estado melhor, especialmente as descritas nos Livros II a IV da República, tinham a intenção (como seus relatos sobre a sociedade primitiva no Estadista e nas Leis) de ser históricas (27), ou talvez pre-históricas. Isso pode não se aplicar a todas as características do estado melhor. Com relação, por exemplo, ao reinado dos filósofos (descrito nos Livros V a VII da República), o próprio Platão indica que ele pode apenas ser uma característica do mundo sem tempo das Formas ou Ideias, da “Cidade do Céu”. Esses elementos intencionalmente não-históricos de sua descrição serão discutidos mais tarde, juntamente com as exigências ético-políticas de Platão. Deve-se admitir, naturalmente, que ele não pretendia, ao descrever as constituições primitivas ou antigas, apresentar uma narrativa histórica exata; por certo sabia não possuir os dados necessários para realizar qualquer coisa desse tipo. Creio, porém, que ele fez uma séria tentativa para reconstruir como melhor lhe foi possível as antigas formas tribais de vida social. Não há razão para duvidar disso, especialmente porque, em bom número de pormenores, a tentativa teve sucesso. E dificilmente poderia ser de outro modo, já que Platão chegou a seu quadro por uma descrição idealizada das antigas aristocracias tribais de Creta e Esparta. Vira, com sua aguda intuição sociológica, que essas formas não só eram velhas como petrificadas, paralisadas, que eram relíquias de uma forma ainda mais velha. E concluiu que essa forma ainda mais antiga fora mesmo mais estável, mais seguramente detida. Tentou reconstruir esse muito antigo e, consequentemente, muito bom e muito estável estado de modo tal que ficasse claro como se conservara ele livre da desunião, como havia sido evitada a guerra de classes, como a influência do interesse econômico havia sido reduzida ao mínimo e conservada sob bom controle. São estes os principais problemas da reconstrução que fez Platão do estado melhor.
Aqui Popper está dizendo que a utopia platônica é uma retropia (faltou dizer que toda utopia também é uma distopia). Importante prestar atenção na ideia que deve haver união para que o Estado seja perfeito (ou melhor). É uma não-aceitação do dissenso, do conflito, uma busca de harmonia totalmente incompatível com a democracia.
Como soluciona Platão o problema de evitar a guerra de classes? Tivesse sido ele um progressista e ter-lhe-ia acudido a ideia de uma sociedade igualitária e sem classes; pois, como vimos, por exemplo, de sua própria paródia da democracia ateniense, fortes tendências igualitárias estavam em ação em Atenas. Mas ele não pretendia construir um estado que pudesse vir, mas um estado que havia sido — o pai do estado Espartano, que por certo não era uma sociedade sem classes. Era um estado de escravatura, e, de acordo com Platão, o estado melhor se baseia nas mais rígidas distinções de classe. É um estado de castas. O problema de evitar a guerra de classes se resolve, não com a abolição das classes, mas dando à classe governante uma superioridade que não possa ser desafiada. Como em Esparta, só à classe governante é permitido portar armas, só ela tem direitos políticos ou de outra espécie, só ela recebe educação, isto é, um adestramento especial na arte de manter em submissão suas ovelhas humanas, ou seu gado humano. (Na realidade, essa tremenda superioridade perturba um pouco Platão; teme ele que seus membros “possam maltratar as ovelhas” em vez de simplesmente tosquiá-las, e “agir como lobos em lugar de cães” (28). Este problema é considerado mais adiante.) Enquanto a classe dirigente estiver unida, não haverá desafio à sua autoridade e, consequentemente, não haverá guerra de classes.
Sem maiores comentários. A não ser dizer que o modelo na cabeça de Platão era mesmo o de Esparta.
Platão distingue três classes em seu estado melhor: os guardiães, seus auxiliares armados ou guerreiros e a classe trabalhadora. Mas efetivamente só há duas castas: a casta militar — os governantes armados e educados — e os governados desarmados e deseducados, o rebanho humano; entre os guardiães não há castas separadas, mas simplesmente velhos e sábios guerreiros que foram promovidos das fileiras dos auxiliares. O fato de Platão dividir sua casta governante em duas classes, a dos guardiães e a dos auxiliares, sem elaborar subdivisões semelhantes na classe trabalhadora, se deve amplamente a que ele só se interessava pelos governantes. Os trabalhadores, comerciantes, etc. não lhe interessam absolutamente; não passam do gado humano cuja única função é prover às necessidades materiais da classe dirigente. Platão chega a ir mais longe, ao ponto de proibir que seus governantes legislem para gente dessa classe, para seus míseros problemas (29). Eis porque a informação que temos das classes inferiores é tão escassa. Mas o silêncio de Platão não de todo ininterrompido. “Não há criados — pergunta ele certa vez — que não possuem uma fagulha de inteligência e são indignos de admissão na comunidade, mas que têm corpos fortes para o trabalho duro?” Como esta repulsiva afirmação tem dado origem no amenizador comentário de que Platão não admitia escravos em sua cidade, cabe aqui apontar que tal opinião é errônea. É verdade que Platão em parte alguma discute explicitamente o estatuto dos escravos no seu estado melhor, e é mesmo verdade que ele diz que o nome de “escravo” deve ser evitado, denominando-se os trabalhadores “sustentadores” ou até “empregados”. Mas isto é feito por motivos propagandísticos. Em parte alguma se encontra a mais leve sugestão para que seja mitigada ou abolida a instituição da escravatura. Ao contrário, Platão só tem desprezo para com aqueles democratas atenienses “de coração terno” que sustentavam o movimento abolicionista. E torna seu parecer inteiramente claro, por exemplo, na sua descrição da timocracia, o segundo dos estados melhores, o que diretamente se seguia ao melhor. Lá diz ele do homem timocrático: “Será inclinado a tratar os escravos cruelmente, pois não os despreza tanto como o faria um homem bem educado”. Ora, como só na melhor cidade poderá ser encontrada uma educação superior à da timocracia, somos levados a concluir que há escravos na cidade melhor de Platão e que eles não são tratados com crueldade porque são devidamente desprezados. Em seu altivo desprezo por eles, Platão não desenvolve o assunto. Tal conclusão é plenamente corroborada por um trecho da República, que, criticando o hábito comum dos gregos de escravizarem gregos, termina com o endosso explícito da escravização dos bárbaros, e mesmo com uma recomendação para que “nossos cidadãos” — isto é, os da cidade melhor — “façam aos bárbaros o que os gregos agora fazem aos gregos”. E é ainda mais corroborada pelo conteúdo das Leis e pela desumaníssima atitude ali adotada para com os escravos.
A retropia platônica é a de uma sociedade escravista comandada por uma aristocracia militar.
Sendo a classe governante a única a ter poder político, inclusive o poder de conservar o número do gado humano dentro de limites que o impeçam de transformar-se num perigo, todo o problema de preservar o estado reduz-se ao de preservar a unidade interna da classe dirigente. E como se preserva essa unidade dos governantes? Pelo adestramento e outras influências psicológicas, mas também e principalmente pela eliminação dos interesses econômicos que possam levar à desunião. Essa abstinência econômica é conseguida e controlada pela introdução do comunismo, isto é, pela abolição da propriedade privada, especialmente a dos metais preciosos. (A posse de metais preciosos era proibida em Esparta.) Tal comunismo limita-se à classe dirigente, pois só ela deve ser mantida livre de desunião; não são dignas de consideração as disputas entre os governados. E, como toda a propriedade é comum, deve também haver uma posse comum de mulheres e filhos. Nenhum membro da classe dirigente deve ser capaz de identificar seus filhos, ou seus pais. A família deve ser destruída, ou antes, estendida para cobrir toda a casta guerreira. De outro modo, lealdades de família poderiam tomar-se uma plausível fonte de desunião. Portanto “cada um deveria encarar todos como pertencentes a uma só família” (30). (Esta sugestão não era tão nova nem tão revolucionária como parece; devemos lembrar as restrições Espartanas à privatividade da vida familiar, como a proibição de refeições privadas, constantemente citada por Platão como a instituição das “refeições em comum”). Mesmo, porém, a posse comum de mulheres e filhos não é de todo suficiente para resguardar a classe governante de todos os perigos econômicos. Torna-se importante evitar a prosperidade, assim como a pobreza. Ambas são perigosas à unidade: a pobreza, porque impele o povo a adotar meios desesperados para dar satisfação a suas necessidades; a prosperidade, porque muitas mudanças nascem da abundância, de uma acumulação de riquezas que torna possíveis perigosas experiências. Só um sistema comunista que não dê abrigo a grande carência, nem a grande riqueza, pode reduzir ao mínimo os interesses econômicos, assegurando a unidade da classe governante.
Esparta novamente. E, de novo, a preocupação com a unidade e não com a diversidade (que, em si, deve ser encarada como um mal).
O comunismo da casta dirigente da sua cidade melhor pode ser assim derivado da fundamental lei sociológica da mudança, de Platão; é uma condição necessária da estabilidade política, que constitui sua característica fundamental. Mas, embora seja uma condição importante, não é a suficiente. A fim de que a classe governante possa sentir-se realmente unida, para que se sinta como uma tribo, isto é, como uma grande família, tão necessária é a pressão exercida de fora da classe como o são os laços entre os membros dela. Essa pressão pode ser assegurada acentuando-se e ampliando-se o abismo entre governantes e governados. Quanto mais forte for o sentimento de que os governados são uma raça diferente e inteiramente inferior, tanto mais forte será o sentimento de unidade entre os que governam. Chegamos, deste modo, ao princípio fundamental, só anunciado após certa hesitação, de que não deve haver mistura entre as classes (31): “Qualquer mistura ou transposição de uma classe para outra — diz Platão — é um grande crime contra a cidade e pode com justiça ser denunciada como a mais baixa das vilanias”. Tão rígida divisão das classes, porém, deve ser justificada, e uma tentativa para justificá-la só pode proceder da reivindicação de que os governantes são superiores aos governados. Em consequência, Platão procura justificar sua divisão de classes pela tríplice afirmação de que os governantes são vastamente superiores aos governados sob três aspectos: pela raça, pela educação e por sua escala de valores. As avaliações morais de Platão, naturalmente idênticas às dos dirigentes de seu estado melhor, serão discutidas’ nos capítulos 6 a 8; posso, pois, limitar-me aqui a descrever algumas de suas ideias referentes à origem, à criação e à educação de sua classe dirigente. (Antes de passar a essa descrição, desejo expressar minha crença de que a superioridade pessoal, seja racial, intelectual, moral ou educacional, nunca pode basear uma reivindicação a prerrogativas políticas, ainda mesmo que tal superioridade seja comprovada. A maioria, hoje, nos países civilizados, admite que a superioridade racial é um mito; ainda, porém, que se tratasse de um fato estabelecido, não criaria especiais direitos políticos, embora pudesse criar especiais responsabilidades morais para as pessoas superiores. Exigências análogas deveriam ser feitas àqueles intelectual, moral e educacionalmente superiores; e não posso deixar de sentir que os reclamos em sentido contrário de certos intelectualistas e moralistas apenas mostram quão pouco êxito alcançou sua educação, visto como falhou em tomá-los conscientes de suas próprias limitações e de seu farisaísmo.)
Ou seja, o pensamento político totalitário de Platão é também racista. Na verdade, mais do que isso: ele aponta para duas espécies de seres humanos. Dificilmente se conseguirá imaginar algo mais tenebroso. A questão que fica é: por que as pessoas engoliram isso tudo?
IV
Se quisermos compreender os conceitos de Platão a respeito da origem, criação e educação de sua classe dirigente, não devemos perder de vista os dois pontos principais de nossa análise. É mister ter em mente, antes de tudo, que Platão está reconstruindo uma cidade do passado, embora ligada ao presente de tal modo que certos de seus aspectos são ainda discerníveis em estados existentes, como por exemplo em Esparta, e, em segundo lugar, que ele está reconstruindo sua cidade para visar às condições de sua estabilidade, e que só procura garantir essa estabilidade dentro da própria classe governante, e mais propriamente por sua unidade e força.
