Reconhecimento de padrões autocráticos
CURSO RELÂMPAGO
Como detectar precocemente sinais de desconsolidação da democracia (como regime político e como modo-de-vida)
Primeira turma – Janeiro de 2022 (lotada: curso já realizado)
Segunda turma – Março 2022 (aberta)
TERÇA, QUARTA E QUINTA DAS 20H00 ÀS 22H00
- Programa com 3 sessões de 2 horas
- Ao vivo, pelo Zoom, com Augusto de Franco
- 10 vagas
MARÇO
08/03/2022 – Terça
09/03/2022 – Quarta
10/03/2022 – Quinta
PAGAMENTO: PIX (CNPJ)
- 41903387000173
INSCRIÇÃO:
Valor: R$ 300,00
Após fazer o pagamento envie um e-mail para [email protected] com o assunto INSCRIÇÃO.
Toda comunicação do curso será feita por e-mail.
PROGRAMA
Sessão 1 (08/03/2022)
O que são padrões autocráticos (caminhos sulcados no espaço-tempo dos fluxos, modos recorrentes de interagir, de ver e de interpretar, comportamentos compatíveis com ideias míticas diante da história, sacerdotais diante do saber e hierárquicas diante do poder). Padrões autocráticos se replicam? Padrões autocráticos podem ser reconhecidos (a hipótese dos “isomorfismos”)? Indicadores simbólicos de autocratização da vida cotidiana. Ideias-implante (rotinas do programa básico). Indicadores de presença de hierarquia. Princípios do modo de regulação autocrático. A guerra como dinâmica organizadora do cosmo social. O estatismo como ideologia e comportamento político.
Sessão 2 (09/03/2022)
Como detectar precocemente sinais de desconsolidação da democracia (como regime político e como modo-de-vida ou de convivência social). O crescimento de uma retórica autoritária, inicialmente antissistema e, em seguida, anti-democracia. O aumento da relevância de forças políticas populistas (i-liberais e majoritaristas, ditas “de direita” ou “de esquerda”) e o recrudescimento da polarização (“nós” contra “eles”) com a consequente degeneração da política como guerra. A subversão da democracia por meios democráticos (ou o uso da democracia – notadamente das eleições – contra a própria democracia). A replicação do discurso antipolítico (associado – mas nem sempre – ao combate à corrupção) e a ascensão de movimentos de opinião que pregam a realização de cruzadas de limpeza (étnica, ética, religiosa ou nacional). A proliferação de milícias digitais que falsificam a opinião pública por meio da manipulação das mídias sociais. A violação das normas não-escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão sustentação. A dilapidação do estoque (ou a interrupção do fluxo) de capital social.
Sessão 3 (10/03/2022)
Existem padrões democráticos (comportamentos compatíveis com ideias de liberdade como sentido da política – de que a nossa liberdade não termina, mas começa, onde começa a liberdade do outro (quer dizer, de que ninguém pode ser livre sozinho) – com ideias de autonomia, com ideias colaborativas, de auto-organização e de rede (mais distribuída do que centralizada)? Padrões democráticos também se replicam? Como eles podem ser reconhecidos? A hipótese do “condicionamento recíproco” entre padrão (social) de organização e modo (político) de regulação de conflitos.
BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA
Reconhecimento de padrões autocráticos (Augusto de Franco)
O Feitiço de Platão (Karl Popper)
O cálice e a espada (Riane Eisler)
Conversações matrísticas e patriarcais (Humberto Maturana)
Manual do Império (Daniel Wallace)
O complexo Darth Vader (Augusto de Franco)
Raízes ancestrais da tirania (Augusto de Franco)
Krypteiai spartane (Massimo Nafissi)
The spartans: an epic history (Paul Cartledge)
Sparta: rise of a warrior nation (Philip Matyszak)
Come si abbatte una democrazia. Tecniche di colpo di Stato nell’Atene antica (Cinzia Bearzot)
É a democracia como modo-de-vida que está sendo atacada (Augusto de Franco)
POR QUE É NECESSÁRIO APRENDER A RECONHECER PADRÕES AUTOCRÁTICOS
Como a democracia é, geneticamente, um processo de desconstituição de autocracia, é impossível investigar-aprender democracia sem investigar-aprender autocracia. E como estamos há mais de cinco mil anos vivendo sob autocracias (e tivemos experiências estáveis de democracia em menos de meio milênio e ainda assim, na metade desse tempo, localizadas: no caso, praticamente em apenas um local: Atenas entre 509 e 322 a. E. C.), boa parte da nossa cultura é basicamente autocrática.
