Vamos examinar um escrito de Hannah Arendt (1951) sobre o totalitarismo. É a terceira parte do livro Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Antes, porém, uma advertência.
Por que estudar o totalitarismo
Há traços de totalitarismo em qualquer movimento autoritário. Mesmo quando movimentos totalitários não conseguem se organizar. Mesmo quando governos totalitários não conseguem se instalar. Estudar os totalitarismos nazista e stalinista é fundamental para identificar a presença desses traços nas alternativas antidemocráticas atuais.
Entramos aqui na exploração do reconhecimento de padrões. Há muitos isomorfismos, por exemplo, entre nazismo e stalinismo e trumpismo e bolsonarismo.
Mencionemos, a título de exemplos, alguns deles:
Matar a rede ou exterminar o capital social. Destruir todas as conexões sociais.
Abolir a esfera pública, atomizando-a e substituindo-a por miríades de esferas privadas opacas não interagentes horizontalmente entre si.
Reprimir não apenas as opiniões divergentes, mas fazer sumir o próprio conceito de opinião.
Erradicar a ação gratuita. Como dizia Himmler, ninguém deverá “fazer alguma coisa apenas por amor a essa coisa”.
Banir a política do mundo. Sim, Arendt (1951) tinha razão. “Um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe”.
Buscar que as pessoas não apenas ajam sob comando, mas pensem sob comando. Como dizia Hitler, o pensamento só existe “em virtude da formulação ou execução de uma ordem”.
Quebrar os seres humanos para substituir a humanidade por uma espécie de colmeia borg (que não tem quase nada a ver com um verdadeira colmeia de abelhas).
Só um movimento totalitário que consiga se materializar como governo totalitário – como o de Hitler ou o de Stalin – poderá obter, ainda que temporariamente, tais resultados. Mas isso não significa que movimentos e governos autoritários mais brandos não contenham alguns (ou muitos) desses traços.
Reconhecer esses padrões e perceber isomorfismos quando eles se manifestam em circunstâncias distintas é fundamental para a aprendizagem democrática. Afinal, a democracia – na medida em que é um processo de desconstituição de autocracia – só se aprende pelo avesso.
Agora passemos ao texto de Arendt. Os destaques (em azul) e as interpolações no texto original (em vermelho) são desta edição (de Augusto de Franco) para fins exclusivamente educacionais.
TOTALITARISMO
Os homens normais não sabem que tudo é possível.
David Rousset
ÍNDICE
Prefácio
1. Uma sociedade sem classes
2. O movimento totalitário
3. O totalitarismo no poder
4. Ideologia e terror: uma nova forma de governo
PREFÁCIO
1
O manuscrito original de Origens do totalitarismo foi terminado no outono de 1949, mais de quatro anos depois da derrota da Alemanha de Hitler e menos de quatro anos antes da morte de Stálin. A primeira edição do livro veio à luz em 1951. Os anos em que foi redigido, de 1945 em diante, pareciam ser o primeiro período de relativa calma após décadas de tumulto, confusão e horror — desde as revoluções que se seguiram à Primeira Guerra Mundial até o surgimento de toda sorte de novas tiranias, fascistas e semifascistas, unipartidárias e militares, e, por fim, o firme estabelecimento de governos totalitários baseados no apoio das massas (1) na Rússia em 1929, ano do que se costuma chamar de “segunda revolução”, e na Alemanha em 1933.
A derrota da Alemanha nazista pôs fim a um capítulo da história. O momento parecia apropriado para olhar os eventos contemporâneos com a retrospecção do historiador e com o zelo analítico do cientista político, a primeira oportunidade para tentar narrar e compreender o que havia acontecido — não ainda sine ira et studio, e sim com desgosto e pesar e, portanto, com certa tendência à lamentação, mas já sem a cólera muda e sem o horror impotente. Era, pelo menos, o primeiro momento em que se podia elaborar e articular as perguntas com as quais a minha geração havia sido obrigada a viver a maior parte da sua vida adulta: O que havia acontecido? Por que havia acontecido? Como pôde ter acontecido? Porque, da derrota alemã, que havia deixado para trás um país em ruínas e uma nação que sentia haver retornado ao “ponto zero” da sua história, haviam emergido montanhas de papéis virtualmente intactos, uma superabundância de documentação a respeito de todos os aspectos dos doze anos que durou o Reich milenar de Hitler. As primeiras e ricas seleções desse embarras de richesses, que até hoje não foram adequadamente divulgadas e investigadas, começaram a aparecer em decorrência do Julgamento de Nurembergue dos Principais Criminosos de Guerra, em 1946, nos doze volumes de Nazi conspiracy and aggression (2).
Sine ira et studio = locução latina que significa “sem cólera e paixão”. Expressão de Tácito, anunciando que escrevera sine ira et studio a história dos acontecimentos já nele distantes, usada para indicar o que devem ser as qualidades de historiadores, jornalistas, comentadores ou analistas. Tácito, Anais, I, 1.
Embarras de richesse = Superfluidade de algo, mais do que se precisa ou deseja; uma frase francesa, que significa ‘embaraço de riquezas’, de L’embarras des richesses (1726), título de comédia de Abbé d’Allainval.
Contudo, muitos outros documentos e as mais diversas contribuições sobre o regime nazista haviam chegado às bibliotecas e arquivos quando a segunda edição deste livro apareceu em 1958. O que então aprendi foi muito interessante e, embora não chegasse a exigir mudanças substanciais na análise nem no argumento da minha tese original, tornava necessárias numerosas adições e substituições do material citado nas notas e considerável aumento do texto. Além disso, com um certo número de adendos, levei em consideração alguns dos eventos mais importantes ocorridos depois da morte de Stálin — como a crise da sucessão e o discurso de Khrushchev perante o Vigésimo Congresso do Partido — bem como novas informações sobre o regime de Stálin fornecidas em publicações mais recentes. Fiz, assim, uma revisão da Parte III e do último capítulo da Parte II, enquanto a Parte I, sobre o antissemitismo, e os primeiros quatro capítulos da Parte II, sobre o imperialismo, permaneceram inalterados. Ademais, havia certos conhecimentos de natureza estritamente teórica, intimamente ligados à minha análise dos elementos do domínio total, de que eu não dispunha quando terminei o manuscrito original. O último capítulo desta edição, “Ideologia e terror”, substituiu as “Conclusões” da primeira edição, que foram incorporadas a outros capítulos. A segunda edição trazia ainda um “Epílogo”, no qual se discutia a introdução do sistema russo- soviético nos países satélites e a Revolução Húngara [de 1956]. Superado em muitos detalhes, esse “Epílogo” foi eliminado.
Obviamente, o fim da guerra em 1945 não trouxe o fim do governo totalitário na Rússia. Pelo contrário, foi seguido pela bolchevização da Europa oriental, ou seja, pela expansão do regime totalitário, e a paz nada mais era que uma oportunidade de analisar as semelhanças e diferenças nos métodos e instituições dos dois regimes totalitários. Decisivo nesse sentido não foi o fim da guerra, mas a morte de Stálin, oito anos depois. Retrospectivamente, parece que essa morte foi seguida não apenas de uma crise de sucessão e de um temporário “degelo”, até que um novo líder se houvesse afirmado, mas de um autêntico, se bem que sinuoso e equívoco, processo de destotalitarização. Do ponto de vista dos acontecimentos, portanto, não havia por que atualizar essa parte do meu livro; e, no tocante ao nosso conhecimento daquele período, nada sofreu mudanças suficientemente drásticas para exigir extensas revisões e adições. Em contraste com a Alemanha, onde Hitler usou a guerra conscientemente para desenvolver e aperfeiçoar o governo totalitário, o período da guerra na Rússia foi uma época de suspensão temporária do domínio total. Para fins do meu estudo, os anos de 1929 a 1941 e de 1945 a 1953 são de interesse fundamental, e, para esses períodos, nossas fontes de informações são da mesma natureza e tão escassas como o eram em 1958 ou mesmo em 1949. Nada aconteceu, nem parece provável que aconteça no futuro, que nos apresente o mesmo inequívoco fim da história ou as mesmas provas horríveis, claras e irrefutáveis desse fim, como foi o caso da Alemanha nazista.
A única contribuição nova para o nosso conhecimento — o conteúdo dos Arquivos de Smolensk (publicados em 1958 por Merle Fainsod) — demonstrou a que ponto a escassez da mais elementar documentação e estatística prejudicará todos os estudos desse período da história russa. Porque, embora os arquivos (descobertos no quartel-general do partido em Smolensk pelos alemães e depois capturados, na Alemanha derrotada, pela força de ocupação norte-americana) contenham cerca de 200 mil páginas de documentos e estejam virtualmente intactos no tocante ao período de 1917 a 1938, a quantidade de informação que eles claramente deixam de fornecer é realmente espantosa. Apesar da abundância de material sobre os expurgos de 1929 a 1937, não contêm indicação alguma do número de vítimas nem quaisquer outros dados estatísticos vitais. Os algarismos, quando surgem, são irremediavelmente contraditórios; cada uma das organizações fornece dados diferentes, e tudo o que ficamos sabendo com certeza é que muitos deles foram retidos “na fonte” por ordem do governo (3). Além disso, os arquivos não informam das relações entre os vários setores de autoridade, “entre o Partido, os militares e a NKVD”, ou entre o partido e o governo, e silenciam quanto aos canais de comunicação e comando. Enfim, nada nos ensinam quanto à estrutura organizacional do regime, da qual tanto sabemos no que tange à Alemanha nazista (4). Em outras palavras, embora sempre se tenha sabido que as publicações oficiais soviéticas serviam a fins de propaganda e eram completamente indignas de confiança, agora parece claro que nunca existiram, em parte alguma, fontes dignas de fé e material estatístico em que se pudesse confiar.
Mais séria ainda é outra questão: um estudo do totalitarismo pode ignorar o que aconteceu e está acontecendo na China? Aqui, o nosso conhecimento é ainda menos seguro do que era em relação à Rússia dos anos 30, em parte porque esse país conseguiu isolar-se muito mais radicalmente contra os estrangeiros após a vitória da Revolução, e em parte porque ainda não tivemos o auxílio de desertores dos escalões superiores do Partido Comunista Chinês — o que, aliás, é bem significativo. Durante dezessete anos, as poucas informações claras que possuíamos indicavam diferenças muito importantes: após o período inicial de sangrentos expurgos, cujas vítimas são estimadas em cerca de 15 milhões, ou cerca de 3% da população de 1949 (isto é, em termos percentuais, muito menos que as perdas populacionais devidas à “segunda revolução” de Stálin), não houve recrudescimento do terror, nem massacres de pessoas inocentes, nem categorias de “inimigos objetivos”, nem julgamentos para fins de propaganda (embora tenha havido muitas confissões e “autocríticas” públicas). O famoso discurso de Mao em 1957, “Sobre o modo correto de tratar as contradições do povo”, conhecido sob o título “Que mil flores floresçam”, certamente não era nenhuma declaração de liberdade, mas reconhecia as contradições não antagônicas entre as classes e, o que era mais importante, entre o povo e o governo comunista. O modo de lidar com os oponentes era a “retificação do pensamento”, um complicado processo de constante moldagem e remoldagem dos espíritos, ao qual aparentemente quase toda a população estava sujeita. Nunca soubemos muito bem como isso funcionava na vida de cada dia e quem era isento — isto é, quem procedia à “remoldagem” dos outros —, e não tínhamos a menor ideia dos resultados da “lavagem cerebral”, se era duradoura e se realmente produzia mudanças de personalidade. Se era isso terror, como certamente era, tratava-se de um terror diferente e, quaisquer que tenham sido os seus resultados, não dizimou a população. Reconhecia claramente o interesse nacional, permitiu que o país se desenvolvesse em paz, utilizou a competência dos descendentes das antigas classes governantes e não destruiu os critérios acadêmicos e profissionais — pelo menos até a Revolução Cultural, cujo alvo e métodos nos escapam. Enfim, era óbvio que os “pensamentos” de Mao Tse-tung não seguiam as linhas estabelecidas por Stálin (ou Hitler), que ele não era um assassino instintivo, e que o sentimento nacionalista, tão proeminente em todos os levantes revolucionários nos países que tinham sido colônias, era suficientemente forte para impor limites ao domínio total. Tudo isso parece contrariar certos receios expressos neste livro.
Por outro lado, o Partido Comunista Chinês, após a vitória, procurou logo ser “internacional em sua organização, universal em sua ideologia e global em suas aspirações políticas”, evidenciando o caráter totalitário que se tornou mais nítido durante o desenvolvimento do conflito sino-soviético, embora o próprio conflito possa ter sido provocado por questões nacionais e não ideológicas. A insistência dos chineses em reabilitar Stálin e denunciar as tentativas russas de destotalitarização como um desvio “revisionista” era, por si, bastante ominosa e, para tornar as coisas piores, foi seguida de uma política internacional que visava infiltrar com agentes chineses todos os movimentos revolucionários. É difícil julgar todos esses acontecimentos neste instante, em parte porque não sabemos o suficiente, e em parte porque tudo está ainda em estado de fluidez. A essas incertezas, inerentes à situação, acrescentamos infelizmente nossos próprios preconceitos. Pois o fato de havermos herdado do período da guerra fria uma “contraideologia” oficial — o anticomunismo — não facilita as coisas, nem na teoria nem na prática; e esse anticomunismo tende também a tornar-se global em sua aspiração, e nos leva a construir uma ficção nossa, de sorte que nos recusamos, em princípio, a distinguir entre as várias ditaduras unipartidárias comunistas, com as quais nos defrontamos na realidade, e o autêntico governo totalitário que possa vir a surgir, mesmo sob formas diferentes, na China. O que importa, naturalmente, não é que a China comunista seja diferente da Rússia comunista, como não importava que a Rússia de Stálin fosse diferente da Alemanha de Hitler. A embriaguez e a incompetência, tão comuns em qualquer descrição da Rússia dos anos 20 e 30 e tão comuns ainda hoje, não representaram qualquer papel importante na Alemanha nazista, enquanto a indescritível crueldade gratuita dos campos de concentração e de extermínio alemães parece ter estado geralmente ausente dos campos russos, onde os prisioneiros morriam de abandono e não de tortura. A corrupção, que foi desde o início a maldição da administração russa, esteve também presente nos últimos anos do regime nazista, mas parece estar completamente ausente da China após a revolução. Poderíamos dar muitos exemplos dessas diferenças, que são muito significativas e fazem parte da história nacional dos respectivos países, mas não influem diretamente sobre a forma de governo. Sem dúvida, a monarquia absoluta foi muito diferente na Espanha do que foi na França, na Inglaterra ou na Prússia; mas em todos esses países a forma de governo era a mesma. O que é importante em nosso contexto é que o governo totalitário é diferente das tiranias e das ditaduras; a distinção entre eles não é de modo algum uma questão acadêmica que possa ser deixada, sem riscos, aos cuidados dos “teóricos”, porque o domínio total é a única forma de governo com a qual não é possível coexistir. Assim, temos todos os motivos para usar a palavra “totalitarismo” com cautela.
Em absoluto contraste com a escassez e a incerteza das novas fontes de informação sobre os governos totalitários, vemos uma enorme anuência de estudos sobre as novas ditaduras, totalitárias ou não. Isso se aplica de modo especial à Alemanha nazista e à Rússia soviética. Existem hoje muitas obras realmente indispensáveis para posteriores consultas e estudos do assunto, e fiz o possível para fazê-las constar de minha bibliografia. O único tipo de literatura que, com raras exceções, propositadamente omiti são as diversas memórias publicadas por antigos generais e altos funcionários nazistas após o fim da guerra, pois é perfeitamente compreensível que esse tipo de apologia não prime pela honestidade. Se isso não deve eliminá-la de nossas considerações, a falta de compreensão que essas reminiscências demonstram quanto ao que estava realmente acontecendo e ao papel que os seus autores representaram no curso dos acontecimentos é verdadeiramente espantosa e rouba-lhes todo o interesse, a não ser, talvez, para os psicólogos.
2
No tocante às provas em si, o fato de este livro haver sido concebido e escrito há tanto tempo não foi tão desvantajoso como se poderia supor, e isso se aplica ao que escrevemos tanto a respeito do totalitarismo nazista como do bolchevista. Uma das estranhezas da literatura sobre o totalitarismo é que as tentativas prematuras por parte de contemporâneos de escrever a sua “história” — que, segundo as regras acadêmicas, deveriam esbarrar na ausência de fontes impecáveis de documentação e no superenvolvimento individual — resistem relativamente bem à prova do tempo. A biografia de Hitler por Konrad Heiden e a biografia de Stálin por Boris Souvarine, ambas escritas e publicadas nos anos 30, são em alguns aspectos mais precisas, e em quase todos os aspectos mais relevantes, que as biografias clássicas de Alan Bullock e Isaac Deutscher, respectivamente. Haverá muitas razões para isso, mas uma delas certamente é o simples fato de que o material documentário, em ambos os casos, tendeu a confirmar e a acrescentar ao que já se sabia há muito tempo, através de proeminentes desertores e relatos de outras testemunhas oculares.
Podemos dizer um tanto drasticamente: não foi preciso o discurso secreto de Nikita Khrushchev para que soubéssemos que Stálin havia cometido crimes, nem que esse homem, que se supunha “loucamente desconfiado”, havia decidido confiar em Hitler. Quanto a esse último fato, é a melhor prova de que Stálin não era louco. Tinha razão de suspeitar de todos os que desejava ou se preparava para eliminar, e estes eram sempre os que ocupavam posição de destaque nos escalões superiores do partido e do governo, e confiava naturalmente em Hitler porque não lhe desejava mal. Quanto ao primeiro fato, as surpreendentes confissões de Khrushchev escondiam muito mais do que revelavam — pela óbvia razão de que tanto ele como os seus ouvintes estavam totalmente envolvidos na verdadeira história. Em consequência, indivíduos eruditos, com o seu amor profissional pelas fontes oficiais, minimizaram a gigantesca criminalidade do regime de Stálin, que, afinal de contas, não consistiu meramente na calúnia e no assassinato de uns poucos milhares de figuras importantes do campo político e literário, “reabilitáveis” postumamente, mas no extermínio de um número literalmente sem conta de milhões de pessoas que ninguém, nem mesmo Stálin, podia acusar de atividades “contrarrevolucionárias”. Foi precisamente por admitir alguns crimes que Khrushchev escondeu a criminalidade do regime como um todo, e é contra essa camuflagem e contra a hipocrisia dos atuais dirigentes russos — todos treinados e promovidos por Stálin — que as gerações mais jovens de intelectuais russos entraram em rebelião quase aberta. Estes sabem tudo o que se pode saber a respeito de “expurgos em massa, e deportação e aniquilação de povos inteiros” (5). Além disso, a explicação de Khrushchev para os crimes que confessou era simplória: a demência de Stálin; mas escondia o aspecto mais característico do terror totalitário, que é desencadeado quando toda a oposição organizada já desapareceu e quando o governante totalitário sabe que já não precisa ter medo. Stálin iniciou os seus gigantescos expurgos não em 1928, quando admitia que “temos inimigos internos”, e quando realmente tinha motivos de receio — pois sabia que Bukharin, convencido de que sua política “estava levando o país à fome, à ruína e a um regime policial” (6) como realmente levou, o comparava a Gengis Khan —, mas em 1934, quando todos os antigos oponentes haviam “confessado os seus erros”, e o próprio Stálin, no Décimo Sétimo Congresso do Partido, que ele também chamou de “Congresso dos Vencedores”, havia declarado: “Neste Congresso […] já não há o que provar e, ao que parece, não há ninguém mais a combater” (7).
