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A esquerda deve perder a vergonha de dizer que é marxista

Tirando a extrema-esquerda (não-eleitoral) – aquela esquerda revolucionária que preconizava a via da ruptura com o regime burguês ou capitalista, por meio da insurreição popular, da guerra popular prolongada ou do foco revolucionário – que praticamente não existe mais, a esquerda realmente existente hoje, no Brasil e em grande parte da América Latina, é neopopulista e, como tal, adota a via eleitoral, respeitando as regras formais do Estado de direito.

Mas, atenção! Essa esquerda realmente existente não é populista à moda antiga (como Perón ou Getúlio, embora alguns de seus líderes ainda se pareçam com esses caudilhos). Não é apenas aderente à demagogia, ao assistencialismo, ao clientelismo e à irresponsabilidade fiscal. O novo populismo de esquerda (o neopopulismo) é estatista e tem raiz marxista, quer dizer:

a) é historicista (acha que a história vai para algum lugar e que a história tem leis que podem ser conhecidas por quem possui a teoria correta),

b) acredita que a luta de classes é o motor da história, e

c) concebe e pratica a política como uma continuação da guerra por outros meios (vincando a sociedade a partir de uma única clivagem: “nós” – o verdadeiro povo, contra “eles” – as elites).

Ah!… Você não concorda? Converse então cinco minutos com Maduro, com Ortega, com Evo, com Correa, com Lugo, com Funes ou com um velho dirigente fundador do PT. Eu já conversei com alguns desses, durante a década 1982-1992.

Aliás, foi lenta a trajetória do neopopulismo, o novo populismo de esquerda na América Latina, a partir do marxismo.

Tudo começou com a tomada insurrecional do poder na Nicarágua, pela chamada revolução sandinista, em 1979 – um movimento claramente marxista-leninista. Orientado por Fidel Castro, Daniel Ortega assumiu o governo em 1979 e abriu eleições em 1984. Ortega – que conheci pessoalmente – perdeu as eleições que convocou (contrariando, neste caso, o conselho expresso de Fidel Castro), mas voltaria ao poder por via eleitoral em 2007 para não sair mais. Com o novo orteguismo a Nicarágua passou a ser uma autocracia-eleitoral neopopulista.

Em seguida veio a Venezuela, com Hugo Chávez, que assumiu o poder em 1999 e só saiu com sua morte, em 2013. Foi sucedido por Maduro, que chegou ao poder por via eleitoral em 2013, reelegendo-se seguidamente, para nunca mais sair. Com o novo chavismo madurista, a Venezuela passou a ser uma autocracia-eleitoral neopopulista.

Depois veio o Brasil, com Lula assumindo o governo em 2003 e sendo reeleito para o período 2007-2010. Foi sucedido por Dilma, que venceu as eleições em 2010, foi reeleita em 2014 e sofreu impeachment em 2016.

Simultaneamente veio a Bolívia, com Evo Morales, um neopopulista que governou o país a partir de 2006, se reelegeu várias vezes e foi obrigado a renunciar em 2019 numa espécie de golpe. Foi sucedido pelo comparsa Luis Arce, que ganhou as eleições em 2020 e está no governo.

Ainda simultaneamente tivemos o espetáculo deprimente do governo do maluco Zelaya em Honduras. O populista Zelaya assumiu o governo em 2006 e só saiu em 2009 porque foi preso. Recentemente, sua família retomou o governo com a eleição de Xiomara (sua mulher) em 2021.

Quase simultaneamente tivemos o neopopulista Rafael Correa no Equador, que assumiu o governo em 2007, nele permanecendo até 2017. Foi sucedido por Lenín Moreno, que governou de 2017 a 2021 (tendo rompido com Correa em meio ao mandato).

Um pouco depois veio o Paraguai, com o bispo Fernando Lugo, que assumiu o governo em 2008 e sofreu impeachment em 2012.

Em El Salvador, o neopopulista (e marxista-leninista) Maurício Funes – que também conheci pessoalmente – governou de 2009 a 2014.

Na Argentina, em razão do peronismo, a situação é mais embaralhada. Nestor Kirchner governou de 2003 a 2007 (mas era um populista à moda antiga, não tipicamente um neopopulista). Todavia, foi sucedido por sua mulher, Cristina Kirchner, que ficou no governo de 2007 a 2015 e, esta sim, se aproximou da corrente neopopulista marxista. Cristina é vice-presidente da Argentina desde 2019, no governo encabeçado por Alberto Fernández, em vigor nos dias que correm.

