Falamos tanto que a nova forma de golpe do século 21 – o golpe em câmera lenta, por erosão da democracia – não precisa de tanques nas ruas, que Bolsonaro, desesperado, resolveu voltar ao século 20. Os tanques, desta feita, dispararão apenas simbolicamente no imaginário democrático. Mas é um golpe.
Bolsonaro é tão retrógrado que está fugindo até do script dos golpes do século 21 (que visam transformar as democracias eleitorais em autocracias eleitorais, sem afrontar tão explicitamente as instituições com tanques nas ruas – mesmo que apenas para efeitos simbólicos).
É por tudo isso – que está acontecendo hoje no Brasil – que é tão urgente investir na aprendizagem democrática. Em cada lugar, em cada setor de atividade, deve haver alguém capaz de resistir e denunciar essas violações da democracia, mesmo quando são simbólicas (como os tanques de Bolsonaro nas ruas de Brasília em 10 de agosto de 2021).
O que há a preservar é a integridade das bases sociais sobre as quais se assenta a democracia, as normas não escritas, as formas benignas de sociabilidade, os comportamentos políticos colaborativos, enfim, o estoque ou fluxo de capital social, sem o qual o processo de democratização não pode ter continuidade (mesmo que a casca formal da democracia permaneça aparecendo como um tipo híbrido de regime – conquanto cada vez mais i-liberal). O que devemos evitar é que nosso modo de vida (ou de convivência social) seja destruído pela colisão com outros mundos adversariais, hierárquicos e guerreiros.
Sim, a democracia não pode ser protegida apenas pelas leis (escritas). Por isso todo legalismo é insuficientemente democrático. Não basta não violar as leis para proteger a democracia. Sem um pacto social, mesmo que tácito, de respeito aos bons costumes políticos (as normas não escritas), a democracia fica indefesa quando se elege um tirano cujo programa é de destruição da democracia.
Todos conhecemos essas regras não escritas que evitam que a democracia se desconsolide. Alguns exemplos:
Aceitar a derrota
Parabenizar o vencedor
Não tripudiar sobre o derrotado
Não mentir
Não acusar as regras (que foram aceitas antes da contenda) pela derrota
Não tentar mudar as regras do jogo durante o jogo
Não alegar falsamente que perdeu (ou perderá) porque houve (ou haverá fraude)
Não deslegitimar o adversário
Não encorajar a polarização (“nós” contra “eles”)
Não transformar o adversário em inimigo (da pátria, do povo, da nação, do Estado, de Deus)
Não levantar falso testemunho perante a justiça (nem praticar litigância de má-fé) contra um adversário
Tratar as divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação e a busca do consenso
Fazer oposição leal
Não ameaçar – por palavras ou demonstrações simbólicas – que vai (ou pode) dar um golpe
A corrosão dessas normas não escritas que possibilitam a democracia e sustentam as instituições – quer pela retórica golpista, quer por demonstrações simbólicas de força bruta – é o caminho do golpe no século 21. Mas, neste caso, não há uma suprema corte judicial para defendê-las. O “STF das normas não escritas” são os clusters de alto capital social. Ou as poleis paralelas. Na verdade, as poleis – desde que foram introduzidas pela reforma de Clístenes (em 508 a.C.) – sempre foram paralelas. Não precisamos convencer a sociedade inteira, nem a sua maioria, da democracia. Precisamos conectar e multiplicar o número de democratas capazes de fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática.
A hora é de aprendizagem democrática. É um imperativo se quisermos ter democracia nos próximos anos.