No que tange ao nosso conhecimento da era de Stálin, o arquivo de Smolensk, citado acima e publicado por Fainsod, é ainda sem dúvida o mais importante documento, e é deplorável que a primeira seleção, feita ao acaso, não tenha sido ainda seguida de outra mais extensa. A julgar pelo livro de Fainsod, há muito o que aprender no tocante ao período da luta de Stálin pelo poder em meados da década de 20: sabemos agora como era precária a posição do Partido (8), não somente porque prevalecia no país um ânimo de franca oposição, mas também porque infestavam-no a corrupção e a embriaguez, que quase todas as exigências de liberalização eram acompanhadas de um antissemitismo declarado (9) e que o esforço de coletivização e eliminação dos kulaks, de 1928 em diante, na verdade interrompeu a NEP, a Nova Política Econômica de Lênin, e com ela a embrionária reconciliação entre o povo e o seu governo (10). Sabemos também como era feroz a oposição solidária de toda a classe camponesa, que achava “melhor não ter nascido do que aderir aos kolkhoz” (11), e condenava essas medidas, recusando-se a ser classificada em camponeses ricos, médios e pobres, para ser a seguir recrutada para a luta contra os kulaks (12) pois havia “alguém pior do que os kulaks, sentado em alguma parte, planejando a campanha de perseguição contra o povo” (13) e que a situação não era muito melhor nas cidades, onde os trabalhadores se recusavam a cooperar com os sindicatos controlados pelo partido, chamando a gerência de “diabos bem alimentados”, “espiões hipócritas”, entre outros epítetos (14).
Fainsod aponta, com razão, que esses documentos mostram claramente não apenas “o descontentamento geral”, mas também a falta de qualquer “oposição suficientemente organizada” contra o regime como um todo. O que ele deixa de observar, e o que, em minha opinião, é igualmente corroborado pelas provas, é que existia uma alternativa óbvia para a tomada do poder por Stálin e a sua transformação da ditadura unipartidária em domínio total, e essa alternativa era a continuação da Nova Política Econômica tal como havia sido iniciada por Lênin (15). Além disso, as medidas tomadas por Stálin com a introdução do Primeiro Plano Quinquenal, de 1928, quando o seu controle do partido era quase completo, demonstram que a transformação das classes em massas e a concomitante eliminação da solidariedade grupal são condições sine qua non do domínio total.
Com relação ao período de inconteste domínio de Stálin, de 1929 em diante, o arquivo de Smolensk tende a confirmar o que já sabíamos antes através de fontes menos irrefutáveis. Isso se aplica até a algumas de suas estranhas lacunas, especialmente quanto a dados estatísticos. Pois essa falta de dados prova apenas, neste ponto como em outros, que o regime de Stálin era cruelmente coerente: eram tratados como mentiras todos os fatos que não concordassem, ou pudessem discordar, com a ficção oficial, fossem dados sobre as colheitas de trigo, a criminalidade ou as reais ocorrências de atividades “contrarrevolucionárias”. Todas as regiões e todos os distritos da União Soviética recebiam os seus dados estatísticos oficiais como recebiam as normas, não menos fictícias, que lhes eram destinadas pelos Planos Quinquenais (16).
Enumerarei brevemente alguns dos pontos mais importantes que antes apenas podíamos adivinhar, e que agora são confirmados pela prova documentária. Sempre suspeitamos, e agora sabemos, que o regime nunca foi “monolítico”, mas “conscientemente construído em torno de funções superpostas, duplicadas e paralelas”, e que o que segurava essa estrutura grotescamente amorfa era o mesmo princípio de liderança — o chamado “culto da personalidade” — que encontramos na Alemanha nazista (17); que o ramo executivo desse governo não era o partido, mas a polícia, cujas “atividades operacionais não eram reguladas através de canais do partido” (18); que as pessoas inteiramente inocentes, as quais o regime liquidava aos milhões, os “inimigos objetivos” na linguagem bolchevista, sabiam que eram “criminosos sem crime” (19); que foi precisamente essa nova categoria, e não os antigos e verdadeiros inimigos do regime — assassinos de autoridades, incendiários ou terroristas —, que reagiu com a mesma “completa passividade” (20) que vimos tão bem na conduta das vítimas do terror nazista. Nunca duvidamos de que o “dilúvio de denúncias mútuas” durante o Grande Expurgo foi tão desastroso para o bem-estar econômico e social do país como foi eficaz para fortalecer o governante totalitário, mas só agora sabemos quão deliberadamente Stálin colocou essa “ominosa cadeia de denúncias em movimento” (21) quando proclamou oficialmente a 29 de julho de 1936: A qualidade inalienável de cada bolchevista nas condições atuais deve ser a capacidade de reconhecer um inimigo do Partido, não importa como ele se disfarce (22). Pois, tal como a “solução final” de Hitler significava tornar realmente obrigatório para a elite do partido nazista o mandamento “Matarás”, o pronunciamento de Stálin recomendava como regra de conduta para todos os membros do partido bolchevista: “Levantarás falso testemunho”. Finalmente, todas as dúvidas que ainda se poderiam alimentar quanto à verdade da teoria segundo a qual o terror dos anos 20 e 30 foi “o alto preço da dor”, exigido pela industrialização e pelo progresso econômico, dissipam-se com esse primeiro documento do verdadeiro estado de coisas, relativo a uma região em particular (23). O terror não produziu industrialização nem progresso. O que a eliminação dos kulaks , a coletivização e o Grande Expurgo produziram foi a fome, as caóticas condições da produção de alimentos e o despovoamento. As consequências têm sido uma perpétua crise na agricultura, uma interrupção do crescimento populacional e a incapacidade de desenvolver e colonizar o interior da Sibéria. Além disso, como o arquivo de Smolensk mostra em detalhes, os métodos stalinistas de governo conseguiram acabar com toda a competência e know-how técnico que o país havia adquirido após a Revolução de Outubro. Tudo isso é realmente um “preço” incrivelmente alto, cobrado não apenas em dor, pela abertura de vagas no partido e na burocracia do governo para setores da população que, muitas vezes, não eram apenas “politicamente analfabetos” (24). Na verdade, o preço do regime totalitário foi tão alto que ainda não foi inteiramente pago na Alemanha pós-nazista nem na Rússia pós-stalinista.
3
Mencionei antes o processo de destotalitarização que se seguiu à morte de Stálin. Em 1958, eu ainda não estava certa de que o “degelo” fosse mais que um relaxamento temporário, uma espécie de medida de emergência devido à crise de sucessão, não muito diferente do afrouxamento dos controles totalitários durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda hoje não podemos saber se este processo é final e irreversível, mas já não podemos chamá-lo de temporário ou provisório. Pois, como quer que interpretemos a linha sinuosa e frequentemente desnorteante da política soviética desde 1953, é inegável que o enorme império policial foi liquidado, que a maioria dos campos de concentração foi dissolvida, que não houve mais expurgos de “inimigos objetivos”, e que os conflitos entre os membros da nova “liderança coletiva” são agora resolvidos pela remoção e pelo exílio, e não por julgamentos ostensivos, confissões e assassinatos. É verdade que os métodos usados pelos governantes, nos anos que se seguiram à morte de Stálin, ainda obedeciam aos padrões estabelecidos por este após a morte de Lênin: surgiu novamente um triunvirato chamado de “liderança coletiva”, termo cunhado por Stálin em 1925 e, após quatro anos de intrigas e de luta pelo poder, houve uma repetição do coup d’état de Stálin em 1929, ou seja, a tomada do poder por Nikita Khrushchev em 1957. Tecnicamente, o golpe de Khrushchev seguiu muito de perto os métodos do seu falecido e denunciado mestre. Ele também precisou de uma força externa para galgar o poder na hierarquia do partido, e usou o apoio do marechal Zhukov e do Exército exatamente do mesmo modo como Stálin havia usado suas relações com a polícia secreta na luta sucessória de trinta anos antes (25). Tal como no caso de Stálin, quando o poder supremo depois do golpe continuou a residir no partido, e não na polícia, também no caso de Khrushchev “em fins de 1957 o Partido Comunista da União Soviética havia alcançado uma posição de supremacia inconteste em todos os aspectos da vida soviética” (26); porque, do mesmo modo como Stálin jamais hesitara em expurgar os seus escalões policiais e liquidar o seu chefe, também Khrushchev havia imitado suas manobras intrapartidárias removendo Zhukov do Presidium e do Comitê Central do Partido, ao qual havia sido eleito após o golpe, além de afastá-lo do posto de mais alto comandante do Exército.
É verdade que, quando Khrushchev recorreu ao apoio de Zhukov, a ascendência do Exército sobre a polícia era um fato consumado na União Soviética. Essa havia sido uma das consequências automáticas da destruição do império policial, cujo domínio sobre enorme parte das indústrias, minas e propriedades imobiliárias soviéticas fora herdado pelo grupo administrativo, que de súbito se viu livre do seu mais sério concorrente econômico. A ascendência automática do Exército foi ainda mais decisiva: possuía agora um claro monopólio dos instrumentos de violência com que decidir os conflitos intrapartidários. O fato de Khrushchev haver percebido, mais depressa que os seus colegas, as consequências do que presumivelmente haviam feito em conjunto mostra a sua perspicácia. Mas, quaisquer que tenham sido os seus motivos, essa transferência de ênfase da polícia para os militares no jogo do poder teve grandes consequências. É verdade que a ascendência da polícia secreta sobre o aparelho militar é a marca de muitas tiranias, e não somente das tiranias totalitárias; mas, no caso do governo totalitário, a preponderância da polícia não apenas atende à necessidade de suprimir a população em casa, como se ajusta à pretensão ideológica de domínio global. Pois é evidente que os que veem toda a terra como seu futuro território darão destaque ao órgão de violência doméstica e governarão os territórios conquistados com as medidas e o pessoal da polícia, e não com o Exército. Assim, os nazistas usaram as suas tropas SS, essencialmente uma força policial, para governar e até conquistar territórios estrangeiros, visando ulteriormente a uma fusão do exército com a polícia sob a liderança da SS.
Além do mais, a importância dessa mudança no balanço do poder havia sido evidente antes, por ocasião da supressão da Revolução Húngara pela força. A sangrenta repressão da revolução, terrível e eficaz como foi, havia sido obra das unidades do Exército regular e não das tropas policiais e, consequentemente, não representou uma solução tipicamente stalinista. Embora a operação militar fosse seguida da execução dos líderes e da prisão de milhares de pessoas, não houve nenhuma deportação em massa; de fato, não houve qualquer tentativa de despovoar o país. E, como se tratava de uma operação militar, e não de uma ação policial, os soviéticos puderam mandar para o país derrotado o auxílio necessário para evitar a fome em massa e adiar um completo colapso da economia no ano que se seguiu à revolução. Certamente, nada estaria mais longe do espírito de Stálin em circunstâncias semelhantes.
O sinal mais evidente de que a União Soviética já não se pode mais chamar totalitária no estrito sentido do termo é, naturalmente, a espantosamente rápida e fecunda recuperação das artes durante a última década. É verdade que, de vez em quando, surgem esforços para reabilitar Stálin e refrear as crescentes exigências de liberdade de expressão e de pensamento por parte de estudantes, escritores e artistas, mas nenhum desses esforços tem sido muito bem-sucedido, nem pode ser bem-sucedido sem um completo restabelecimento do terror e do domínio policial. Sem dúvida, o povo da União Soviética não tem qualquer forma de liberdade política; falta-lhe não apenas a liberdade de associação, mas também a liberdade de pensamento, opinião e expressão pública. Nada parece ter mudado; mas, de fato, tudo mudou. Quando Stálin morreu, as gavetas dos escritores e dos artistas estavam vazias; hoje, existe toda uma literatura que circula em forma de manuscrito, e toda forma de pintura moderna é experimentada nos estúdios dos pintores e se torna conhecida, embora não possa ser exibida. Não pretendemos minimizar a diferença entre a censura tirânica e a liberdade das artes, mas apenas acentuar o fato de que a diferença entre uma literatura clandestina e nenhuma literatura é igual à diferença entre um e zero.
Ademais, o próprio fato de que os membros da oposição intelectual são levados a julgamento (mesmo que não seja um julgamento aberto), podem fazer-se ouvir nos tribunais e contar com apoio fora das cortes de justiça, nada confessam e declaram-se inocentes demonstra que já não estamos mais lidando com o domínio total. O que sucedeu a Sinyavsky e Daniel, os dois escritores que, em fevereiro de 1966, foram julgados por haverem publicado no exterior livros que não poderiam ter sido publicados na União Soviética, e foram condenados a sete e cinco anos de trabalho forçado respectivamente, foi, sem dúvida, um absurdo, do ponto de vista dos critérios da justiça de um governo constitucional; mas o que tinham a dizer foi ouvido em todo o mundo e não será facilmente esquecido. Não desapareceram no poço do esquecimento que os governantes totalitários abrem para os seus oponentes. Menos divulgado e talvez ainda mais importante é o fato de que a ambiciosa tentativa de Khrushchev de reverter o processo de destotalitarização foi um completo fracasso. Em 1957, ele introduziu uma nova “lei contra os parasitas sociais” que poderia ter dado ao regime o poder de retornar às deportações em massa, reinstituir o trabalho escravo em grande escala e — o que era mais importante para o domínio total — desencadear nova onda de denúncias em massa, pois os “parasitas” seriam selecionados pelo próprio povo em comícios maciços. A “lei”, porém, foi obstada pelos juristas soviéticos e abolida antes que pudesse ser posta em prática (27). Em outras palavras, o povo da União Soviética emergiu do pesadelo do governo totalitário para as muitas privações, perigos e injustiças da ditadura unipartidária; e, embora seja perfeitamente verdadeiro que essa moderna forma de tirania não oferece nenhuma das seguranças do governo constitucional, que, “mesmo aceitando os pressupostos da ideologia comunista, todo poder na URSS é, em última análise, ilegítimo” (28), e que, portanto, o país pode voltar ao totalitarismo da noite para o dia sem grandes convulsões, também é verdade que a mais horrível forma de governo, cujos elementos e origens históricas me propus analisar, terminou na Rússia com a morte de Stálin, da mesma forma como o totalitarismo terminou na Alemanha com a morte de Hitler.
Este livro trata do totalitarismo, suas origens e elementos. As consequências do totalitarismo na Alemanha ou na Rússia são pertinentes apenas na medida em que possam esclarecer o que sucedeu no passado. Assim, é relevante em nosso contexto não o período após a morte de Stálin, mas a era do seu governo no pós-guerra. E esses oito anos, de 1945 a 1953, confirmam e desenrolam diante dos nossos olhos, sem contradizer nem acrescentar novos elementos, o que havia se tornado evidente desde meados da década de 30. Os acontecimentos que se seguiram à vitória, as medidas tomadas para reafirmar o domínio total após o temporário relaxamento do período da guerra na União Soviética, bem como aquelas através das quais o governo totalitário fora introduzido nos países satélites, todos seguem as regras do jogo que viemos a conhecer. A bolchevização dos países satélites começou com as táticas da frente popular e um falso sistema parlamentar; passou rapidamente ao franco estabelecimento de ditaduras unipartidárias nas quais os líderes e os membros dos partidos, que eram tolerados antes, foram liquidados; e depois atingiu o estágio final quando os líderes comunistas nativos, dos quais Moscou suspeitava com ou sem razão, foram brutalmente incriminados, humilhados em julgamentos ostensivos, torturados e mortos sob o domínio dos mais corruptos e desprezíveis elementos do partido, ou seja, aqueles que eram fundamentalmente, não comunistas, mas agentes de Moscou. Foi como se Moscou repetisse apressadamente todos os estágios da Revolução de Outubro até o surgimento da ditadura totalitária. A história, portanto, embora indescritivelmente horrível, não tem, por si mesma, muito interesse, e muda pouco: o que sucedeu a um país satélite ocorreu quase ao mesmo tempo a todos os outros, do Báltico ao Adriático. Os acontecimentos diferiram em regiões não incluídas no sistema de satélites. Os Estados bálticos foram diretamente incorporados à União Soviética, e sofreram muito mais que os satélites; mais de meio milhão de pessoas foram deportadas dos três pequenos países e um “enorme influxo de colonizadores russos” começou a ameaçar as populações nativas, transformadas em minoritárias em seus próprios países (29). Até a Alemanha Oriental, após a construção do muro de Berlim, acabou sendo inteiramente incorporada ao sistema dos satélites, tendo sido tratada antes como mero território ocupado, governado por um quisling.
Quisling = pessoa que trai sua pátria, ajudando um inimigo invasor; quinta-coluna. O uso do sobrenome Quisling como termo depreciativo é anterior à Segunda Guerra Mundial. O primeiro uso registrado do termo foi feito pelo político do Partido Trabalhista norueguês Oscar Torp em uma entrevista a um jornal em 2 de janeiro de 1933, onde o usou como um termo geral para os seguidores de Vidkun Quisling . Quisling estava neste ponto no processo de estabelecer o partido Nasjonal Samling (Unidade Nacional), um partido fascista inspirado no Partido Nazista Alemão.
Para o nosso contexto, são mais importantes os acontecimentos da União Soviética, especialmente depois de 1948 — o ano da misteriosa morte de Zhdanov e do processo de Leningrado. Pela primeira vez depois do Grande Expurgo, Stálin mandou executar grande número de altos e altíssimos funcionários, e sabemos sem sombra de dúvida que isso foi planejado como início de outro expurgo de dimensões nacionais. Este teria sido atribuída à “conspiração dos médicos”, se a morte de Stálin não viesse antes. Um grupo de médicos, a maioria dos quais judeus, foi acusado de haver tramado “eliminar os escalões superiores da URSS” (30). Tudo o que sucedeu na Rússia entre 1948 e janeiro de 1953, quando a “conspiração dos médicos” estava sendo “descoberta”, tinha uma notável e ominosa semelhança com os preparos do Grande Expurgo dos anos 30: a morte de Zhdanov e o expurgo de Leningrado correspondiam à não menos misteriosa morte de Kirov em 1934, que foi imediatamente seguida de uma espécie de expurgo preparatório “de todos os antigos opositores que ainda existiam no Partido” (31). Além do mais, o próprio conteúdo da absurda acusação contra os médicos — que iriam matar pessoas em posição de destaque em todo o país — deve ter enchido de temerosos presságios todos os que conheciam o método de Stálin, de acusar um inimigo fictício do crime que ele mesmo ia cometer. (O melhor exemplo conhecido é, naturalmente, a acusação de que Tukhachévski conspirava junto com a Alemanha, no próprio momento em que Stálin pensava em aliar-se aos nazistas.) É claro que, em 1952, o séquito de Stálin conhecia muito melhor o real significado de suas palavras do que nos anos 30, e o próprio fraseado da acusação deve ter semeado o pânico entre todos os altos funcionários do regime. Esse pânico pode ainda ter sido a explicação mais plausível da morte de Stálin, das misteriosas circunstâncias em que ocorreu e do rápido cerrar de fileiras nos altos escalões do partido, notoriamente minado por conflitos e intrigas, durante os primeiros meses da crise de sucessão. Por menos que conheçamos os detalhes da história, sabemos mais do que o suficiente para confirmar a minha convicção original, de que “operações de desmonte” como o Grande Expurgo não eram episódios isolados, não eram excessos do regime motivados por circunstâncias raras, mas constituíam uma instituição do terror e deviam ser esperadas a intervalos regulares — a não ser, naturalmente, que mudasse a própria natureza do regime.