No México, o populista López Obrador assumiu o governo em 2018, no qual permanece até os dias atuais.

No Perú, outro maluco populista, chamado Pedro Castillo, venceu as eleições em 2021 e permanece no governo nos nossos dias.

Salvo uma ou outra exceção, que confirma a regra, todo esse pessoal é marxista ou pertence a partidos cujos principais dirigentes e/ou fundadores são marxistas. Todo esse pessoal é populista de esquerda. Não pode ser por acaso.

A maioria desse pessoal falsifica, aberta ou disfarçadamente, os critérios da legitimidade democrática, em especial a rotatividade ou alternância (prorrogando-se no poder por vários mandatos, ou sendo substituídos por militantes do mesmo partido) e, em muito casos, a legalidade e a institucionalidade. Em casos extremos (como a Venezuela e a Nicarágua) violam mesmo o mais importante desses critérios: a liberdade. Para eles, o único critério da legitimidade democrática é a eletividade: quem foi eleito por “trocentos milhões de votos” pode tudo. Quase todos, porém, derruem as normas não escritas que estão abaixo do sistema legal e sustentam o arcabouço institucional da democracia. Não pode ser por acaso.

Há muitos problemas com esses líderes neopopulistas, por certo. Para a democracia, entretanto, o problema não é o fato de eles serem marxistas (ou estarem sob a influência de agremiações marxistas). Em princípio não há problema em ser marxista. A democracia aceita forças políticas que adotem um credo marxista-socialista, desde que respeitem o Estado de direito. Nada há de errado com isso. A democracia não é uma religião com doutrina oficial, dogmas e símbolos canônicos. Cada um pense o mundo, o ser humano e a sociedade como quiser. Só não pode impor sua concepção aos demais.

O que é estranho é que as forças marxistas no Brasil, sobretudo as que compõem o lulopetismo, escondam que são marxistas. Isso gera desconfiança. Parecem aquele cara que evita gritar “Xô Galinha” para não atrapalhar seu objetivo de pegar a penosa.

Acredito que essas forças políticas deveriam assumir que são marxistas e socialistas e então tentarem nos convencer de que essas seriam as opções corretas para a redenção da humanidade e a felicidade geral da espécie humana.

Não precisam se esconder atrás de um termo genérico como “progressismo” (a palavra é péssima, evocando uma ideia de progresso como algum tipo de evolução regida por leis históricas, mas soa positiva diante do florescimento de tantos “regressismos”).

Não é necessário, para capturar nosso voto, que se digam social-democratas, quando na verdade não o são.

Não é necessário que finjam que não são populistas, i-liberais e majoritaristas (hegemonistas, em geral). Esse tipo de populismo de esquerda (ou neopopulismo), que – conquanto não sendo democrático-liberal – não quer acabar com a nossa democracia eleitoral, é aceito pelas regras do Estado democrático de direito e pela maioria do eleitorado.

Os democratas liberais não concordamos com essas forças políticas, mas preferimos que elas declarem o que são, proclamem sem medo o que acreditam e exponham claramente a sua concepção das regras que julgam válidas, do que tentem escamotear sua estratégia de transformar as eleições em uma espécie de continuação da guerra por outros meios para enfrear (ainda que homeopaticamente) o processo de democratização. Do contrário, fica a impressão de que querem nos enganar.

Por que os democratas liberais não concordamos com esse pessoal?

Bem, em primeiro lugar, porque não somos obrigados a acreditar na sua religião laica, baseada nos dogmas do historicismo economicista, da luta de classes como motor da história e, consequentemente, da guerra (degenerando a política democrática, que por essência é pazeante, como continuação da guerra por outros meios).

Mas essa não é a principal razão. A principal razão é porque discordamos do seu comportamento político. Porque sabemos – e existem vários estudos empíricos mostrando isso – que os populismos contemporâneos são os principais adversários da democracia. Porque sabemos que os populismos contemporâneos – tanto o neopopulismo de esquerda, quanto o populismo-autoritário de extrema-direita – são i-liberais.

Este é o ponto.

Para aprender a detectar sinais de desconsolidação da democracia

A esquerda a favor das autocracias contra as democracias