Não sobreviveu um, um único miserável escrito democrático de toda a experiência democrática da Grécia clássica (entre 509 e 322 a.C.). E nem de antes. E nem de depois, até o século 17.
Não restaram escritos de nenhum dos sofistas democráticos (como Protágoras) e, na verdade, de nenhum sofista. Com exceção de uma menção de Ésquilo (472 a.C.) em Os Persas, e de uma ou outra de Eurípedes (424 a.C.), sobretudo em As Suplicantes, todos os textos políticos que chegaram até nós foram escritos por pessoas que não entenderam bem a democracia ou que a ela se opunham.
Talvez o mais antigo desses textos, A Constituição dos Atenienses, escrita pelo Pseudo-Xenofonte (provavelmente entre 431 e 424 a.C.), começava assim:
“Quanto à forma de governo dos atenienses, que escolheram este tipo de constituição, eu não a aprovo pela seguinte razão: aqueles que a escolheram optaram por privilegiar a ralé ao invés da elite. Eis por que a não aprovo”.
E ele – O Velho Oligarca, que redigiu o texto acima – já começa reclamando da corrupção (pois gostava mesmo era de ditaduras de homens honestos, como a espartana):
“Ouve-se dizer: se alguém for ao Conselho ou à Assembleia com dinheiro na mão, tem o seu processo tramitado”.
Dos principais construtores da democracia – Clístenes (565-492 a.C.), Efialtes (?-461 a.C.), Péricles (490-429 a.C.) e Aspásia (470-400 a.C.), sem esquecer de Protágoras (481-411 a. C.) – não restou nada escrito. Diz-se que os livros de Protágoras foram queimados, mas a informação é incerta.
Dos contemporâneos da primeira democracia também não há nenhuma obra claramente democrática. Heródoto (484-425 a.C.), embora tenha elogiado a democracia (na verdade, elogiou mais Atenas), não a entendeu bem. Sócrates (470-399 a.C.) – e a quase totalidade de seus discípulos ou seguidores, com destaque para os golpistas sanguinários Cármides, Crítias e Alcebíades (este populista), para não falar de Xenofonte e Platão – era contrário à democracia; e não deixou nada escrito. Tucídides (460-395 a. C.), embora não possa ser acusado de antidemocrata, não captou bem a democracia, por vezes confundindo-a com uma espécie de tirania da maioria ou de poder monocrático (no caso da longa duração do protagonismo de Péricles). Xenofonte (430-355 a.C.) era pró-espartano e declaradamente anti-democrata. Platão (427-347 a.C.), já mencionado, idem (e foi o principal teórico antidemocrático que existiu até agora em toda a história). Aristóteles (384-322 a.C.), ainda que tenha descrito, com aparente isenção, o funcionamento da democracia, não a entendeu completamente (e o prova seu conceito equivocado de zoon politikon). Demóstenes (384-322 a.C.), não se sabe bem (provavelmente não).
O mais espantoso, porém, é que depois da época em que a democracia ateniense desaparece (322 a.C.), não tivemos nenhum autor claramente democrático até meados do século 17 da nossa era. Talvez o primeiro texto político pró-democrático tenha sido o Tratado Teológico-Político de Spinoza (1670) – ao redescobrir que o sentido da política é a liberdade (e não a ordem). Assim, tudo o que se escreveu sobre a democracia, de um ponto de vista democrático, foi elaborado depois, bem depois.
Aí então aparecem – entre outros – Locke, Montesquieu, B. Constant, Rousseau, Jefferson, Madison (e outros federalistas), Paine, Tocqueville, Mill, Dewey e Arendt. E depois, pelo menos, Berlin, Popper, Dahl, Lefort, Bobbio, Havel, Castoriadis, Maturana, Dahrendorf, Rawls e Sen – para ficarmos de meados do século 17 até o fim do século 20. Ou seja, já havia muita teoria autocrática (sobretudo as inventadas por Platão e pelos platônicos), mas não havia nenhuma teoria democrática formulada, a não ser muito recentemente (em termos históricos).