Platão acreditava no que escrevia? Não se sabe. E não é relevante saber. Objetivamente, a retropia platônica é, na verdade, um recurso narrativo para validar e para induzir a replicação do regime vigente em Esparta contra a democracia de Atenas.
Com relação à origem da classe governante, pode-se mencionar que Platão fala, no Estadista, de um tempo, anterior mesmo ao de seu estado melhor, em que “o próprio Deus era o pastor dos homens, governando-os exatamente como o homem… ainda governa os animais. Não havia… posse de mulheres e filhos” (32). Isto não é simplesmente um símile do bom pastor; à luz do que Platão diz nas Leis, deve ser interpretado mais literalmente. Lá nos é dito que essa primitiva sociedade, anterior mesmo à primeira e melhor cidade, é de nômades pastores de montes dirigidos por um patriarca: “O governo originou-se — diz ali Platão sobre o período que precedeu o primeiro estabelecimento fixo — como o regime do mais velho, que herdava sua autoridade do pai ou mãe; todos os outros o seguiam como um bando de pássaros, formando assim uma só horda, governada por aquela autoridade patriarcal e reinado que, de todos os reinados, é o mais justo”. Essas tribos nômades, diz-nos, estabeleceram-se nas cidades do Peloponeso, especialmente em Esparta, sob o nome de Dórios. Não vem muito claramente explicado como isto sucedeu, mas compreendemos a relutância de Platão quando encontramos indícios de que o “estabelecimento”, de facto, foi uma violenta subjugação. Tanto quanto sabemos, esta é a verdadeira história do estabelecimento dórico no Peloponeso. Temos, portanto, toda razão para crer que Platão tinha a intenção de fazer de sua história uma séria descrição de acontecimentos pré-históricos; uma descrição não só da origem da raça dórica de senhores, mas também da origem de seu gado humano, isto é, dos habitantes originais. Numa passagem paralela da República, dá-nos Platão uma descrição mitológica, e contudo bem ajustada, da própria conquista, quando trata da origem dos “terrígenos”, a classe governante da cidade melhor. (O Mito dos Terrígenos será discutido, sob aspecto diferente, no capítulo 8.)
Aqui fica claro o modelo patriarcal de Platão. É do patriarcado que ele fala quando tece loas à excelência do regime tribal primitivo dos gregos (e não de outras sociedades tribais remanescentes de culturas pre-patriarcais). Este ponto é muito importante para entender porque Popper define a sociedade tribal como uma sociedade fechada. Não é de qualquer tribo que ele fala e sim das tribos do patriarcalismo dórico. Ver as diferenças entre dórios e jônios.
Na mitologia grega, os jônios são um dos quatro povos que descendem dos filhos de Heleno, filho de Deucalião.
Sua marcha vitoriosa sobre a cidade, previamente fundada por trabalhadores e negociantes, é assim descrita: “Depois de haver armado e adestrado os terrígenos, façamo-los agora avançar, sob o comando dos guardiães, até chegarem à cidade. Vejamo-los então à procura do melhor lugar para seu acampamento — o ponto mais adequado para manter submissos os habitantes, caso algum se mostrasse indócil a obedecer à lei, e para fazer recuar os inimigos externos, que “poderiam sobrevir como lobos sobre a manada”. Esta narrativa, curta mas triunfante, da subjugação de uma população sedentária por uma horda guerreira conquistadora (que é identificada, no Estadista, com os nômades pastores montanheses do período anterior ao estabelecimento) deve ser tida em mente quando interpretamos a reiterada asseveração de Platão de que os bons governantes, sejam deuses, semideuses ou guardiães, são pastores patriarcais de homens, e de que a verdadeira arte política, a arte de governar, é uma espécie de pastoreio, isto é, a arte de dirigir e dominar o gado humano. E é sob essa luz que devemos considerar sua descrição da educação e adestramento dos “auxiliares que são sujeitos aos governantes como cães de rebanho aos pastores do estado”.
Aqui novamente Platão deixa claro, na interpretação correta de Popper, que seu modelo é patriarcal: “bons governantes, sejam deuses, semideuses ou guardiães, são pastores patriarcais de homens”. Isso explica o ódio à democracia de Platão. Ele percebeu que a democracia inventada pelos atenienses abria uma brecha na cultura patriarcal. Eis o ponto!
A formação e a educação dos auxiliares e, portanto, da classe governante do estado melhor de Platão é, como o porte de armas, um símbolo de classe e, pois, uma prerrogativa de classe (33). Criação e educação não são símbolos vazios, mas, como as armas, instrumentos do regime de classe, necessários para assegurar a estabilidade desse regime. São tratadas por Platão exclusivamente sob tal aspecto, a saber, como poderosas armas políticas, como meios úteis para arrebanhar o gado humano e para unificar a classe dirigente.
Valeria a pena explorar esse “porte de armas” como privilégio da casta dirigente. Aqui pode estar um precedente para o que acontece hoje (considerando que a aquisição legal de armas é cara demais para ser comprada por elementos do rebanho). Mas, a despeito desse aspecto, a própria ideia de posse de armas, não como ferramentas de defesa, mas de dominação é esclarecedor.
Com esse alvo, é importante que a classe dos senhores se sinta uma raça superior dominadora. “A raça dos guardiães deve ser mantida pura” (34), diz Platão (em defesa do infanticídio), ao desenvolver o argumento racista de que criamos animais com grande cuidado, ao passo que negligenciamos nossa própria raça, argumento que desde então vem sendo repetido. (O infanticídio não era uma instituição ateniense; Platão, vendo-o praticado em Esparta por motivos eugênicos, concluiu que devia ser costume antigo e, portanto, bom.) Reclama ele que se apliquem à formação da raça dominante os mesmos princípios aplicados, por um criador experiente, aos cães, cavalos ou aves. “Se não os criardes desse modo, não achais que a raça de vossas aves ou cães se degenerará rapidamente?” — argumenta Platão; e extrai a conclusão de que “os mesmos princípios se aplicam à raça humana”. As qualidades raciais exigidas de um guardião ou de um auxiliar são, mais especificamente, as de um cão de rebanho. “Nossos atletas-guerreiros… devem ser vigilantes como cães de guarda”, exige Platão, e pergunta: “Haverá, por certo, alguma diferença, no que se refere à natural capacidade para montar guarda, entre um bem dotado jovem e um cão bem criado?”
Aqui um evocação inversa: ver os cachorros de A Revolução dos Bichos de George Orwell (escrito, aliás, na mesma época deste livro de Popper).
Em seu entusiasmo e admiração pelo cão, vai Platão ao ponto de discernir nele uma “natureza genuinamente filosófica”; de fato, “não é o amor ao aprendizado idêntico à atitude filosófica?”
A principal dificuldade com que tropeça Platão está em deverem os guardiães e auxiliares ser dotados de um caráter ao mesmo tempo violento e gentil. É claro que eles devem ser criados para ser violentos, pois terão de “enfrentar qualquer perigo com espírito indômito e intimorato”. Contudo, “se assim for sua natureza, como se resguardarão de violências uns contra os outros, ou contra o restante dos cidadãos?” (35). Realmente, seria “simplesmente monstruoso que os pastores tivessem cães… que molestassem os cordeiros, comportando-se mais como lobos do que como cães. O problema é importante do ponto de vista do equilíbrio político, ou antes, da estabilidade do estado, pois Platão não se baseia num equilíbrio das forças das várias classes, que seria instável. O controle da classe dominante, de seus poderes arbitrários e de sua violência por meio da força oposta dos governados está fora de questão, pois a superioridade da classe dirigente não pode ser discutida. O único controle admissível para os senhores é o auto-controle. Assim como a classe dirigente deve praticar a abstinência econômica, isto é, evitar a exploração econômica excessiva dos governados, assim também deve ser capaz de evitar demasiada violência ao lidar com os dirigidos. Isto, porém, só pode ser alcançado se a violência de sua natureza for equilibrada por sua gentileza. Platão considera-o um sério problema, já que “a natureza violenta é exatamente o oposto da natureza gentil”. Seu intérprete, Sócrates, assinala estar perplexo, até que volta a lembrar-se do cão. “Os cães bem criados são, por natureza, gentilíssimos para com seus amigos e conhecidos, mas justamente o oposto para com os estranhos”, diz ele. O alvo da criação da raça de senhores é assim estabelecido e demonstrado atingível. Derivou-se de uma análise das condições necessárias a tornar estável o estado.
Eis o ponto. Uma raça de senhores, seres superiores (em nada diferente dos seres superiores – depois chamados de deuses, pelos gregos – que detinham o poder na Suméria). Esses senhores governariam em união (sem conflito) e impediriam a interação propriamente política dos seres inferiores. Esta era a condição, imaginada por Platão, para tornar o Estado estável (mas na verdade copiada da autocracia espartana).
Exatamente a mesma é a finalidade educacional de Platão. Tem como alvo puramente político a estabilização do estado pela mescla de um elemento violento a um gentil no caráter dos governantes. As duas disciplinas em que eram educados os filhos das altas classes gregas, ginástica e música (esta última, no mais amplo sentido da palavra, incluía todos os estudos literários), são ligadas por Platão aos dois elementos do caráter, violência e gentileza. “Não observastes” — indaga Platão (36) — como o caráter é afetado por um adestramento exclusivo na ginástica, sem a música, e como também o afeta o adestramento inverso?… Exclusiva preocupação com a ginástica produz homens mais violentos do que deveriam ser, ao passo que análoga preocupação com a música os faz demasiado suaves… Sustentamos, porém, que nossos, guardiães devem combinar essas duas naturezas… Eis por que digo que algum deus deve ter dado ao homem estas duas artes, a música e a ginástica; seu objetivo não é tanto servir corpo e alma respectivamente, mas antes harmonizá-los adequadamente às duas cordas principais”, isto é, colocar em harmonia os dois elementos da alma, gentileza e violência. E Platão conclui sua análise: “São estas as linhas mestras de nosso sistema de educação e adestramento”.
Apesar de Platão identificar o elemento gentil da alma com sua disposição filosófica, a despeito de desempenhar a filosofia papel tão predominante nas últimas partes da República, não é ele de modo algum parcial em favor do elemento gentil da alma, ou da educação musical, isto é, literária. A imparcialidade no equilíbrio dos dois elementos é da maior importância, pois leva-o a impor à educação literária severíssimas restrições, em comparação ao que era costumeiro em Atenas, no seu tempo. Isto, sem dúvida, faz apenas parte de sua tendência geral a preferir os costumes espartanos aos atenienses. (Creta, seu outro modelo, era mesmo mais anti-musical do que Esparta) (37). Os princípios políticos de Platão quanto à educação literária baseiam-se numa simples comparação. Esparta, via ele, tratava seu gado humano um tanto asperamente demais; isso era um sintoma, ou mesmo uma admissão, de um sentimento de fraqueza (38), e portanto um sintoma da degeneração incipiente da classe dominante. Atenas, por outro lado, era excessivamente liberal e frouxa no tratamento dos escravos. Platão considerou isso como prova de que Esparta insistia algo demais na ginástica, e Atenas, naturalmente, bastante demais na música. Essa simples comparação habilitou-o prontamente a reconstruir o que, em sua opinião, devia ter sido a medida verdadeira, ou a verdadeira mescla, dos dois elementos da educação, no estado melhor, assentando assim os princípios de sua política educacional. Esta, julgada pelo prisma ateniense, nada menos é que a exigência de ser estrangulada toda educação literária (39) pela estrita adesão ao exemplo de Esparta, com seu rigoroso controle estatal de todos os assuntos literários. Não só a poesia, mas também a música no sentido comum da palavra, deviam ser controladas por uma censura rígida, devotando-se ambas inteiramente a fortalecer a estabilidade do estado, tornando os jovens mais conscientes da disciplina de classe (40) e, portanto, mais prontos a servir aos interesses da classe. Platão chega a esquecer que a função da música é tornar os jovens mais gentis, pois reclama formas de música capazes de torná-los mais bravos, isto é, mais violentos. (Considerando que Platão era Ateniense, seus argumentos em relação à musica propriamente dita parecem-me quase incríveis, na sua intolerância supersticiosa, especialmente quando comparados à crítica contemporânea mais esclarecida (41). Mesmo hoje, porém, tem ele a seu lado muitos musicistas, lisonjeados talvez por sua elevada opinião quanto à importância da música, isto é, sua força política. O mesmo é certo quanto a educadores, e ainda filósofos, pois Platão reclama que eles deveriam governa; exigência que discutiremos no capítulo 8.
