À análise política não cabe avaliar intenções dos atores. Ela deve considerar, sempre, as consequências objetivas dos atos e comportamentos políticos.
Examinemos agora o caso da instrumentalização política da operação Lava Jato, já percebida por vários analistas há mais de três anos e que, portanto, nada tem a ver com as recentes revelações do site Intercept Brasil.
Reinaldo Azevedo, Demétrio Magnoli, Ricardo Noblat, Carlos Andreazza e eu mesmo – cada um com seus diferentes ponto de vista – apontaram o caráter jacobino do lavajatismo militante. Publiquei muitas dezenas de artigos sobre isso. Basta fazer uma busca neste site Dagobah por ‘Lava Jato’, ‘Mani Pulite’, ‘Moro’, ‘Deltan’, ‘Carlos Fernando’, ‘Janot’, ‘Jacobinismo’, ‘Cruzada’, ‘Antipolítica’, ‘Pureza’, ‘Limpeza’ et coetera.
Nos artigos publicados deixei claro que uma força-tarefa feita para durar eternamente, formada por estamentos corporativos do Estado, não tinha previsão em nosso arcabouço constitucional. Afirmei que essa entidade baseada em relações incestuosas entre juízes, procuradores e policiais só poderia ser descrita como uma milícia (uma milícia legal, tipo uma “liga da justiça”, mas uma milícia).
Ao voltar agora ao assunto quero deixar claro o meu próprio ponto de vista:
Criticar o lavajatismo não significa defender o lulopetismo (que cometeu muitos crimes políticos e comuns). Significa apenas criticar a instrumentalização política de uma operação de combate à corrupção que deveria fazer parte do metabolismo normal – não de exceção – do Estado democrático de direito.
Ou seja, as revelações do tal Intercept não mudaram uma vírgula da minha avaliação (e ela já tem três anos) sobre a instrumentalização política da operação Lava Jato, que acabaram – com ou sem a intenção dos sujeitos envolvidos, quer dizer, objetivamente – favorecendo a ascensão do bolsonarismo.
Dito isto, passemos à análise, que nada tem a ver com os hackers que invadiram os celulares de juízes e procuradores, sejam eles ligados ou não ao PT, à conspiração globalista, ao comunismo internacional ou ao jornalista Glenn Greenwald, agora objeto de uma campanha de deportação do Brasil, por parte da milícia digital bolsonarista, sob as alegações de que ele seria o mandante da ação ilegal que invadiu celulares, de que é lulista ou petista ou de que é viado (sim, eles estão enfatizando isso).
Diga-se o que se quiser dizer, o fato é que o bolsonarismo capturou os grupos formados para combater a corrupção e idolatrar Sérgio Moro, Deltan e Carlos Fernando. Podia-se facilmente perceber isso quando mais de 90% desses grupos – tipo “República de Curitiba” – viraram comitês eleitorais de Bolsonaro. Parte da imprensa entrou na onda.
Por que grande parte da imprensa não viu nada de errado no lavajatismo? É simples responder: analfabetismo democrático. E pulsão moralista de limpar o mundo (ou de se limpar nos outros, cortando cabeças, num frenesi jacobino restauracionista próprio da antipolítica da pureza).
O analfabetismo democrático é tão generalizado, a culpa das pessoas por se acharem sujas (e quererem se limpar nas outras) é tão grande (ou seja, o moralismo é tão arraigado) e o ódio ao PT é tão forte que mesmo que os milicianos lavajatistas viessem a público confessar seus procedimentos manipuladores, mesmo assim as pessoas não acreditariam. Crucifiquem-no, crucifiquem-no, cortem-lhe a cabeça, shame, shame, shame: há uma perversão na alma de quem goza com isso.
A rede de grupos do WhatsApp montada pelos bolsonaristas deixa tudo muito claro (para quem quer ver). Examine-se o site: https://zapbolsonaro.com/grupos/
Está escrito lá:
“Nossos grupos não são para bate-papo ou discussões, mas somente para divulgação de material para apoio ao Presidente Jair Bolsonaro e Operação Lava Jato”.
Ou seja, não é para conversação, não é para interação (horizontal) e sim para a replicação (vertical).
Quando você clica para entrar em um grupo, aparece a seguinte mensagem:
“O Grupo Zap Bolsonaro foi criado em outubro de 2018 para ajudar na campanha do Presidente Jair Bolsonaro. Atualmente temos mais de 100 grupos no WhatsApp, todos fechados. Ou seja, não há troca de mensagens entre os membros. Dessa forma MANTEMOS O FOCO e evitamos postagens de marketing, postagens pornográficas, discussões desnecessárias, e principalmente criadores de confusões. Hoje temos mais de 10.000 pessoas cadastradas nos grupos, que recebem nossas postagens diariamente! Visite: ZapBolsonaro.com”.
