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A nova PPA (População Politicamente Ativa) e a luta contra os infiéis

A esquerda falou para algumas parcelas da sociedade, não para todas. Falou para aquela parcela que julgava ser uma espécie de PPA – População Politicamente Ativa, composta por universitários, trabalhadores da iniciativa privada e funcionários públicos sindicalizáveis, membros de corporações e partidos, minorias sociais organizadas em movimentos para lutar por direitos e defender reivindicações setoriais, profissionais liberais, setores intelectuais, artísticos e culturais, ativistas de organizações não-governamentais, enfim, um público mobilizável em torno de causas coletivas que respondessem às aspirações e visões de mundo de clusters sociologicamente ou antropologicamente determinados, ou atendessem a interesses individuais concretos de seus integrantes. O restante da sociedade – em especial a maioria da população que não vive em situação de pobreza e extrema-pobreza – não era composto por agentes potencialmente válidos e, nessa medida, foi ignorado. O aposentado que aprendeu o que é internet no Facebook e a tiazinha do WhatsApp estavam fora, assim como os fiéis religiosos (sobretudo evangélicos), contingentes imensos das classes médias urbanas despolitizadas e legiões de jovens que, por falta de experiência ou de formação, nunca se interessaram por política, não têm a menor noção do que é democracia (e não poderiam mesmo tomá-la como um valor) e a única ideia que têm de poder é aquela que aprenderam nos games de war (perseguir e cercar o inimigo, desativá-lo ou exterminá-lo).

A esquerda achou que não era necessário se esforçar muito para ganhar esse povo. Sua estratégia neopopulista de usar a democracia contra a democracia com o fito de vencer eleições sucessivamente, acumulando forças para estabelecer uma hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido, daria certo de qualquer jeito se eles – esse povo não considerado alvo prioritário da sua agitação e propaganda e dos seus esforços organizativos – viessem sempre a reboque, seja seguindo uma liderança carismática, seja atingidos pela poderosa reverberação (verdadeiros redemoinhos de opiniões congruentes) criada pelas parcelas mais ativas da população (a PPA). Os votos dos pobres – sobretudo das pessoas dependentes de auxílios do Estado (como os beneficiários do Bolsa Família e de outros programas assistenciais) viriam por necessidade ou por gravidade (sobretudo enquanto Lula – um líder com alta gravitatem, capaz de deformar o campo social – estava livre para agir).

Ocorre que, com a disponibilidade das novas mídias interativas, essas pessoas politicamente descartáveis ou secundarizáveis, que nunca foram agentes políticos ativos e, portanto, não participavam do debate público, passaram a ser atores políticos emergentes. O aposentado do Facebook e a tiazinha do WhatsApp, o empregado despolitizado da revendedora de automóveis e o cara fortinho da academia de ginástica, o crente da Assembléia de Deus e o jovem de periferia que não estava nem aí para nada, viraram, de repente, militantes, compondo outra PPA (uma PPA 2 – a nova PPA) que não era mais influenciada pela metafísica dominante da esquerda.

O número de interagentes políticos saltou de alguns milhares qualificados porque governáveis (pelas lideranças ou direções ou por intoxicação ideológica) para alguns milhões desqualificados porque ingovernáveis (a não ser como contingente guerreiro, posto de prontidão para não deixar o inimigo triunfar). Por isso a guerra, a guerra fria, sobretudo a guerra cultural proposta pela “nova direita”, é a chave de tudo. A nova PPA não pode ser comandada e controlada a não ser num clima de guerra:

Guerra contra os comunistas e globalistas (que são corruptos) e contra os corruptos (que são comunistas ou servem aos globalistas),

guerra contra os que querem acabar com o temor a um Deus capaz de intervir na história e na política para nos salvar de algum plano demoníaco,

guerra contra os que querem destruir a religião, trair a pátria, desfibrar a nação, desvirtuar a família monogâmica, transformar nossos filhos em gays, drogá-los e subverter suas almas pela prática do sexo precoce, do incesto e da pedofilia – tudo para desconstituir a civilização ocidental cristã.

E essa guerra será permanente, deve continuar até que os inimigos da tal “civilização ocidental cristã” sejam varridos da face da Terra (ou, pelo menos, sejam expulsos ou compelidos a deixar o país).

Ocorre que a pregação da esquerda, embora perversamente instrumentalizada para levar seus líderes e dirigentes ao poder e para mantê-los no poder, se baseava em ideias generosas de igualdade (ainda que degenerada como condição para a liberdade), de mais direitos (inclusive direitos humanos e direitos difusos, sociais) e, formalmente, de democracia (posto que a via escolhida pelo neopopulismo foi a eleitoral). De algum modo isso inoculava, nos seus receptores e retransmissores, um conjunto de valores que, se eram usados para propósitos privados dos seus líderes com fins menos generosos, de poder pelo poder, não poderiam ser degenerados a ponto de afrontar princípios humanísticos que estavam subsumidos ou pressupostos na sua raiz.