O controle estatal da produção artística (e da chamada educação) – objetivo de todos os autocratas, até hoje – encontra aqui seu fundamento.
O princípio político que determina a educação da alma, a saber, a preservação da estabilidade do estado, determina também a do corpo. Seu alvo é simplesmente o de Esparta. O cidadão ateniense era educado com vistas a uma versatilidade geral; Platão quer que a classe dirigente seja adestrada como uma classe de guerreiros profissionais, sempre pronta a lutar contra inimigos, dentro ou fora do estado. Crianças de ambos os sexos, diz-nos por duas vezes, “devem ser levadas a cavalo para verem onde se travam guerras; e, desde que isso se possa fazer com segurança, devem ser levadas à batalha, para provar o gosto do sangue; é o que se faz com os jovens cães de caça” (42). A descrição de um escritor moderno, que caracteriza a contemporânea educação totalitária como “uma forma contínua e intensificada de mobilização”, casa-se muito bem a todo o sistema educacional platônico.
Este é um esquema da teoria de Platão sobre o estado melhor ou mais antigo, a cidade que trata seu gado humano exatamente como um experiente mas endurecido pastor trata seu rebanho: não com demasiada crueldade, mas com o devido desprezo. Como análise das instituições sociais de Esparta e das condições de sua estabilidade e instabilidade, e como tentativa de reconstruir mais rígidas e primitivas formas de vida tribal, é uma descrição realmente excelente. (Lidamos neste capítulo apenas com o aspecto descritivo. Os aspectos éticos serão discutidos mais tarde.) Creio que muito dos escritos de Platão normalmente considerado como simples especulação mitológica ou utópica pode, desse modo, ser interpretado como descrição e análise sociológica. Se consideramos, por exemplo, seu mito das hordas guerreiras triunfantes que subjugam uma população estabelecida, devemos admitir que, do ponto de vista da sociologia descritiva, ele teve sucesso. De fato, podia isso mesmo aspirar a ser uma antecipação de uma interessante (embora talvez demasiado abrangente) teoria moderna sobre a origem do estado, de acordo com a qual o poder político centralizado e organizado geralmente se origina de semelhantes conquistas (43). E bem pode haver, nos escritos de Platão, mais descrições dessa espécie do que hoje avaliamos.
Não se sabe bem de onde surgiu a ideia de que as especulações platônicas eram utópicas em algum sentido positivo, mas ela é falsa, como mostra Popper. Não há utopia platônica a não ser que consideremos que toda utopia é uma distopia.
V
Em resumo: numa tentativa de compreender e interpretar o mutável mundo social, tal como o conhecia, Platão foi levado a desenvolver uma sistemática sociologia historicista, em grandes minúcias. Considerou os estados existentes como cópias decadentes de uma Forma ou Ideia imutável. Tentou reconstruir essa Forma ou Ideia de um estado, ou pelo menos descrever uma sociedade que a ela se parecesse o mais estreitamente possível. Juntamente com antigas tradições, utilizou como material para sua reconstrução os resultados de suas análises das instituições sociais de Esparta e Creta — as mais antigas formas de vida social que podia encontrar na Grécia — e nas quais reconheceu formas detidas de sociedades tribais ainda mais antigas. Mas, a fim de fazer uso adequado desse material, necessitou de um princípio para distinguir entre os traços bons, ou originais, ou antigos, das instituições existentes e seus sintomas de decadência. Achou tal princípio em sua lei das revoluções politicas, de acordo com a qual a desunião da classe governante e sua preocupação com os negócios econômicos são a origem de qualquer mudança social. Seu estado melhor, portanto, deveria ser reconstruído de modo tal que eliminasse todos os germes e elementos de desunião e decadência, o mais radicalmente possível; isto é, devia ser reconstruído com base no estado espartano e tendo em vista as condições necessárias à infrangível unidade da classe dominante, assegurada por sua abstinência econômica, sua educação e seu adestramento.
Interpretando as sociedades existentes como cópias decadentes de um estado ideal, Platão deu imediatamente às opiniões algo rudes de Hesíodo sobre a história humana um fundo teórico e uma rica aplicação prática. Desenvolveu uma teoria historicista notavelmente realista, que encontrava a causa da mudança social na desunião de Heráclito e na luta de classes, em que ele reconhecia as forças impulsionadoras assim como corruptoras da história. Aplicou esses princípios historicistas à história do Declínio e da Queda das cidades-estados da Grécia, e especialmente a uma crítica da democracia, que descreveu como efeminada e degenerada. E podemos acrescentar que mais tarde, nas Leis (44), também os aplicou a uma história do Declínio e da Queda do Império Persa, apresentando assim o início de uma longa série de dramatizações sobre Declínios e Quedas de impérios e civilizações. (Destas, a pior, talvez, embora não a última (45), é a famosa Decadência do Ocidente de O. Spengler.) Tudo isto, creio, pode ser interpretado como uma tentativa, e das mais impressionantes, para explicar e racionalizar sua experiência da derrocada da sociedade tribal, experiência análoga à que levara Heráclito a desenvolver a primeira filosofia de mudança.
Outra indicação importante. Não é a toa que os espartanos consideravam os democratas atenienses como um bando de veadinhos. O efeminado é o degenerado do ponto de vista da cultura patriarcal.
Nossa análise da sociologia descritiva de Platão, porém, está ainda incompleta. Suas histórias sobre Decadência e Queda, e com elas quase todas as histórias posteriores, exibem pelo menos duas características que até aqui não discutimos. Concedia ele essas sociedades decadentes como uma espécie de organismo, e o declínio como um processo semelhante ao envelhecimento. E acreditava que o declínio é bem merecido, no sentido de que a decadência moral, queda e declínio da alma, anda a par e passo com a do corpo social. Tudo isso desempenha papel importante na teoria de Platão sobre a primeira mudança, na História do Número e da Queda do Homem. Essa teoria, e sua conexão com a doutrina das Formas ou Ideias, será discutida no capítulo seguinte.
Trata-se de uma filosofia da autocracia. Tirando os relatos fragmentários da experiência sumeriana (como a Epopeia da Criação) e outros registros encontrados sobre os regimes políticos prevalecentes na Mesopotâmia antiga, as obras políticas de Platão (sobretudo A República, O Político e As Leis) são o fundamento para a legitimação das mais tenebrosas urdiduras políticas de dominação já surgidas na humanidade.
Notas
As notas ainda precisam ser corrigidas e organizadas. O próprio Popper fez uma barafunda nas notas, o tradutor da edição brasileira piorou bem e a editora acabou por consumar a balbúrdia.
1 – Cf. República, 608e. Ver também nota 2 (2) a este capítulo.
2 – Nas Leias, a alma, “A mais antiga e divina de todas as coisas em movimento” (966e) é descrita como “o ponto de partida de todo movimento” (895b).
[Falta aqui uma parte da nota, que será inserida oportunamente]
devemos ter em mente a oposição geral entre o mundo de coisas ou Ideias imutáveis e o mundo das coisas sensíveis em fluxo. Platão muitas vezes expressa essa oposição como sendo entre o mundo das coisas imutáveis e o mundo das coisas corruptíveis, ou entre as coisas que não são geradas e aquelas que são geradas e estão condenadas a degenerar, etc.; ver, p. ex., República, 485a/b, citada na nota 26 (1) ao cap. 3 e no texto referente à nota 33 ao cap. 8; Rep., 508d-e e 527a/b; e Rep. 546a, citada no texto relativo à nota 37 ao capítulo 5; “Todas as coisas que foram geradas devem degenerar” (ou decair). A parte importante que esse problema da geração e corrupção do mundo das coisas em fluxo desempenhava na tradição da Escola Platônica é indicada pelo facto de que Aristóteles lhe dedicou um tratado em separado. Outra indicação interessante é o modo pelo qual Aristóteles falou desses assuntos na introdução de sua Política, contida nas sentenças finais da Ética Nicomaquiana (1181b/15): “Tentaremos… descobrir o que
preserva .ou corrompe as cidades…” Este trecho é significativo não- só como uma formulação do que Aristóteles considerava o problema principal de sua Política, como também por causa de sua impressionante semelhança com importante passagem das Leis, a saber, 676a e 676b/c, citada abaixo no texto a que se referem as notas 6 e 25 a este capítulo. (Ver também notas 1, 3 e 24-25 a este capítulo; nota 32 ao cap. 8 e a passagem das Leis citada na nota 59 ao cap. 8).
3 — Esta citação é do Estadista, 269d. (Ver também nota 23 a este capítulo). Para a hierarquia dos movimentos, ver Leis, 893c-895b. Para a teoria de que as coisas perfeitas (“naturezas” divinas, cf. cap. seguinte) só se podem tornar menos perfeitas quando mudam, ver esp. República, 380e-381c, que é de muitos modos um trecho paralelo ao de Leis, 797d. As citações de Aristóteles são de Metafísica, 988b3, e de De Gen. et Corr., 335bl4. As últimas quatro citações deste parágrafo- são das Leis de Platão, 904c seg. e 797d. Ver também nota 24 a este capítulo e texto. (É possível .interpretar a observação acerca dos objetos ntaus como outra alusão a um desenvolvimento cíclico, como discutido na nota 6 ao cap. 2, isto é, como uma alusão à crença de que a tendência do desenvolvimento deve inverter-se, e que as coisas devem começar a melhorar uma vez que o mundo tenha alcançado as mais baixas profundidades da maldade.
Tendo sido contestada minha interpretação da teoria platônica da mudança, desejo aduzir algumas poucas considerações, especialmente sobre os dois trechos (1) Leis, 904c sg. e (2) 797d.
(1) O trecho Leis, 904c, “o menos significativo é o declínio incipiente em seu nível de grau” pode ser mais literalmente traduzido; “o menos significativo é o movimento incipiente para baixo no nível de grau”. Parece-me certo, do contexto, que “ para baixo no nível de grau”- é a intenção, em vez de “ com relação ao nível de grau”, que claramente é também uma tradução possível. (Minha razão não está só em todo o contexto dramático, a partir de 904a, mas também mais especialmente nas séries “kata… kata… katõ”, que, num trecho de força crescente, devem dar colorido à significação de, pelo menos, o segundo kata. Quanto à palavra que traduzo por nível, pode ela significar — apresso-me em admiti-lo — não só “plano” como também “superfície”; e a palavra que traduzimos por “grau” também pode significar “espaço”; entretanto, a versão de Bury, a saber “quanto menos for a mudança de caráter, tanto menor será o movimento sobre a superfície no espaço”’ não me parece ter muito significado dentro do contexto).
(2) A continuação desta passagem (Leis, 798) é em extremo característica. Ela exige que “o legislador se esforce por todos os- meios a seu dispor (“ a torto e a direito”, como traduz corretamente Bury) para idear um método que assegure a seu estado (que) toda alma (de cada um de seus cidadãos) resista, por temor e respeito, a modificar qualquer das normas estabelecidas antigamente”. (Platão inclui explicitamente algumas coisas que outros legisladores consideram “ meras questões de brinquedo”, como, por exemplo, as modificações principalmente dos brinquedos de crianças).
(3) Em geral, as principais evidências para minha interpretação da teoria platônica da mudança — fora grande número de passagens secundárias mencionadas nas diversas notas a este capítulo e ao anterior — encontram-se, naturalmente, nas passagens históricas ou evolucionistas de todos os diálogos que contêm tais passagens, especialmente a República (o declínio e queda do estado a partir de sua idade de ouro quase perfeita, tratados nos livros VIII e IX), o Estadista (a teoria da idade de ouro e sua decadência), as Leis (a narração do patriarcado primitivo e da conquista dórica, e do declínio e queda do império persa), o Timeu (o relato da evolução através da degeneração, que se produz duas vezes e o da idade de ouro de Atenas, que prossegue no Crítias).
