Chester G. Starr, Bentley Professor of History Emeritus na Universidade de Michigan, no seu livrinho The Birth of Athenian Democracy (Oxford Univesity Press: 1990), desmascara de uma vez por todas a alegação de origem marxista de que a democracia ateniense era uma falsa democracia de vez que as mulheres e os escravos dela não podiam participar.
No capítulo 3 de seu livro, intitulado Eleitores na Assembleia, Starr escreve sobre quem podia votar em Atenas, fazendo uma interessante comparação com a democracia americana do século 19.
“Quem podia votar?
À primeira vista, a resposta a essa pergunta é simples e pode ser resumida em uma só frase: todos os cidadãos do sexo masculino com 18 anos ou mais. Na realidade, a questão não é tão simples e leva diretamente a uma das mais sérias acusações contra a democracia ateniense.
Chegando à idade adequada, os filhos eram apresentados pelos pais a seus pares de dêmos: deviam prestar dois juramentos – de que o filho tinha 18 anos e de que era realmente um cidadão, ou seja, o fruto de um casamento legal ou que tivesse sido adotado oficialmente para portar o nome da família. O casamento era essencialmente uma questão particular, regida por costumes ancestrais (1); mas em 451/0 Péricles impôs a regra de que ambos os pais tinha de ser cidadãos atenienses. Anteriormente, essa limitação teria impedido Temístocles, Címon e outros de exercer qualquer função pública; e mais tarde deveria causar problemas ao próprio Péricles, uma vez que seu filho nasceu de sua amante Aspásia, natural de Mileto, e teve de obter cidadania por meio de um decreto especial. Os estrangeiros residentes podiam ser emancipados pela assembleia, mas isso era mais raro no século 5 do que no 4; Temístocles só pôde recompensar seu pedagogo Sicinnus, que, levando mensagens falsas a Xerxes, desempenhou um papel vital antes da batalha de Salamina, comprando-lhe a cidadania de Téspias, não de Atenas. Se houvesse alguma contestação ao direito do filho de ser registrado nas listas do dêmos, eram indicados representantes do dêmos para levar a questão aos tribunais de justiça.
No seu auge, antes que a Guerra do Peloponeso começasse a provocar estragos, a população votante foi estimada em 43 mil. A este número deve-se somar igual número de mulheres, crianças de menos de 18 anos (que provavelmente deveriam ser tão numerosas quanto a soma de mulheres e homens adultos, à luz dos princípios demográficos aplicáveis em geral às populações pré-industriais, tanto no mundo antigo como no moderno) e talvez 60 mil escravos, ainda que apresentemos mais adiante reservas quanto a este último número. Da população de Atenas (172 mil cidadãos mais 60 mil escravos), cerca de 18,5% podiam ser eleitores (2).
Essa não parece ser uma estrutura muito democrática. Em consequência disso, Atenas tem sido criticada com frequência nos últimos anos por ser “uma fraude, e os cidadãos eram uma minoria ociosa que vivia do trabalho dos escravos” – uma visão que associa duas abominações atuais, elites e escravos (3).
No entanto, tal linha de ataque não me parece pertinente. A escravidão ateniense será avaliada de modo mais completo no fim deste capítulo, mas por ora podemos observar que em todas as partes do mundo o trabalho escravo foi uma instituição endêmica nas sociedades que atingiram o nível de civilização. Além disso, a escravidão antiga tem recebido uma atenção grande demais ultimamente; a maioria dos homens claramente não tinha escravos. O fato de as mulheres não poderem votar tampouco nos deve iludir. Só no século 20 as mulheres se emanciparam amplamente, e certamente na Grécia antiga, onde não costumavam ter direitos de propriedade, não eram consideradas capazes de exercer um julgamento independente; em Atenas, elas só podiam entrar num tribunal de justiça por meio de um porta-voz do sexo masculino (4). A democracia, afinal, é um sistema de governo em que aqueles que em geral são considerados capazes de avaliar por si mesmos a situação política têm a última palavra; o quanto se opta por votar é um critério acidental, não essencial.
