Sim, o governo (como tal) acabou. O que restou lá no Planalto e adjacências foi apenas um comitê de campanha que é também um comitê da tentativa de golpe. Mas esse comitê com dupla intenção – uma ilegal, posto que antecipa a campanha e outra maligna, para deslegitimar as eleições que virão – vai continuar nos infernizando enquanto não houver impeachment.
O impeachment seria a saída mais razoável e mais econômica. Mais razoável por razões óbvias. Mais econômica porque ficar ainda um ano e tanto sob o atual desgoverno aumenta o custo Brasil – que é, hoje, sinônimo de custo Bolsonaro.
Mas mesmo se houver impeachment, o bolsonarismo não vai acabar: está enraizado, capilarizado no país, sobretudo nas cidades pequenas e médias do interior. Boa parte do público presente no 7 de setembro, na Esplanada dos Ministérios e na Paulista, veio de ônibus e caminhões dos fundões do país. Uma parte, para engrossar as comitivas, embarcou a troco de camiseta, turismo de graça e mais 100 reais. Mas, outra parte, não. Era composta por convertidos que vieram na esperança de fundar um novo país a partir de um grande evento apocalíptico (isso, aliás, foi pregado em várias igrejas evangélicas). Esses caravaneiros ou missioneiros aguardavam algo extraordinário que, tipo assim “numa enchente amazônica, numa explosão atlântica”, limpasse de uma vez o velho mundo da política dos seus elementos perniciosos (tanto faz se ontem fossem os comunistas e hoje os juízes do STF). Acreditaram que seria possível coroar Bolsonaro como uma espécie de Führer, acima de todas os poderes, infenso às restrições da democracia.
Não aconteceu. Mas isso não significa que os drives do populismo-autoritário foram desativados. Pelo contrário: se Bolsonaro ficou mais isolado após as manifestações chapa-branca do 7 de setembro, o bolsonarismo se fortaleceu. Os bolsonaristas-raiz precisavam disso para tomar consciência de que são muitos, muitos mais do que imaginavam. E para tirar a prova de que eles podem ser mobilizados em grande número para lutar (ainda que a luta, por enquanto, seja só portar cartazes e promover gritarias golpistas).
O bolsonarismo se fortaleceu porque ele não precisa de resultados. Precisa somente da luta. Cada dia uma luta. Mais luta gera mais luta. O projeto é de uma luta eterna.
Diz-se – para minimizar a influência do bolsonarismo – que Bolsonaro não tem nem partido. Formalmente, isso é verdade, mas a constatação elide o novo tipo de organização que o bolsonarismo erigiu. O bolsonarismo é um movimento autoritário (com traços de DNA totalitário) que não precisa para quase nada (a não ser para cumprir exigências eleitorais legais) dos partidos tradicionais. Há uma organização política bolsonarista, composta por uma nova PPA (população politicamente ativa). Ela é grande (em termos numéricos), ela é forte (em termos orgânicos) em todas as regiões do país e, o que é pior, ela se estrutura a partir das localidades. Qual partido tem isso (além, talvez, do PT)?
Não é uma corrente intelectual de opinião, com a qual se tome contato a partir de debates de salão nos grandes centros urbanos – como se fazia antigamente. Não é uma escola de política que vai educando seus membros a partir da participação em grêmios e diretórios estudantis, organizações sindicais e movimentos sociais – como se fazia antigamente. É uma escola informal de antipolítica, a partir do WhatsApp, do Telegram e das mídias sociais.
Só esse tipo novo de organização poderia incorporar, dar direção e coesão à nova PPA caótica, sem qualquer experiência política anterior, analfabeta democrática ou antidemocrática. Ela não é composta apenas por um coleção de grupinhos maluquetes, conspiracionistas, que brotam sempre aqui e ali, mas por milhões de pessoas normais – numa quantidade dificilmente metabolizável pela democracia. Não é um PCO de extrema-direita (com meia dúzia de gatos pingados) – é algo muito além (ou aquém) e muito mais perigoso.
O perfil padrão do militante mais ativo desse novo tipo de organização é conhecido. A maioria é composta por homens brancos, com idade média de 45 anos, que ganham acima de 5 salários-mínimos, mas tem também a tiazinha do zap, o aposentado do pavê neófito que toma a política como uma espécie de religião (ou de torcida organizada de clube), o jovem recalcado (não raro com algum problema de relacionamento com as mulheres), o evangélico neopentecostal (o pastor e o fiel), o empresário idiota (no sentido grego do termo), o ruralista atrasado (do ogronegócio), o grileiro, o madeireiro, o garimpeiro, o caminhoneiro, o fortinho de academia que usa óculos escuros e tira foto na frente do carro do ano, o colecionador, o atirador ou o caçador, o dono de clube ou de campo de tiro, o militar de alta patente frotista (seguidor do gorila Sylvio Frota), saudoso da ditadura e o oficial de baixa e média patentes, o policial militar e o miliciano, o dinheirista ou o negocista amoral que vive mamando em alguma franja do sistema político (do tipo Fabrício Queiroz).