Devem juntar-se a essas evidências as frequentes referências de Platão a Hesíodo e o facto indubitável de que a mentalidade sintética de’ Platão não era menos aguda que a de Empédocles (cujo período de lutas é o que vigora atualmente; cf. Aristóteles De Gen. et Corr., 334a6) ao conceber os assuntos humanos num enquadramento cósmico. (Estadista, Timeu).
(4) Talvez, finalmente, possa eu referir-me a considerações psicológicas gerais. Por um lado, o temor de inovações (ilustrado por muitas passagens das Leis, como 758c/d) e, por outro lado, a idealização do passado (tal como se encontra em Hesíodo ou na narração do Paraíso Perdido) são fenômenos frequentes e de profunda influência. Talvez não seja excessivo relacionar o último, ou mesmo ambos, à idealização da própria infância : o próprio lar, os pais e o nostálgico desejo de retornar a essas etapas iniciais da vida. Há numerosas passagens em que Platão tem por assentado que o estado original das coisas, ou a natureza original, é um estado de bemaventurança.
Mencionarei somente o discurso de Aristófanes no Banquete; tem-se ali como assente que, para explicar a premência e o sofrimento do amor apaixonado basta mostrar que ele deriva dessa nostalgia e, similarmente, que os sentimentos de satisfação sexual podem ser explicados como os de uma nostalgia satisfeita. Assim, Platão diz de Eros (Banquete, 193d) “Ele nos restaurará à nossa natureza original (ver também 193d), curando-nos e fazendo-nos felizes e abençoados”. O mesmo pensamento jaz sob muitas observações tais como as seguintes do Filebo (16c) : “Os homens de outrora… eram melhores do que hoje somos e… viviam mais próximos dos deuses…” Tudo isto indica a concepção de que nosso estado infeliz e desgraçado é uma consequência do desenvolvimento que nos faz diferentes de nossa natureza original — nossa Ideia; e indica mais que o desenvolvimento é de um estado de bondade e bem-aventurança para um estado em que a bondade e a bem-aventuração são perdidas ; mas isso significa que tal desenvolvimento é de crescente corrupção. A teoria de Platão da anamnese, isto é, de que todo conhecimento é recognição ou recordação do conhecimento que tivemos em nosso passado pré-natal,’ faz parte da mesma concepção : no passado reside não só o que é bom, nobre e belo, mas ‘ também a sabedoria. Mesmo a mudança ou movimento antigos são melhores do que o movimento secundário, pois, nas Leis, a alma é descrita como 895b) “ o ponto de partida de todos os movimentos, o primeiro a erguer-se nas coisas em repouso… o mais antigo e poderoso movimento” e (966e) “a mais antiga e divina de todas as coisas”. (Cf. nota 15 (8) ao cap. 3).
Como antes apontamos (cf. esp. nota 6 ao cap.” 3), a doutrina de uma tendência histórica e cósmica para a decadência parece estar combinada, em Platão, com uma doutrina do ciclo histórico e cósmico (O período de decadência, provavelmente, é parte desse ciclo).
(5) Cf. Timeu, 91d-92b. Ver também notas 6 ao cap. 3 e 11 ao cap. 11.
5 — Ver o início do capítulo 2 e a nota 6 (1) ao capítulo 3. Não é’ mero acaso a menção que Platão faz da história dos “ metais’’ de Hesíodo, ao discutir sua própria teoria da decadência histórica (Ver Rep., 546e/547a, esp. notas 39 e 40 ao cap. 5) ; ele claramente deseja indicar quão bem sua teoria se enquadra na de Hesíodo e a explica.
6 — A parte histórica das Leis está nos Livros III e IV (ver nota 6 (5) e (8) ao capítulo 3.) As duas citações do texto são do começo desta parte, isto é, Leis 676a. Para as passagens paralelas mencionadas, ver Rep. 369b sg. (“O nascimento de uma cidade”…) e 545d (“Como nossa cidade será mudada”).
Muitas vezes se diz que as Leis e o Estadista $ão menos hostis para com a democracia do que a República, e deve-se admitir que Platão, no seu tom geral, é de facto menos hostil (talvez isso se deva à crescente força interna da democracia; ver cap. 10 e começo do cap. 11). Mas a única concessão prática feita à democracia nas Leis é que os funcionários políticos sejam escolhidos pelos membros da classe governante (isto é, a militar); e como todas as mudanças importantes das leis do estado são proibidas de qualquer modo (cf. por exemplo as citações na nota 3 a este capítulo), isto não representa muito. A tendência fundamental permanece pró-espartana e essa tendência era, como se pode ver da Política de Aristóteles, II, 6,17 (1265b), compatível com uma chamada constituição “mista”. De facto, Platão, nas Leis, é ainda mais hostil para com o espírito da democracia, isto é, para com a ideia da liberdade do indivíduo, do que na República; cf. esp. o texto a que se referem as notas 32 e 33 do capítulo 6 (isto é, Leis, 739c sgs. e 942a sg.) e ás notas 19-22 ao cap. 8 (isto é, Leis, 903c-909a). Ver também a dota seguinte.
7 — Parece provável que foi amplamente essa dificuldade de explicar a primeira mudança (ou a Queda do Homem) que levou Platão a transformar a sua teoria das Ideias, como se menciona na nota 15 (8) ao cap. 3; a saber, a transformar as Ideias em causas e poderes ativos, capazes de se misturarem com algumas das outras Ideias (cf. Sofista, 252e segs.) e de rejeitar as restantes (Sofista, 223c) ; e assim transformá- las em algo como deuses, em contraposição à República, que (cf. 380d) petrifica até mesmo os deuses em sêres parmenideanos, imutáveis e não movidos. Importante ponto de transição parece ser o Sofista 248e-249c (note-se especialmente que a Ideia de movimento não está aí em repouso). A transformação parece resolver ao mesmo tempo a dificuldade do chamado “ terceiro homem”, pois, se as Formas são, como no Timeu, pois, então não é necessário um “ terceiro homem” para explicar sua similaridade com seus descendentes.
Com referência à relação da República com o Estadista e as Leis, acho que a tentativa de Platão, nos dois últimos diálogos, para remontar sempre mais para trás a origem da sociedade humana é igualmente relacionada a dificuldades inerentes ao problema da primeira mudança. Que é difícil conceber uma mudança sobrevindo a uma cidade perfeita, claramente o afirma a República, 546a; a tentativa de Platão, na República, para resolver a dificuldade é discutida no capítulo seguinte (cf. texto a que se referem as notas 37-40 ao cap. 5). No Estadista, Platão adota a teoria de uma catástrofe cósmica que leva à mudança do hemiciclo (empedocleano) do amor ao período atual, o hemiciclo da luta.
Esta ideia parece ter sido abandonada no Timeu, a fim de ser substituída por uma teoria (conservada nas Leis) de catástrofes mais limitadas, tais como enchentes, que podem destruir civilizações, mas aparentemente não afetam o curso do universo. (É possível que esta solução do problema fôsse sugerida a Platão pelo fato de que, em 373-372 A. C. a antiga cidade de Helice foi destruída por terremoto e inundação.) A mais antiga forma de sociedade, que na República só dista um passo do estado espartano ainda existente, é recuada para passado cada vez mais distante. Embora Platão continui a crer que o primeiro estabelecimento deva ser a cidade perfeita, agora discute sociedades anteriores a esse primeiro estabelecimento, isto é, sociedades nômades, “pastores montanheses” (Cf. esp. nota 32 a este capítulo).
8 — A citação é de Marx-Engels, Manifesto Comunista; cf. A Handbook of Marxism, (editado por E. Bums, 1935) 22.
9 — A citação é dos comentários de Adam ao livro VIII da República; ver sua edição, vol. II, 198, nota a 544a3.
10 — Cf. República, 544c.
11 — Ver abaixo:
(1) Em contraposição à minha afirmativa de que Platão, como muitos sociólogos modernos desde Comte, tenta traçar as etapas críticas do desenvolvimento social, a maioria dos críticos considera a história de Platão apenas como uma apresentação um tanto dramática de uma classificação puramente lógica de constituições. Mas isso não só contradiz o que Platão afirma, (cf. nota de Adam a Rep., 544cl9, ob. cit. vol. II, 199) como também vai de encontro a todo o espírito da lógica de Platão, de acordo com o qual a essência de uma coisa deve ser compreendida por sua natureza original, isto é, por sua origem histórica. E não nos devemos esquecer de que ele usa a mesma palavra, “genus”, para significar uma classe no sentido lógico e uma raça no sentido biológico. O “genus” lógico é ainda idêntico à “raça” no sentido de “descendente do mesmo pai”. (Com isto, cf. notas 15 a 20 ao cap. 3 e o texto, assim como as notas 23-24 ao cap. 5 e texto, onde a equação natureza — origem — raça é discutida. Consequentemente, há todas as razões para tomar o que Platão diz pelo seu valor nominal, pois, mesmo se Adam estivesse certo ao dizer (ob. cit.) que Platão pretende oferecer uma “ ordem lógica”, essa ordem seria para ele, ao mesmo tempo, a de um desenvolvimento histórico típico. A observação de Adam (ob. cit.) de que a ordem “é determinada primariamente por considerações psicológicas e não históricas” vira-se contra ele, creio eu, pois ele mesmo aponta (p. ex., ob. cit., vol. II, 195, nota a 543a segs.) que Platão “ conserva permanentemente a analogia entre a Alma e a Cidade”. De acordo com a teoria política da Alma, de Platão, (que será discutida no capítulo seguinte), a história psicológica deve andar paralelamente à história social, e a alegada oposição entre considerações psicológicas históricas desaparece, transformando-se em outro argumento em favor de nossa interpretação.
(2) Exatamente a mesma resposta pode ser dada se alguém arguir que a ordem da constituição de Platão não é fundamentalmente lógica, mas ética, pois a ordem ética (e também a estética), na filosofia platônica, é indistinguível da ordem histórica. A este respeito, pode-se observar que essa concepção historicista fornece a Platão um terreno teórico para o eudemonismo de Sócrates, isto é, para a teoria de que a bondade e a felicidade são idênticas. Essa teoria é desenvolvida, na República (cf. esp. 580b), sob a forma da doutrina de que a bondade e a felicidade, ou a maldade e a infelicidade, são proporcionais; e assim devem ser, se o grau de bondade assim como o de felicidade de um homem deve ser medido pelo grau em que ele se assemelha a nossa natureza original abençoada — a Ideia perfeita do homem. (O facto de que a teoria de Platão, nesse ponto, leva a uma justificação teórica de uma doutrina socrática aparentemente paradoxal pode ter ajudado Platão a convencer-se de que estava apenas expondo o verdadeiro credo de Sócrates; ver o texto a que se referem as notas 56-57 ao capítulo 10).
(3) Rousseau adotou a classificação platônica das instituições (Contrato Social, livro II, cap. VII; livro III, caps. III e segs.; cf. também cap. X). Mas provavelmente obedece a uma influência indireta de Platão quando revive a Ideia platônica de uma sociedade primitiva (cf. entretanto notas 1 ao cap. 6 e 14 ao cap. 9) ; produto, porém, direto do Renascimento Platônico na Itália foi a muito influente Arcadia de Sanazzaro, com sua ressurreição da ideia de Platão de uma bemaven- turada sociedade primitiva de pastores montanheses (Dórios). (Para esta ideia de Platão, cf. texto a que se refere a nota 32 a este capítulo). Assim, o Romantismo (cf. também cap. 9) é historicamente, na verdade, um rebento do platonismo.
(4) Muito difícil é dizer até onde o historicismo moderno de Comte e Mill e de Hegel e Marx recebeu a influência do historicismo teista de Giambattista Vico, em sua Ciência Nova (1725) : o próprio Vico, sem dúvida, foi influenciado por Platão, assim como pela De Civitate Dei de Santo Agostinho e pelos Discursos sobre Tito Livio de Maquiavel. Tal como Platão (cf. cap. 5) Vico identificava a “natureza” de uma coisa com a sua “origem” (cf. Opere, 2.a ed. de Ferrari, 1852/54, vol. V, pág. 99) e cria que todas as nações deviam seguir o mesmo curso evolutivo, de acordo com uma lei universal. Poder-se-ia, pois, dizer que suas “nações”, assim como as de Hegel, constituem um dos elos entre as “ Cidades” de Platão e as “ civilizações” de Toynbee.