O elemento novo mais dramático desse último expurgo planejado por Stálin, nos últimos anos de sua vida, foi uma importante mudança de ideologia: a introdução de uma conspiração mundial judaica. Durante anos, os fundamentos para essa mudança haviam sido cuidadosamente elaborados numa série de julgamentos nos países satélites — o julgamento de Rajk na Hungria, o caso Ana Pauker na Romênia e, em 1952, o julgamento de Slansky na Tchecoslováquia. Nessas medidas preparatórias, altos funcionários do partido foram escolhidos por suas origens “burgueso-judaicas” e acusados de sionismo; aos poucos, essa acusação foi alterada para implicar agências notoriamente não sionistas (especialmente o Comitê Judaico-Americano), insinuando que todos os judeus eram sionistas e que todos os grupos sionistas eram “assalariados do imperialismo norte-americano”. Naturalmente, nada havia de novo no “crime” do sionismo; mas, à medida que a campanha progredia e começava a concentrar-se nos judeus da União Soviética, outra mudança importante ocorreu: os judeus eram agora acusados de “cosmopolitismo” e não de sionismo, e o tipo de acusação que derivava desse slogan seguia cada vez mais de perto o modelo nazista de uma conspiração mundial judaica ao estilo dos sábios do Sião. Ficou surpreendentemente claro como fora profunda a impressão que esse fundamento da ideologia nazista deve ter causado a Stálin; a primeira indicação disso tornara-se evidente desde o pacto Hitler-Stálin. É verdade que, em parte, isso se devia ao seu óbvio valor propagandístico na Rússia, bem como em todos os países satélites, onde o sentimento antijudaico era corrente e a propaganda antijudaica sempre fora popular, mas também em parte porque esse tipo de conspiração mundial fictícia era um pano de fundo ideologicamente mais adequado às pretensões totalitárias de domínio mundial do que Wall Street, capitalismo e imperialismo. A adoção franca e despudorada do que se havia tornado para o mundo inteiro o sinal mais evidente do nazismo foi a última homenagem que Stálin prestou ao seu falecido colega e rival no domínio total, com quem, muito a contragosto, não pudera chegar a um acordo duradouro.
Stálin, como Hitler, morreu sem terminar o horror que havia planejado. E, quando isso aconteceu, a história que este livro vai contar e os eventos que procura interpretar e compreender chegaram a um fim pelo menos provisório.
Hannah Arendt
Junho de 1966
1. UMA SOCIEDADE SEM CLASSES
1. 1 AS MASSAS
Nada caracteriza melhor os movimentos totalitários em geral — e principalmente a fama de que desfrutam os seus líderes — do que a surpreendente facilidade com que são substituídos. Stálin conseguiu legitimar-se como herdeiro político de Lênin à custa de amargas lutas intrapartidárias e de vastas concessões à memória do antecessor. Já os sucessores de Stálin procuraram substituí-lo sem tais condescendências, embora ele houvesse permanecido no poder por trinta anos e dispusesse de uma máquina de propaganda, desconhecida ao tempo de Lênin, para imortalizar o seu nome. O mesmo se aplica a Hitler, que durante toda a vida exerceu um fascínio que supostamente cativava a todos (1), e que, depois de derrotado e morto, está hoje tão completamente esquecido que mal representa alguma coisa, mesmo entre os grupos neofascistas e neonazistas da Alemanha. Essa impermanência tem certamente algo a ver com a volubilidade das massas e da fama que as tem por base; mas seria talvez mais correto atribuí-la à essência dos movimentos totalitários, que só podem permanecer no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia. Assim, até certo ponto, essa impermanência é um testemunho lisonjeiro para os líderes mortos, pois significa que conseguiram contaminar os seus súditos com aquele vírus especificamente totalitário que se caracteriza, entre outras coisas, pela extraordinária adaptabilidade e falta de continuidade. Donde se conclui que pode ser errado presumir que a inconstância e o esquecimento das massas signifiquem estarem curadas da ilusão totalitária, vez por outra identificada com o culto a Hitler ou a Stálin: a verdade pode ser exatamente o oposto.
Seria um erro ainda mais grave esquecer, em face dessa impermanência, que os regimes totalitários, enquanto no poder, e os líderes totalitários, enquanto vivos, sempre “comandam e baseiam-se no apoio das massas” (2). A ascensão de Hitler ao poder foi legal dentro do sistema majoritário (3) e ele não poderia ter mantido a liderança de tão grande população, sobrevivido a tantas crises internas e externas, e enfrentado tantos perigos de lutas intrapartidárias, se não tivesse contado com a confiança das massas. Isso se aplica também a Stálin. Nem os julgamentos de Moscou nem a liquidação do grupo de Röhm teriam sido possíveis se essas massas não tivessem apoiado Stálin e Hitler. A crença generalizada de que Hitler era simplesmente um agente dos industriais alemães e a de que Stálin só venceu a luta sucessória depois da morte de Lênin graças a uma conspiração sinistra são lendas que podem ser refutadas por muitos fatos e, acima de tudo, pela indiscutível popularidade dos dois líderes (4). Não se pode atribuir essa popularidade ao sucesso de uma propaganda magistral e mentirosa que conseguiu arrolar a ignorância e a estupidez. Pois a propaganda dos movimentos totalitários, que precede a instauração dos regimes totalitários e os acompanha, é invariavelmente tão franca quanto mentirosa, e os governantes totalitários em potencial geralmente iniciam suas carreiras vangloriando-se de crimes passados e planejando cuidadosamente os seus crimes futuros. Os nazistas “estavam convencidos de que o mal, em nosso tempo, tem uma atração mórbida” (5); os bolchevistas diziam não reconhecer os padrões morais comuns, e essa afirmação, feita dentro e fora da Rússia, tornou-se um dos pilares da propaganda comunista; e a experiência demonstrou que o valor propagandístico do mal e o desprezo geral pelos padrões morais independem do interesse pessoal, que se supõe ser o fator psicológico mais poderoso na política.
A atração que o mal e o crime exercem sobre a mentalidade da ralé não é novidade. Para a ralé, os “atos de violência podiam ser perversos, mas eram sinal de esperteza” (6). Mas o que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo dos seus adeptos. É compreensível que as convicções de um nazista ou bolchevista não sejam abaladas por crimes cometidos contra os inimigos do movimento; mas o fato espantoso é que ele não vacila quando o monstro começa a devorar os próprios filhos, nem mesmo quando ele próprio se torna vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados. Pelo contrário: para o assombro de todo o mundo civilizado, estará até disposto a colaborar com a própria condenação e tramar a própria sentença de morte, contanto que o seu status como membro do movimento permaneça intacto (7). Seria ingênuo pensar que essa obstinada convicção, que sobrevive a todas as experiências reais e anula todo interesse pessoal, seja mera expressão de idealismo ardente. O idealismo, tolo ou heroico, nasce da decisão e da convicção individuais, mas forja-se na experiência (8). O fanatismo dos movimentos totalitários, ao contrário das demais formas de idealismo, desaparece no momento em que o movimento deixa em apuros os seus seguidores fanáticos, matando neles qualquer resto de convicção que possa ter sobrevivido ao colapso do próprio movimento (9). Mas, dentro da estrutura organizacional do movimento, enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parecem ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte.
Os movimentos totalitários objetivam e conseguem organizar as massas — e não as classes, como o faziam os partidos de interesses dos Estados nacionais do continente europeu, nem os cidadãos com suas opiniões peculiares quanto à condução dos negócios públicos, como o fazem os partidos dos países anglo-saxões. Todos os grupos políticos dependem da força numérica, mas não na escala dos movimentos totalitários, que dependem da força bruta, a tal ponto que os regimes totalitários parecem impossíveis em países de população relativamente pequena (10), mesmo que outras condições lhes sejam favoráveis. Depois da Primeira Guerra Mundial, uma onda antidemocrática e pró-ditatorial de movimentos totalitários e semitotalitários varreu a Europa: da Itália disseminaram-se movimentos fascistas para quase todos os países da Europa central e oriental (os tchecos — mas não os eslovacos — foram uma das raras exceções); contudo, nem mesmo Mussolini, embora useiro da expressão “Estado totalitário”, tentou estabelecer um regime inteiramente totalitário (11), contentando-se com a ditadura unipartidária. Ditaduras não totalitárias semelhantes surgiram, antes da Segunda Guerra Mundial, na Romênia, Polônia, nos Estados bálticos (Lituânia e Letônia), na Hungria, em Portugal e, mais tarde, na Espanha. Os nazistas, cujo instinto era infalível para discernir essas diferenças, costumavam comentar com desprezo as falhas dos seus aliados fascistas, ao passo que a genuína admiração que nutriam pelo regime bolchevista da Rússia (e pelo Partido Comunista da Alemanha) só era igualada e refreada por seu desprezo em relação às raças da Europa oriental (12). O único homem pelo qual Hitler sentia “respeito incondicional” era “Stálin, o gênio” (13) e, embora no caso de Stálin e do regime soviético não possamos dispor (e provavelmente nunca venhamos a ter) a riqueza de documentos que encontramos na Alemanha nazista, sabemos, desde o discurso de Khrushchev perante o Vigésimo Congresso do Partido Comunista, que também Stálin só confiava num homem, e que esse homem era Hitler (14).
Em todos esses países menores da Europa, movimentos totalitários precederam ditaduras não totalitárias, como se o totalitarismo fosse um objetivo demasiadamente ambicioso, e como se o tamanho do país forçasse os candidatos a governantes totalitários a enveredar pelo caminho mais familiar da ditadura de classe ou de partido. Na verdade, esses países simplesmente não dispunham de material humano em quantidade suficiente para permitir a existência de um domínio total — qualquer que fosse — e as elevadas perdas populacionais decorrentes da implantação de tal sistema (15). Sem muita possibilidade de conquistar territórios, os ditadores desses pequenos países eram obrigados à moderação, sem a qual corriam o risco de perder os poucos súditos de que dispunham. Por isso, também o nazismo, antes do início da guerra, ficou tão aquém do seu similar russo em matéria de coerência e crueldade, uma vez que nem sequer o povo alemão era suficientemente numeroso para permitir o completo desenvolvimento dessa nova forma de governo. Somente se tivesse vencido a guerra, a Alemanha teria conhecido um governo totalitário completo; e podem-se avaliar e vislumbrar os sacrifícios a que isso teria levado não apenas as “raças inferiores”, mas os próprios alemães, através dos planos de Hitler que ficaram para a posteridade (16). De qualquer modo, foi só durante a guerra, depois que as conquistas do Leste forneceram grandes massas e tornaram possíveis os campos de extermínio, que a Alemanha pôde estabelecer um regime verdadeiramente totalitário. (O regime totalitário encontra ambiente assustadoramente favorável nas áreas de tradicional despotismo oriental como a Índia ou a China, onde existe material humano quase inesgotável para alimentar a máquina de poder e de destruição de homens que é o domínio total, e onde, além disso, o sentimento de superfluidade do homem da massa — um fenômeno inteiramente novo na Europa, resultado do desemprego em massa e do crescimento populacional dos últimos 150 anos — prevalece há séculos no desprezo pela vida humana.) A moderação ou métodos menos sangrentos de domínio não se deviam tanto ao receio dos governos de que pudesse haver rebelião popular: resultaram de uma ameaça muito mais séria: o despovoamento de seus próprios países. Somente onde há grandes massas supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de despovoamento é que se torna viável o governo totalitário, diferente do movimento totalitário.
Os movimentos totalitários são possíveis onde quer que existam massas que, por um motivo ou outro, desenvolveram certo gosto pela organização política. As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados, limitados e atingíveis. O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto.
Em sua ascensão, tanto o movimento nazista da Alemanha quanto os movimentos comunistas da Europa depois de 1930 (17) recrutaram os seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes, que todos os outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado apáticas ou estúpidas para lhes merecerem a atenção. A maioria dos seus membros, portanto, consistia em elementos que nunca antes haviam participado da política. Isso permitiu a introdução de métodos inteiramente novos de propaganda política e a indiferença aos argumentos da oposição: os movimentos, até então colocados fora do sistema de partidos e rejeitados por ele, puderam moldar um grupo que nunca havia sido atingido por nenhum dos partidos tradicionais. Assim, sem necessidade e capacidade de refutar argumentos contrários, preferiram métodos que levavam à morte em vez da persuasão, que traziam terror em lugar de convicção. As discórdias ideológicas com outros partidos ser-lhes iam desvantajosas se eles competissem sinceramente com esses partidos; não o eram, porém, porquanto lidavam com pessoas que tinham motivos para hostilizar igualmente todos os partidos.
Ou seja, os movimentos totalitários inventam uma nova população politicamente ativa a partir de um campo antipolítico.
O sucesso dos movimentos totalitários entre as massas significou o fim de duas ilusões dos países democráticos em geral e, em particular, dos Estados-nações europeus e do seu sistema partidário. A primeira foi a ilusão de que o povo, em sua maioria, participava ativamente do governo e todo indivíduo simpatizava com um partido ou outro. Esses movimentos, pelo contrário, demonstraram que as massas politicamente neutras e indiferentes podiam facilmente constituir a maioria num país de governo democrático e que, portanto, uma democracia podia funcionar de acordo com normas que, na verdade, eram aceitas apenas por uma minoria. A segunda ilusão democrática destruída pelos movimentos totalitários foi a de que essas massas politicamente indiferentes não importavam, que eram realmente neutras e que nada mais constituíam senão um silencioso pano de fundo para a vida política da nação. Agora, os movimentos totalitários demonstravam que o governo democrático repousava na silenciosa tolerância e aprovação dos setores indiferentes e desarticulados do povo, tanto quanto nas instituições e organizações articuladas e visíveis do país. Assim, quando os movimentos totalitários invadiram o Parlamento com o seu desprezo pelo governo parlamentar, pareceram simplesmente contraditórios; mas, na verdade, conseguiram convencer o povo em geral de que as maiorias parlamentares eram espúrias e não correspondiam necessariamente à realidade do país, solapando com isso a dignidade e a confiança dos governos na soberania da maioria.
Tem sido frequentemente apontado que os movimentos totalitários usam e abusam das liberdades democráticas com o objetivo de suprimi-las. Não porque os seus líderes sejam diabolicamente espertos ou as massas sejam infantilmente ignorantes. As liberdades democráticas podem basear-se na igualdade de todos os cidadãos perante a lei; mas só adquirem significado e funcionam organicamente quando os cidadãos pertencem a agremiações ou são representados por elas, ou formam uma hierarquia social e política. O colapso do sistema de classes como estratificação social e política dos Estados-nações europeus foi certamente “um dos mais dramáticos acontecimentos da recente história alemã” (18) e favoreceu a ascensão do nazismo na mesma medida em que a ausência de estratificação social na imensa população rural da Rússia – esse “grande corpo flácido destituído de educação política, quase inacessível a ideias capazes de ação nobilitante”, como disse Górki (19) – favoreceu a deposição, pelos bolchevistas, do governo democrático de Kerenski. As condições sociais da Alemanha antes de Hitler mostraram os perigos implícitos no desenvolvimento do Ocidente, uma vez que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, o mesmo dramático colapso do sistema de classes se repetiu em quase todos os países europeus, enquanto as ocorrências na Rússia indicam claramente o rumo que podem tomar as inevitáveis mudanças revolucionárias na Ásia. Na prática, pouco importa que os movimentos totalitários adotem os padrões do nazismo ou do bolchevismo, que organizem as massas em nome de classes ou de raças, ou que pretendam seguir as leis da vida e da natureza ou as da dialética e da economia.
A indiferença em relação aos negócios públicos e a neutralidade em questões de política não são, por si, causas suficientes para o surgimento de movimentos totalitários. A sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia gerou apatia, e até mesmo hostilidade, em relação à vida pública, não apenas entre as camadas sociais exploradas e excluídas da participação ativa no governo do país, mas acima de tudo entre a sua própria classe. O longo período de falsa modéstia, em que a burguesia se contentou em ser a classe social dominante sem aspirar ao domínio político, relegado à aristocracia, foi seguido pela era imperialista, durante a qual a burguesia tornou-se cada vez mais hostil às instituições nacionais existentes e passou a exigir o poder político e a organizar-se para exercê-lo. Tanto a antiga apatia como a nova exigência de direção monopolística e ditatorial resultavam de uma filosofia para a qual o sucesso ou o fracasso do indivíduo em acirrada competição era o supremo objetivo, de tal modo que o exercício dos deveres e responsabilidades do cidadão era tido como perda desnecessária do seu tempo e energia. Essas atitudes burguesas são muito úteis àquelas formas da ditadura nas quais um “homem forte” assume a incômoda responsabilidade de conduzir os negócios públicos; mas constituem um obstáculo para os movimentos totalitários, que não podem tolerar o individualismo burguês ou qualquer outro tipo de individualismo. Os elementos apáticos da sociedade burguesa, por mais que relutem em assumir as responsabilidades de cidadãos, mantêm intacta a sua personalidade, pelo menos porque ela lhes permite sobreviver na luta competitiva pela vida.
É difícil perceber onde as organizações da ralé do século 19 diferem dos movimentos de massa do século 20, porque os modernos líderes totalitários não diferem muito em psicologia e mentalidade dos antigos líderes da escória, cujos padrões morais e esquemas políticos, aliás, tanto se assemelhavam aos da burguesia. Embora o individualismo caracterizasse tanto a atitude da burguesia como a da ralé em relação à vida, os movimentos totalitários podem, com justiça, afirmar terem sido os primeiros partidos realmente antiburgueses, o que não aconteceu com os seus predecessores do século 19. Nem a Sociedade do 1.0 de Dezembro (que ajudou a colocar Luís Napoleão no poder), nem as brigadas de açougueiros (que atuaram no Caso Dreyfus), nem as Centenas Negras (que organizavam os pogroms na Rússia), nem os movimentos étnicos de unificação envolveram os seus membros ao ponto de fazê-los perder completamente suas reivindicações e ambições individuais, nem chegaram a conceber que uma organização conseguisse apagar a identidade do indivíduo para sempre, e não apenas por um instante de heroico gesto coletivo.
