Esqueçam as revelações do site The Intercept Brasil que agora estão tentando transformar apenas num crime hacker para jogar fumaça sobre os conteúdos que vieram à luz. É normal que uma mesma equipe converse, articule, discuta o timing e as medidas. O que não é normal é haver uma mesma equipe com juízes, procuradores e policiais.
O QUE É NORMAL E O QUE NÃO É NORMAL
Tudo que ficamos sabendo até agora é normal (embora indevido do ponto de vista do nosso arcabouço institucional) no sentido de quase inevitável, na medida em que se formou uma equipe, com espírito de corpo, chamada de força-tarefa da Lava Jato, composta por juízes, procuradores, policiais e gente de órgãos de controle (como a receita) e que esta equipe ainda tenha querido capturar o Coaf e organizar uma fundação milionária sob a direção da “República de Curitiba”.
Não precisamos de Intercept nenhum, de invasão hacker nenhuma, para entender o que está acontecendo:
Claro que eles conversavam diariamente entre si e combinavam os passos da operação.
Claro que eles escolhiam os momentos mais propícios para desfechar operações para surpreender seus alvos e obter a maior adesão da opinião pública.
Claro que eles articulavam os melhores caminhos, escolhendo juízes simpáticos e driblando (e demonizando) outros.
Claro que eles vazavam conteúdos sigilosos para veículos imprensa com objetivo de obter cumplicidade da mídia e apoio da população (tendo até um veículo oficioso chamado O Antagonista).
Tudo isso está claríssimo e todos os que estão bem informados sabiam disso.
O que não é normal é o seguinte:
1) uma força-tarefa permanente, feita para durar até que o país seja completamente limpo dos corruptos (ou seja: que não vai acabar nunca);
2) um juiz chefiar (ainda que informalmente) uma força-tarefa de procuradores e policiais (o que configura conluio e vai além do conluio);
3) a constituição de uma espécie de novo ente – composto por estamentos corporativos de Estado – sem qualquer previsão constitucional;
4) uma entidade (que não existe em nosso arcabouço institucional) assumir como missão “limpar o Congresso” (o que significa instrumentalizar a justiça para fazer política, ou antipolítica, demonizando os políticos); e
5) uma espécie de milícia (tipo “liga da justiça”) tomar partido, objetivamente, no processo eleitoral (tacitamente, não por declarações, mas por indução: se todos são corruptos, a alternativa que resta é votar no único honesto – ou tido por honesto).
Nada disso é normal.
Muitas pessoas não entendem como é que os democratas possam criticar Moro, Deltan e os lavajatistas “que tantos serviços prestaram ao país”. Mas os democratas entendem por que muitas pessoas não entendem isso.
FAZENDO UM ESFORÇO PARA ENTENDER
Abra-se um jornal de qualquer país do mundo. Dificilmente não nos depararemos com notícias sobre corrupção de políticos. Se houvesse jornais na Atenas do século 5 a. C. (quem cumpria naquela época esse papel era o teatro), ficaríamos cansados de ver acusações contra Péricles, Fídias (que acabou sendo morto por isso) e até contra os sofistas (que eram os pensadores democráticos do pedaço).
Mas vá-se hoje para uma democracia menos flawed do que a nossa e abra-se igualmente os jornais. Veremos, com maior ou menor intensidade, a mesma coisa. Mesmo assim, a democracia continuou e continua vigendo nesses países.
Ao contrário das autocracias (onde tudo é escondido, seja a corrupção de Fidel Castro, seja a corrupção do militares de 1964 no Brasil), o regime democrático permite que a corrupção seja conhecida e, em parte dos casos, coibida e punida (dependendo do estoque de capital social da sociedade e não da existência de uma, dez ou mil cruzadas de limpeza ética: uma Somália não virará uma Nova Zelândia só porque lá instalamos alguma operação do tipo Mani Pulite ou Lava Jato; a Somália – o país onde a política é a mais corrupta do mundo, só virará a Nova Zelândia – o país onde ela é menos corrupta, quando os níveis de capital social da sociedade somalesa forem equivalentes aos níveis de capital social da sociedade neozelandesa).