12 — Cf. República, 549c/d; as citações seguintes são, ob. dt., 550d-e e, depois, ob. cit. 551a/b.
13 — Cf. ob. cit. 556e. (Este trecho deve ser comparado com Tucídides, III, 82-4, citado no cap. 10, texto que tem a nota 12). A citação seguinte é ob. cit., 557a.
14 — Para o programa democrático de Péricles ver texto que tem a nota 31, cap. 10; nota 17 ao cap. 6 e nota 34 ao cap. 10.
15 — Adam, em sua edição da República de Platão, vol. II, 240, nota à 559d22. (Os grifos na segunda citação são meus). Adam admite que “ o quadro é sem dúvida um tanto exagerado”; mas deixa pouca dúvida de que pensa que, fundamentalmente, ele é verdadeiro “ para todo tempo”.
16 — Adam, op. cit.
17 — Esta citação é da República, 560d (para esta e as próximas citações cf. tradução de Lindsay) ; as duas citações seguintes são da mesma obra, 563a/b e d. (Ver também a notá de Adam a 563d25). É significativo que Platão recorra aqui à instituição da propriedade privada, severamente atacada em outras partes da República, como se se tratasse de um princípio de justiça inquestionável. Ao que parece, quando o bem possuído é um escravo, torna-se adequado um apêlo ao direito legal do comprador.
Outro ataque à democracia é o de que ela “espezinha” o principio educacional de que “ ninguém se pode converter em homem honrado se seus primeiros anos não foram dados a nobres brinquedos” (Rep. 558b; ver a tradução de Lindsay; cf. a nota 68 ao cap. 10). Ver também os ataques ao igualitarismo citados na nota 14 ao cap. 6.
Para a atitude de Sócrates em relação a seus companheiros jovens, ver a maior parte de seus primeiros diálogos, mas também o Fedon, onde se descreve a “forma agradável, respeitosa e bondosa por que ele ouvia as críticas dos jovens”. Para a atitude oposta de Platão, ver o texto a que correspondem as notas 19 a 21 do capítulo 7; ver também os excelentes artigos de H. Cherniss, The Riddle of the Early Academy, (1945), esp. pags. 70 e 79 (sobre Parmenides, 135c/d) e cf. notas 18 a 21 do cap. 7 e o texto.
18 — A escravidão (ver nota precedente) e o movimento ateniense contra ela são mais amplamente discutidos nos capítulos 5 (nota 13 e texto), 10 e 11; ver também nota 29 ao presente capítulo. Como Platão, Aristóteles (p. ex. em Pol., 1313bll, 1319b20, e na sua Constituição de Atenas, 59,5) dá testemunho da liberalidade de Atenas para com os escravos; e o mesmo faz o Pseudo-Xenofonte (cf. Const. de Atenas, I, 10 seg.).
19 — Cf. Rep., 577a sg.; ver notas de Adam a 577a5 e bl2 (ob. cít. vol. II, 332 sg.).
20 — Rep., 560e; cf. nota 63 ao cap. 10.
21 — Cf. Estadista (Político), 301d. Embora Platão distinga seis tipos de estados degradados, não introduz quaisquer novos termos; os nomes “monarquia” (ou “reinado”) e “aristocracia” são usados na República (445d) para o próprio estado melhor, e não para formas relativamente melhores de estados degradados, como no Estadista.
22 — Cf. Rep. 544d.
23 — Cf. Estadista, 297c/d: “Se o governo que mencionei é o único verdadeiro e original, então os demais (que são “ só cópias deste”, cf. 297b/c) devem usar suas leis e sancioná-las; esta é a única forma por que se poderão preservar” (Cf. nota 3 a este capitulo e nota 18 ao cap. 7). “E qualquer infração às leis será castigada com a morte e as penas mais severas; e isto é justo e bom, embora, por certo, só constitua o segundo grau da perfeição”. (Para a origem das leis, cf. nota 32 (I,a) a este capítulo e a 17 (2) ao cap. 3). E em 300e-301a e segs. lemos: “O melhor que essas formas inferiores de governo podem fazer para assemelhar-se ao verdadeiro governo… é seguir esses costumes e leis escritas… Quando os ricos governam e imitam a Forma verdadeira, o governo recebe o nome de aristocracia; e quando eles não obedecem às leis (antigas), o de oligarquia”, etc. É importante notar que o critério da classificação não é a legalidade ou ilegalidade em abstrato, mas a preservação das antigas instituições do estado original ou perfeito. (Isto contrasta com a Pol. de Aristóteles, 1292a, onde a principal distinção está entre “a supremacia da lei” ou a do populacho).
24 — A passagem, Leis, 709e-714a, contém diversas alusões ao Estadista; p. ex., 710d-e, que introduz, acompanhando Heródoto III, 80-82, o número de governantes como o princípio da classificação; as enumerações das formas de governo em 712c e d; e 713b segs., isto é, o mito do estado perfeito na era de Cronos, “ do qual os melhores de nossos estados atuais são imitações”.
Em vista dessas alusões, não tenho dúvidas de que Platão pretendesse que sua teoria da adequação da tirania aos experimentos utópicos fosse compreendida como uma espécie de continuação da história do Estadista (e, deste modo, também da República). — As citações deste parágrafo são das Leis, 709e e 710c/d; a observação das Leis acima citada é de 797d, citada no texto que tem a nota 3, neste capítulo. (Concordo com E. B. England na nota a seu trecho, em sua edição das Leis de Platão, segundo o qual o principio de Platão é que “a mudança é prejudicial ao poder… de qualquer coisa”, e, portanto, também ao poder do mal; mas não concordo com ele em que “a mudança do mal”, isto é, para o bem, seja por demais auto- evidente para ser mencionada como uma exceção; ela não ê auto-evidente, do ponto de vista da doutrina platônica da natureza má da mudança. Ver também a nota seguinte).
25 — Cf. Leis, 676b/c (cf. 676a, citada no texto que tem a nota 6). Apesar da doutrina de Platão de que “a mudança é prejudicial” (cf. fim da última nota), E. B. England interpreta essas passagens sobre a mudança e a revolução dando-lhes um sentido otimista ou progressista. Sugere que o objeto da pesquisa de Platão é o que poderíamos chamar “o segredo da vitalidade política”. Cf. op. cit., vol. I, 345). Essa interpretação não pode ser correta, pois a passagem em questão é uma introdução a uma história de declínio político; mas mostra quanto a tendência para idealizar Platão e apresentá-lo como um progressista cega até mesmo um excelente crítico contra sua própria descoberta, a saber, a de que Platão acreditava ser a mudança prejudicial.
26 — Cf. Rep., 545d (ver também a passagem paralela 465b). A citação seguinte é de Leis, 683e. (Adam, em sua edição da República, vol. II, 203, nota a 683e5, menciona Rep. 609a, mas não 545d nem 465b, e supõe que a referência seja a “uma discussão anterior, ou registrada num diálogo perdido”. Não vejo por que Platão não poderia estar aludindo à República, usando a ficção de que alguns de seus tópicos tivessem sido discutidos pelos interlocutores em foco. Como diz Cornford, no último grupo dos diálogos de Platão “ não há motivo para conservar-se a ilusão de que os diálogos efetivamente se tivessem travado”; e ele também está certo quando diz que Platão “não era escravo de suas próprias ficções” (Cf. Cornford, Plato’s Cosmology, págs. 5 e 4). A lei das revoluções de Platão foi redescoberta, sem referência a Platão, por V. Pareto; cf. seu Tratado de Sociologia Geral, § 2054, 2057, 2058. (No fim do § 2055 há também uma teoria de paralisação da história). Rousseau também redescobriu a lei (Contrato Social, livro III, cap. 10).
27 — Ver abaixo:
(1) Pode ser interessante notar que os traços intencionalmente não históricos do estado melhor, especialmente o governo dos filósofos, não são mencionados por Platão no sumário do principio do Timeu, e que no livro VIII da República ele admite que os governantes do estado melhor não sejam versados no misticismo do número pitagórico; cf. Rep., 546c/d, onde se diz que os governantes são ignorantes desses assuntos. (Cf. também a observação, Repúb. 543d/544a, de acordo com a qual o estado melhor do livro VIII pode ser ainda ultrapassado, a saber, como diz Adam, pela cidade dos livros V-VII — a cidade ideal celeste).
Em seu livro, Plato’s Cosmology, pág. 6 segs., Cornford reconstrói os traços e conteúdo da trilogia inacabada de Platão, Timeu — Crítias — Hermocrates, e mostra como eles se relacionam com as partes históricas das Leis (livro III). Creio que essa reconstrução é uma cor- roboração valiosa de minha teoria de que a concepção platônica do mundo era fundamentalmente histórica e de que o interesse de Platão em “como ele fora gerado” (e como ele decaía) se ligava à sua teoria das Ideias, e na verdade se baseava nela. Mas, se assim é, então não há razão para supormos que os últimos livros da República “ partiam da questão de como (a cidade) podia ser realizada no futuro e esboçavam seu possível declínio através de formas inferiores de política” (Cornford, ob. cit., 6; meus são os grifos) ; em vez disso, deveríamos considerar os livros VIII e IX da República, em vista de seu estreito paralelismo com o livro III das Leis, como um simplificado esboço histórico do. declínio efetivo da cidade ideal do passado, e como um explicação da origem dos estados existentes, análoga à tarefa maior que Platão se propôs no Timeu, na trilogia inacabada e nas Leis.
(2) Em relação à minha observação, mais adiante neste parágrafo, de que Platão “certamente sabia que não possuía os dados necessários”, ver, p. ex., Leis, 683d, e a nota de England a 683d2.
(3) À minha observação, mais adiante neste parágrafo, de que Platão considerava as sociedades de Creta e Esparta como formas petrificadas ou detidas (e à observação do parágrafo seguinte de que o estado melhor de Platão não só era um estado de classe, mas um estado de castas) podem ser acrescentadas as observações seguintes. (Cf. também nota 20 a este capítulo e 24 ao capítulo 10):
Nas Leis, 797d (na introdução ao “importante pronunciamento”, como diz England, citado no texto que tem a nota 3 deste capítulo) Platão torna perfeitamente claro que seus interlocutores cretenses e espartanos estão conscientes do caráter “detido” de suas instituições sociais; Clênias, o interlocutor cretense, acentua estar ansioso por ouvir qualquer defesa do caráter arcaico de um estado. Pouco mais adiante (799a) e no mesmo contexto, direta referência se faz ao método egípcio de deter o desenvolvimento das instituições; certamente, indicação clara de que Platão reconhecia uma tendência em Creta e Esparta semelhante à do Egito, isto é, para deter toda mudança social.
Neste contexto, uma passagem do Timeu, (esp. ver 24a-b) parece importante. Nesse trecho, Platão tenta mostrar: a) que uma divisão de classe muito semelhante à da República foi estabelecida em Atenas em período muito antigo de seu desenvolvimento pré-histórico; e, b) que essas instituições eram estreitamente aparentadas ao sistema de castas do Egito (cujas instituições de casta detidas ele supõe derivadas de seu antigo estado ateniense). Assim, o próprio Platão implicitamente reconhece que o estado ideal, antigo e perfeito, da República, é um estado de castas. É interessante que Crantor, primeiro comentarista do Timeu, relate, apenas duas gerações depois de Platão, que este fora acusado de abandonar a tradição ateniense, tornando-se discípulo dos Egípcios. (Cf. Gomperz, Greek Thinkers, ed. germ., II, 476). Crantor alude talvez ao Busiris, 8, de Isócrates, citado na nota 3 ao cap. 13.
Para o problema das castas na República, ver ainda notas 31 e 32 (l,d) a este capítulo, nota 40 ao cap. 6.e notas 11-14 ao cap. 8. A. E. Taylor, em Plalo: the Man and His Work, pág. 269 seg., vigorosamente denuncia a opinião de que Platão favorecia um estado de casta.