A relação entre a sociedade de classes dominada pela burguesia e as massas que emergiram do seu colapso não é a mesma entre a burguesia e a ralé, que era um subproduto da produção capitalista. As massas têm em comum com a ralé apenas uma característica, ou seja, ambas estão fora de qualquer ramificação social e representação política normal. As massas não herdam, como o faz a ralé, os padrões e atitudes da classe dominante, mas repetem, e de certo modo pervertem, os padrões e atitudes de todas as classes em relação aos negócios públicos. Os padrões do homem da massa são determinados não apenas pela classe específica à qual antes pertenceu, mas acima de tudo por influências e convicções gerais que são tácita e silenciosamente compartilhadas por todas as classes da sociedade.
Fazer parte de uma classe, embora mais vaga e nunca tão inevitavelmente determinada pela origem social como nas ordens e Estados da sociedade feudal, era geralmente uma questão de nascimento, e somente a sorte ou dons extraordinários poderiam mudá-la. O status social era decisivo para que um indivíduo participasse da política e, exceto em casos de emergência, quando se esperava que ele agisse apenas como um nacional, independentemente de classe ou partido, ele nunca se defrontava diretamente com as coisas públicas ou se sentia diretamente responsável por conduzi-las. À ascensão de uma classe correspondia a intensificação da instrução e treinamento de certo número de seus membros para a política como carreira e para o serviço do governo, pago ou gratuito, se a isso podiam permitir-se, e para a representação da classe no Parlamento. A ninguém importava que a maioria dos membros de cada classe permanecesse fora de qualquer partido ou organização política. Em outras palavras, o fato de um indivíduo pertencer a uma classe, que tinha obrigações grupais limitadas e certas atitudes tradicionais em relação ao governo, impediu o crescimento de um corpo de cidadãos que se sentissem, individual e pessoalmente, responsáveis pelo governo do país. Esse caráter apolítico das populações dos Estados-nações veio à tona somente quando o sistema de classes entrou em colapso e destruiu toda a urdidura de fios visíveis e invisíveis que ligavam o povo à estrutura política.
O colapso do sistema de classes significou automaticamente o colapso do sistema partidário, porque os partidos, cuja função era representar interesses, não mais podiam representá-los, uma vez que a sua fonte e origem eram as classes. Sua continuidade tinha ainda certa importância para os membros das antigas classes que esperavam inutilmente recuperar o status social, e mantinham-se coesos não porque ainda tivessem interesses comuns, mas porque esperavam restaurá-los. Consequentemente, os partidos tornaram-se mais e mais psicológicos e ideológicos em sua propaganda, e mais apologéticos e nostálgicos em sua orientação política. Além disso, haviam perdido, sem que o percebessem, aqueles simpatizantes neutros que nunca se haviam interessado por política por acharem que os partidos existiam para cuidar dos seus interesses. Assim, o primeiro sintoma do colapso do sistema partidário continental não foi a deserção dos antigos membros do partido, mas o insucesso em recrutar membros dentre a geração mais jovem e a perda do consentimento e apoio silencioso das massas desorganizadas, que subitamente deixavam de lado a apatia e marchavam para onde vissem oportunidade de expressar a sua violenta oposição.
A queda das paredes protetoras das classes transformou as maiorias adormecidas, que existiam por trás de todos os partidos, numa grande massa desorganizada e desestruturada de indivíduos furiosos que nada tinham em comum exceto a vaga noção de que as esperanças partidárias eram vãs; que, consequentemente, os mais respeitados, eloquentes e representativos membros da comunidade eram uns néscios e que as autoridades constituídas eram não apenas perniciosas mas também obtusas e desonestas. Para o nascimento dessa solidariedade, pouco importava que o trabalhador desempregado odiasse o status quo e as autoridades sob a forma do Partido Social-Democrata; que o pequeno proprietário desapossado o fizesse sob a forma de um partido centrista ou de direita; e que os antigos membros das classes média e superior se manifestassem sob a forma de extrema direita tradicional. Essa massa de homens insatisfeitos e desesperados aumentou rapidamente na Alemanha e na Áustria após a Primeira Guerra Mundial, quando a inflação e o desemprego agravaram as consequências desastrosas da derrota militar, despontou em todos os Estados sucessórios e apoiou os movimentos extremistas da França e da Itália desde a Segunda Guerra Mundial.
Foi nessa atmosfera de colapso da sociedade de classes que se desenvolveu a psicologia do homem de massa da Europa. O fato de que o mesmo destino, com monótona mas abstrata uniformidade, tocava um grande número de indivíduos não evitou que cada qual se julgasse, a si próprio, em termos de fracasso individual e criticasse o mundo em termos de injustiça específica. Contudo, essa amargura egocêntrica, embora constantemente repetida no isolamento individual e a despeito da sua tendência niveladora, não chegaria a constituir laço comum, porque não se baseava em qualquer interesse comum, fosse econômico, social ou político. Esse egocentrismo, portanto, trazia consigo um claro enfraquecimento do instinto de autoconservação. A consciência da desimportância e da dispensabilidade deixava de ser a expressão da frustração individual e tornava-se um fenômeno de massa. O velho provérbio de que o pobre e o oprimido nada têm a perder exceto o sofrimento nem sequer se aplicava aos homens da massa porque, ao perderem o interesse no próprio bem-estar, eles perdiam muito mais do que o sofrimento da miséria; perdiam a fonte das preocupações e cuidados que inquietam e moldam a vida humana. Himmler, que conhecia tão bem a mentalidade daqueles a quem organizava, descreveu não apenas os membros da SS, mas as vastas camadas de onde os recrutava, quando disse que eles não estavam interessados em “problemas do dia a dia”, mas somente em “questões ideológicas de importância para as próximas décadas ou séculos”, conscientes de que “trabalham numa grande tarefa que só aparece uma vez a cada 2 mil anos” (20). A gigantesca formação de massas produziu um tipo de mentalidade que, como Cecil Rhodes quarenta anos antes, raciocinava em termos de continentes e sentia em termos de séculos.
Eminentes homens de letras e estadistas europeus predisseram, a partir do começo do século 19, o surgimento do homem da massa e o advento de uma era da massa. Toda uma literatura sobre a conduta da massa e a psicologia da massa demonstrou e popularizou o conhecimento, tão comum entre os antigos, da afinidade entre a democracia e a ditadura, entre o governo da ralé e a tirania. Mas, embora as previsões quanto ao surgimento de demagogia, credulidades, superstições e brutalidade tenham se realizado até certo ponto, grande parte do seu significado se diluiu em vista de fenômenos inesperados e imprevistos, como a perda radical do interesse do indivíduo em si mesmo (21), a indiferença cínica ou enfastiada diante da morte, a inclinação apaixonada por noções abstratas guindadas ao nível de normas de vida, e o desprezo geral pelas óbvias regras do bom senso.
As massas, contrariamente ao que foi previsto, não resultaram da crescente igualdade de condição e da expansão educacional, com a sua consequente perda de qualidade e popularização de conteúdo, pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos de massa. Nem o mais sofisticado individualismo evitava aquele autoabandono em direção à massa que os movimentos de massa propiciavam. O fato de a individualização e a cultura não evitarem a formação de atitudes de massa era tão inesperado que foi atribuído à morbidez e ao niilismo da moderna intelligentsia, ao ódio de si próprios que supostamente caracteriza os intelectuais. Não obstante, os caluniados intelectuais constituíam apenas o exemplo mais ilustrativo e eram os porta-vozes mais eloquentes de um fenômeno geral. A atomização social e a individualização extrema precederam os movimentos de massa, que, muito antes de atraírem, com muito mais facilidade, os membros sociáveis e não individualistas dos partidos tradicionais, acolheram os completamente desorganizados, os típicos “não alinhados” que, por motivos individualistas, sempre haviam se recusado a reconhecer laços ou obrigações sociais.
A verdade é que as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas apenas quando se pertencia a uma classe. A principal característica do homem da massa não é a brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais. Vindas da sociedade do Estado-nação, que era dominada por classes cujas fissuras haviam sido cimentadas pelo sentimento nacionalista, essas massas, no primeiro desamparo da sua existência, tenderam para um nacionalismo especialmente violento, que os líderes aceitavam por motivos puramente demagógicos, contra os seus próprios instintos e finalidades (22).
Nem o nacionalismo tribal nem o niilismo rebelde são característicos das massas, ou lhes são ideologicamente apropriados, como o eram para a ralé. Mas os mais talentosos líderes de massa de nossa época ainda vieram da ralé, e não das massas (23). Hitler, cuja biografia se lê como um livro-texto exemplar a esse respeito, e Stálin provinham da aparelhagem conspirativa do partido, onde se misturavam proscritos e revolucionários. O antigo partido de Hitler, composto quase exclusivamente de desajustados, fracassados e aventureiros, constituía na verdade “um exército de boêmios” (24) que eram apenas o avesso da sociedade burguesa e a quem, consequentemente, a burguesia alemã poderia ter usado com sucesso para seus próprios fins. Na realidade, a burguesia se deixou enganar pelos nazistas do mesmo modo como a facção Röhm-Schleicher no Reichswehr [o Exército regular da República de Weimar], que também julgou que Hitler, a quem havia usado como alcaguete, ou a SA, que tinha sido usada para propaganda militarista e treino paramilitar, agiriam como seus agentes e ajudariam a criar uma ditadura militar (25). Ambos consideraram o movimento nazista em seus próprios termos de filosofia política da ralé (26), e não perceberam o apoio independente e espontâneo das massas aos novos líderes da ralé, nem o genuíno talento desses líderes para a criação de novas formas de organização. A ralé, enquanto força motriz das massas, já não era o agente da burguesia nem de ninguém a não ser das próprias massas.
Os movimentos totalitários dependiam menos da falta de estrutura de uma sociedade de massa do que das condições específicas de uma massa atomizada e individualizada, como se pode constatar por uma comparação do nazismo com o bolchevismo, que surgiram em seus respectivos países em circunstâncias muito diversas. A fim de transformar a ditadura revolucionária de Lênin em completo regime totalitário, Stálin teve primeiro de criar artificialmente aquela sociedade atomizada que havia sido preparada para os nazistas na Alemanha por circunstâncias históricas.
A vitória, surpreendentemente fácil, da Revolução de Outubro ocorreu num país onde a burocracia despótica e centralizada governava uma massa populacional desestruturada, que não se enquadrava organizacionalmente nem nos vestígios das ordens feudais rurais nem nas classes capitalistas urbanas, nascentes e débeis. Quando Lênin declarou que em nenhuma outra parte do mundo teria sido tão fácil galgar o poder e tão difícil conservá-lo, sabia não só da fraqueza da classe operária russa, mas também das anárquicas condições sociais em geral, que propiciavam mudanças súbitas. Desprovido do instinto de um líder de massas — pois não era orador e tinha o vezo de confessar e analisar publicamente os próprios erros, o que atentava contra as regras da demagogia —, Lênin se apegou imediatamente a toda diferenciação possível, fosse social, nacional ou profissional, que pudesse dar alguma estrutura à população, e parecia estar convencido de que só essa estratificação podia salvar a revolução. Legalizou a anárquica expropriação dos donos de terra pelos camponeses, e assim estabeleceu na Rússia, pela primeira vez e provavelmente a última, aquela classe camponesa emancipada que, desde a Revolução Francesa, havia sido o mais firme esteio dos Estados-nações ocidentais. Tentou fortalecer a classe trabalhadora encorajando os sindicatos independentes. Tolerou a tímida aparição de uma nova classe média proveniente da NEP [Nova Política Econômica], após o fim da guerra civil. Introduziu outras formas de distinção, organizando e, às vezes, até inventando o maior número possível de nacionalidades, fomentando a consciência nacional e a percepção de diferenças históricas e culturais mesmo entre as tribos mais primitivas da União Soviética. Parece claro que, nessas questões políticas puramente práticas, Lênin seguiu seus instintos de estadista e não as suas convicções marxistas; de qualquer forma, a sua política demonstra que temia mais a ausência de uma estrutura social ou de outra natureza do que o possível desenvolvimento de tendências centrífugas nas nacionalidades recém-emancipadas, ou mesmo o crescimento de uma nova burguesia a partir das classes média e camponesa recém-estabelecidas. Sem dúvida, Lênin sofreu a sua maior derrota quando, com o espocar da guerra civil, o supremo poder que ele originalmente planejava concentrar nos Sovietes passou definitivamente às mãos da burocracia do Partido; mas mesmo isso, trágico como era para o curso da Revolução, não teria levado necessariamente ao totalitarismo. Uma ditadura unipartidária acrescentava apenas mais uma classe à estratificação do país já em curso, isto é, a burocracia que, segundo os críticos socialistas da revolução, “possuía o Estado como propriedade privada” (Marx) (27). No momento da morte de Lênin, os caminhos ainda estavam abertos. A formação de operários, camponeses e classes médias não precisaria levar à luta de classes que havia sido característica do capitalismo europeu. A agricultura ainda podia ser desenvolvida numa base coletiva, cooperativa ou privada, e a economia nacional ainda estava livre para seguir um padrão capitalista, estatal-capitalista ou de mercado. Nenhuma dessas alternativas teria destruído automaticamente a nova estrutura do país.
Todas essas novas classes e nacionalidades barravam o caminho de Stálin quando ele começou a preparar o país para o governo totalitário. A fim de produzir uma massa atomizada e amorfa, necessitava primeiro liquidar o resto de poder dos Sovietes que, como órgão principal de representação nacional, ainda tinham certa função e impediam o domínio absoluto da hierarquia do Partido. Assim, debilitou primeiro os Sovietes nacionais, introduzindo neles células bolchevistas das quais sairiam, com exclusividade, os funcionários superiores para os comitês centrais (28). Por volta de 1930, os últimos vestígios das antigas instituições comunais haviam desaparecido: em seu lugar existia uma burocracia partidária firmemente centralizada, cujas tendências para a russificação não eram muito diferentes daquelas do regime czarista, exceto que os novos burocratas já não tinham medo de quem soubesse ler e escrever.
O governo bolchevista empreendeu então a liquidação das classes e começou, por motivos ideológicos e de propaganda, com as classes proprietárias, a nova classe média das cidades e os camponeses do interior. Por serem numerosos e possuírem propriedades, os camponeses haviam sido até então, potencialmente, a classe mais poderosa da União; consequentemente, a sua liquidação foi mais meticulosa e cruel que a de qualquer outro grupo, e foi levada a cabo por meio de fome artificial e deportação, a pretexto de expropriação dos kulaks e de coletivização. A liquidação das classes média e camponesa terminou no início da década de 30: os que não se incluíam entre os muitos milhões de mortos ou milhões de deportados sabiam agora “quem mandava neste país” e haviam compreendido que as suas vidas e as vidas de suas famílias não dependiam dos seus concidadãos, mas somente dos caprichos do governo, aos quais tinham de enfrentar em completa solidão, sem qualquer tipo de auxílio do grupo a que pertencessem. Nem estatísticas nem documentos situam o momento exato em que a nova classe agrícola, produzida pela coletivização e ligada por interesses comuns, passou a representar um perigo latente para o governo totalitário, devido ao seu número e posição vital da economia do país. Mas, para aqueles que sabem decifrar as “informações oficiais” do totalitarismo, esse instante ocorrera dois anos antes da morte de Stálin, quando ele propôs dissolver as fazendas coletivas e transformá-las em unidades maiores. Não sobreviveu para realizar esse plano; dessa vez, os sacrifícios teriam sido ainda mais altos, e as caóticas consequências para a economia global ainda mais catastróficas do que por ocasião do extermínio da primeira classe camponesa, mas não há motivo para julgar que ele não o teria conseguido; não há classe que não possa ser extinta quando se mata um número suficientemente grande de seus membros.
A próxima classe a ser liquidada como grupo era a dos operários. Como classe, eram mais débeis e ofereciam muito menor resistência que os camponeses, porque a expropriação dos donos de fábricas, que eles haviam realizado espontaneamente durante a Revolução, ao contrário da expropriação dos donos de terra pelos camponeses, havia sido imediatamente frustrada pelo governo, que confiscara as fábricas como sendo propriedade do Estado, sob o pretexto de que o Estado, de qualquer modo, pertencia ao proletariado. O sistema stakhanovista, adotado no início da década de 30, eliminou a solidariedade e a consciência de classe dos trabalhadores pela concorrência feroz implantada pela solidificação de uma aristocracia operária, separada do trabalhador comum por uma distância social mais aguda que a distância entre os trabalhadores e a gerência. Esse processo foi completado em 1938, quando a criação do documento de trabalho transformou oficialmente toda a classe operária russa num gigantesco corpo de trabalhadores forçados.
Finalmente, veio a liquidação daquela burocracia que havia ajudado a executar as medidas anteriores de extermínio. Stálin levou dois anos, de 1936 a 1938, para se desfazer de toda a aristocracia administrativa e militar da sociedade soviética; quase todas as repartições públicas, fábricas, entidades econômicas e culturais e agências governamentais, partidárias e militares passaram a novas mãos, quando “quase a metade do pessoal administrativo, do partido ou não, havia sido eliminada”, e foram liquidados mais de 50% de todos os membros do partido e “pelo menos outros 8 milhões de pessoas” (29). A criação de um passaporte interno, no qual tinham de ser registradas e autorizadas todas as viagens de uma cidade para outra, completou a destruição da burocracia como classe. No que diz respeito ao seu status jurídico, a burocracia e os funcionários do partido estavam agora no mesmo nível dos operários; eram também parte da vasta multidão de trabalhadores forçados russos, e o seu status como classe privilegiada na sociedade soviética era mera lembrança do passado. E, como esse expurgo geral terminou com a liquidação das mais altas autoridades policiais — as mesmas que antes haviam organizado o expurgo geral —, nem mesmo os oficiais da GPU, que haviam instaurado o terror, podiam pensar que, como grupo, ainda representassem alguma coisa, muito menos poder.
Nenhum desses imensos sacrifícios de vida humana foi motivado por uma raison d’état no antigo sentido do termo. Nenhuma das camadas sociais liquidadas era hostil ao regime, nem era provável que se tornasse hostil num futuro previsível. A oposição ativa e organizada havia cessado de existir por volta de 1930 quando Stálin, em seu discurso no Décimo Sexto Congresso do Partido, declarou ilegais as divergências ideológicas dentro do partido, sendo que mesmo essa frouxa oposição mal pudera basear-se em alguma classe existente (30). O terror ditatorial — que difere do terror totalitário por ameaçar apenas adversários autênticos, mas não cidadãos inofensivos e carentes de opiniões políticas — havia sido suficientemente implacável para sufocar toda a atividade política, ostensiva ou clandestina, mesmo antes da morte de Lênin. A intervenção do exterior, que poderia apoiar um dos setores descontentes da população, já não constituía perigo em 1930, quando a União Soviética, já reconhecida pela maioria dos Estados e firmemente implantada, tornou-se parceira do sistema internacional vigente. Contudo, se Hitler fosse um conquistador comum e não um governante totalitário rival, poderia ter tido excelente oportunidade de conquistar pelo menos a Ucrânia com o consentimento de sua população.