Espantoso ainda mais do que tudo isso é termos vivido mais de dois mil anos demonizando os sofistas – o que é o sintoma mais eloquente do ódio à democracia. Nenhuma corrente de pensamento (se é possível falar assim dos sofistas – e a rigor não é, posto que eles não constituíram nenhuma escola ou academia, grupo ou partido) foi tão e por tanto tempo maltratada, açoitada, agredida, desancada, espancada, fustigada, golpeada, sovada, surrada, afrontada, ofendida, desonrada, injuriada, insultada, ultrajada, adulterada e desfigurada do que os sofistas.
Por que foram tão demonizados pensadores como Antífon, Crátilo, o Dissoi Logoi (Discursos Duplos), Górgias, Hípias, Pródigos, Protágoras, Trasímaco, talvez Alcídamas, Licofronte e o Anônimo Jâmblico? Dentre estes, temos pensadores democráticos (como Protágoras, talvez o principal) e antecipadores de noções de universalização da cidadania que só vieram a aparecer muito depois (como o humanismo de Antifonte, o igualitarismo de Hípias e o anti-escravagismo de Alcídamas e Licofronte).
COMO ISSO PODE TER ACONTECIDO?
Não foi por acaso que não sobreviveu nenhum escrito dos sofistas. G. B. Kerferd (1981), em O movimento sofista, nos conta que na lista dos “livros existentes” de Protágoras, preservada por Diógenes de Laércio, consta o seguinte: Arte da Erística, Sobre a luta corpo a corpo, Sobre Ciências (ou possivelmente Sobre Matemática), Sobre Governo, Sobre a ambição, Sobre as virtudes, Sobre o estado original das coisas, Sobre os que estão no Hades, Sobre ações humanas incorretas, Imperativo, Julgamento a propósito de um pagamento e Analogias em dois volumes. Sobre os deuses e Verdade, também obras suas, não foram incluídas na lista. De cerca de 20 textos de Protágoras não sobreviveu nada.
Os próximos parágrafos (exceptuadas as frases finais) são também da lavra de Kerferd:
Acredita-se que seu [de Górgias] tratado Sobre natureza foi escrito na 84a Olimpíada, isto é, em 444-441 a. C. Sumários, ou partes, ou referências sobrevivem em discursos intitulados Oração fúnebre, Oração olímpica, Elogio aos eleanos, Elogio a Helena, Apologia de Palamedes. É provável que tenha também escrito um tratado técnico sobre retórica, cujo título seria simplesmente Arte ou, possivelmente, Sobre o momento certo no tempo (Peri Kairou). Finalmente não há por que duvidar da atribuição que se faz a ele do Onomastikon mencionado por Pólux, no prefácio do seu próprio Lexicon, no qual se utilizou dele, mas não incluído em nenhum livro sobre os sofistas antes de 1961. De Górgias não sobreviveu nada.
[De Pródicos tem-se notícia de um livro chamado] Horas (Horae) que incluía panegíricos de outras pessoas ou personagens, assim como de Hércules, segundo Platão. Ele também escreveu um tratado Sobre a natureza do homem. Pródicos foi sobretudo famoso por sua obra sobre a linguagem, e a sátira de Platão sobre ele no Protágoras sugere, para alguns, que ele possa ter deixado escritos específicos Sobre a correção dos nomes. De Pródicos não sobreviveu nada.
Hípias foi o mais antigo doxógrafo sistemático, ou compilador das opiniões de autores mais antigos dos quais temos algum conhecimento… Hípias era a fonte que fizera a conexão entre a doutrina de Tales… com as afirmações cosmogônicas de Homero, Hesíodo e outros… De Hípias não sobreviveu nada.
Antífon escreveu um tratado Sobre a Verdade (da qual recentemente foram encontrados fragmentos), em dois volumes, e Sobre a Concórdia; ainda atribuídos a ele, havia um Político e uma obra Sobre a interpretação dos sonhos. De Antífono não sobreviveu nada (a não ser fragmentos).
[Trasímaco] fez um discurso A favor do povo de Larisa que deve ser posterior a 413 a. C…. Vários exercícios e tratados retóricos lhe são creditados. De Trasímaco não sobreviveu nada.
O testemunho de Aristóteles sugere que ele tinha diante de si um escrito de Eutidemo contendo argumentos sofísticos. De Eutidemo não sobreviveu nada.