E é uma prova da fusão entre combate à corrupção (lavajatismo) e culto da personalidade do líder (populismo).
Formalmente – no que tange a convocação de manifestações (como a do dia 26 de maio) – a iniciativa contou com o apoio de Avança Brasil, Nas Ruas e República de Curitiba. Ou seja, é tudo a mesma coisa. É uma das vias de manipulação das mídias sociais usando o WhatsApp.
Observem agora o boneco gigante do super-herói Sergio Moro, levado à Praça dos Três Poderes, em Brasília, pelos manifestantes bolsonaristas no último dia 26 de maio de 2019 e que está na imagem de capa deste artigo.
Ou seja, o bolsonarismo capturou o lavajatismo, não apenas colocando Moro dentro do governo, como fiel auxiliar de Bolsonaro, capaz de lhe fornecer um “habeas corpus” preventivo contra qualquer irregularidade que aparecer, cometida por ele ou sua família, mas também fazendo uma mistura entre combate à corrupção e luta contra o comunismo. Fabricou, assim, a fusão de dois heróis no grande combate do bem contra o mal: Sérgio Moro e Jair Bolsonaro.
Pode-se dizer que se não fosse a destruição da política promovida pelos lavajatistas dificilmente Bolsonaro teria sido eleito. Mas esta é apenas uma hipótese que pode ser questionada. O fato, objetivo, entretanto, é que Bolsonaro foi eleito sem competidor à altura (pois Lula foi – correta ou incorretamente, penso que corretamente – impedido de concorrer). Foi eleito como o único candidato honesto. Foi eleito com o apoio explícito, descarado até, de mais de 90% dos grupos que se organizaram, a partir de 2015, para combater a corrupção na política. Ou isso não aconteceu?
Não há como, honestamente, negar. Aconteceu. E continua acontecendo. É o lavajatismo que dá sobrevida e aval ao governo inepto de Jair Bolsonaro.
O que mais espanta neste momento é a posição da maioria dos jornalistas e analistas sobre a matéria do Intercept Brasil.
Nas conversas vazadas Moro falou em “limpar o Congresso”. Não é razoável supor que isso tenha sido inventado, pois casa perfeitamente com a vibe predominante da tal República de Curitiba. Ora, não cabe a um juiz, em conluio com procuradores e policiais, realizar tal tarefa. O lavajatismo virou uma cruzada de limpeza ética. Isso é instrumentalização política. É a antipolítica robespierriana de pureza. Eles pensaram que estavam fazendo a revolução francesa. Com 200 anos de atraso (Carlos Fernando, tentando refutar um artigo de Demétrio Magnoli, até explicitou isso).
Eles se dizem conservadores, mas conservadores não fazem revoluções francesas (como sabemos desde Edmund Burke). Uma prova de que o bolsonarismo, instrumentalizando politicamente a operação Lava Jato, não é conservador e sim revolucionário para trás, quer dizer, reacionário.
Pois bem. Diante dessas revelações, setores da imprensa começaram uma conversa mole sobre a origem das notícias divulgadas pelo Intercept. Como as notícias foram frutos de ação de hackers, então elas são falsas ou não podem ser levadas em consideração.
Tudo conversa fiada. O papel da imprensa é publicar, não importa se a fonte obteve a informação de forma lícita ou ilícita. Se a fonte obteve informações de forma ilícita, é ela que deve ser acusada e processada, não o veículo de imprensa.
Imprensa não é polícia. Cabe à polícia verificar se há ou não ilegalidade e apurar quem a cometeu.
Notícia não é prova. Notícias obtidas de modo ilícito não servem como prova, mas continuam sendo notícias.
Veículo de imprensa não é tribunal. De novo: o papel da imprensa é publicar. Se a notícia é falsa que se processe o falsificador (seja ele a fonte ou o meio de comunicação – ou ambos).
Repetindo. Claro que as revelações das manobras antidemocráticos e ilegais da Lava Jato não absolvem Lula e o PT de seus crimes (comuns e contra a democracia). Mas deixam claro que o lavajatismo permitiu-se ser usado pelo bolsonarismo para chegar ao poder (e ainda imaginando, no futuro, emplacar um dos seus na presidência, na sucessão de Bolsonaro).
Não cabe à análise política julgar se as notícias são legais ou ilegais. Mas cabe dizer que, do ponto de vista da democracia, a rigor, todos os três – lulopetismo, lavajatismo e bolsonarismo – são ilegítimos.