Se politicamente o extermínio de classes não fazia sentido, foi simplesmente desastroso para a economia soviética. As consequências da fome artificialmente criada em 1933 foram sentidas durante anos em todo o país; a introdução do sistema stakhanovista em 1935, com a arbitrária aceleração da produção individual, resultou num “desequilíbrio caótico” da jovem indústria (31); a liquidação da burocracia, isto é, da classe de gerentes e engenheiros das fábricas, terminou privando as empresas industriais da escassa experiência e do pouco know-how que a nova intelligentsia técnica russa havia conseguido adquirir.
Desde os tempos antigos, a imposição da igualdade de condições aos governados constituiu um dos principais alvos dos despotismos e das tiranias, mas essa equalização não basta para o governo totalitário, porque deixa ainda intactos certos laços não políticos entre os subjugados, tais como laços de família e de interesses culturais comuns. O totalitarismo que se preza deve chegar ao ponto em que tem de acabar com a existência autônoma de qualquer atividade que seja, mesmo que se trate de xadrez. Os amantes do “xadrez por amor ao xadrez”, adequadamente comparados por seu exterminador aos amantes da “arte por amor à arte” (32), demonstram que ainda não foram absolutamente atomizados todos os elementos da sociedade, cuja uniformidade inteiramente homogênea é a condição fundamental para o totalitarismo. Do ponto de vista dos governantes totalitários, uma sociedade dedicada ao xadrez por amor ao xadrez difere apenas um pouco da classe de agricultores que o são por amor à agricultura, embora seja menos perigosa. Himmler definiu muito bem o elemento da SS como o novo tipo de homem que em nenhuma circunstância fará jamais “alguma coisa apenas por amor a essa coisa” (33).
A atomização da massa na sociedade soviética foi conseguida pelo habilidoso uso de repetidos expurgos que invariavelmente precediam o verdadeiro extermínio de um grupo. A fim de destruir todas as conexões sociais e familiares, os expurgos eram conduzidos de modo a ameaçarem com o mesmo destino o acusado e todas as suas relações, desde meros conhecidos até os parentes e amigos íntimos.
Ou seja, matar a rede!
A “culpa por associação” é uma invenção engenhosa e simples; logo que um homem é acusado, os seus antigos amigos se transformam nos mais amargos inimigos: para salvar a própria pele, prestam informações e acorrem com denúncias que “corroboram” provas inexistentes, a única maneira que encontram de demonstrarem a sua própria fidelidade. Em seguida, tentam provar que a sua amizade com o acusado nada mais era que um meio de espioná-lo e delatá-lo como sabotador, trotskista, espião estrangeiro ou fascista. Uma vez que o mérito é “julgado pelo número de denúncias apresentadas contra os camaradas” (34), é óbvio que a mais elementar cautela exige que se evitem, se possível, todos os contatos íntimos — não para evitar que outros descubram os pensamentos secretos, mas para eliminar, em caso quase certo de problemas futuros, a presença daqueles que sejam obrigados, pelo perigo da própria vida, à necessidade de arruinar a de outrem. Em última análise, foi através do desenvolvimento desse artifício, até os seus máximos e mais fantásticos extremos, que os governantes bolchevistas conseguiram criar uma sociedade atomizada e individualizada como nunca se viu antes, e a qual nenhum evento ou catástrofe poderiam por si só ter suscitado.
Sim, matando a rede!
Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o poder e decorre da alegação, já contida em sua ideologia, de que a organização abrangerá, no devido tempo, toda a raça humana. Contudo, onde o governo totalitário não é preparado por um movimento totalitário (como foi o caso da Rússia em contraposição com a Alemanha nazista), o movimento tem de ser organizado depois, e as condições para o seu crescimento têm de ser artificialmente criadas de modo a possibilitar a lealdade total que é a base psicológica do domínio total. Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais — de família, amizade, camaradagem — só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento, pertencem ao partido.
A lealdade total só é possível quando a fidelidade é esvaziada de todo o seu conteúdo concreto, que poderia dar azo a mudanças de opinião. Os movimentos totalitários, cada um ao seu modo, fizeram o possível para se livrarem de programas que especificassem um conteúdo concreto, herdados de estágios anteriores e não totalitários da sua evolução. Por mais radical que seja, todo objetivo político que não inclua o domínio mundial, todo programa político definido que trate de assuntos específicos em vez de referir-se a “questões ideológicas que serão importantes durante séculos” é um entrave para o totalitarismo. A grande realização de Hitler ao organizar o movimento nazista — que ele gradualmente construiu a partir de um pequeno partido tipicamente nacionalista formado por gente obscura e meio louca — é que ele liberou o movimento do antigo programa do partido, não por mudá-lo ou aboli-lo oficialmente, mas simplesmente por recusar-se a mencioná-lo ou discutir os seus pontos (35). Nesse aspecto, como em outros, a tarefa de Stálin foi muito mais difícil: o programa socialista do partido bolchevista era uma carga muito mais incômoda (36) que os 25 pontos do programa do partido nazista redigidos por um economista amador e político maluco (37). Mas Stálin, após haver abolido as facções do partido, conseguiu finalmente o mesmo resultado, através dos constantes zigue-zagues da linha partidária comunista e da constante reinterpretação e aplicação do marxismo, o que esvaziava a doutrina de todo o seu conteúdo, já que não era possível prever o rumo ou ação que ela ditaria. O fato de que o mais perfeito conhecimento do marxismo e do leninismo já não servia de guia para a conduta política — e de que, pelo contrário, só era possível seguir a linha do partido se se repetisse a cada manhã o que Stálin havia dito na véspera — resultou naturalmente no mesmo estado de espírito, na mesma obediência concentrada, imune a qualquer tentativa de se compreender o que se estava fazendo, expressa pelo engenhoso lema de Himmler para os homens da SS: “Minha honra é a minha lealdade” (38).
A falta de um programa partidário, ou o fato de se ignorá-lo, não é, por si só, necessariamente um sinal de totalitarismo. O primeiro a considerar programas e plataformas como desnecessários pedaços de papel e embaraçosas promessas, não condizentes com o estilo e o ímpeto de um movimento, foi Mussolini com a sua filosofia fascista de ativismo e inspiração no próprio momento histórico (39). Todo líder da ralé é caracterizado pela mera sede de poder e pelo desprezo à “tagarelice” quando se lhe pergunta o que pretende fazer com ele. O verdadeiro objetivo do fascismo era apenas a tomada do poder e a instalação da “elite” fascista no governo. O totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos, ou seja, através do Estado e de uma máquina de violência; graças à sua ideologia peculiar e ao papel dessa ideologia no aparelho de coação, o totalitarismo descobriu um meio de subjugar e aterrorizar os seres humanos internamente. Nesse sentido, elimina a distância entre governantes e governados e estabelece uma situação na qual o poder e o desejo de poder, tal como os entendemos, não representam papel algum ou, na melhor das hipóteses, têm um papel secundário. Essencialmente, o líder totalitário é nada mais e nada menos que o funcionário das massas que dirige; não é um indivíduo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânica e arbitrária. Como simples funcionário, pode ser substituído a qualquer momento e depende tanto do “desejo” das massas que ele incorpora, como as massas dependem dele. Sem ele, elas não teriam representação externa e não passariam de um bando amorfo; sem as massas, o líder seria uma nulidade. Hitler, que conhecia muito bem essa interdependência, exprimiu-a certa vez num discurso perante a SA: “Tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que eu sou, sou somente através de vocês” (40). Infelizmente nossa tendência é dar pouca importância a declarações desse tipo ou interpretá-las erradamente. Na tradição política do Ocidente (41), a ação é definida em termos de dar e executar ordens. Mas essa ideia sempre pressupôs alguém que comanda, que pensa e deseja e, em seguida, impõe o seu pensamento e o seu desejo sobre um grupo destituído de pensamento e de vontade — seja por meio da persuasão, da autoridade ou da violência. Hitler, porém, era da opinião de que até mesmo “o pensamento […] [só existe] em virtude da formulação ou execução de uma ordem” (42), eliminando assim, mesmo teoricamente, de um lado a diferença entre pensar e agir e, do outro, a diferença entre governantes e governados.
Eis aqui a chave: pensar sob comando!
Nem o nacional-socialismo nem o bolchevismo jamais proclamaram uma nova forma de governo ou afirmaram que o seu objetivo seria alcançado com a tomada do poder e o controle da máquina estatal. Sua ideia de domínio — a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida (43) — é algo que nenhum Estado ou mecanismo de violência jamais pôde conseguir, mas que é realizável por um movimento totalitário constantemente acionado. A tomada do poder através dos instrumentos de violência nunca é um fim em si, mas apenas um meio para um fim, e a tomada do poder em qualquer país é apenas uma etapa transitória e nunca o fim do movimento. O fim prático do movimento é amoldar à sua estrutura o maior número possível de pessoas, acioná-las e mantê-las em ação; um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe.
1. 2 A ALIANÇA TEMPORÁRIA ENTRE A RALÉ E A ELITE
O que perturba os espíritos lógicos mais que a incondicional lealdade dos membros dos movimentos totalitários e o apoio popular aos regimes totalitários é a indiscutível atração que esses movimentos exercem sobre a elite e não apenas sobre os elementos da ralé da sociedade. Seria realmente temerário atribuir à excentricidade artística ou à ingenuidade escolástica o espantoso número de homens ilustres que são simpatizantes, companheiros de viagem ou membros registrados dos partidos totalitários.
Essa atração da elite é um indício tão importante para a compreensão dos movimentos totalitários (embora não se possa dizer o mesmo dos regimes totalitários) quanto a sua ligação com a ralé. Denota a atmosfera específica, o clima geral que propicia o surgimento do totalitarismo. É preciso lembrar que a idade dos líderes dos movimentos totalitários e dos seus simpatizantes supera a dos membros das massas que organizam, de modo que, do ponto de vista cronológico, as massas não precisam aguardar, impotentes, que os seus líderes surjam de uma sociedade de classes em declínio, da qual são o produto mais importante. Aqueles que voluntariamente abandonaram a sociedade antes do colapso das classes, juntamente com a ralé — que é o subproduto mais recente do domínio da burguesia —, estão prontos para aclamá-los. Os atuais governantes totalitários e os líderes dos movimentos totalitários têm ainda os traços característicos da ralé, cuja psicologia e filosofia política são bastante conhecidas; o que sucederá quando um autêntico homem da massa assumir o comando ainda não sabemos, embora possamos supor que ele se assemelhe mais a um Himmler, com a sua meticulosa e calculada correção, do que a um Hitler, com o seu fanatismo histérico, e lembrará mais a teimosa obtusidade de um Molotov do que a crueldade sensual e vingativa de um Stálin.
A esse respeito, a situação da Europa após a Segunda Guerra Mundial não foi muito diferente daquela que sucedeu à Primeira. Do mesmo modo como, na década de 20, foram formuladas as ideologias do fascismo, bolchevismo e nazismo, e seus respectivos movimentos foram liderados pela chamada geração de vanguarda, por aqueles que haviam sido criados nos tempos de antes da guerra e se recordavam perfeitamente dessa época, o clima político e intelectual do totalitarismo de pós-guerra foi determinado por uma geração que conheceu a época anterior a 1939. Isso se aplica especialmente à França, onde o colapso do sistema de classes ocorreu após a Segunda Guerra, e não após a Primeira. Os líderes dos movimentos totalitários, exatamente como os homens da ralé e os aventureiros da era imperialista, têm em comum com os seus simpatizantes intelectuais o fato de que uns e outros já estavam fora do sistema de classes e nacionalidades da respeitável sociedade europeia antes que esse sistema entrasse em colapso.
Quando a falsa respeitabilidade cedeu ao desespero da anarquia, esse colapso pareceu oferecer a primeira grande oportunidade tanto para a elite quanto para a ralé e, obviamente, para os novos líderes das massas. Suas carreiras lembram as dos primeiros líderes da ralé: fracasso na vida profissional e social, perversão e desastre na vida privada. O fato de que as suas vidas, antes do seu ingresso na carreira política, haviam sido um fracasso — ingenuamente apontado em seu detrimento pelos líderes mais respeitáveis dos velhos partidos — era o ponto alto da sua atração para as massas. Parecia demonstrar que, individualmente, eles encarnavam o destino da massa do seu tempo, e que o desejo de tudo sacrificarem pelo movimento, a devoção por aqueles que haviam sofrido alguma catástrofe, a determinação de jamais cederem à tentação da segurança da vida normal e o desprezo pela respeitabilidade eram perfeitamente sinceros e não apenas inspirados por ambições passageiras.
Por outro lado, a elite do pós-guerra era apenas ligeiramente mais jovem que aquela geração que se deixara usar e abusar pelo imperialismo como jogadores, espiões e aventureiros, cavaleiros de armadura polida e matadores de dragões, por amor a carreiras gloriosas longe da respeitabilidade. Compartilhavam com Lawrence da Arábia o anseio de “perderem o seu eu” e sentiam violenta repulsa por todos os padrões existentes e por toda autoridade constituída. Se ainda não tinham esquecido a “idade de ouro da segurança”, lembravam melhor ainda o quanto a haviam odiado e como se haviam entusiasmado com a deflagração da Primeira Guerra Mundial. Não foi somente Hitler nem somente os fracassados que agradeceram a Deus, de joelhos, quando, em 1914, a mobilização varreu a Europa (44). Nem ao menos precisaram censurar-se por terem sido presa fácil da propaganda chauvinista ou das explicações mentirosas a respeito do caráter puramente defensivo da guerra. A elite partiu para a guerra na exultante esperança de que tudo o que conhecia, toda a cultura e textura da vida desmoronaria em “tempestades de aço” (Ernst Jünger). Nas palavras cuidadosamente escolhidas de Thomas Mann, a guerra era “castigo” e “purificação”; “a guerra em si, e não as vitórias, é que inspirava o poeta”. Ou, nas palavras de um estudante da época, “o que importa não é o objeto pelo qual se faz o sacrifício, mas a eterna disposição de fazê-lo”; ou ainda, nas palavras de um jovem trabalhador, “não importa que a gente viva ou não alguns anos a mais. A gente quer ter alguma coisa que possa dizer que fez na vida” (45). E, muito antes que um dos simpatizantes intelectuais do nazismo dissesse “quando ouço a palavra cultura, puxo o revólver”, os poetas já haviam proclamado a sua repulsa pela “cultura de lixo” e poeticamente invocavam os “bárbaros, citas, negros e indianos para esmagá-la” (46).
Tachar simplesmente de acesso de niilismo essa violenta insatisfação com a era que precedeu a guerra e as subsequentes tentativas de restaurá-la (de Nietzsche e Sorel a Pareto, de Rimbaud e T. E. Lawrence a Jünger, Brecht e Malraux, de Bakúnin e Nechayev a Alexander Blok) seria ignorar quão justificada pode ser a repulsa numa sociedade inteiramente impregnada com a atitude ideológica e os padrões morais da burguesia. Contudo, também é verdade que a “geração de vanguarda”, em agudo contraste com os pais espirituais que ela mesma havia escolhido, estava completamente absorvida pelo desejo de ver a ruína de todo este mundo de segurança falsa, cultura falsa e vida falsa. Esse desejo era tão forte que o seu impacto e eloquência eram maiores que os de todas as tentativas anteriores de “transformação de valores”, como a de Nietzsche, ou de reorganização da vida política, como indica a obra de Sorel, ou de restauração da autenticidade humana, como em Bakúnin, ou de apaixonado amor pela vida, na pureza das aventuras exóticas de Rimbaud. A destruição sem piedade, o caos e a ruína assumiam a dignidade de valores supremos (47).
Quão genuínos eram esses sentimentos prova o fato de que muito poucos dessa geração perderam o seu entusiasmo pela guerra ao experimentarem pessoalmente os seus horrores. Os sobreviventes das trincheiras não se tornaram pacifistas. Conservaram carinhosamente aquela experiência que, segundo pensavam, podia separá-los definitivamente do odiado mundo da respeitabilidade. Apegaram-se às lembranças de quatro anos de vida nas trincheiras como se fossem um critério objetivo para a criação de uma nova elite. Nem cederam à tentação de idealizar esse passado; pelo contrário, os adoradores da guerra eram os primeiros a admitir que, na era da máquina, a guerra certamente não podia gerar virtudes como o cavalheirismo, a coragem, a honra e a hombridade (48), mas apenas impunha ao homem a experiência da destruição pura e simples, juntamente com a humilhação de serem apenas peças da grande máquina da carnificina.
Essa geração recordava a guerra como o grande prelúdio do colapso das classes e da sua transformação em massas. A guerra, com a sua arbitrariedade constante e assassina, tornou-se o símbolo da morte, a “grande niveladora” (49) e, portanto, a mãe da nova ordem mundial. A ânsia de igualdade e justiça, o desejo de transcender os estreitos e inexpressivos limites de classes, de abandonar privilégios e preconceitos estúpidos, pareciam encontrar na guerra um modo de fugir às velhas atitudes condescendentes de piedade pelos oprimidos e deserdados. Em épocas de crescente miséria e desamparo individual, é tão difícil resistir à piedade, quando ela se transforma em paixão, como deixar de condenar a sua própria universalidade, que parece matar a dignidade humana mais definitivamente que a própria miséria.
Nos primeiros anos de sua carreira, quando a restauração do status quo europeu ainda constituía a mais séria ameaça às ambições da ralé (50), Hitler apelou quase exclusivamente para esses sentimentos da geração de vanguarda. O peculiar desprendimento do homem da massa parecia corresponder ao desejo de anonimato, ao desejo de ser apenas um número e funcionar apenas como uma peça, para que se pudesse apagar a sua falsa identificação com tipos específicos ou funções predeterminadas na sociedade. A guerra havia sido sentida como aquela “ação coletiva mais poderosa de todas” que obliterava as diferenças individuais, de sorte que até mesmo o sofrimento, que tradicionalmente distinguia os indivíduos com destinos próprios não intercambiáveis, podia agora ser interpretado como “instrumento de progresso histórico”(51). A elite do pós-guerra desejava incorporar-se a qualquer massa, sem distinções nacionais. Um tanto paradoxalmente, a Primeira Guerra Mundial havia quase liquidado os sentimentos nacionais da Europa, onde, entre as duas guerras, era muito mais importante haver pertencido à geração das trincheiras, não importa de que lado, do que ser alemão ou francês (52). Os nazistas basearam toda a sua propaganda nessa camaradagem indistinta, nessa “comunidade de destino”, e conquistaram grande número de organizações de veteranos de guerra em todos os países europeus, demonstrando assim quão inexpressivos haviam se tornado os slogans nacionais, mesmo entre os escalões da chamada ala direita, que os empregavam em virtude da sua conotação de violência e não pelo que continham de especificamente nacional.
