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Como as democracias não morrem

Em geral as democracias como regimes eleitorais não morrem mais do ponto de vista formal, mas o processo de democratização, este sim, está sendo barbaramente enfreado

O livro de Levitsky e Ziblatt (2018), Como as democracias morrem“How Democracies Die”, que ficou tão famoso – tem um problema no título. O problema é que agora as democracias (entendidas como regimes eleitorais) em geral não morrem mais, no sentido de que não viram ditaduras clássicas, mas continuam sendo regimes eleitorais, inclusive com instituições funcionando. Elas viram democracias eleitorais cada vez menos liberais e, no limite, autocracias eleitorais.

Anna Lührmann e Staffan I. Lindberg, no Journal Democratization (Taylor & Francis Online), 01/03/2019, no artigo Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo nisso? mostraram que “cerca de metade de todos os países [do mundo] eram autocracias fechadas [sem eleições] em 1980, mas em 2017 eles representam apenas 12% dos regimes do mundo… A partir de 2017, a maioria dos países ainda se qualifica como democracias (56%) e a forma mais comum de ditadura (32%) são as autocracias eleitorais”.

Não há mais golpes de Estado, nem ações flagrantemente ilegais, com violação aberta dos critérios da poliarquia de Dahl (eleições limpas, sufrágio universal, governo eleito, liberdade de associação, liberdade de expressão e fontes alternativas de informação).

Novamente, Anna Lührmann e Staffan I. Lindberg, no artigo já citado acima, constataram que “os autocratizadores contemporâneos usam principalmente estratégias legais e graduais para minar as democracias… Cerca de 68% de todos os episódios contemporâneos de autocratização iniciados em democracias são liderados por governantes que chegaram ao poder legalmente e tipicamente por eleições democráticas… A maioria dos autocratizadores contemporâneos não altera as regras formais. Assim, também o modo como os titulares do poder enfraquecem a democracia tornou-se mais informal e clandestino”.

Não há abolição de um modelo de regime político ou sua substituição por outro modelo. Há uma transição (e transição não é substituição) para escapar do tempo presente, seja reacionária (para algum lugar imaginário do passado), seja revolucionária (para algum lugar igualmente imaginário do futuro).

O que há é um enfreamento do processo de democratização pela destruição progressiva das bases sociais que sustentam a democracia (com a dilapidação do capital social, da cooperação ampliada socialmente e o derruimento das normas não-escritas, com o lento avanço de um processo subterrâneo de autocratização que não é adequadamente captado pelos indicadores usuais de democracia).

E, então… a democracia como modo-de-vida vai morrendo enquanto a democracia como modo político de administração do Estado vai sobrevivendo.

O modelo, a casca formal, permanece em pé e os regimes que estão sendo vítimas dos ataques populistas à democracia continuam figurando nos rankings internacionais como democracias (por exemplo, ninguém deu atestado de óbito para a democracia na Hungria, na Polônia, nos Estados Unidos e no Brasil – porque as democracias nesses países não morreram mesmo), embora seu conteúdo liberal esteja paulatinamente se esvaindo, como mostrei no artigo O debate sobre se pode haver democracia i-liberal.

Os que apostam na democracia substantiva, quer dizer, na continuidade do processo de democratização têm que abandonar os velhos métodos de análise para ver onde está realmente o perigo.

O esquema interpretativo esquerda x direita, que já era anacrônico, ficou imprestável (e impotente do ponto de vista analítico) quando descobrimos que o populismo contemporâneo é um comportamento político que pode ser apresentado tanto pela esquerda quanto pela direita, tanto pelos que se dizem revolucionários quanto pelos reacionários e tanto pelos que se dizem socialistas quanto pelos que se dizem conservadores.

Mas como saber se estamos diante de um populista (de esquerda ou de direita, pouco importa)? Basta observar duas características:

1 – Populistas acreditam que existem elites que estão trabalhando contra os interesses das “pessoas verdadeiras” (ou do “povo verdadeiro”: “the true people”).

2 – Populistas acreditam que são a voz do “povo verdadeiro” de um país e que, assim, nada deve ficar no seu caminho.

Essa é a conceituação de populismo adotada por Jordan Kyle & Yascha Mounk (2018) em O estrago que o populismo faz na democracia: uma avaliação empírica.

Segundo esses autores, essa definição captura tanto a orientação anti-elite dos populistas quanto seu modo distinto de organização política, que envolve a intimidação de instituições políticas e da sociedade civil em nome da promulgação da vontade popular.

A grande ameaça vem dos populismos, digam-se de esquerda ou de direita. A falha brutal de Levistky e Ziblatt foi não terem visto que existe um populismo de esquerda (no caso do Brasil, por exemplo, não viram o perigo do neopopulismo lulopetista). Esse erro não foi cometido por Kyle e Mounk.

De qualquer modo, precisamos urgentemente de novos indicadores para detectar as ameaças atuais aos processos de democratização (que é o que propriamente deveríamos chamar de democracia).

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