Em outras palavras: aprender democracia é desaprender autocracia. Compreendendo o que pode florescer em ambientes sociais fortemente centralizados e nos quais os modos de regulação de conflitos não são democráticos, podemos perceber os sinais e interpretar os sintomas do processo de autocratização da política onde quer que eles surjam, inclusive no interior de regimes formalmente democráticos. Pode-se, inclusive, aprender a detectar as tentativas contemporâneas de autocratização da democracia, baseadas no uso instrumental da democracia no sentido “fraco” do conceito (quer dizer, na utilização de alguns dos mecanismos, instituições e procedimentos da democracia representativa, como o sistema eleitoral), para enfrear o processo de democratização das sociedades. De qualquer modo, para conhecer o poder vertical – a sua “anatomia” e a sua “fisiologia”, vamos dizer assim – devemos estudá-lo em estado puro. Depois será mais fácil perceber seus indícios em nosso cotidiano, inclusive quando surgem em uma pequena organização.
Ainda que estudemos textos teóricos sobre a democracia e experimentemos a democracia como modo de administração política do Estado (que foi ao que se reduziu, nos últimos três séculos, a democracia reinventada pelos modernos), não conseguimos ter um entendimento profundo da democracia na medida em que nossas redes de conversações repetem circularidades inerentes que são próprias da cultura autocrática.
Em contrapartida, não é preciso qualquer esforço para aprender autocracia: começamos aprendendo na família monogâmica e depois vamos aprendendo na escola, na igreja, nas organizações juvenis, no quartel, na universidade, no trabalho em empresas hierárquicas, nas corporações, nos partidos e nos órgãos do Estado.
Aprender democracia exige então identificar matrizes de comportamentos que estão presentes nesses ambientes hierárquicos regidos por modos autocráticos de regulação de conflitos. E é muito difícil fazer isso porque tais padrões estão escondidos sob camadas e camadas de discursos legitimatórios ou disfarçados por explicações funcionais e pragmáticas baseadas na inevitabilidade da hierarquia ou numa suposta competitividade inerente à natureza humana (a besta-fera – um Homo Hostilis – que existiria no interior profundo de cada um de nós, a espera de ser domada pela civilização ou pela religião, como apregoam alguns discursos liberais e conservadores).
Para identificá-los precisamos observá-los e estudá-los – como foi dito acima – em estado puro (por exemplo, num campo de concentração nazista; ou mesmo num campo dito socialista: seja um Gulag do período stalinista ou num campo atual da Coreia do Norte ou numa prisão política cubana). Mas não só.
É importante estudar (segundo a classificação do V-Dem da Universidade de Gotemburgo) as 62 autocracias eleitorais e as 24 autocracias não-eleitorais (ou fechadas) que remanescem no mundo contemporâneo (e sob as quais ainda vive mais da metade da população do planeta). Há uma quantidade imensa de material sobre isso não apenas na história, mas nas práticas institucionais atuais de quase cem países do globo. E aqui também é muito instrutivo estudar as distopias ficcionais (utopias e retropias) que lograram captar componentes do DNA da autocracia.
Em especial, porém, para detectar padrões autocráticos, é necessário estudar os totalitarismos. Há traços de totalitarismo em qualquer movimento autoritário. Mesmo quando movimentos totalitários não conseguem se organizar. Mesmo quando governos totalitários não conseguem se instalar. Estudar, por exemplo, os totalitarismos nazista e stalinista, é fundamental para identificar a presença desses traços nas alternativas antidemocráticas atuais.
Entramos aqui no cerne da exploração do reconhecimento de padrões. Há muitos isomorfismos, por exemplo, entre nazismo e stalinismo e trumpismo e bolsonarismo. Mencionemos, a título de exemplos, alguns deles:
Matar a rede ou exterminar o capital social. Destruir conexões sociais.
Abolir a esfera pública, atomizando-a e substituindo-a por miríades de esferas privadas opacas não interagentes horizontalmente entre si.
Reprimir não apenas as opiniões divergentes, mas fazer sumir o próprio conceito de opinião.
Erradicar a ação gratuita. Como dizia Himmler, ninguém deverá “fazer alguma coisa apenas por amor a essa coisa”.
Banir a política do mundo. Sim, Arendt (1951) tinha razão quando escreveu em as Origens do totalitarismo: “um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe”.