Nenhum dos elementos era muito novo nesse clima intelectual geral do pós-guerra europeu. Bakúnin já havia confessado que “não quero ser eu, quero ser nós” (53) e Nechayev já havia pregado o evangelho do “homem condenado”, que não tem “quaisquer interesses pessoais, quaisquer afazeres, sentimentos, ligações, propriedades, nem mesmo um nome que possa chamar de seu” (54). Os instintos anti-humanistas, antiliberais, anti-individualistas e anticulturais da geração de vanguarda, o seu brilhante e espirituoso louvor da violência, do poder e da crueldade haviam sido precedidos pelas pomposas e desajeitadas demonstrações “científicas” da elite imperialista de que a lei do universo é a luta de todos contra todos, de que a expansão é uma necessidade psicológica antes de ser mecanismo político, e de que o homem deve conduzir-se de acordo com essas leis universais (55). O elemento novo nas obras da geração de vanguarda era o seu alto nível literário e a grande profundidade da sua paixão. Os escritores do pós-guerra já não tinham necessidade das demonstrações científicas da genética, e de pouco ou nada lhes serviam as obras completas de Gobineau ou de Houston Stewart Chamberlain, que já pertenciam ao cabedal cultural dos filisteus. Liam não Darwin, mas o marquês de Sade (56). Se acreditavam em leis universais, certamente não estavam muito ansiosos em segui-las. Para eles, a violência, o poder e a crueldade eram as supremas aptidões do homem que havia perdido definitivamente o seu lugar no universo e era demasiado orgulhoso para desejar uma teoria de força que o trouxesse de volta e o reintegrasse no mundo. Contentava-se em participar cegamente de qualquer coisa que a sociedade respeitável houvesse banido, independentemente de teoria e conteúdo, e promovia a crueldade à categoria de virtude maior porque contradizia a hipocrisia humanitária e liberal da sociedade.
Comparados aos ideólogos do século 19, cujas teorias parecem às vezes compartilhar tanto, os homens dessa geração diferem principalmente por sua maior paixão e autenticidade. A miséria havia-os tocado mais fundo, as perplexidades os inquietavam mais e a hipocrisia os feria mais mortalmente do que a todos os apóstolos da boa vontade e da irmandade humana. E já não podiam fugir para terras exóticas, já não podiam dar-se ao luxo de serem matadores de dragões entre povos estranhos e apaixonantes. Não havia meio de fugir à rotina diária de miséria, humildade, frustração e ressentimentos, embelezada por uma falsa cultura de fala educada; nenhum conformismo aos costumes desses países de faz de conta podia salvá-los da crescente náusea que essa combinação inspirava continuamente.
Essa impossibilidade de fugir pelo mundo afora, esse sentimento de cair repetidamente nas armadilhas da sociedade — tão diferente das circunstâncias que haviam formado o caráter imperialista — acrescentavam à velha paixão do anonimato e da perda de si mesmos uma tensão constante e um desejo de violência. Sem a possibilidade de mudança radical de papel e de caráter, o mergulho voluntário nas forças sobre-humanas da destruição parecia salvá-los da identificação automática com as funções preestabelecidas da sociedade e sua completa banalidade, ao mesmo tempo em que parecia ajudar a destruir o próprio funcionamento. Esses homens sentiam-se atraídos pelo pronunciado ativismo dos movimentos totalitários, pela curiosa e aparentemente contraditória insistência no primado simultâneo da ação pura e da força irresistível da necessidade. Era uma mistura que correspondia exatamente à experiência de guerra da “geração de vanguarda”, à experiência da atividade constante dentro da estrutura da fatalidade inelutável.
Além disso, o ativismo parecia fornecer novas respostas à velha e incômoda pergunta “quem sou eu?”, que ocorre com redobrada persistência em tempos de crise. Se a sociedade insistia em “és o que pareces ser”, o ativismo do pós-guerra respondia “és o que fizeste” — por exemplo, o homem que pela primeira vez atravessou o Atlântico num aeroplano (como em Der Flüg der Lindberghs —, resposta que, após a Segunda Guerra Mundial, foi repetida com uma pequena variação por Sartre: “és a tua vida” (em Huis clos). A pertinência dessas respostas estava menos na sua validez como redefinições da identidade pessoal do que na sua utilidade para eventual fuga da identificação social, da multiplicidade de papéis e funções intercambiáveis que a sociedade havia imposto. A questão era fazer algo, fosse heroico ou criminoso, que nenhuma outra pessoa pudesse prever ou determinar.
O pronunciado ativismo dos movimentos totalitários, sua preferência pelo terrorismo em relação a qualquer outra forma de atividade política, atraíram da mesma forma a elite de intelectuais e a ralé, precisamente porque esse terrorismo era tão diferente daquele das antigas sociedades revolucionárias. Já não era uma questão de política calculada, que via em atos terroristas o único meio de eliminar certas personalidades importantes que haviam se tornado símbolos de opressão. O que era tão atraente é que o terrorismo havia se tornado uma espécie de filosofia através da qual era possível exprimir frustração, ressentimento e ódio cego, uma espécie de expressionismo político que tinha bombas por linguagem, que observava com prazer a publicidade dada a seus feitos estrondosos e que estava absolutamente disposto a pagar com a vida o fato de conseguir impingir às camadas normais da sociedade o reconhecimento da existência de alguém. Foi esse mesmo espírito e esse mesmo jogo que levaram Goebbels, muito antes da derrota final da Alemanha nazista, a anunciar, com óbvio deleite, que os nazistas, em caso de derrota, saberiam fechar a porta atrás de si de modo a não serem esquecidos durante séculos.
Contudo, se existe um critério válido para distinguir a elite da ralé na atmosfera pré-totalitária, é aqui que podemos encontrá-lo: o que buscava a ralé e o que Goebbels expressou de modo tão preciso era o acesso à história, mesmo ao preço da destruição. A sincera convicção de Goebbels de que “a maior felicidade que um homem pode experimentar hoje” é ser um gênio ou servir a um gênio (57) era típica da ralé, mas não da massa nem da elite simpatizante. Esta última, pelo contrário, levava muito a sério o anonimato, ao ponto de negar seriamente a existência do gênio; todas as teorias da arte dos anos 20 tentaram desesperadamente provar que a excelência resulta da habilidade, do artesanato, da lógica e da realização das potencialidades do material (58). A ralé, e não a elite, sentia-se fascinada pelo “radiante poder da fama” (Stefan Zweig) e aceitava entusiasticamente a idolatria do gênio que caracterizara o extinto mundo burguês. Nisso, a ralé do século 20 seguiu fielmente o padrão dos antigos parvenus, que também haviam descoberto que a sociedade burguesa abria mais facilmente as portas ao fascinante “anormal” — ou seja, ao gênio, ao homossexual ou ao judeu — do que ao simples mérito. O desprezo que a elite nutria pelo gênio e o seu desejo de anonimato ainda revelavam um espírito que nem as massas nem a ralé estavam em posição de compreender, e que, nas palavras de Robespierre, tentava afirmar a grandeza do homem contra a pequenez dos grandes.
A despeito dessa diferença entre a elite e a ralé, não há dúvida de que a elite se deleitava sempre que o submundo forçava a sociedade respeitável, através do terror, a aceitá-lo em pé de igualdade. Os membros da elite concordavam em pagar o preço, que era a destruição da civilização, pelo prazer de ver como aqueles que dela haviam sido excluídos injustamente, no passado, agora penetravam nela à força. Não se ofendiam muito com as monstruosas contrafações da história, perpetradas por todos os regimes totalitários e claramente perceptíveis na propaganda totalitária. Estavam convencidos de que a historiografia tradicional era, de qualquer forma, uma fraude, pois havia excluído da memória da humanidade os subprivilegiados e os oprimidos. Aqueles a quem a sua própria época rejeitava eram geralmente esquecidos pela história — e o insulto, aliado ao crime, sempre perturbou todas as consciências sensíveis desde que desapareceu a fé num mundo em que os últimos seriam os primeiros. As injustiças do passado e do presente tornaram-se intoleráveis quando evaporou-se a esperança de que a balança da justiça jamais viesse a endireitar-se. A tentativa de Marx de reescrever a história do mundo em termos de luta de classes fascinou até mesmo aqueles que não acreditavam na correção da sua tese, dada a intenção original de encontrar um meio de introduzir à força na lembrança da posteridade os destinos daqueles que haviam sido excluídos da história.
A aliança temporária entre a elite e a ralé baseava-se, em grande parte, nesse prazer genuíno com que a primeira assistia à destruição da respeitabilidade pela segunda, o que aconteceu, por exemplo, quando os barões do aço da Alemanha foram forçados a receber socialmente Hitler, o pintor de paredes e ex-fracassado confesso; ou quando os movimentos totalitários cometeram fraudes grosseiras e vulgares em todos os campos da vida intelectual, reunindo todos os elementos subterrâneos e espúrios da história europeia num conjunto que parecia fazer sentido. Desse ponto de vista, era sem dúvida agradável ver o bolchevismo e o nazismo passarem a repudiar até mesmo aquelas fontes de suas ideologias que já haviam conquistado algum reconhecimento em círculos acadêmicos e outros círculos oficiais. O que inspirava os manejadores da história não era o materialismo dialético de Marx, mas a conspiração das trezentas famílias; não o pomposo cientificismo de Gobineau e de Chamberlain, mas os “Protocolos dos sábios do Sião”; não a demonstrável influência da Igreja Católica e o papel do anticlericalismo nos países latinos, mas a literatura clandestina sobre jesuítas e maçons. A finalidade das mais variadas e variáveis interpretações era sempre denunciar a história oficial como uma fraude, expor uma esfera de influências secretas das quais a realidade histórica visível, demonstrável e conhecida era apenas uma fachada externa construída com o fim expresso de enganar o povo.
A essa aversão da elite de intelectuais pela historiografia oficial, à sua convicção de que nada impedia que a história, fraudulenta como era, fosse usada como brinquedo por alguns malucos, deve acrescentar-se o terrível fascínio exercido pela possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformar-se em fatos incontestes, de que o homem pudesse ter a liberdade de mudar à vontade o seu passado, e de que a diferença entre a verdade e a mentira pudesse deixar de ser objetiva e passasse a ser apenas uma questão de poder e de esperteza, de pressão e de repetição infinita. O que os fascinava não era a habilidade com que Hitler e Stálin mentiam, mas o fato de que pudessem organizar as massas numa unidade coletiva para dar às suas mentiras uma pompa impressionante. O que era simples fraude do ponto de vista factual e intelectual parecia receber a bênção da própria história quando toda a realidade dinâmica dos movimentos passou a sustentar a mentira, fingindo tirar dela o entusiasmo necessário para a ação.
É desconcertante a atração que os movimentos totalitários exerceram sobre a elite, enquanto e onde não houvessem tomado o poder, porque as doutrinas patentemente vulgares, arbitrárias e dogmáticas do totalitarismo são mais visíveis para o espectador que está de fora. Essas doutrinas discrepavam tanto dos padrões intelectuais, culturais e morais geralmente aceitos que se podia concluir que somente um defeito básico, inerente do caráter do intelectual, la trahison des clercs (Julien Benda), ou um doentio ódio do espírito contra si mesmo, explicava o prazer com que a elite aceitava as “ideias” da ralé. O que os porta-vozes do humanismo e do liberalismo geralmente esquecem, no seu amargo desapontamento e no seu desconhecimento das experiências mais gerais da época, é que, numa atmosfera em que todos os valores e proposições tradicionais haviam se evaporado — e no século 19 as ideologias haviam se refutado umas às outras e esgotado o seu apelo vital —, era de certa forma mais fácil aceitar proposições patentemente absurdas do que as antigas verdades que haviam virado banalidades, exatamente porque não se esperava que ninguém levasse a sério os absurdos. A vulgaridade, com o seu cínico repúdio dos padrões respeitados e das teorias aceitas, trazia em si um franco reconhecimento do que havia de pior e um desprezo por toda simulação que facilmente passava por bravura e novo estilo de vida. No crescente triunfo das atitudes e convicções da ralé — que não eram mais que as atitudes e convicções da burguesia despidas de fingimento — aqueles que tradicionalmente odiavam a burguesia e tinham voluntariamente abandonado a sociedade respeitável viam apenas a falta de hipocrisia e de respeitabilidade, não o seu conteúdo (59).
Desde que a burguesia afirmava ser a guardiã das tradições ocidentais e confundia
todas as questões morais exibindo em público virtudes que não só não incorporava na vida privada e nos negócios, mas que realmente desprezava, parecia revolucionário admitir a crueldade, o descaso pelos valores humanos e a amoralidade geral, porque isso pelo menos destruía a duplicidade sobre a qual a sociedade existente parecia repousar. Como era tentador assumir atitudes extremas na meia-luz hipócrita dos duplos padrões de moral, colocar publicamente no rosto a máscara da crueldade quando todos fingiam ser bondosos e ostentar a maldade num mundo que nem sequer era de maldade, mas de mesquinhez! A elite intelectual dos anos 20, que pouco sabia da antiga relação entre a ralé e a burguesia, estava convencida de que o velho jogo de épater le bourgeois podia ser jogado com perfeição, se o primeiro lance fosse chocar a sociedade com a caricatura irônica da sua própria conduta.
Naquela época, ninguém podia imaginar que a verdadeira vítima dessa ironia seria a elite e não a burguesia. A avant-garde ignorava que estava investindo não contra paredes,
mas contra portas abertas; o sucesso unânime desmentiria a sua pretensão de ser uma minoria revolucionária, e demonstraria que ela buscava apenas exprimir um novo espírito de massa, que era o espírito do seu tempo. A esse respeito, foi particularmente significativa a acolhida que a Dreigroschenoper de Brecht teve na Alemanha de antes de Hitler. A peça mostrava bandidos como respeitáveis negociantes e respeitáveis negociantes como bandidos. A ironia não atingiu o alvo, pois os respeitáveis negociantes da plateia enxergaram naquilo uma visão profunda das coisas do mundo, e a ralé tomou a peça como a aprovação artística do banditismo. O tema musical da peça, Erst kommt das Fressen, dann kommt die Moral [Antes vem a comida, depois vem a moral], recebeu o aplauso delirante de todos, embora de cada um por motivos diferentes. A ralé aplaudiu porque levou a sério a afirmação; a burguesia aplaudiu porque fora lograda durante tanto tempo por sua própria hipocrisia que se cansara do esforço e via profunda sabedoria na expressão da banalidade da sua vida; a elite aplaudia porque desmascarar a hipocrisia era um elevado e maravilhoso divertimento. O efeito da obra foi exatamente o oposto do que Brecht pretendia. A burguesia já não se chocava com coisa alguma; acolhia com prazer a denúncia da sua filosofia, cuja popularidade provava que sempre estivera certa, de sorte que o único resultado político da “revolução” de Brecht foi encorajar todo o mundo a arrancar a máscara incômoda da hipocrisia e aceitar abertamente os padrões da ralé.
Cerca de dez anos mais tarde, na França, o Bagatelles pour un massacre, no qual Céline propunha que se massacrassem todos os judeus, provocou reação igualmente ambígua. André Gide expressou publicamente o seu deleite nas páginas da Nouvelle Revue Française, naturalmente não porque quisesse matar os judeus da França, mas porque exultava com a brutal confissão desse desejo e com a fascinante contradição entre a grosseria de Céline e a polidez hipócrita que cercava a questão judaica em todos os círculos respeitáveis. O desejo da elite de desmascarar a hipocrisia era tão irresistível que nem mesmo a perseguição muito real que Hitler promoveu contra os judeus chegou a prejudicar essa exultação — e a perseguição já estava em pleno andamento quando Céline escreveu o livro. A aversão contra o filossemitismo dos liberais tinha muito mais a ver com essa reação do que o ódio aos judeus. O fato notável de que as conhecidas opiniões de Hitler e de Stálin sobre arte, e a perseguição que ambos moveram contra os artistas modernos, nunca eliminaram a atração que os movimentos totalitários exerciam sobre os artistas da avant-garde pode ser explicado por um estado de espírito semelhante — o que demonstra a falta de senso de realidade da elite e o seu pervertido desprendimento, muito afins do mundo fictício em que viviam e da falta de interesses das massas por si mesmas. A grande oportunidade dos movimentos totalitários, e o motivo pelo qual uma aliança temporária entre a elite intelectual e a ralé pôde ocorrer, foi que, de certo modo elementar e indistinto, os seus problemas se tornavam os mesmos e prefiguravam os problemas e a mentalidade das massas.
O irresistível apelo da falsa pretensão dos movimentos totalitários de haverem abolido a separação entre a vida pública e a vida privada e de haverem restaurado no homem uma totalidade misteriosa e irracional tinha muito a ver com a atração que a elite sentia pela ausência de hipocrisia da ralé e pela ausência de interesse das massas por si mesmas. Desde que Balzac revelou as vidas privadas de figuras públicas da sociedade francesa e desde que a dramatização de Ibsen dos “pilares da sociedade” conquistou o teatro da Europa, a questão da dupla moralidade tem sido um dos principais tópicos de tragédias e romances. A dupla moralidade praticada pela burguesia tornou-se o principal sinal do esprit de sérieux, sempre pomposo e nunca sincero. Essa divisão entre a vida privada e a vida pública ou social nada tinha a ver com a justa separação entre as esferas pessoal e pública, mas era antes o reflexo psicológico da luta do século 19 entre bourgeois e citoyens, entre os burgueses que usavam e julgavam todas as instituições públicas pela medida dos seus interesses privados e os cidadãos responsáveis que se preocupavam com as coisas públicas do interesse de todos. Nesse particular, a filosofia política dos liberais segundo a qual a mera soma dos interesses individuais constitui o milagre do bem comum, parecia apenas uma racionalização da temeridade com que se atendia aos interesses privados sem se atentar para o bem comum.
Contra o espírito de classe dos partidos europeus, que sempre confessaram representar certos interesses e contra o “oportunismo” resultante da sua concepção de si mesmos como simples partes de um todo, os movimentos totalitários afirmavam a sua “superioridade” pelo fato de conterem uma Weltanschauung através da qual tomariam posse do homem como um todo (60). Nessa pretensão de totalidade, os líderes da ralé dos movimentos totalitários formulavam a sua ideologia invertendo apenas a própria filosofia política da burguesia. A classe burguesa, tendo aberto caminho para si por meio da pressão social e, frequentemente, através de chantagem econômica contra instituições políticas, sempre acreditara que os órgãos públicos oficiais do poder fossem dirigidos por seus próprios interesses e influxos secretos. Nesse sentido, a filosofia política da burguesia era sempre “totalitária”; supunha sempre que política, economia e sociedade fossem uma coisa só, na qual as instituições políticas serviam apenas de fachada para os interesses privados. O duplo padrão da burguesia, sua distinção entre a vida pública e a vida pessoal, era uma concessão ao Estado nacional que havia desesperadamente tentado manter separadas as duas esferas.