28 — Cf. Rep., 416a. O problema é considerado mais amplamente neste capítulo, texto de nota 35. (Para o problema de casta, mencionado no próximo parágrafo, ver notas 27 (3) e 31 a este capítulo).
29 — Para o conselho de Platão contra a inclinação a legislar para o vulgo com suas “originárias disputas mesquinhas”, etc., ver Rep., 425b-427a/b; esp. 425d-e e 427a. Esses trechos, sem dúvida, atacam a democracia ateniense (e toda a legislação “gradual” no sentido do cap. 9).
Que assim é também se vê em Cornford, The Republic of Plato (1941), porque ele escreve, numa nota a um trecho em que Platão recomenda a mecânica utópica (é Rep., 500d sg., a recomendação da “ limpeza da tela” e de um radicalismo romântico; cf. nota 12 ao cap. 9 e texto) : “ contrasta o remendo gradual com a reforma satirizada em 425e…” “Parece que Cornford não gosta de reformas graduais e prefere os métodos de Platão; mas a sua interpretação das intenções de Platão e a minha parecem coincidir.
As quatro citações mais adiante nesta passagem são da República, 371d/e, 463a-b (“sustentadores” e “empregadores”), 549a e 417b/c. Adam comenta (ob. cit. vol. I, 97, nota a 371e32) : “Platão não admite o trabalho escravo em sua cidade, a menos que talvez na pessoa de bárbaros”. Concordo em que Platão se oponha, na Rep., 469b-c, à escravização de Gregos prisioneiros de guerra; mas ele prossegue (em 471b-c) a encorajar a escravização dos bárbaros pelos Gregos, e especialmente por seus cidadãos dá cidade melhor. (Esta parece ser também a opinião de Tam; cf. nota 13 (2) a cap. 15). E Platão atacou violentamente o movimento ateniense contra a escravidão, insistindo nos direitos legais da propriedade, quando essa propriedade era um escravo (cf. texto de notas 17 e 18 deste cap). Como é também mostrado pela terceira citação (Rep. 548e/549a) no parágrafo a que é feita esta nota, ele não aboliu a escravatura na sua cidade melhor. (Ver também Rep. 590c/d, onde ele defende a proposta de que os rudes e vulgares sejam escravos dos homens melhores.) A. E. Taylor está, portanto, errado quando assevera por duas vezes (em seu Platão, 1908 e 1914, p. 197 e 118) que Platão implica ” não haver classe de escravos na comunidade”. Para opiniões semelhantes no Plato: the Man and His Work de Taylor (1926) cf. fim da nota 27 a este capítulo.
Creio que o tratamento dado por Platão à escravatura no Estadista lança muita luz sobre sua atitude na República. É que ali, também, ele não fala muito acerca de escravos, embora claramente admita que haja escravos em seu estado. (Ver sua observação característica, 289b/c, de que “ toda propriedade sobre animais domésticos, exceto escravos” já foi tratada; e uma observação igualmente característica, em 309a, de que “ a verdadeira realeza faz escravos daqueles que chafurdam na ignorância e na humildade abjeta”). A razão pela qual Platão, não se espraia acerca da escravidão está perfeitamente clara em 298c e segs., especialmente em 289d-e. Platão não faz distinção fundamental entre os “escravos e outros servos”, tais como os artesãos, camponeses e mercadores (isto é, todos os “banáusicos”, que trabalham; confronte-se a nota 4 ao cap. 11) ; os escravos se diferenciam dos outros só por serem “servos adquiridos por compra”. Em outras palavras, tão distante ele se acha, tão acima dos de nascimento humilde, que pràticamente não vê por que preocupar-se com essas diferenças sutis. Tudo isto é muito semelhante à República, apenas um pouco mais explicito. (Ver também nota 52 (2) ao cap. 8).
Para o tratamento que Platão dá à escravatura nas Leis, ver especialmente G. H. Morrow, “Platão e a Escravatura Grega” (Mind, N. S., vol. 48, 186-201; ver ainda pág. 402) ; este artigo oferece excelente e crítico exame do assunto e chega a uma conclusão muito justa, embora o autor, em minha opinião, seja um pouco parcial ainda em favor de Platão (O artigo não acentua talvez suficientemente o fato de que, no tempo de Platão, desenvolvia-se bem um movimento anti-escravagista; cf. nota 13 ao cap. 5).
30 — A citação é do sumário que Platão faz da República no Timeu, (18c/d). Com a observação concernente à falta de novidade da sugerida comunidade de mulheres e crianças, compare-se a edição de Adam da República de Platão, vol. I, pág. 292 (nota a 457b segs.) e pág. 308 (nota a 463cl7), assim como págs. 345-55, esp. 354; para o elemento pitagóricp do comunismo de Platão, cf. ob. cit., pág. 199, nota a 416d22. (Para os metais preciosos, ver nota 24 ao cap. 10. Para as refeições em comum, ver nota 34 ao cap. 6; e para o princípio comunista, em Platão e seus sucessores, nota 29 (2) ao cap. 5 e os trechos ali mencionados).
31 — O texto citado é da Rep., 434b/c. Exigindo um estado de casta, Platão hesita prolongadamente. E isto fora do extenso prefácio à passagem em questão (analisando no cap. 6; cf. notas 24 e 40 a esse capítulo) ; com efeito, quando, pela primeira vez, se refere ele a esses assuntos, em 415a e segs., fala como se fosse possível a ascensão das camadas inferiores às superiores, sempre que nas classes baixas “os filhos nasçam com mescla de ouro e prata” (415c), isto é, com o sangue e a virtude de uma classe superior. Mas em 434b/d e ainda mais explicitamente em 547a é desprezada esta possibilidade, declarando-se impura, e mesmo fatal para o estado, qualquer mescla de metais. Ver também o texto de notas 11-14 ao cap. 8 (e nota 27 (3) a este capítulo).
32 — Cf. Estadista, 271e. Os textos das Leis acerca dos primitivos pastores nômades e seus patriarcas são de 677e-680e. A passagem citada é Leis, 680e. A citada a seguir é do Mito do Terrígeno, Rep., 415d/e. A citação que conclui o parágrafo é de Rep., 440d. — Pode ser necessário aduzir alguns comentários a certas observações do parágrafo a que é feita esta nota.
(1) Expõe-se no texto que não ficou muito claramente explicado, como se efetuou o “estabelecimento”. Tanto nas Leis como na República ouvimos primeiro (ver a e c, mais abaixo) de uma espécie de acordo ou contrato social (para este último, cf. nota 29 ao cap. 5 e notas 43 a 54 do cap. 6 e texto) e logo a seguir (ver b e c, mais abaixo) de uma sujeição pela força.
(a) Nas Leis, as diversas tribos de pastores montanheses se estabelecem nas planícies depois de se haverem unido para formar grupos guerreiros mais numerosos, cujas leis se estabelecem por um acordo ou. contrato levado a cabo por árbitros investidos de faculdades soberanas (681b e c/d; quanto à origem das leis descrita em 681b, cf. nota 17 (2) ao cap. 3).
Mas então Platão torna-se evasivo. Em vez de descrever como esses bandos se estabeleceram na Grécia e como as cidades gregas foram fundadas, desvia-se para a história homérica da fundação de Tróia e para a guerra troiana. Dali, diz Platão, os Aqueus retomaram sob o nome de Dórios e “ o resto da narrativa… faz parte da história lacedemônia (682e), pois chegamos ao estabelecimento da Lacedemônia (682e-683a). Até aqui, nada ouvimos sobre o modo por que se deu esse estabelecimento e a isto logo se segue nova digressão (o próprio- Platão reconhece “o caminho de rodeio do argumento”) até que por fim chegamos (683c/d) à “sugestão” mencionada no texto; ver b.
(b) A afirmação do texto de que chegamos a uma sugestão de haver sido de facto o “ estabelecimento” dório no Peloponeso uma subjugação violenta refere-se a Leis (683c/d), onde Platão introduz efetivamente suas primeiras observações históricas sobre Esparta. Diz ele- que começa num tempo em que todo o Peloponeso estava “ praticamente- subjugado” pelos Dórios. No Menexeno — cuja autenticidade dificilmente pode ser posta em dúvida (cf. nota 35 ao cap. 10) — encontra-se, em 245c, uma alusão ao facto de que os habitantes do Peloponeso eram “imigrantes vindos de fora” (como diz Grote; cf. seu Platão, IIIr pág. 5).
(c) Na República (369b) a cidade é fundada pelos artesãos, com a mente posta nas vantagens da divisão do trabalho e da cooperação, de conformidade com a teoria contratual.
(d) Mais adiante, porém, (Rep. 415d/e; ver no texto a citação deste trecho) é-nos dada uma descrição da invasão triunfal da classe guerreira, de origem algo misteriosa, a saber, os terrígenos. A passagem decisiva desta descrição afirma que os terrígenos devem olhar em torno, em busca do lugar mais adequado para estabelecer-se, para (literalmente) “subjugar os de dentro”, isto é, os que vivem na cidade, os seus habitantes.
(e) No Estadista (271a segs.) esses “terrígenos” são identificados com os primitivos pastores nômades das montanhas correspondentes ao período anterior ao estabelecimento. Cf. também a alusão às cigarras autóctones do Banquete e 191b; cf. a nota 6 (4) ao cap. 3 e 11 (2) ao cap. 8.
Em resumo, parece que Platão teve uma ideia perfeitamente clara da conquista dória, que, por motivos óbvios, preferiu envolver em mistério. Também parece existir uma tradição de que as hordas guerreiras conquistadoras eram de origem nômade.
(2) Quanto à observação feita mais adiante neste parágrafo sobre a “ contínua insistência” de Platão ao facto de que governar é pastorear, cf., p. ex., os seguintes trechos: Rep., 343b, onde se expõe pela primeira vez a ideia; 345c e. segs., onde, sob a forma do símile do bom pastor, é ele convertido em um dos tópicos centrais da investigação; 375a-376b, 404a, 440d, 451b-e, 459a-460c e 466c-d (citado na nota 30 ao cap. 5), onde os auxiliares são equiparados aos cães de guarda e se analisa, em consequência, a forma mais adequada para sua criação e educação; 416a e segs., onde se suscita o problema dos lobos de fora e de dentro do estado; cf. mais o Estadista, onde a ideia é continuada por muitas páginas, esp. 261d a 2664 Quanto às Leis, posso referir-me à passagem (694e) em que Platão diz que Ciro havia conquistado para seus filhos “gado e ovelhas e muitos rebanhos de homens e outros animais” (Cf. também Leis, 735, e Teet., 174d).
(3) Com tudo isto, cf. também. A. J. Toynbee, A Study of History, esp. vol. III, p. 32, n. 1, onde se cita a obra The Government of Ottoman Empire, de A. H. Lybyer, 33 (n. 2) 50-100; ver, especialmente, sua observação acerca dos conquistadores nômades (pág. 2) que “tratam… com homens” e dos “ cães de guarda humanos” de Platão (pág. 94, n. 2). Tenho sido muito estimulado pelas brilhantes ideias de Toynbee e muito encorajado por numerosas de suas observações que tomo como ratificadoras de minhas interpretações e que avalio tanto mais altamente quanto mais parecem discordar das de Toynbee as minhas concepções fundamentais. Também devo a Toynbee numerosos termos usados em meu texto, especialmente “ gado humano”, “ rebanho humano” e “ cães de guarda humanos”.