Buscar que as pessoas não apenas ajam sob comando, mas pensem sob comando. Como dizia Hitler, o pensamento só existe “em virtude da formulação ou execução de uma ordem”.
Quebrar os seres humanos para substituir a humanidade por uma espécie de colmeia borg (que não tem quase nada a ver com uma verdadeira colmeia de abelhas).
Só um movimento totalitário que se materialize como governo totalitário – como conseguiram fazer os regimes de Hitler e Stalin – poderá obter, ainda que temporariamente, tais resultados integalmente. Mas isso não significa que movimentos e governos autoritários mais brandos não contenham alguns (ou muitos) desses traços.
Reconhecer esses padrões e perceber isomorfismos quando eles se manifestam em circunstâncias distintas é fundamental para a aprendizagem democrática. Afinal, a democracia – na medida em que é um processo de desconstituição de autocracia – só se aprende mesmo pelo avesso.
Mas há, ainda, um objetivo político atual na investigação de padrões autocráticos. Uma das descobertas mais importantes dos estudos (de pesquisadores do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo) sobre a terceira onda de autocratização em curso é que 70% dos esforços de autocratização são feitos agora por meios legais.
Desde que a terceira onda de autocratização começou em 1994, 75 episódios de aumento de governos autocráticos – períodos de declínio democrático substancial – ocorreram em todo o mundo. A maioria não envolveu violência física. Ou seja, em mais de 52 países os processos de autocratização (ou de assassinato lento da democracia) não rasgaram as constituições (e, pode-se acrescentar, deixaram as instituições funcionando).
As democracias agora são mortas lentamente, como por envenenamento (por arsênico, por exemplo). Isso pode ser feito sem violar as leis, rasgar a Constituição, fechar as instituições (e empastelar a imprensa).
Tanques nas ruas? Nem pensar. Direitos políticos e liberdades civis formais podem permanecer vigendo. Além disso, eleições multipartidárias podem continuar ocorrendo normalmente.
Ah!… mas se tudo isso está funcionando, por que se diz então que as democracias estão sendo mortas? Pois é. Para dar uma resposta a essa pergunta é preciso entender o que é a democracia. Pela visão minimalista de democracia – como troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue – a democracia não está ameaçada nesta terceira onda de autocratização. O que, por si só, revela que essa visão – que reduz a democracia ao processo eleitoral – é absurda. E é absurda, antes de qualquer coisa, porque não percebe que as principais ameaças atuais à democracia vêm dos populismos – que amam de paixão as eleições.
Todavia, mais de 80% dos nossos representantes políticos e uma parte considerável de nossos analistas, também não conseguem entender como a democracia pode estar sendo derruída sem violação das leis. É a isso que nos referimos quando falamos do nosso déficit de democratas.
Para onde devemos olhar para perceber os sinais de envenenamento que estão matando as democracias lentamente? E que sinais são esses?
Recolocando a questão. Onde estão os sinais de envenenamento (da democracia) quando o corpo (as instituições) ainda acha que está sadio? Ou seja, nos estágios iniciais da “doença”, as instituições não percebem que estão sendo envenenadas.
O Estado de direito não dá conta de identificar os ataques contemporâneos à democracia e de se defender desses ataques. Como eles (esses ataques, que são contínuos ou intermitentes – e não se parecem nada com um putsch de cervejaria) não violam abertamente as leis, então são considerados parte da dinâmica normal da democracia. É como colocar o vigia noturno de uma manufatura para cuidar da segurança da Microsoft.
É por isso que não existem leis contra a falsificação da opinião pública via manipulação das mídias sociais. E não é porque isso seja uma novidade contemporânea (do século 21). Bem antes, já não existiam leis contra o discurso inverídico, contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia e nem contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão suporte.
É justamente nessas falhas estruturais da democracia que devemos procurar os sinais de envenenamento (ou de desconsolidação) da democracia.
Apenas com os indicadores atuais de direitos políticos e liberdades civis (usados, por exemplo, pela Freedom House, pela The Economist Intelligence Unit ou mesmo pelo V-Dem) não se consegue captar esses sinais. Até porque eles são fracos nos estágios iniciais do envenenamento. E além de fracos, eles não são visíveis diretamente. As mudanças que vão matar lentamente a democracia são subterrâneas.
Aprender a detectar precocemente esses sinais de desconsolidação da democracia é o objetivo do curso aqui apresentado.