O Dissoi Logoi [Duplos Discursos] é um texto anônimo [redigido por um sofista] encontrado no fim dos manuscritos de Sexto Empírico. O Dissoi Logoi não sobreviveu (pelo menos não integralmente, há apenas fragmentos)
Um tratado anônimo, Peri Nomõn, ou Sobre as leis [é atribuído a um sofista que ficou conhecido como Anônimo Jâmblico]. Do Anônimo Jâmblico não sobreviveu nada (além de fragmentos).
Além disso, não sobrou nada – a não ser referências – de Dionisodoro, de Cálicles, de Alcídamas, de Licofronte. Desses todos, não sobreviveu nada (a não ser uma ou outra citação, em geral tardias).
Como é possível que tudo isso tenha simplesmente desaparecido? Não foi por acaso ou coincidência que não tenha sobrevivido nada, nem um, um único miserável texto integral escrito por um sofista.
Tudo que conhecemos de escritos atribuídos a sofistas é de segunda mão e escrito por adversários dos sofistas (como Platão e Aristóteles – que foram seus detratores e contribuíram para deletar a sua passagem pela Terra, sobretudo na Atenas do século 5 a.C.).
Kerferd (1981) escreve:
“Um número considerável de escritos [dos sofistas] sobreviveu por um bom tempo. No que os sofistas foram menos afortunados do que outros, entre os pré-socráticos, foi na virtual ausência de relatos doxográficos. Provavelmente a principal razão disso foi a sua rejeição, como pensadores, por Aristóteles. Isso significa que foram virtualmente excluídos da série de sínteses encomendadas à escola de Aristóteles, que foi uma importante fonte de informação subsequente… A geral omissão deles na tradição doxográfica, unida à opinião platônica e aristotélica de que seu pensamento e seu ensino eram falsos, explica por que foram, de fato, virtualmente ignorados pela cultura helênica…”
Aqui está, aparentemente, a razão dos sofistas terem sido cancelados da história do pensamento. Não foi apenas em razão da maledicência e da desonestidade de Platão, mas principalmente, pela exclusão de Aristóteles. Os sofistas foram assim apagados do mundo pelos escolásticos da época.
Nunca houve nada assim na história do pensamento. Escritos heterodoxos e heréticos foram destruídos pela poder despótico, pelos fundamentalismos reinantes, em várias ocasiões. Mas não se tem notícia de que uma censura tenha perdurado tanto: mais de dois milênios.
Mais do que censura. Diz-se – como já mencionamos acima – que alguns livros de Protágoras foram queimados. Não se sabe ao certo. O que foi feito, porém, foi muito pior do que fez a Inquisição e outros agentes das distopias retratadas em Fahrenheit 451. Contra os sofistas, a começar por Platão, foi encetada uma campanha de difamação, (como fica patente na desonestidade do diálogo Protágoras) com fake news, pós-verdades e falsificações sórdidas.
A razão é simples. Os sofistas eram – em grande parte – democratas. Não apenas pelos conteúdos de seus discursos e escritos, mas, sobretudo, pela natureza interativista da sua atividade de promotores da aprendizagem não-acadêmica.
Isso explica também porque não existe nenhuma obra de teoria política escrita por um democrata (ou pró-democrata) até o século 17 da nossa era.
Platão e Aristóteles não eram apenas mais duas pessoas. Eles montaram burocracias do conhecimento (ou do ensinamento) – Academia e Liceu – tribunais epistemológicos e alfândegas ideológicas cujo papel era filtrar tudo que não fosse conhecimento válido. Os sofistas ficaram no filtro.
Parece que não foram queimados mesmo os escritos sofistas (a não ser por aquela referência histórica sobre as obras de Protágoras, não temos qualquer outra indicação de queima de livros). Não foi preciso queimar. Aliás, livros queimados são copiados e sobrevivem subterraneamente (tipo Samizdat). Foi mais sutil o processo (e não foi uma grande conspiração). Simplesmente suprimiram-se originais e doxográficos nas publicações que sobreviveram (notadamente as de Platão e Aristóteles – em grande quantidade, quase tudo no caso do primeiro). É como na evolução biológica. Sobrevivem as espécies cujos indivíduos se reproduzem antes de morrer (não os mais fortes ou os mais adaptados). Do contrário como se explica tantas obras terem desaparecido?
