Somos surpreendidos, nos dias que correm, com elogios de militantes de esquerda à ditadura chinesa de Estado forte e partido forte (ainda que único, mas eles nem se dão conta disso).
Assistamos, para exemplificar, um vídeo recente de Lula (2021):
O vídeo acima dispensa comentários.
Tomemos agora um caso atual para explicar a discordância dos liberais com os populistas de esquerda (i-liberais): a ameaça de Putin de invadir a Ucrânia e sua aliança com Xi Jinping.
Essa aliança – exaltada como “sem limites” pelo próprio Xi (seja lá o que ele tenha querido dizer com isso) -, de certo modo, muda a geopolítica do mundo. Vão ficando, pelo menos no imaginário antipolítico da realpolitik, dois grandes blocos: Rússia, China, Irã etc. de um lado x USA, Canadá, Europa Ocidental, Japão, Australia e Nova Zelândia de outro.
Lembra até o 1984 de Orwell: a Eurásia aliada à Lestásia contra a Oceânia.
Em outras palavras: ditaduras (autocracias fechadas e eleitorais) de um lado contra democracias (eleitorais e liberais) de outro. Se isso se concretizasse, a América Latina e a África voltariam a ser reservas de caça imperiais.
O panorama da distribuição dos regimes políticos no mundo – segundo o monitoramento do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo – é preocupante:
Como se sabe, o V-Dem adota uma classificação de quatro tipos de regime políticos: democracias liberais (em azul escuro no mapa acima, incidindo em regimes de 32 países), democracias eleitorais (em azul claro, 60 regimes), autocracias eleitorais (em vermelho claro, 62 regimes), autocracias fechadas (em vermelho escuro, 24 regimes).
O ano base é 2020. Na América Latina, só temos duas democracias liberais (Uruguai e Costa Rica). Na África, só temos uma (Gana). Entre todos os países grandes do mundo (acima de 100 milhões de habitantes), só temos 2 (duas) democracias liberais (e olhe lá, porque uma delas – os EUA – está sob risco de decair para uma democracia apenas eleitoral).
Sob regimes autocráticos (fechados ou eleitorais) vive hoje a maior parte da população do planeta. O grafico abaixo dá uma ideia da predominância populacional das autocracias sobre as democracias:
A atual ofensiva de Putin contra a Ucrânia é apenas um movimento para solapar a democracia na Europa e no resto do mundo. Como percebeu a Anne Applebaum (2022), “ele está ameaçando invadir a Ucrânia porque quer que a democracia falhe – e não apenas naquele país”.
Ora, a China se aliar a Putin neste exato momento tem um significado maior do que se pensa. Mesmo que seja apenas no plano retórico. Retórica é política.
Talvez a China esteja indo contra os seus próprios interesses imediatos ao fazer essa aliança com uma Rússia agressiva em seu expansionismo. Seu comércio atualmente flui muito bem com a Europa. No entanto, o ditador Xi deve estar pensando em um horizonte estratégico de longuíssimo prazo.
Isso tem a ver com os padrões autocráticos instalados no centro do poder de Xi Jinping. Se você se organiza autocraticamente, e tão centralizadamente, é quase uma consequência inevitável se organizar para a guerra (mesmo que seja uma guerra, como dizia Mao sobre a política, “sem derramamento de sangue”).
Pois bem. Esta é a nova forma de guerra que está acontecendo. Não é indicador relevante se há tiros, bombas, mísseis… a guerra já está aí. A guerra não é o conflito violento, mas o estado de guerra. A guerra acontece, na maior parte do tempo, quando o conflito violento não está acontecendo, mas há disposição manifesta para tal (Hobbes já sabia disso em 1651). A guerra não é destruição de inimigos e sim construção e manutenção de inimigos.
É claro que o novo tipo de guerra que está se instalando (aliás, que já está instalada) não será igual à velha guerra fria que conhecemos. É outra coisa. Mas é guerra, quer dizer, autocracia – não democracia.
Como, para a esquerda, o imperialismo norte-americano (expressão culminante do capitalismo) é o inimigo principal, então qualquer movimento das tiranias russa e chinesa que possa impor derrotas ao inimigo universal é visto com certa simpatia, nem que seja in pectore. O critério, para esse pessoal, não é a liberdade e sim a libertação do imperialismo capitalista e do neocolonialismo, também capitalista, dos liberais europeus. Objetivamente, porém, eles se colocam a favor das autocracias contra as democracias.
Isso acontece, no fundo, porque o sentido da política, para a esquerda marxista, não é a liberdade e sim a ordem, a implantação de uma nova ordem mais justa (quando o socialismo substituir o capitalismo). Nesse sentido, a esquerda marxista não é politicamente liberal, ainda quando tome a via da democracia eleitoral para chegar ao governo, visando, processualmente e sem violência, conquistar o poder para… implantar uma ordem mais justa. Mas se, em vez da liberdade, você toma a ordem – qualquer ordem – como sentido da política, isso leva à autocracia, não à democracia.
Para a democracia liberal o sentido da política não é a ordem, nem mesmo a ordem mais justa do universo e sim a liberdade para permitir que novas ordens emerjam da interação. A democracia não é um projeto de condução dos outros para um porvir radioso onde uma nova ordem justa, reta, limpa e perfeita, possa se instalar. E apenas viver, aqui e agora, na precariedade deste mundo injusto, torto, sujo e imperfeito, como um ser político.