O que atraía a elite era o radicalismo em si. As esperançosas previsões de Marx de que o Estado feneceria e surgiria uma sociedade sem classes não eram suficientemente radicais nem messiânicas. Se Berdyaev tem razão quando afirma que “os revolucionários russos […] sempre foram totalitários”, então a atração que a Rússia soviética exerceu sobre os simpatizantes intelectuais do nazismo e do comunismo residia precisamente no fato de que, na Rússia, “a revolução era uma religião e uma filosofia, e não um simples conflito interessado no lado social e político da vida” (61). A verdade é que a transformação das classes em massas e o colapso do prestígio e da autoridade das instituições políticas haviam provocado, nos países da Europa ocidental, condições semelhantes às que existiam na Rússia, de modo que não foi por acaso que os seus revolucionários adquiriram o fanatismo revolucionário tipicamente russo que não esperava mudar as condições sociais ou políticas, mas destruir completamente todos os credos, valores e instituições existentes. A ralé apenas aproveitou-se desse novo estado de ânimo e provocou uma efêmera aliança entre revolucionários e criminosos, aliança esta que também havia ocorrido em muitas facções revolucionárias da Rússia czarista, mas que sempre estivera ausente do cenário europeu.
A perturbadora aliança entre a ralé e a elite e a curiosa coincidência das suas aspirações originam-se do fato de que essas duas camadas haviam sido as primeiras a serem eliminadas da estrutura do Estado-nação e da estrutura da sociedade de classes. Se uma encontrou a outra com tanta facilidade, embora temporariamente, é porque ambas percebiam que representavam o destino da época, que seriam seguidas por massas sem fim, que mais cedo ou mais tarde a maioria dos povos europeus estaria com elas — prontos a fazerem a sua revolução, segundo pensavam.
Ambas estavam enganadas, como se viu depois. A ralé — o submundo da classe burguesa — esperava que as massas impotentes a ajudassem a galgar o poder, a apoiassem quando tentasse promover os seus interesses privados, e que poderia simplesmente substituir as camadas mais antigas da sociedade burguesa, instilando nela o espírito mais dinâmico do submundo. Mas, uma vez no poder, o totalitarismo logo aprendeu que não eram só as camadas da ralé que tinham espírito de iniciativa e que, de qualquer forma, essa iniciativa só podia ameaçar o domínio total do homem. Por outro lado, a falta de escrúpulos também não era privilégio da ralé e, se necessário, podia ser ensinada em tempo relativamente curto. Para a máquina impiedosa do domínio e do extermínio, as massas coordenadas da burguesia constituíam material capaz de crimes ainda piores que os cometidos pelos chamados criminosos profissionais, contanto que esses crimes fossem bem organizados e assumissem a aparência de tarefas rotineiras.
Não foi por acaso, portanto, que os poucos protestos contra as atrocidades em massa dos nazistas contra os judeus e os povos da Europa oriental partiram não dos militares nem de qualquer outro setor das massas coordenadas compostas por homens respeitáveis, mas precisamente daqueles primeiros camaradas de Hitler que eram típicos representantes da ralé (62). E Himmler, a partir de 1936 o homem mais poderoso da Alemanha, não era um daqueles “boêmios armados” (Heiden) cujas características eram penosamente semelhantes às da elite intelectual. Himmler era “mais normal”, isto é, mais filisteu do que qualquer outro dos primeiros líderes do movimento nazista (63). Não era um boêmio como Goebbels, nem criminoso sexual como Streicher, nem louco como Rosenberg, nem fanático como Hitler, nem aventureiro como Göring. Demonstrou sua suprema capacidade de organizar as massas sob o domínio total, partindo do pressuposto de que a maioria dos homens não são boêmios, fanáticos, aventureiros, maníacos sexuais, loucos nem fracassados, mas, acima e antes de tudo, empregados eficazes e bons chefes de família.
O isolamento desses filisteus na vida privada, sua sincera devoção a questões de família e de carreira pessoal, era o último e já degenerado produto da crença do burguês na suma importância do interesse privado. O filisteu é o burguês isolado da sua própria classe, o indivíduo atomizado produzido pelo colapso da própria classe burguesa. O homem da massa, a quem Himmler organizou para os maiores crimes de massa jamais cometidos na história, tinha os traços do filisteu e não da ralé, e era o burguês que, em meio às ruínas do seu mundo, cuidava mais da própria segurança, estava pronto a sacrificar tudo a qualquer momento — crença, honra, dignidade. Nada foi tão fácil de destruir quanto a privacidade e a moralidade pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar as suas vidas privadas. Em poucos anos de poder e de coordenação sistemática, os nazistas podiam anunciar com razão: “A única pessoa que ainda é um indivíduo privado na Alemanha é alguém que esteja dormindo” (64).
Por outro lado, para fazer justiça àqueles elementos da elite que vez por outra se deixavam seduzir pelos movimentos totalitários e que, devido à sua capacidade intelectual, são às vezes acusados de haver inspirado o totalitarismo, é preciso dizer que nada do que esses homens desesperados do século 20 fizeram ou deixaram de fazer teve qualquer influência sobre o totalitarismo, embora tivesse muito a ver com as primeiras e bem-sucedidas tentativas dos movimentos de fazerem o mundo exterior levar a sério as suas doutrinas. Sempre que os movimentos totalitários tomavam o poder, todo esse grupo de simpatizantes era descartado antes mesmo que o regime passasse a cometer os seus piores crimes. A iniciativa intelectual, espiritual e artística é tão perigosa para o totalitarismo como a iniciativa de banditismo da ralé, e ambos são mais perigosos que a simples oposição política. A uniforme perseguição movida contra qualquer forma de atividade intelectual pelos novos líderes da massa deve-se a algo mais que o seu natural ressentimento contra tudo o que não podem compreender. O domínio total não permite a livre iniciativa em qualquer campo de ação, nem qualquer atividade que não seja inteiramente previsível. O totalitarismo no poder invariavelmente substitui todo talento, quaisquer que sejam as suas simpatias, pelos loucos e insensatos cuja falta de inteligência e criatividade é ainda a melhor garantia de lealdade (65).
2. O MOVIMENTO TOTALITÁRIO
2.1 A PROPAGANDA TOTALITÁRIA
Somente a ralé e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo; as massas têm de ser conquistadas por meio da propaganda. Sob um governo constitucional e havendo liberdade de opinião, os movimentos totalitários que lutam pelo poder podem usar o terror somente até certo ponto e, como qualquer outro partido, necessitam granjear aderentes e parecer plausíveis aos olhos de um público que ainda não está rigorosamente isolado de todas as outras fontes de informação.
Nos países totalitários, a propaganda e o terror parecem ser duas faces da mesma moeda (1). Isso, porém, só é verdadeiro em parte. Quando o totalitarismo detém o controle absoluto, substitui a propaganda pela doutrinação e emprega a violência não mais para assustar o povo (o que só é feito nos estágios iniciais, quando ainda existe a oposição política), mas para dar realidade às suas doutrinas ideológicas e às suas mentiras utilitárias. O totalitarismo não se contenta em afirmar, apesar de prova em contrário, que o desemprego não existe; elimina de sua propaganda qualquer menção sobre os benefícios para os desempregados (2). Igualmente importante é o fato de que a recusa em reconhecer o desemprego corrobora — embora de modo inesperado — a velha doutrina socialista de que quem não trabalha não come. Ou, para citar outro exemplo, quando Stálin decidiu reescrever a história da Revolução Russa, a propaganda da sua nova versão consistiu em destruir, juntamente com os livros e documentos, os seus autores e leitores: a publicação, em 1938, da nova história oficial do Partido Comunista assinalou o fim do super-expurgo que havia dizimado toda uma geração de intelectuais soviéticos. Da mesma forma, nos territórios ocupados da Europa oriental, os nazistas se utilizaram, no início, de propaganda antissemita principalmente para assegurar um controle mais firme da população. Não precisaram lançar mão do terror para nele apoiar a sua propaganda, nem o fizeram. Quando liquidaram a maioria dos intelectuais poloneses, não o fizeram devido à sua oposição, mas porque, segundo a doutrina nazista, os poloneses não tinham intelecto; e, quando planejaram levar para a Alemanha as crianças de olhos azuis e cabelos louros, não pretendiam com isso aterrorizar a população, mas apenas salvar “o sangue germânico” (3).
Por existirem num mundo que não é totalitário, os movimentos totalitários são forçados a recorrer ao que comumente chamamos de propaganda. Mas essa propaganda é sempre dirigida a um público de fora — sejam as camadas não totalitárias da população do próprio país, sejam os países não totalitários do exterior. Essa área externa à qual a propaganda totalitária dirige o seu apelo pode variar grandemente; mesmo depois da tomada do poder, a propaganda totalitária pode ainda dirigir-se àqueles segmentos da própria população cuja coordenação não foi seguida de doutrinação suficiente. Nesse ponto, os discursos de Hitler aos seus generais, durante a guerra, são verdadeiros modelos de propaganda, caracterizados principalmente pelas monstruosas mentiras com que o Führer entretinha os seus convidados na tentativa de conquistá-los (4).
A esfera externa pode também ser representada por grupos de simpatizantes que ainda não estejam preparados para aceitar os verdadeiros alvos do movimento. E, em muitos casos, até mesmo certos membros do partido são considerados, pelo círculo íntimo do Führer ou pelos membros das formações de elite, como pertencentes a essa esfera externa e ainda necessitados de propaganda, já que não podem ainda ser dominados com segurança. Para que não se subestime a importância das mentiras da propaganda, convém lembrar os muitos casos em que Hitler foi completamente sincero e brutalmente claro na definição dos verdadeiros objetivos do movimento, os quais, no entanto, simplesmente deixaram de ser percebidos pelo público, despreparado para tamanho despropósito (5). Basicamente, porém, o domínio totalitário procura restringir os métodos propagandísticos unicamente à sua política externa ou às ramificações do movimento no exterior, a fim de lhes fornecer material adequado. Sempre que a doutrinação totalitária no país de origem entra em conflito com a linha de propaganda para consumo externo (como sucedeu na Rússia, durante a guerra, não quando Stálin se aliou a Hitler, mas quando a guerra com Hitler fê-lo passar para o lado das democracias), a propaganda é explicada no país de origem como temporária “manobra tática” (6). Na medida do possível, estabelece-se, logo na fase anterior à tomada do poder, a diferença entre a doutrina ideológica destinada aos iniciados do movimento, que já não precisam de propaganda, e a propaganda para o mundo exterior. A relação entre a propaganda e a doutrinação depende do tamanho do movimento e da pressão externa. Quanto menor o movimento, mais energia despenderá em sua propaganda. Quanto maior for a pressão exercida pelo mundo exterior sobre os regimes totalitários — pressão que não é possível ignorar totalmente mesmo atrás da “cortina de ferro” — mais ativa será a propaganda totalitária. O fato essencial é que as necessidades da propaganda são sempre ditadas pelo mundo exterior; por si mesmos, os movimentos não propagam, e sim doutrinam. Por outro lado, a doutrinação, inevitavelmente aliada ao terror, cresce na razão direta da força dos movimentos ou do isolamento dos governantes totalitários que os protege da interferência externa.
A propaganda é, de fato, parte integrante da “guerra psicológica”; mas o terror o é mais. Mesmo depois de atingido o seu objetivo psicológico, o regime totalitário continua a empregar o terror; o verdadeiro drama é que ele é aplicado contra uma população já completamente subjugada. Onde o reino do terror atinge a perfeição, como nos campos de concentração, a propaganda desaparece inteiramente; na Alemanha nazista, chegou a ser expressamente proibida (7). Em outras palavras, a propaganda é um instrumento do totalitarismo, possivelmente o mais importante, para enfrentar o mundo não totalitário; o terror, ao contrário, é a própria essência da sua forma de governo. Sua existência não depende do número de pessoas que a infringem.
O terror como substituto da propaganda alcançou maior importância no nazismo do que no comunismo. Os nazistas não cometeram atentados contra personalidades importantes como havia acontecido anteriormente em ondas de crimes políticos na Alemanha (assassinatos de Rathenau e de Erzberger); em vez disso, matavam pequenos funcionários socialistas ou membros influentes dos partidos inimigos, procurando mostrar à população o perigo que podia acarretar o simples fato de pertencer a um partido. Esse tipo de terror dirigido contra a massa era valioso no sentido daquilo que um autor nazista chamou adequadamente de “propaganda de força” (8), e aumentou progressivamente porque nem a polícia nem os tribunais processavam seriamente os criminosos políticos da chamada Direita. Para a população em geral, tornava-se claro que o poder dos nazistas era maior que o das autoridades, e que era mais seguro pertencer a uma organização paramilitar nazista do que ser um republicano leal. Essa impressão foi grandemente reforçada pelo uso específico que os nazistas fizeram dos seus crimes políticos. Sempre os confessavam publicamente, nunca se desculpavam por “excessos dos escalões inferiores” — essas justificativas eram usadas apenas pelos simpatizantes do nazismo — e impressionavam a população por serem muito diferentes dos “meros faladores” dos outros partidos.
As semelhanças entre esse tipo de terror e o simples banditismo são claras demais para serem enumeradas. Isso não significa que o nazismo era banditismo, como às vezes se diz, mas apenas que os nazistas, sem o confessarem, aprenderam tanto com as organizações dos gângsteres americanos quanto a sua propaganda, confessadamente, aprendeu com a publicidade comercial americana.
Contudo, o que caracteriza a propaganda totalitária melhor do que as ameaças diretas e os crimes contra indivíduos é o uso de insinuações indiretas, veladas e ameaçadoras contra todos os que não derem ouvidos aos seus ensinamentos, seguidas de assassinato em massa perpetrado igualmente contra “culpados” e “inocentes”. A propaganda comunista ameaça as pessoas com a possibilidade de perderem o trem da história, de se atrasarem irremediavelmente em relação ao tempo, de esbanjarem as suas vidas inutilmente, tal como os nazistas as ameaçavam com uma existência contrária às eternas leis da natureza e da vida e com uma irreparável e misteriosa degeneração do sangue. A forte ênfase que a propaganda totalitária dá à natureza “científica” das suas afirmações tem sido comparada a certas técnicas publicitárias igualmente dirigidas às massas. De fato, os anúncios mostram o “cientificismo” com que um fabricante “comprova” — com fatos, algarismos e o auxílio de um departamento de “pesquisa” — que o seu “sabonete é o melhor do mundo” (9). Também é verdade que há um certo elemento de violência nos imaginosos exageros publicitários; por trás da afirmação de que as mulheres que não usam essa determinada marca de sabonete podem viver toda a vida espinhentas e solteironas, há um arrojado sonho monopolista, o sonho de que, algum dia, o fabricante do “único sabonete que evita espinhas” tenha o poder de privar de maridos todas as mulheres que não o usem. Tanto no caso da publicidade comercial quanto no da propaganda totalitária, a ciência é apenas um substituto do poder. A obsessão dos movimentos totalitários pelas demonstrações “científicas” desaparece assim que eles assumem o poder. Os nazistas dispensaram até mesmo os eruditos que procuraram servi-los, e os bolchevistas usam a reputação dos seus cientistas para finalidades completamente não científicas, transformando-os em charlatães.
Mas cessa aí a semelhança, frequentemente exagerada, entre a publicidade e a propaganda de massa. Os homens de negócio geralmente não se arrogam a profetas e não demonstram constantemente a correção de suas predições. O cientificismo da propaganda totalitária é caracterizado por sua insistência quase exclusiva na profecia “científica”, em contraposição com o apelo ao passado, já fora de moda. Nunca se percebe tão claramente a origem ideológica do socialismo e do racismo como quando os seus porta-vozes alegam ter descoberto as forças ocultas que lhe trarão boa sorte na “corrente da fatalidade”. As massas sentem-se naturalmente atraídas pelos “sistemas absolutistas que pretendem ver todos os eventos da história dependentes das grandes causas originais ligadas pela corrente da fatalidade, como que eliminando os homens da história da raça humana” (Tocqueville). Mas não se pode duvidar que a liderança nazista realmente acreditava em doutrinas como a que segue, e não as usava apenas como propaganda: “Quanto mais fielmente reconhecemos e seguimos as leis da natureza e da vida, […] tanto mais nos conformamos ao desejo do Todo-Poderoso. Quanto melhor conhecermos o desejo do Todo-Poderoso, maior será o nosso sucesso” (10). É evidente que o credo de Stálin pode ser expresso em duas sentenças muito parecidas: “Quanto mais fielmente reconhecemos e observamos as leis da história e da luta de classes, mais nos conformamos ao materialismo dialético. Quanto mais conhecermos o materialismo dialético, maior será o nosso sucesso” (11).
A propaganda totalitária aperfeiçoou o cientificismo ideológico e a técnica de afirmações proféticas a um ponto antes ignorado de eficiência metódica e absurdo de conteúdo porque, do ponto de vista demagógico, a melhor maneira de evitar discussão é tornar o argumento independente de verificação no presente e afirmar que só o futuro lhe revelará os méritos. Contudo, não foram as ideologias totalitárias que inventaram esse método e não foram elas as únicas a empregá-lo. O cientificismo da propaganda de massa tem sido empregado de modo tão universal na política moderna que chegou a ser identificado como sintoma mais geral da obsessão com a ciência que caracterizou o Ocidente desde o florescimento da matemática e da física no século XVI. Assim, o totalitarismo parece ser apenas o último estágio de um processo durante o qual “a ciência [tornou-se] um ídolo que, num passe de mágica, cura os males da existência e transforma a natureza do homem” (12). Realmente, há uma antiga ligação entre o cientificismo e o surgimento das massas. O “coletivismo” das massas foi acolhido de bom grado por aqueles que viam no surgimento de “leis naturais do desenvolvimento histórico” a eliminação da incômoda imprevisibilidade das ações e da conduta do indivíduo (13). Cita-se o exemplo de Enfantin, que pressentia a chegada do “tempo em que a arte de movimentar as massas estará tão perfeitamente desenvolvida que o pintor, o músico e o poeta terão o poder de agradar e comover com a mesma certeza com que os matemáticos resolvem um problema geométrico ou um químico analisa qualquer substância”. Talvez tenha sido nesse instante que nasceu a propaganda moderna (14).
Contudo, quaisquer que sejam as falhas do positivismo, do pragmatismo e do
behaviorismo, e por maior que seja a sua influência na formação do tipo de bom senso característico do século XIX, não é de modo algum “o produto canceroso do segmento utilitário da existência” (15) que caracteriza as massas atraídas pela propaganda totalitária e pelo cientificismo. A convicção dos positivistas, como a conhecemos através de Comte, de que o futuro pode vir a ser previsto cientificamente repousa na crença de que o interesse é a força que existe por trás de tudo na história, e na pressuposição de que o poder tenha leis objetivas que podem ser descobertas. O cerne do utilitarismo moderno, positivista ou socialista, é a teoria política de Rohan, de que “os reis comandam os povos e os interesses comandam os reis”, de que o interesse objetivo é a “única [lei] que não falha”, e de que, “mal ou bem compreendido, o interesse é responsável pela existência e pelo desaparecimento dos governos”. Mas nenhuma dessas teorias aceita a possibilidade de “transformar a natureza do homem”, como o totalitarismo realmente procura fazer. Pelo contrário, implícita ou explicitamente, todas presumem que a natureza do homem é sempre a mesma, que a história é o relato de circunstâncias, e que o interesse, corretamente compreendido, pode levar a uma mudança de circunstâncias, mas não à mudança das reações humanas em si. O “cientificismo” da política ainda pressupõe que o bem-estar humano é a sua finalidade, conceito que é completamente alheio ao totalitarismo (16).