ABRIU ESSA JANELA, O FUTURO ENTRA
Um tratado conhecido como Sobre a Verdade, do qual apenas fragmentos restaram, é atribuído a Antifonte (ou Antífon) (c. 470-411), o sofista (não o golpista homônimo). Nele lê-se:
“Aqueles que nasceram de pais ilustres nós respeitamos e honramos, enquanto que aqueles que vêm de uma casa medíocre nós nem respeitamos nem honramos. Assim nós nos comportamos como bárbaros uns para com os outros. Por natureza, nós todos somos iguais, tanto os bárbaros, quanto os gregos, têm uma origem inteiramente semelhante: para ela é apropriado realizar as satisfações naturais, que são necessárias a todos os homens: todos têm a capacidade de realizar estas, da mesma forma, e em tudo isto nenhum de nós é diferente, quer como bárbaros, ou como gregos; já que todos nós respiramos o ar pela boca e narinas e todos nós comemos com as mãos”.
Carl Popper (1945), no capítulo 5 do primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos, observa:
“Igualitarismo semelhante [ao de Antifonte] era apregoado pelo sofista Hipias, que Platão figura como dirigindo-se assim a seu auditório: “Senhores, creio que somos todos parentes, amigos e compatriotas, se não pela lei convencional, pela natureza. Pois, pela natureza, semelhança é expressão de parentesco, mas a lei convencional, tirana da humanidade, compele-nos a fazer muita coisa contra a natureza”. Esse espírito se vinculava ao movimento ateniense contra a escravatura a que Eurípedes deu expressão: “Este simples nome lança vergonha sobre o escravo, que pode ser excelente em todos os aspectos e verdadeiramente igual ao homem nascido livre”. Em outra parte, diz ele: “A lei da natureza, para o homem, é a igualdade”. E Alcidamas, discípulo de Górgias e contemporâneo de Platão, escreveu: “Deus fez livres todos os homens; nenhum homem é escravo por natureza”. Opiniões semelhantes são também expressas por Licofronte, outro membro da escola de Górgias: “O esplendor do nascimento nobre é imaginário e suas prerrogativas se baseiam sobre meras palavras”.
Como foi possível a Antifonte antecipar, no século 5 a.C., concepções (e valores) que só floresceram mais de dois milênios depois com Locke, Rousseau e a Declaração de Independência dos USA?
Como foi possível a Hípias, Alcidamas e Licofronte avançarem tais ideias igualitárias que só foram aceitas muito depois?
Essas perguntas levam à reflexão sobre a influência dos pensadores inovadores, que não tem sempre continuidade, mas pode ser verificada pelo reflorescimento de suas ideias em outras regiões do tempo. Eles antecipam futuro. E é isso que significa criar.
Novos pensadores não são avalizadores da fidelidade de reproduções autorais e sim miscigenadores, livres porque podem ser infiéis às origens da matéria com que trabalham. Os sofistas foram novos pensadores, para desespero de Platão. Há um problema epistemológico de fundo aqui: quando alguém se entrega ao fluxo do pensamento presente não consegue separar a doxa (opinião) da episteme (conhecimento), nem subordinar a primeira à segunda.
A possibilidade de criar tem a ver com kairos, não com kronos. Quando um emaranhado de opiniões (atenção: não uma sistematização de conhecimentos) se conforma segundo determinadas configurações favoráveis à inovação, os novos pensadores aproveitam a oportunidade que se oferece naquele momento, pois sabem que as janelas se fecham rapidamente. Pois tudo é fluxo.
O fragmento de Antifonte revela uma opinião, não um conhecimento derivado (pois não havia de onde inferir esse tipo de coisa). O mesmo vale – mutatis mutandis – para as falas atribuídas a Hípias, Alcidamas e Licofronte.
No que tange aos diferentes tipos de logos, os sofistas, como se sabe (ou melhor, não se sabe), estavam preocupados com o kairos ou a escolha do tempo adequado. E o kairos não é algo a ser alcançado pelo conhecimento (episteme) — é mais próprio da opinião (doxa).
Abriu essa janela, o futuro entra.
No caso específico de Antifonte (mas também nos de Hípias, Alcidamas e Licofronte) parece óbvio que ele só pôde ter tais ideias humanísticas por ter vivido no regime democrático nascente dos atenienses e ter participado dele.
Por aqui começamos a perceber que o que chamamos de democracia pode ser algo muito mais surpreendente do que pensamos até agora.