Mas o fundamental aqui – que os moralistas não alcançam – é que a democracia, ainda que não consiga reformar a “natureza” humana (nem este poderia ser o seu propósito), consegue metabolizar a corrupção. Não há um só caso na história de uma democracia que tenha virado uma ditadura em razão do aumento do número de corruptos por metro quadrado. Ao contrário, em geral os regimes democráticos são derruídos por pessoas tidas por honestas, como Antônio de Oliveira Salazar, por exemplo, que foi o ditador mais sanguinário de Portugal, mas era um verdadeiro varão de Plutarco e confessava e comungava todo domingo.
Quando colocamos a honestidade como valor principal no lugar da democracia estamos ensejando o aparecimento de um autoritário honesto (que, examinado a fundo, possivelmente não se revelará tão honesto assim, conquanto se venda como). É o poder sem freios e contrapesos que corrompe, não um defeito de fábrica da “natureza” humana (seja lá o que for).
Quando uma pessoa não aceita que a democracia seja suja, curva e imperfeita, isso significa que ela se recusa a aceitar os seres humanos como eles realmente são, com todas as suas sujidades, curvaturas e imperfeições. E quando imagina um regime limpo, reto e perfeito, escapa da realidade terrestre abrindo campo para o advento de uma distopia celestial dos puros – o que é a coisa mais monstruosa que pode existir. Sob um Estado puro, de caráter policial, marcharíamos diretamente para Gileade: “ – Blessed Be the Fruit”. “ – May the Lord open”.
PARA “SALVAR” A LAVA JATO
Os democratas defendem o combate à corrupção. Defendem, inclusive, a Lava Jato, desde que ela não seja um mecanismo de exceção. Mas por que então – alguém poderia perguntar – os democratas criticam o lavajatismo, quer dizer, a instrumentalização política da operação Lava Jato?
Bem, em primeiro lugar, criticar o lavajatismo não significa defender o lulopetismo (que cometeu muitos crimes políticos e comuns). Significa apenas criticar a instrumentalização política de uma operação de combate à corrupção que deveria fazer parte do metabolismo normal – não de exceção – do Estado democrático de direito.
Esperava-se que Moro, ao abandonar a magistratura para virar auxiliar de Bolsonaro no governo, tivesse como papel precípuo institucionalizar o combate à corrupção, provendo o Estado de direito de mecanismos mais eficazes para coibir e punir a corrupção. Esta seria a “salvação” da Lava Jato. Se institucionalizar como mecanismo constitucional.
A Lava Jato corre perigo? Do jeito como está organizada e atua, sim. Hoje são revelações de conversas “anti-republicanas” entre seus chefes. Amanhã surgirão outras falhas e até crimes perpetrados por seus agentes. É só questão de tempo.
O Estado democrático de direito não pode conviver com uma milícia corporativa enquistada nos seus estamentos, que atua como um partido, coagindo os legítimos poderes e ameaçando com acusações e processos todos que a criticam ou chantageando o distinto público com o alerta, repetido ad nauseam, de que “querem acabar com a Lava Jato”.
Para salvar a Lava Jato, aumentando a eficácia do nosso Estado de direito no combate à corrupção, é necessário:
a) desativar o lavajatismo militante, estimulado pela própria força-tarefa da operação: o lavatismo caracteriza uma força política, que deve ter caráter privado como qualquer ente político, mas não pode ser atributo de um órgão público;
b) acabar com os vazamentos seletivos, promovidos também pela própria força-tarefa para conquistar a cumplicidade de parte da imprensa e mesmerizar a opinião pública para uma causa redentora;
c) desvincular a operação do governo Bolsonaro e do bolsonarismo: o combate à corrupção deve ser uma iniciativa de Estado, não deste ou daquele governo.
d) acabar com a força-tarefa composta por membros de diferentes poderes que não podem estar em conluio entre si e nem atuar como uma milícia, substituindo-a por um órgão normal do Estado com atribuições previstas em lei, respeitando a independência dos poderes e os mecanismos de freios e contrapesos do Estado democrático de direito. Não existem forças-tarefas permanentes ou eternas (até que o mundo seja redimido de seus pecados).
É claro que o nome – a grife – pode até ser mantido e seus integrantes também: desde que se disponham a respeitar as leis, podem continuar normalmente seu bom trabalho nos seus devidos lugares institucionais.