Os democratas não precisam ser muitos, mas têm que ser capazes de dar cobertura suficiente à democracia. As instituições são importantes, mas não bastam.
Em artigo recente – As instituições estão funcionando. E daí? – abordei o problema. Reproduzo abaixo um trecho para retomar o tema em seguida:
As instituições estão funcionando. Isso pode ser uma garantia de estabilidade democrática, mas também pode ser um problema. Porque frequentemente elas têm imensa dificuldade de perceber, em tempo hábil, as ameaças à democracia. As instituições também estavam funcionando na Alemanha de Hermann Müller (antes da ascensão do hitlerismo) e na Itália de Giolitti, Bonomi e Facta (pré-Mussolini), em Portugal de Juan Negrín López (talvez o último governo estável que precedeu à salazarização), na Venezuela de Rafael Caldera e no Chile de Eduardo Frei.
“As instituições estão funcionando” é mais ou menos como a célebre frase do cara que tinha um moinho nas cercanias do palácio do rei Frederico 2º. O moleiro de Sans-Souci poderia dizer – segundo o conto de François Andrieux: “Ainda há juízes em Berlim” (ou seja, instituições judiciárias que não fariam distinção entre ele, um simples moleiro, e um soberano que queria derrubar o seu moinho que atrapalhava a visão do palácio real). Mas isso foi em 1745, na Prússia. Pouco menos de dois séculos depois, juristas de Hitler (que sempre fez questão de manter legiões de juízes para legalizar tudo o que fazia) tentavam encontrar, na mesma Berlim, uma justificativa legal para a “solução final” (o extermínio dos judeus nos fornos crematórios).
Agora, porém, há um agravante. Tirando todos os casos em que não funcionaram a contento, as instituições (democráticas) funcionam bem para evitar ataques diretos ao regime (democrático). Elas conseguem, na melhor das hipóteses, desarmar golpes que estão sendo urdidos contra a democracia (como ocorreu em Atenas, em 401 a.C.) e, em alguns casos, reconstruir a democracia depois de golpes mal-sucedidos (como ocorreu na mesma Atenas após os golpes de 411 a.C., que instaurou a ditadura dos Quatrocentos e de 404 a.C., que impôs a ditadura dos Trinta).
O agravante atual é que os ataques à democracia não são mais desferidos como golpes de força para quebrar a institucionalidade, rasgar a Constituição, colocando tanques nas ruas e mandando um soldado e um cabo fechar a Suprema Corte, e sim lentamente, às vezes em doses homeopáticas. É assim que os populismos contemporâneos (os principais adversários da democracia nos tempos que correm) operam: não abolindo a democracia e sim usando a democracia (notadamente as eleições) contra a própria democracia para ir mudando, progressivamente, o DNA do regime democrático. Contra esse tipo de ataque as instituições da democracia não têm proteção eficaz. É um tipo de ataque que não elimina as instituições e sim ocupa as instituições para degenerá-las por dentro enquanto mantêm a sua casca formal.
Ademais, as instituições da democracia também não têm proteção eficaz contra ataques distribuídos de miríades de agentes (como ocorre com a manipulação bannonista das mídias sociais), mais ou menos como a Enterprise não tinha proteção eficaz contra um ataque de enxame de drones, no episódio Star Trek Beyond.
Para se antecipar a esses ataques é necessário que existam antenas capazes de captar os sinais fracos de perigo. Essas antenas são pessoas que aprenderam a reconhecer padrões autocráticos, ou seja, são os democratas. Ralf Dahrendorf, em meados da década de 1990, alertou para o problema: não existe democracia sem democratas. Quando há deficit de democratas – como o que se verifica nos dias de hoje – o sistema de detecção de tendências autocratizantes não é capaz de dar cobertura suficiente à democracia. Os democratas eram tão poucos na Hungria que não perceberam em tempo hábil a virada autocrática de Viktor Orbán. E eram tão poucos na Polônia, que não reconheceram o ovo da serpente que estava sendo chocado no Partido Lei e Justiça, de Jarosław Kaczyński.
Não bastam as instituições democráticas, preenchidas com profissionais, burocráticos ou não. É preciso que nelas existam democratas. Para citar um exemplo brasileiro atual, não basta um Supremo Tribunal Federal. É preciso que ele conte com alguém como um Celso de Mello, persistente na defesa do Estado democrático de direito e capaz de alertar para os perigos de violação ou deterioração do regime democrático.
Não basta que a imprensa seja livre, entendo-se por imprensa os meios de comunicação tradicionais e interativos (como as mídias sociais).