O Study of History de Toynbee é, do meu ponto de vista, um modelo daquilo que chamo historicismo; não necessito dizer muito mais para expressar meu desacordo fundamental com ele; e diversos pontos especiais de divergência serão discutidos em várias partes (cf. as notas 43 e 45 (2) a este capítulo, as 7 e 8 ao cap. 10 e o cap. 24; ver também minha critica de Toynbee no cap. 24 e em A Pobreza do Historicismo, Econômica, N. S., vol. XII, 1945, pág. 70 e segs.). Isto não impede, porém, que seu conteúdo seja rico de ideias interessantes e vitais. Com relação a Platão, Toynbee acentua certo número de pontos em que o acompanho, especialmente o de que o estado melhor de Platão é inspirado por suas experiências de revoluções sociais e por seu desejo de deter toda mudança, sendo uma espécie de Esparta paralisada (que já em si era paralisada). A despeito desses pontos de concordância, há sempre na interpretação de Platão uma discordância fundamental entre as opiniões de Toynbee e as que tenho. Toynbee considera o estado melhor de Platão como uma Utopia típica (reacionária), enquanto eu lhe interpreto a maior parte, em conexão com o que considero a teoria geral da mudança de Platão, como uma tentativa para reconstruir uma forma primitiva de sociedade. Também não penso que Toynbee concorde com a minha interpretação do relato platônico sobre o período anterior ac. estabelecimento e sobre o próprio estabelecimento, resumida nesta nota e no texto, pois Toynbee declara (ob. dt., vol. III, 80) que “ a sociedade espartana não era de origem nômade”. Salienta ele enfaticamente (ob. cit. III, 50 e segs.) o caráter peculiar da sociedade espartana, que, segundo diz, se viu detida em seu desenvolvimento devido a um esforço sobre-humano para subjugar o “gado humano”. Mas, acho que esta ênfase sobre a situação peculiar de Esparta toma difícil compreender as similitudes entre as instituições de Esparta e Creta, que a Platão pareçam tão impressionantes (Rep., 554c, Leis, 683a). Estas, a meu ver, só se podem explicar como formas detidas de instituições tribais muito antigas e consideravelmente anteriores, provavelmente, à luta dos espartanos na segunda guerra Messeniana (por volta de 650 a 620 A. C, cf. Toynbee, ob. cit., III, 53). Embora as condições de sobrevivência dessas instituições fossem tão diferentes em ambas as localidades, sua similitude constitui sólido argumento em favor de seu caráter primitivo e contra, consequentemente, toda explicação baseada num fator que só afete uma delas.
Para os problemas do estabelecimento dórico, ver também Caucásia, de R. Eisler, vol. V, 1028, esp. pág. 113, nota 84, onde a palavra “ helenos” é traduzida por “ colonos” e a palavra “ gregos” por “pastores”, isto é, criadores de gado, ou nômades. O mesmo autor demonstrou (Orphisch-Dionisische Mysteriengedanken, 1925, pág. 58, nota 8) que a ideia do deus pastor é de origem órfica. No mesmo local, os cães ovelheiros de Deus (Domini Canes) são mencionados.
33 — O facto de ser a educação, no estado de Platão, uma prerrogativa de classe, não tem sido devidamente considerado por alguns educadores entusiásticos que creditam a Platão a ideia de tornar a educação independente de meios financeiros; não vêem que o mal está na prerrogativa de classe como tal e que é relativamente sem importância ser essa prerrogativa baseada na posse de dinheiro ou em outro critério pelo qual se determine o ingresso na classe dirigente. Cf. notas 12 e 13 ao cap. 7 e texto. Com referência ao porte de armas, ver também Leis, 753b.
34 — Cf. Rep., 460c. (Ver também nota 31 a este capítulo). Com relação à recomendação de infanticídio feita por Platão, ver Adam, ob. cit., vol. I, pág. 299, nota a 460cl8 e págs. 357 segs. Embora Adam com razão insista em que Platão era favorável ao infanticídio e embora repila como “despropositada” qualquer tentativa de “absolver Platão por sancionar” tão terrível prática, tenta desculpá-lo assinalando que “tal hábito era amplamente vigente em toda a Grécia antiga”. Entretanto, isto não sucedia em Atenas. E mais uma vez vemos que Platão prefere sempre o antigo barbarismo e racismo espartano, à esclarecida Atenas de Péricles, e por essa escolha ele deve ser responsabilizado. Para uma hipótese explicando a prática espartana ver a nota 7 ao cap. 10 e texto; ver também as referências relacionadas que se dão ali.
As últimas citações deste parágrafo que defendem a aplicação dos princípios da criação de animais ao homem são da República, 459b (cf. nota 39 ao cap. 8, e texto); as referentes à analogia entre cães e guerreiros, etc., também são da Rep.: 404a, 375a, 376a/b e 376b. Ver também a nota 40 (2) ao cap. 5 e a que se segue.
35 — As duas citações que prendem a chamada à nota são da Rep., 375b. A que se segue imediatamente é de 416a (cf. nota 28 a este capítulo) ; as restantes são de 375c-e. O problema da mescla de “naturezas” opostas (ou ainda Formas, cf. notas 18 a 20 e 40 (2) ao cap. 5 e texto, e a nota 39 ao cap. 8) constitui um dos tópicos favoritos de Platão (No Estadista, 283e segs. e mais tarde em Aristóteles, converter-se na doutrina do justo meio).
36 — As citações são de Rep., 410c, 410d, 410e, 411e/412a e 412d.
37 — Nas Leis (680b segs.) o próprio Platão trata Creta com certa ironia em vista de uma bárbara ignorância da literatura. Esta ignorância inclui mesmo Homero, a quem o interlocutor cretense declara não conhecer, aduzindo: “ Os poetas estrangeiros não são muito lidos em Creta”. (“Mas, em Esparta, sim”, replica o interlocutor espartano). Quanto à preferência de Platão pelos costumes espartanos ver também nota 34 ao cap. 6 e o texto de nota 30 deste capítulo.
38 — Para a opinião de Platão acerca do tratamento que Esparta dava ao gado humano, ver nota 29 a este capítulo, Rep., 548e/549a, onde o timocrata é comparado a Glaucon, irmão de Platão: “Deveria ser mais duro (do que Glaucon) e menos musical”; a continuação desta passagem foi citada no trecho da nota 29. Tucidides informa (IV,80) sobre a traiçoeira matança de 2.000 ilotas, os melhores dos quais haviam sido escolhidos para a morte mediante uma promessa de liberdade. Não há dúvida, assim, de que Platão conhecia perfeitamente Tucídides e podemos ter a certeza de que tinha, em acréscimo, fontes mais diretas de informação.
39 — Considerando a tendência decididamente anti-ateniense e portanto anti-literária da República, é um pouco difícil explicar por que razão tantos educadores têm tão grande entusiasmo pelas teorias educacionais platônicas. Só posso ver três explicações plausíveis. Ou não entendem a República, apesar de sua mais que aberta hostilidade para com a educação literária então existente em Atenas; ou se sentem simplesmente lisonjeados pela ênfase retórica que Platão dá ao poder político da educação, como ocorre a muitos filósofos e mesmo a alguns músicos (ver texto de nota 41); ou uma coisa e outra.
É também difícil explicar por que amantes da arte e da literatura gregas podem encontrar encorajamento em Platão, que, especialmente no livro X da República, lança o mais violento ataque contra todos os poetas e trágicos e especialmente contra Homero (e mesmo Hesíodo). Ver Rep., 600a, onde Homero é colocado abaixo do nível de um bom técnico ou mecânico (que seria geralmente desprezado por Platão como banáusico e depravado; cf. Rep., 495e e 590c e nota 4 ao cap. 11) ; Rep., 600c, onde Homero é posto abaixo do nível dos sofistas Protagoras e Prodico; (Ver também Gomperz, Greek Thinkers, ed. al., II, 401) e Rep., 605a/b, onde os poetas são rudemente proibidos de ter ingresso em qualquer cidade bem governada.
Estas claras expressões da atitude de Platão, entretanto, são passadas por alto pelos comentaristas, que preferem insistir, pelo contrário, em observações tais como as feitas por Platão ao preparar seu ataque a Homero (“… embora o amor e admiração por Homero dificilmente me permitam expressar o que tenho a dizer”; Rep., 595b). Adam comenta-o (nota a 595M1) dizendo que “Platão fala com verdadeiro sentimento”; a meu ver, porém, a observação de Platão nada mais faz do que ilustrar um método amplamente usado na República, a saber, o de fazer alguma concessão aos sentimentos dos leitores (cf. cap. 10, esp. texto de nota 65) antes de lançar o ataque contra as ideias humanitárias.
40 — Quanto à rígida censura visada pela disciplina de classe, ver Rep., 377e segs. e esp. 378c: “ Aqueles que serão os guardiães de nossa cidade deverão como o mais pernicioso crime a facilidade em disputar uns com os outros”. É interessante notar que Platão não formula este princípio político imediatamente, ao introduzir sua teoria da censura em 376e segs., mas a princípio só fala da verdade, da beleza, etc. A censura se torna, logo, ainda mais rigorosa em 595a e segs. especialmente 605a/b (ver a nota precedente e notas 18 a 22 ao cap. 7 e texto). Quanto ao papel da censura nas Leis, ver 801c/d. Cf. também nota seguinte.
Sobre o esquecimento de Platão de seu princípio {Rep., 410c-412b; ver nota 36 a este capítulo) de que a música tem por objeto o fortalecimento do elemento bondoso do homem para compensar sua rudeza, ver especialmente 399a segs., onde se exigir aqueles tipos de música que não tornem os homens brandos e que sejam “aptos para os guerreiros”. Cf. também a nota seguinte (2). — Deve-se tornar claro que Platão não “esqueceu” um princípio previamente anunciado, mas apenas aquele princípio a que sua discussão ia conduzir.
41 — Ver abaixo:
(1) Quanto à atitude de Platão para com a música, em especial a música propriamente dita, ver, por ex., Rep. 397b segs., 398e segs., 400a segs., 410b, 424b segs., 546b. Leis, 657e segs., 673a, 700b segs., 798d segs., 801d segs., 802b segs. e 816c. Sua atitude é fundamentalmente a de que se deve “ ficar prevenido contra mudanças para novas formas de música; isso põe tudo em perigo” porque “qualquer mudança no estilo da música sempre leva a uma mudança nas mais importantes instituições de todo o estado. Assim diz Damon e eu creio nele.” {Rep. 424c) Platão, como de hábito, segue o exemplo espartano. Adam (ob. cit, vol. I, pág. 216, nota a 424c20; os grifos são meus; cf. também suas referências) diz que “a relação entre as mudanças políticas e as musicais era universalmente reconhecida na Grécia e especialmente em Esparta, onde Timóteo teve sua lira confiscada por lhe haver acrescentado quatro cordas”. Não pode haver dúvida de que o procedimento de Esparta inspirou Platão; aquele reconhecimento universal, de toda a Grécia e especialmente da Atenas de Péricles, é muitíssimo improvável. Cf. (2) desta nota.
(2) No texto, chamei supersticiosa e retrógrada a atitude de Platão para com a música (cf. esp. Rep. 398e segs.), quando comparada à “mais esclarecida crítica contemporânea”. A crítica que tenho em mente é a de um autor anônimo, provavelmente um músico do século V (ou princípios do IV) e se encontra numa alocução (possivelmente uma oração olímpica) conhecida hoje como XIII fragmento dos papiros de Hibeh, 1906, p. 45 sgs., de Grenfell e Hunt. Parece possível que o autor seja um dos “vários músicos que criticam Sócrates” (quer dizer, o “ Sócrates” da República) mencionados por Aristóteles (na passagem igualmente supersticiosa de sua Política, 1342b, em que repete a maioria dos argumentos de Platão) ; mas a crítica do autor anônimo vai muito mais além do que Aristóteles indica. Platão (e também Aristóteles) cria que certas formas musicais, por exemplo, as formas “brandas” jônica e lidia, tornavam as pessoas moles e efeminadas, ao passo que outras, especialmente as dóricas, lhes davam bravura. Esta opinião é atacada pelo autor anônimo. “Dizem — escreve ele — que algumas formas produzem homens equilibrados; outras, justos; outras, heróis; outras covardes”. Brilhantemente põe a nu a tolice dessa opinião, mostrando que algumas das mais guerreiras tribos gregas usam formas de música consideradas como produtoras de covardes, ao passo que certos cantores profissionais (ópera) que habitualmente cantam de forma “heroica”, nunca mostram quaisquer indícios de se tornarem heróis. Essa crítica poderia ter sido dirigida contra o músico ateniense Damon, muitas vezes citado por Platão como uma autoridade, amigo de Péricles (que era bastante liberal para tolerar uma atitude pró-espartana no campo da crítica artística). Mas poderia também ter sido facilmente dirigida contra o próprio Platão. -— Quanto a Damon, ver Diels 5; para uma hipótese relativa ao autor anônimo ver ibid., vol. II, p. 334, nota.