Por exemplo, o discurso da esquerda não poderia ser retorcido e invertido para legitimar afirmações como as de que bandido bom é bandido morto, ou de que quem não concorda com determinada ideologia política ou religiosa, ou mesmo, com uma visão, digamos, filosófica, majoritária na sociedade, deve ser expulso do país (na linha do refrão vigente na época mais tenebrosa da ditadura militar: “Brasil, ame-o ou deixe-o”) ou de que seguidores de projetos políticos extremistas (como os fascistas, aqui cumprindo um papel funcional semelhante ao que os comunistas cumprem para a “nova” direita) e bandidos são a mesma coisa. Ainda que a esquerda tivesse usado suas excelsas visões sobre o futuro como roupagem para esconder suas pretensões mais mundanas no presente, isso acabou impedindo que seus arrebanhados ou liderados esposassem ideias avessas aos direitos humanos (e ao humanismo em geral) e abertamente antidemocráticas.

Tal não aconteceu com a nova PPA (a PPA 2) que surgiu à revelia da esquerda e imune à sua influência. Como não possuíam esses anticorpos, os novos atores políticos acabaram reproduzindo, sem ter a mínima consciência do que estavam fazendo, ideias preconceituosas, intolerantes, reacionárias e boçais. A tiazinha do WhatsApp passou a defender a pena de morte, a redução da maioridade penal e o teste toxicológico obrigatório para alunos de escolas e universidades, sem a menor cerimônia. E estaria disposta a fazer o mesmo se suas novas referências políticas, que ficaram em evidência a partir da guerra contra a esquerda, dissessem que é necessário adotar um teste ideológico para licenciar professores ou de que deve haver uma lei que proíba quem não é cristão de receber concessões de meios de comunicação ou de lecionar, clinicar, advogar ou ainda, quem sabe, de assumir um cargo público. Claro que isso é um exagero, posto que ninguém – que foi legitimamente eleito dentro das regras democráticas vigentes no Brasil – proporá tal desatino, até porque viola a Constituição. Mas – eis o ponto! – para a tiazinha do WhatsApp, não. Ela e boa parte da nova PPA estão prontos para aderir a qualquer desatino desse tipo – sobretudo num cenário de polarização, no qual a política já foi pervertida como continuação da guerra por outros meios – porque estão vulneráveis às piores ideias míticas, hierárquicas e autocráticas, porque não foram vacinados contra isso: nunca participaram de nenhum ambiente em que tivessem aprendido a conviver com o contraditório, a interagir politicamente, a aceitar como legítimo, no seu próprio espaço de vida e convivência social, o outro que pensa diferente, a suportá-lo e tolerá-lo em nome de valores democráticos e humanistas. Para compreender isso é preciso ver que o neopopulismo lulopetista (tendo como base a PPA 1) e o populismo-autoritário bolsonarista (apoiado na PPA 2) são, ambos, i-liberais, majoritaristas e antidemocráticos, mas NÃO SÃO A MESMA COISA. São, ambos, ameaças à democracia, mas não são a mesma ameaça.

O fato é que os integrantes da PPA 2 estão prontos para tomar a política como uma espécie de religião e a se engajar numa luta de fiéis contra infiéis.

Quando entram nesse tipo de luta, porém, a sua vida, até então alheia aos temas políticos, começa a se transformar (inclusive pela mudança da configuração dos emaranhados sociais onde vivem, seus novos amigos e seus novos inimigos). Não que as novas ideias vão mudar o seu comportamento, até porque não são ideias novas e sim velhíssimas (e, além disso, porque ideias não mudam comportamentos). Seu comportamento muda porque, como veremos logo adiante, muda seu emocionar.

As ideias dessa nova PPA são as velhas ideias de uma cultura patriarcal, que já eram compartilhadas em âmbito privado. São, fundamentalmente, ideias de pureza e limpeza. Mas, sobretudo, são ideias baseadas em sentimentos de culpa do sujeito por não se achar puro o suficiente, que levam a atitudes moralistas de julgar os outros para se limpar neles. Daí a crença, compartilhada pela maioria das pessoas (mais de 6 em cada 10 brasileiros) de que “a maioria de nossos problemas sociais estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais, dos marginais e dos pervertidos”, ou de que “os homossexuais são quase criminosos e deveriam receber um castigo severo”, ou de que vagabundo merece mesmo é uma bala na testa, de que os que não progridem é porque não trabalham, não estudam, não se esforçam o suficiente, porque querem viver às custas dos outros – em suma, de que “pobreza é consequência da falta de vontade de querer trabalhar” ou de que “um indivíduo de más maneiras, maus costumes e má educação dificilmente pode fazer amizade com pessoas decentes” (estas duas últimas compartilhadas por mais de 7 em cada 10 brasileiros).