Para dar esteio a essa concepção, consideremos um exemplo moderno: as eleições presidenciais de 1860 nos Estados Unidos. Alguns anos antes, a democracia jacksoniana removera as restrições baseadas na propriedade e outras limitações à soberania popular; na própria eleição, uma homem que fora apenas um advogado sem importância em Ilinois foi eleito presidente. Certamente podemos chamar democrático o sistema político americano daquela época.
O recenseamento de 1860 registra 31.443.321 residentes nos Estados Unidos, dos quais cerca de 4,5 milhões eram identificados como negros, escravos em sua maioria, mas não na totalidade (5). Os brancos estavam quase igualmente divididos em homens e mulheres, mas uma vez que mais da metade da população, como na antiga Atenas, ainda estava na infância, havia provavelmente apenas cerca de 6,3 milhões que podiam votar. Deste total, deve-se subtrair o pequeno número de habitantes dos territórios que não tinham voz no colégio eleitoral americano, e um grupo mais amplo de imigrantes recentes, embora alguns estados permitissem que aqueles que estivessem em processo de naturalização votassem (6). Um fato limitante de maior peso era a exigência bastante estrita de tempo de residência antes de se poder registrar para votar. Uma vez que esta restrição não pode ser quantificada, podemos voltar com cautela ao número de 6,3 milhões; a conclusão deve ser de que no máximo 20% da população dos Estados Unidos em 1860 podia votar. Isso não está muito longe da estimativa dada acima de que 18,5% dos atenienses tinham o direito de participar da assembleia. Na realidade, na eleição de 1860 houve 4,7 milhões de votos (7).
Em suma, os votantes elegíveis na antiga Atenas não compunham uma minoria ociosa muito diferente daquela constituída pelos americanos que podiam exercer o direito de voto em 1860. A porcentagem dos que exercem o direito de voto nas eleições presidenciais, de fato, desabaria nos anos subsequentes; de 1952 a 1976, apenas 61,4% dos eleitores possíveis votaram, e mais recentemente a proporção caiu ainda mais, embora os cidadãos americanos de um modo geral neguem com indignação a acusação de que seu governo não é uma democracia (8). Deve-se também notar, em comparação, que o voto na América moderna é normalmente um ato simples, que leva muito pouco tempo; em Atenas, o exercício dos direitos políticos exigia uma atenção muito maior”.
Notas
(1) A. R. W. Harrison, The Law of Athens: The Family and Property (Oxford, 1968), pp. 1-60.
(2) A. W. Gomme, The Population of Athens in the Fifth and Fourth Centuries B. C. (Oxford, 1933), passim, embora eu tenha reduzido sua estimativa de 115 mil escravos pelas razões indicadas na nota suplementar a este capítulo.
(3) A. H. M. Jones, Athenian Democracy (Oxford, 1957), pp. 75-76.
(4) D. Schaps, The Economic Rights of Women in Ancient Greece (Edimburgo, 1979), é um valioso corretivo para o mundo grego como um todo.
(5) Historical Statistics of the United States (Bureau of the Census, 1975), pp. 15-16. Estou em dívida com meus colegas Terrence McDonald e Maris Vinovskis pela interpretação desses números.
(6) Os residentes nascidos no exterior estão incluídos nos números do censo de 1860, mas não pode ter certeza de quantos obtiveram a cidadania, que era relativamente fácil de se conseguir na época; na década anterior a 1860, houve 2,5 milhões de imigrantes, que puderam votar em Indiana, Michigan, Wisconsin e Minnesota depois de sua declaração de intenção de obter a cidadania (D. V. Smith, Ethnic Voters anda the Election of Lincoln, org. F. C. Lebcke [Lincoln, Neb., s. d.], pp. 1-2).
(7) D. V. Smith, p. 13, julga que votam 77% dos homens de Illinois com idade para tal; se esta porcentagem se aplicasse a todos os estados, teria havido 6,1 milhões de eleitores elegíveis em 1860, uma cifra que não está longe dos 6,3 milhões sugeridos no texto acima.
(8) Paul Kleppner, Who Voted? (Nova York, 1982), p. 5.