(3) Em vista do facto de estar eu a atacar uma atitude “reacionária” para com a música, posso talvez observar que meu ataque de modo algum é inspirado por uma simpatia pessoal pelo “progresso” em música. Na realidade, acontece que gosto da velha música (quanto mais velha, melhor) e profundamente aborreço a música moderna (especialmente a maioria das obras escritas desde o dia em que Wagner começou a escrever música). Sou inteiramente contrário ao “futurismo”, no campo da arte como no da moral. (Cf. cap. 22 e nota 19 ao cap. 25). Mas também sou contrário a impor aos outros as predileções ou gostos de alguém e contra a censura em tais assuntos. Podemos amar é odiar, especialmente em arte, sem advogar medidas legais para suprimir o que odiamos ou para canonizar o que amamos.
42 — Cf. Rep., 537a e 466e-467e. A caracterização da moderna educação totalitária é devida a A. Kolnai, 77I, War against the West (1938) p. 318.
43 — A notável teoria de Platão de que o estado, isto é, o poder centralizado e organizado, se origina através de uma conquista (a subjugação de uma população sedentária agrícola por nômades ou caçadores) foi, tanto quanto sei, primeiramente redescoberta (se pusermos de parte algumas observações de Maquiavel) por Hume em sua crítica da versão histórica da teoria do contrato (cf. seus Essays: Moral, Political, and Literary, vol. II, 1752, Ensaio XII, Of the Original Contract: — “ Quase todos os governos — escreve Hume — que presentemente existem, ou de que resta algum registro na história, foram originalmente fundados ou pela usurpação, ou pela conquista, ou por ambas..E mostra ele que, para “um homem astuto e audacioso… é muitas vezes fácil… empregando ora a violência, ora falsos pretextos, estabelecer seu domínio sobre um povo cem vezes mais numeroso do que os partidários desse homem… Por artes tais como estas muitos governos foram estabelecidos; e este é todo o contrato original de que eles se podem vangloriar”. A teoria foi a seguir revivida por Renan em “Que é uma Nação?” (1882) e por Nietzsche em sua Genealogia da Moral (1887) ; ver a terceira edição alemã de 1894, p. 98. O último escreve sobre a origem do estado (sem referência a Hume) : “Alguma horda de bestas louras, uma raça senhorial conquistadora, com uma organização guerreira… lança suas patas aterradoras, pesadamente, sobre uma população que lhe é, talvez, imensamente superior — em número… Este é o modo por que o “estado” se originou na terra; pensou que o sentimentalismo que o faz originar-se de um “contrato” está morto”. Essa teoria atrai a Nietzsche, porque ele gosta das “bestas louras”. Mas foi também formulada mais recentemente por F. Oppenheimer (The States, trad. Gitterman, 1914, p. 68), por um marxista, K. Kautsky (em seu livro sobre a Interpretação Materialista da História) e por W. C. Macleod (The Origin and History of Politics, 1931). Acho muito provável que alguma coisa do tipo descrito por Platão, Hume e Nietzsche tenha ocorrido em muitos casos, se não em todos. Estou falando apenas a respeito de “estados” no sentido de poder político organizado e mesmo centralizado.
Posso mencionar que Toynbee tem uma teoria muito diferente. Mas, antes de discuti-la, desejo primeiro tornar claro que, do ponto de vista anti-historicista, a questão não é muito importante. Talvez seja interessante, em si, considerar como se originaram os “estados”, mas isso não tem qualquer relação com a sociologia dos estados, tal como a entendo, isto é, com a tecnologia política (ver capítulos 3, 9 e 25).
A teoria de Toynbee não se limita aos “estados” no sentido de poder político organizado e centralizado. Discute ele, antes, a “origem das civilizações”. Mas aqui começa a dificuldade, pois, em parte, o que ele chama “civilizações” são “estados” (tal como aqui descritos) e em parte são sociedades tais como a dos esquimós, que não são estados; e se é duvidoso que os estados se originem de acordo com um só conjunto de normas, mais duvidoso ainda será ao considerarmos uma classe de fenômenos sociais tão diversos como os primitivos estados egípcios e mesopotâmicos, com suas instituições, de um lado, e o modo de vida dos esquimós, do outro.
Mas podemos concentrar-nos na descrição que Toynbee faz (A Study of History, vol. I, 305 sgs.) da origem das “civilizações” egípcia e mesopotâmica. Sua teoria é a de que o desafio de um meio hostil como a selva suscita uma resposta de líderes hábeis e empreendedores; eles levam seus seguidores para os vales onde começam a cultivar a terra, e fundam estados. Esta teoria (hegeliana e bergsoniana) do gênio criador como um líder político e cultural parece-me muito romântica. Se tomarmos o Egito, por exemplo, deveremos buscar, antes de tudo, a origem do sistema de castas. O mais provável, a meu ver, é que ele derive das conquistas, tal como na Índia, onde cada onda de conquistadores impôs uma nova casta entre as já existentes. Mas também há outros argumentos. O próprio Toynbee defende uma teoria provavelmente correta, a saber, a de que a criação de animais e, em particular, sua domesticação, constitui uma etapa evolutiva superior, mais avançada e mais complexa do que a simples agricultura, e que este passo para a frente corresponde aos nômades da estepe. Mas no Egito encontramos tanto a agricultura como a criação de animais e o mesmo se pode dizer da maioria dos “estados” primitivos (embora não de todos os americanos, creio eu). Isto me parece ser um sinal de que esses estados têm um elemento nômade; e parece apenas natural aventurar a hipótese de que esse elemento é devido a invasores nômades que impuseram seu regime, um sistema de casta, a original população agrícola. Esta teoria está em desacordo com a afirmação de Toynbee (ob. cit. III, 23 sgs.) de que os estados de origem nômade em geral desaparecem rapidamente. Mas o facto de que muitos dos primitivos estados de casta se dedicaram a criar animais tem de ser explicado de algum modo.
A ideia de que nômades ou mesmo caçadores constituíram a classe superior original é corroborada pelas antigas e ainda sobreviventes tradições das classes altas segundo as quais a guerra, a caça e os cavalos são os símbolos das classes ociosas; tradição que formou a base da ética e da política de Aristóteles e que ainda se mantém viva, como o demonstraram Veblen (The Theory of the Leisure Class) e Toynbee; e a esta prova talvez possamos acrescentar a crença do criador de animais no racismo e, em particular, na superioridade racial da classe mais elevada. Para Toynbee, esta última crença, tão forte nos estados de casta e em Platão e Aristóteles, é “ um dos pecados… de nossa… era moderna” e “algo alheio ao gênio helênico” (ob. cit, III, 93). Mas embora muitos gregos possam ter-se desenvolvido além do racismo, parece provável que as teorias de Platão e Aristóteles se tenham baseado em antigas tradições, especialmente em vista do facto de terem desempenhado tal papel em Esparta as ideias raciais.
44 — Cf. Leis, 694a-698a.
45 — Ver abaixo:
(1) A Decadência do Ocidente, de Spengler, não é, a meu ver, obra que se leve a sério. Mas é um sintoma; é a teoria de alguém que acredita numa classe superior que está enfrentando a derrota. Como Platão, Spengler tenta mostrar que “o mundo” deve ser culpado, por sua lei geral de declínio e morte. E, como Platão, ele reclama (na sua sequência, Prussianismo e Socialismo) uma nova ordem, um experimento desesperado para conter as forças da história, uma regeneração da classe dominante prussiana mediante a adoção de um “socialismo” ou comunismo e da abstinência econômica. — Quanto a Spengler, concordo amplamente com L. Nelson, que publicou sua crítica sob extenso e irônico título, cujo começo poder-se-ia traduzir assim: “Bruxaria: uma Iniciação nos Segredos da Arte de Predizer a Sorte, de Oswald Spengler, e a Mais Evidente Prova da Verdade Irrefutável de Suas Adivinhações” etc. A meu ver, esta é uma descrição justa do pensamento de Spengler. Cabe acrescentar que Nelson foi um dos primeiros a opor-se ao que chamamos historicismo (acompanhando neste caso Kant, em sua critica de Herder; cf. cap. 12, nota 56).
(2) Minha asserção de que a Decadência e Queda de Spengler não é a última entende-se especialmente como uma alusão a Toynbee. A obra de Toynbee é tão superior à de Spengler que hesito em mencioná-la no mesmo contexto; mas a superioridade é devida principalmente á riqueza de ideias de Toynbee e a seu conhecimento superior (que se manifesta no facto de que ele não se ocupa, como Spengler quer fazer, de tudo quanto existe sob o sol, ao mesmo tempo). Entretanto, o objetivo e o método de sua investigação são semelhantes; ambos, com efeito, são decididamente historicistas. (Cf. a crítica formulada em minha obra A Pobreza do Historicismo, Econômica, N. S., vol. XII, p. 70 sgs.). E, fundamentalmente, são hegelianos (embora eu não creia que Toynbee se dê conta disso). Seu “critério do crescimento das civilizações” que é o “progresso para a auto-determinação” claramente o demonstra, pois a lei hegeliana do progresso para a “autoconsciência” e “liberdade” pode ser reconhecida aí com demasiada facilidade. O hegelianismo de Toynbee parece, de algum modo, vir através de Bradley, como se pode ver, por exemplo, de suas observações acerca das relações, ob. cit, III, 223: “o próprio conceito de “relações” entre “coisas” ou “seres” envolve” uma “contradição lógica… Como haveremos de transcender essa contradição?” (Não podemos efetuar aqui uma análise do problema das relações. Mas posso afirmar dogmaticamente que todos os problemas referentes a relações podem ser reduzidos, mediante certos métodos simples, da lógica moderna, a problemas referentes às propriedades, ou classes; em outras palavras, não existe qualquer dificuldade filosófica peculiar com respeito às relações. Devemos o método mencionado a N. Wiener e K. Kuratowski: ver Quine, A System of Logistic, 1934, p. 16 e sgs.). Ora, não creio que classificar uma obra dentro de certa escola equivalha a menosprezá-la; mas, no caso do historicismo hegeliano, acho que é, por motivos que são discutidos na segunda parte deste livro.
Com referência ao historicismo de Toynbee, desejo tornar especialmente claro que duvido muito, na verdade, de que civilizações nasçam, cresçam, desmoronem e morram. Sou obrigado a acentuar este ponto porque eu mesmo uso alguns dos termos utilizados por Toynbee, onde falo da “derrocada” e da “detenção” de sociedades. Mas desejo esclarecer que meu termo “derrocada” não se refere a todas as espécies de civilização, mas a uma espécie particular de fenômeno — ao sentimento de confuso espanto ligado à dissolução da “sociedade fechada” mágica ou tribal. Em consequência, não creio, como Toynbee crê, que a sociedade grega experimentou sua “derrocada” no período da guerra do Peloponeso; e acho os sintomas da derrocada que Toynbee descreve muito mais cedo. (Cf. com isto as notas 6 e 8 ao cap. 10 e texto). Relativamente a sociedades “detidas”, só aplico este termo ou a uma sociedade que se aferra a suas formas mágicas fechando-se em si mesma, à força, contra a influência de uma sociedade aberta, ou a uma sociedade que tente retornar à jaula tribal.
Também não penso que nossa civilização ocidental seja apenas um membro uma espécie. Acho que há muitas sociedades fechadas que podem sofrer todas as espécies de destinos; mas uma “sociedade aberta”, suponho, apenas terá de prosseguir, ou ser detida e levada à força para a jaula, isto é, para as bestas (cf. também cap. 10, esp. a última nota).
(3) Relativamente às histórias de Declínio e Queda, posso mencionar que quase todas elas se acham sob a influência da observação de Heráclito: “Enchem as barrigas como as bestas”, e da teoria de Platão sobre os baixos instintos animais. Quero dizer que todas elas tentam mostrar que o declínio é devido á uma adoção (por parte da classe governante) daqueles padrões “ inferiores” que são considerados naturais às classes trabalhadoras. Em outras palavras, e colocando a questão crua mas francamente, a teoria é a de que ás civilizações, como os impérios Persa e Romano, decaem em vista de comer demais (cf. nota 19 ao cap. 10).
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