São ideias de valorização da ordem, da hierarquia, da disciplina, da obediência, do comando-e-controle e da fidelidade impostas top down. Dai que a maior parte da população acredite que “o policial é um guerreiro de Deus para impor a ordem e proteger as pessoas de bem” e que “a obediência e o respeito à autoridade são as principais virtudes que devemos ensinar as nossas crianças”.

São ideias de que a família deve vir em primeiro lugar e de que Deus está acima de todos. Daí que a maioria (mais de 8 em cada 10 brasileiros) ache que “não há nada pior do que uma pessoa que não sente profundo amor, gratidão e respeito por seus pais” ou que “nenhuma pessoa decente, normal e em seu são juízo pensaria em ofender um amigo ou parente próximo” ou que “todos devemos ter fé absoluta em um poder sobrenatural, cujas decisões devemos acatar”.

São ideias de submissão à autoridade e da necessidade imprescindível de uma liderança capaz de nos salvar. Por isso a maioria das pessoas acredita que “os homens podem ser divididos em duas classes definidas: os fracos e os fortes” e que “o que este país necessita, principalmente, antes de leis ou planos políticos, é de alguns líderes valentes, incansáveis e dedicados em quem o povo possa depositar a sua fé”.

Todas as frases entre aspas, citadas nos quatro parágrafos acima, foram colhidas de um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 06/10/2017, a partir de pesquisa Datafolha. Intitulado Medo da Violência e Autoritarismo no Brasil, o estudo parte das respostas da população a 17 enunciados colhidas pelo instituto Datafolha para criar o “índice de propensão ao apoio a posições autoritárias”. Numa escala de 0 a 10, o índice chega a 8,1 no Brasil.

Convenhamos. Tais ideias não são nada novas. Elas fazem parte de conversações normais  que ocorrem diariamente em âmbito privado, há décadas ou séculos, nos botecos, nas residências familiares, nos locais de trabalho, nos estádios de futebol, nas academias militares, nas delegacias de policia – em todo lugar, e são majoritárias e recorrentes nessas conversações. O que há de novo aqui? O que há de novo é quando elas alcançam o espaço público, são perversamente politizadas e aceitas como elementos válidos do debate democrático. Quando isso acontece, a partir de certo grau, o emocionar social muda.

Quando o que era convicção pessoal passa a ser programa político e quando a política deixa de ser conversação e interação democrática que respeita quem pensa diferente e passa a ser guerra fria, voltamos à… guerra fria. A vibe que passa a predominar não é a da persuasão, do convencimento, da argumentação racional, do debate esclarecido e sim a da guerra, a da luta contra o infiel (o kafir, que não somente pensa diferente e sim que é diferente e como diferente passa a ser “o inimigo”). É isso que muda o emocionar social e não a divergência substantiva, a discordância do conteúdo, o saudável dissenso. O que muda o emocionar coletivo é uma fenomenologia da interação, o clustering (ainda que inicialmente no WhatsApp), o cloning e a reverberação que pode ser potencializada quando milhões de membros da nova PPA começam a se comportar dessa maneira.

Segundo o mais recente relatório do Latinobarômetro, o apoio a um regime autoritário chega a 14% no Brasil. É um número compatível com a quantidade dos bolsonaristas e dos que podem ser capturados por eles (mas não compatível com o volume dos eleitores normais de Bolsonaro). Estima-se que os bolsonaristas não passem de 10% do total de 58 milhões de eleitores de Bolsonaro, ou seja, não chegam a 4% dos eleitores brasileiros (90 milhões dos quais não votaram em Bolsonaro) – uma quantidade ainda metabolizável pela democracia, mas se dobrarem ou, pior, triplicarem de tamanho, aí sim, poderemos ter gravíssimos problemas de desconsolidação democrática e a democracia brasileira estará em risco iminente.

A democracia no Brasil não está ameaçada porque o futuro governo dará um golpe de Estado para implantar um regime fascista (isso, muito provavelmente, ele não fará) e sim porque há uma nova força política no cenário, com base social em expansão (a nova PPA – a PPA 2), animada por comportamentos adversariais, disposta a travar uma luta sem quartel contra os infiéis.

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