Essa é uma definição por extensão. Maria Hermínia ensaiou, em artigo na Folha de São Paulo do último dia 1, uma definição por intenção desses elementos:
“As ilhas da extrema direita organizada são povoadas por grupos heterogêneos: libertários que reivindicam o porte de armas de fogo; mercadistas ultraliberais; conservadores possessos com a suposta dissolução dos costumes; fascistas pedestres ou motorizados; monarquistas perdidos no tempo; partidários de uma ordem capaz de prevalecer sobre a lei; patriotas para os quais o princípio da soberania nacional conta mais do que a defesa do ambiente; adeptos de uma edulcorada tradição ocidental em vias de desmanche; viúvas e viúvos do Brasil Grande do regime militar. Muitos são câmaras de eco de interesses de empresas, igrejas, corporações; outros, enfim, apenas vocalizam os ressentimentos e as frustrações que a realidade social sempre produz. Bolsonaro não os criou mas ampliou sua expressão política nacional, além de lhes infundir um propósito comum: a destruição da democracia representativa e das instituições edificadas sob as regras da Carta de 1988”.
Sob o aval de profissionais tradicionais – médicos (sobretudo médicos), advogados, engenheiros, administradores e funcionários de grandes empresas – todos de famílias “de bem” (que se acham melhores do que as outras) – essa nova “massa”, ou essa nova mistura de ralé e elite (nos sentidos que Hannah Arendt atribuía a esses conceitos), é a que compõe o contingente bolsonarista que não vai desaparecer da Terra só porque Bolsonaro sofreu impeachment, teve sua candidatura cassada ou perdeu as eleições de 2022.
O perigo não é essa massa crescer quantitativamente, incorporando setores da maioria da população (exagerando, pode-se dizer que quem achar um preto ou um pobre nas manifestações bolsonaristas ganha uma garrafa de Taste of Diamonds). O perigo é parte dela se organizar como falanges (do tipo “Viva La Muerte”) para barbarizar a vida pública. Já existem embriões dessas falanges em áreas rurais e em pequenas e médias cidades, atemorizando as populações e desestimulando qualquer oposição ou crítica ao credo e ao comportamento bolsonaristas. Ontem mesmo, no dia do fracassado Armagedon bolsonarista, elas percorreram pequenas cidades do interior, em motociatas seguidas de carros bacanas e de caminhões estropiados buzinando. Sempre tocando o hino nacional na maior altura e soltando fogos de artifício.
Mas mesmo que nada disso cresça como um movimento insurrecional, o bolsonarismo continuará degenerando a democracia, derruindo as normas não-escritas de civilidade que suportam as instituições, exterminando capital social e espalhando inimizade no mundo. Este é o perigo além do perigo, o perigo silencioso, o ruído branco, que traduz a forma principal de matar a democracia no século 21: não a invasão estrangeira, não o golpe militar, não o autogolpe, mas a erosão democrática. Cerca de 70% de todos os eventos de autocratização ocorridos durante a terceira onda de autocratização (a partir do início dos anos 1970 até o ano passado) foram feitos sem rasgar as Constituições e, inclusive, (quase) sem violência.
Sim, espalhar inimizade no mundo. Ao contrário do que muitos avaliam, o bolsonarismo não é um fenômeno nacional. Boa parte das matrizes – das ideias-implante e dos padrões autocráticos de comportamento – do bolsonarismo, foram importados dos grupos da extrema-direita e da direita alternativa americana (que depois desembocaram no trumpismo), os quais, por sua vez, se internacionalizam no movimento populista-autoritário global que assola as democracias neste obscuro período de recessão democrática que atravessamos (notadamente a partir de 2005, quando o número líquido de democracias parou de crescer no mundo). Alguns programas seminais desse movimento foram desenvolvidos a partir da experiência do MoVimento 5 Stelle (surgido na Itália no final da primeira década deste século), da campanha do Brexit e das viradas autoritárias promovidas por Orbán na Hungria e pelos irmãos Kaczynski na Polônia. Tudo isso que Steve Bannon tenta reunir no seu movimento nacional-populista chamado The Movement. Não foi à toa que muitas faixas e cartazes que apareceram ontem em Brasília e em São Paulo, estavam escritas em inglês. Foi propaganda e, além disso, foi um pedido de ajuda, inclusive financeira, aos comparsas do Movement, para continuar inundando a zona com merda (flood the zone with shit) e travando uma luta por dia.
Bolsonaro pode sair do governo e até ser preso. O bolsonarismo continuará. Continuará através dos filhos de Bolsonaro que não forem presos. Continuará através dos parlamentares e executivos bolsonaristas que serão eleitos em 2022 e em 2024. Continuará por meio das duas centenas de hubs que compõem a rede descentralizada bolsonarista com dois graus de separação. Continuará com a milícia digital nas mídias sociais que hoje já recrutou dezenas de milhares de ativistas com três graus de separação. Mas continuará, para além de tudo isso, pela organização que já se instalou, como uma espécie de talibã, em milhares de cidades brasileiras.