No caso da mídia broadcasting – TV, rádio, jornais, revistas, blogs e portais e Youtube – é necessário que exista gente com atuação cotidiana ou semanal agindo democraticamente. Para citar outro exemplo nosso, pessoas com Reinaldo Azevedo, Demétrio Magnoli, Carlos Andreazza, Marco Antonio Villa, Joel Pinheiro, Ricardo Noblat, Pedro Dória e alguns outros (nem tantos como gostaríamos com atuação frequente).
No caso das mídias sociais – Facebook, Twitter, Instagran, LinkedIn, grupos de Whats App e de Telegram – é necessário que tenha gente em número suficiente para contrabalançar as recentes invasões dos populistas ditos de esquerda (como os neopopulistas) ou de direita (como os populistas-autoritários). Agora, sobretudo diante da ascensão de uma nova PPA (População Politicamente Ativa), tipo invasão dos bárbaros, animada por comportamentos adversariais, disposta a travar uma luta sem quartel contra os infiéis (todos os que discordam de suas posições são, em princípio, traidores, inimigos da pátria, de deus, da religião, da família, dos valores de uma suposta civilização judaico-cristã), é necessário mais gente democrática comparecendo diuturnamente no debate público.
O mesmo vale para as outras instituições: governamentais (federais, estaduais e municipais), para os parlamentos (Câmara e Senado, assembleias legislativas, câmaras de vereadores), para os Ministérios Públicos, para o judiciário (tribunais superiores, além do STF), tribunais regionais, juízes, tribunais de contas, advocacia, além de instituições militares e policiais.
E também instituições não propriamente estatais, como universidades e entidades científicas ou de pesquisa, escolas, ONGs, editoras, sindicatos e associações profissionais, entidades religiosas, clubes de serviço, clubes esportivos e recreativos, entidades dos meios artísticos e culturais etc. Além, é claro, das empresas. Isso para não falar de comunidades de projeto, de prática, de aprendizagem, de vizinhança – como bairros, ruas, conjuntos habitacionais, condomínios – e de grupos de amigos.
Não se está falando aqui de formar maiorias de democratas (convictos ou radicais, por assim dizer) em todas as instituições citadas. Isso é impossível, nunca aconteceu e nunca acontecerá. Trata-se de ter, pelo menos, uma pessoa que seja, uma voz ouvida em cada uma delas. Ou seja, públicos específicos (sobretudo situados em clusters com poucos atalhos) devem poder ser alcançados pelos alertas emitidos por um agente democrático que consiga reconhecer padrões autocráticos quando eles se manifestam. E, dependendo do processo político que se instalar, em cada momento e lugar, uma possibilidade de polinização democrática de opiniões deve estar disponível. Os democratas, nunca é demais repetir, atuam como agentes fermentadores de uma opinião pública democrática. Fermento não é massa. Não é necessário ser maioria para fazer isso. Mas há limites de efetividade: uma minoria muito reduzida não conseguirá fazer isso. É a nossa situação atual, no Brasil e em vários países.
Funciona mais ou menos, mal-comparando, à cobertura de telefonia celular. O importante é emitir-captar o sinal, não deixando que se formem muitas sombras ou áreas desassistidas. Não importa tanto se as torres, próprias ou compartilhadas, sejam da Tim, da Vivo, da Claro, da Oi, da Nextel ou se as tecnologias utilizadas sejam 2G, 3G ou 4G – ainda que tecnologias 4G (enquanto a 5G não vem) sejam preferíveis.
Como democratas, nosso papel precípuo é ampliar a cobertura (de preferência com o “sinal 4G”). Isso exige multiplicar processos de aprendizagem democrática, não de impregnação conteudística, não de reprodução de cultura livresca, não de qualificação para entrar em abstrusas controvérsias de teóricos da democracia e sim de reconhecimento prático de padrões autocráticos. Como a democracia é, geneticamente, um processo de desconstituição de autocracia e como ainda vivemos imersos em cultura autocrática, nunca se pode esquecer que aprender democracia é desaprender autocracia. Mas para desaprender autocracia é preciso ser capaz de captar e identificar sinais de autocratização onde quer que eles se manifestem, na política de Estado e na sociedade, no macro e no micro, nos grandes movimentos políticos e sociais e nos pequenos eventos da vida cotidiana. Em especial é preciso saber reconhecer os germens dos populismos (que são, atualmente, os principais adversários da democracia, no mundo e no Brasil) presentes em opiniões, discursos, propostas, projetos, ações e medidas práticas, sejam governamentais, sociais ou empresariais.
Para saber mais: http://democracia.org.br