Exatamente porque se supunha que as ideologias tivessem um natural conteúdo utilitário, a conduta antiutilitária dos governos totalitários e a sua completa indiferença pelo interesse da massa causaram um choque tão profundo. Essa conduta introduziu na política contemporânea um elemento de imprevisibilidade até então desconhecido. Contudo, a propaganda totalitária já havia indicado, antes mesmo que o totalitarismo tomasse o poder, até que ponto as massas haviam se afastado da preocupação pelo seu próprio interesse. Assim, não se justificava a suspeita dos aliados de que a matança dos loucos, ordenada por Hitler no começo da guerra, fosse ditada pelo desejo de eliminar bocas desnecessárias (17). Hitler não foi forçado pela guerra a atirar pelos ares todas as considerações de ordem ética, mas sim considerava a carnificina da guerra uma excelente oportunidade para dar início a um programa de assassinatos que, como todos os outros pontos do seu programa, se media em termos de milênios (18). Como virtualmente toda a história europeia, durante muitos séculos, havia ensinado o povo a julgar cada ação política por seu cui bono [proveito, vantagem] e todos os acontecimentos políticos por seus interesses subjacentes, estava-se agora subitamente diante de um elemento de imprevisibilidade sem precedentes. Dadas as suas características demagógicas, a propaganda totalitária — que, muito antes da tomada do poder, mostrava claramente quão pouco as massas se deixavam motivar pelo famoso instinto de autoconservação — não foi tomada a sério. Mas o sucesso da propaganda totalitária não se deve tanto à sua demagogia quanto ao conhecimento de que o interesse, como força coletiva, só se faz sentir onde um corpo social estável proporciona a necessária conexão motora entre o indivíduo e o grupo; nenhuma propaganda baseada no mero interesse pode ser eficaz entre as massas, já que a sua característica principal é não pertencerem a nenhum corpo social ou político e constituírem, portanto, um verdadeiro caos de interesses individuais. O fanatismo dos membros dos movimentos totalitários, cuja intensidade difere tão claramente da lealdade dos membros dos partidos comuns, resulta exatamente da falta de egoísmo interesseiro dos indivíduos que formam as massas e que estão perfeitamente dispostos a se sacrificarem pela ideia. Os nazistas demonstraram que se pode levar todo um povo à guerra com o lema “de outra forma pereceremos” (o que a propaganda de guerra evidentemente evitou em 1914), mesmo em época que não seja de miséria, de desemprego ou de frustradas ambições nacionais. O mesmo espírito prevaleceu durante os últimos meses de uma guerra obviamente perdida, quando a propaganda nazista consolou a população, já grandemente atemorizada, com a promessa de que o Führer, “em sua sabedoria, havia preparado uma morte suave para o povo alemão, por meio de gás, em caso de derrota” (19).
Os movimentos totalitários empregam o socialismo e o racismo esvaziando-os do seu conteúdo utilitário, dos interesses de uma classe ou de uma nação. A forma de predição infalível sob a qual esses conceitos são apresentados é mais importante que o seu conteúdo (20). A principal qualificação de um líder de massas é a sua infinita infalibilidade; jamais pode admitir que errou (21). Além disso, a pressuposição de infalibilidade baseia-se não tanto na inteligência superior quanto na correta interpretação de forças históricas ou naturais essencialmente seguras, forças que nem a derrota nem a ruína podem invalidar porque, a longo prazo, tendem a prevalecer (22). Uma vez no poder, os líderes da massa cuidam de algo que está acima de quaisquer considerações utilitárias: fazer com que as suas predições se tornem verdadeiras. Os nazistas não hesitaram em lançar mão, no fim da guerra, de toda a força da sua organização ainda intacta para destruir a Alemanha do modo mais completo possível, a fim de que fosse verdadeira a sua predição de que o povo alemão seria arruinado em caso de derrota.
O efeito propagandístico da infalibilidade, o extraordinário sucesso que decorre da humilde pose de mero agente interpretador de forças previsíveis, estimulou nos ditadores totalitários o hábito de anunciar as suas intenções políticas sob a forma de profecias. O exemplo mais famoso é o anúncio que Hitler fez ao Reichstag alemão em janeiro de 1939: “Desejo hoje mais uma vez fazer uma profecia: caso os financistas judeus […] consigam novamente arrastar os povos a uma guerra mundial o resultado será […] a aniquilação da raça judaica na Europa” (23). Traduzido em linguagem não totalitária, isso significa: pretendo travar uma guerra e pretendo matar os judeus da Europa. Da mesma forma, Stálin, no discurso proferido perante o Comitê Central do Partido Comunista em (1930), ao descrever os seus dissidentes no partido como representantes de “classes agonizantes” (24), abriu o caminho para a sua eliminação física. Em estilo totalitário, essa definição anunciava a destruição física daqueles cuja “agonia” acabava de ser profetizada. Em ambos os casos, consegue-se o mesmo objetivo: o extermínio vira processo histórico no qual o homem apenas faz ou sofre aquilo que, de acordo com leis imutáveis, sucederia de qualquer modo. Assim que as vítimas são executadas, a “profecia” transforma-se em álibi retrospectivo: o que sucedeu foi apenas o que havia sido predito (25). Pouco importa se “leis históricas” acarretam a “ruína” de certas classes e de seus representantes, ou se “leis naturais (…) exterminam” todos aqueles elementos — democracias, judeus, sub-homens [Untermenschen] do Leste europeu, ou doentes incuráveis — que, de qualquer forma, não são “dignos de viver”. Por sinal, Hitler também mencionou “classes agonizantes” que deviam ser “eliminadas sem mais problemas” (26).
Esse método, como outros da propaganda totalitária, só é infalível depois que os movimentos tomam o poder. A essa altura, discutir a verdade ou a mentira da predição de um ditador totalitário é tão insensato como discutir com um assassino em potencial se a sua próxima vítima está morta ou viva — pois, matando a pessoa em questão, o assassino pode prontamente demonstrar que a sua afirmação era correta. O único argumento válido nessas ocasiões seria a imediata salvação da pessoa cuja morte é profetizada. Antes que os líderes das massas tomem o poder para fazer com que a realidade se ajuste às mentiras que proclamam, sua propaganda exibe extremo desprezo pelos fatos em si, pois, na sua opinião, os fatos dependem exclusivamente do poder do homem que os inventa (27). A afirmação de que o metrô de Moscou é o único do mundo só é falsa enquanto os bolchevistas não puderem destruir os outros. Em outras palavras, o método da predição infalível, mais que qualquer outro expediente da propaganda totalitária, revela o seu objetivo último de conquista mundial, pois somente num mundo inteiramente sob o seu controle pode o governante totalitário dar realidade prática às suas mentiras e tornar verdadeiras todas as suas profecias.
A linguagem do cientificismo profético correspondia às necessidades das massas que haviam perdido o seu lugar no mundo e, agora, estavam preparadas para se reintegrar nas forças eternas e todo-poderosas que, por si, impeliriam o homem, nadador no mar da adversidade, para praia segura. “Moldamos a vida do nosso povo e a nossa legislação segundo o veredicto da genética” (28). afirmaram os nazistas, do mesmo modo como os bolchevistas asseguraram aos seus seguidores que as forças econômicas têm o poder de um veredicto histórico. Assim, prometiam uma vitória que não dependia de derrotas e fracassos “temporários”. Pois as massas, em contraste com as classes, desejam a vitória e o sucesso em si mesmos, em sua forma mais abstrata; não as unem quaisquer interesses coletivos especiais que considerem essenciais à sua sobrevivência como um grupo e pelos quais, portanto, poderiam lutar contra a adversidade. Mais importante que a causa que venha a ser vitoriosa ou o empreendimento que tenha possibilidades de vencer, é para elas a vitória em não importa que causa e o sucesso em não importa que empreendimento.
A propaganda totalitária aperfeiçoa as técnicas da propaganda de massa, mas não lhe inventa os temas. Estes foram preparados pelos cinquenta anos de imperialismo e desintegração do Estado nacional, quando a ralé adentrou o cenário da política europeia. Tal como os primeiros líderes da ralé, os porta-vozes dos movimentos totalitários tinham um modo infalível de distinguir tudo aquilo que a propaganda partidária comum ou a opinião pública evitava ou não ousava abordar. Tudo o que fosse oculto, tudo o que fosse mantido em silêncio adquiria grande importância, qualquer que fosse o seu valor intrínseco. A ralé realmente acreditava que a verdade era tudo aquilo que a sociedade respeitável houvesse hipocritamente escamoteado ou acobertado com a corrupção.
O primeiro critério para a escolha dos tópicos era o mistério em si. A origem do mistério não importava; podia estar num desejo de segredo razoável e politicamente compreensível, como no caso dos Serviços Secretos Britânicos ou do Deuxième Bureau francês; ou na necessidade conspiratória de grupos revolucionários, como no caso das seitas anárquicas e terroristas; ou na estrutura de sociedades secretas, embora seu conteúdo secreto já fosse conhecido e somente o ritual formal retivesse ainda o antigo mistério, como no caso da maçonaria; ou em superstições antiquíssimas que haviam gerado lendas em torno de certos grupos, como no caso dos jesuítas e judeus. Os nazistas eram, sem dúvida, mestres na escolha desses tópicos para uso em propaganda de massa; mas os bolchevistas pouco a pouco aprenderam-lhes os truques, embora confiassem menos em mistérios tradicionalmente aceitos e preferissem suas próprias invenções; desde meados da década de 30, uma misteriosa conspiração mundial tem seguido outra na propaganda bolchevista, a começar pelo complô dos trotskistas, passando pelo domínio das trezentas famílias, até as sinistras maquinações imperialistas dos serviços secretos britânicos e americanos (29).
A eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das principais características das massas modernas. Não acreditam em nada visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas apenas em sua imaginação, que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si. O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte.
Importante aqui: os isomorfismos com os movimentos reacionários do populismo-autoritário contemporâneo.
O que as massas se recusam a compreender é a fortuidade de que a realidade é feita. Predispõem-se a todas as ideologias porque estas explicam os fatos como simples exemplos de leis e ignoram as coincidências, inventando uma onipotência que a tudo atinge e que supostamente está na origem de todo acaso. A propaganda totalitária prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção, da coincidência para a coerência.
Idem. Não pode haver acaso. Não pode haver imprevisibilidade. O acaso na história e a imprevisibilidade da política são os dois antídotos às ideologias autoritárias (e suas teorias da conspiração).
A principal desvantagem da propaganda totalitária é que não pode satisfazer esse anseio das massas por um mundo completamente coerente, compreensível e previsível sem entrar em sério conflito com o bom senso. Se, por exemplo, todas as “confissões” de inimigos políticos na União Soviética empregam os mesmos termos e admitem os mesmos motivos, as massas, sedentas de coerência, aceitam a ficção como prova suprema da veracidade dos fatos; no entanto, o bom senso nos diz que é exatamente essa coerência que é irreal, demonstrando que as confissões são falsas. De modo figurado, é como se as massas exigissem uma repetição constante do milagre da Septuaginta, quando — segundo a lenda aceita pelo judaísmo e cristianismo — setenta sábios alexandrinos, isolados entre si, apresentaram a mesma idêntica tradução grega do Velho Testamento. O bom senso só pode aceitar essa história como lenda, mas ela também pode ser tomada como prova da absoluta e divina fidelidade de cada palavra do texto traduzido.
Em outras palavras, embora seja verdade que as massas são obcecadas pelo desejo de fugirem da realidade porque, privadas de um lugar no mundo, já não podem suportar os aspectos acidentais e incompreensíveis dessa situação, também é verdade que a sua ânsia pela ficção tem algo a ver com aquelas faculdades do espírito humano cuja coerência estrutural transcende a mera ocorrência. Fugindo à realidade, as massas pronunciam um veredicto contra um mundo no qual são forçadas a viver e onde não podem existir, uma vez que o acaso é o senhor supremo deste mundo e os seres humanos necessitam transformar constantemente as condições do caos e do acidente num padrão humano de relativa coerência. A revolta das massas contra o “realismo”, o bom senso e todas “as plausibilidades do mundo” (Burke) resultou da sua atomização, da perda de seu status social, juntamente com todas as relações comunitárias em cuja estrutura o bom senso faz sentido. Em sua condição de deslocados espirituais e sociais, um conhecimento medido da interdependência entre o arbitrário e o planejado, entre o acidental e o necessário, já não produz efeito. A propaganda totalitária pode insultar o bom senso somente quando o bom senso perde a sua validade. Entre enfrentar a crescente decadência, com a sua anarquia e total arbitrariedade, e curvar-se ante a coerência mais rígida e fantasticamente fictícia de uma ideologia, as massas provavelmente escolherão este último caminho, dispostas a pagar por isso com sacrifícios individuais — não porque sejam estúpidas ou perversas, mas porque, no desastre geral, essa fuga lhes permite manter um mínimo de respeito próprio.
Enquanto a propaganda nazista especializava-se em tirar proveito do anseio das massas pela coerência, os métodos bolchevistas demonstraram claramente o seu impacto sobre o homem de massa isolado. A polícia secreta soviética, tão ávida de convencer suas vítimas a assumirem responsabilidade por crimes que nunca cometeram e que, em muitos casos, nem sequer estavam em posição de cometer, isola e elimina completamente todos os fatores reais, de sorte que a própria lógica, a própria congruência da “estória” contida na confissão forjada, se torna irrefutável. Diante de uma situação na qual a linha divisória entre a ficção e a realidade é apagada pela inerente coerência da acusação, é indispensável não apenas a firmeza de caráter para resistir a constantes ameaças, mas também uma grande dose de confiança na existência de semelhantes — parentes, amigos ou vizinhos — que nunca acreditarão na “estória”, para que se resista à tentação de ceder a uma abstrata possibilidade de culpa.
É verdade que esse extremo de loucura artificialmente forjada só pode ser atingido num mundo inteiramente totalitário. No entanto, já hoje faz parte do aparelho de propaganda dos regimes totalitários, onde as confissões não são indispensáveis para levarem à punição. As “confissões” são uma especialidade do regime bolchevista, como o curioso pedantismo da legalização de crimes por meio de leis retrospectivas e retroativas era especialidade do sistema nazista. Em ambos os casos, o objetivo é a coerência.
Antes de tomarem o poder e criarem um mundo à imagem da sua doutrina, os movimentos totalitários invocam esse falso mundo de coerências, que é mais adequado às necessidades da mente humana do que a própria realidade; nele, através de pura imaginação, as massas desarraigadas podem sentir-se à vontade e evitar os eternos golpes que a vida e as experiências verdadeiras infligem aos seres humanos e às suas expectativas. A força da propaganda totalitária — antes que os movimentos façam cair cortinas de ferro para evitar que alguém perturbe, com a mais leve realidade, a horripilante quietude de um mundo completamente imaginário — reside na sua capacidade de isolar as massas do mundo real. Os únicos sinais que o mundo real ainda oferece à compreensão das massas desintegradas e em desintegração — que se tornam mais crédulas a cada golpe de má sorte — são, por assim dizer, as suas lacunas, as perguntas que ele prefere não discutir em público, os boatos que não ousa contradizer porque ferem, embora de modo exagerado e distorcido, algum ponto fraco.
É desses pontos fracos que as mentiras da propaganda totalitária extraem o elemento de veracidade e experiência real de que necessitam para transpor o abismo entre a realidade e a ficção. Só o terror poderia confiar na mera ficção, mas mesmo as ficções sustentadas pelo terror dos regimes totalitários ainda não se tornaram completamente arbitrárias, embora sejam geralmente mais grosseiras, mais descaradas e mais originais que as ficções geradas pelos movimentos. (É preciso ter força, não talento propagandístico, para fazer circular uma história revisada da Revolução Russa na qual nenhum homem chamado Trótski jamais foi comandante em chefe do Exército Vermelho.) Já as mentiras dos movimentos são muito mais sutis. Atêm-se a todo aspecto da vida social e política que esteja oculto aos olhos do público. Conseguem maior sucesso onde as autoridades oficiais vivam numa atmosfera de segredo. Aos olhos da massa, adquirem então a reputação de “realismo” superior, porque se referem a supostas condições reais, cuja existência vinha sendo ocultada. A revelação de escândalos na alta sociedade, de corrupção de homens públicos, tudo o que interessa à imprensa marrom, se torna em suas mãos uma arma de importância mais que sensacional.
A mais eficaz ficção da propaganda nazista foi a história de uma conspiração mundial judaica. Concentrar-se em propaganda antissemita era expediente comum dos demagogos desde fins do século XIX, e muito difundido na Alemanha e na Áustria na década de 1920. Quanto mais constantemente os partidos e órgãos da opinião pública evitavam discutir a questão judaica, mais a ralé se convencia de que os judeus eram os verdadeiros representantes das autoridades constituídas, e de que a questão judaica era o símbolo da hipocrisia e da desonestidade de todo o sistema.
O verdadeiro conteúdo da propaganda antissemita do pós-guerra [depois de 1918] não era monopólio dos nazistas nem particularmente novo e original. Mentiras acerca de uma conspiração mundial judaica haviam sido veiculadas desde o Caso Dreyfus, e baseavam-se na inter-relação e interdependência do povo judaico disseminado por todo o mundo. Mais antigas ainda são as noções exageradas do poder mundial dos judeus; encontramo-las em fins do século XVIII, quando a estreita relação entre os comerciantes judeus e os Estados-nações se tornou visível. A apresentação de “o judeu” como a encarnação do mal é geralmente atribuída a vestígios e supersticiosas lembranças da Idade Média, mas na verdade tem íntima ligação com o papel mais recente e mais ambíguo que os judeus representaram na sociedade europeia depois da sua emancipação. Uma coisa era inegável: no período do pós-guerra, os judeus haviam se tornado mais proeminentes do que nunca.
Mas, no tocante aos próprios judeus, o fato é que haviam se tornado mais proeminentes e mais notórios na razão inversa da sua verdadeira influência e posição de poder. Cada perda de estabilidade e de força dos Estados-nações era um golpe direto contra a posição dos judeus. A conquista do Estado pela nação, parcialmente bem-sucedida, tornou impossível à máquina governamental manter a sua posição acima de todas as classes e partidos, e anulou o valor da aliança com o segmento judaico da população, o qual, ademais, era rechaçado da estrutura estatal, que se pretendia uniformemente nacional, e mantido fora dos escalões sociais; assim, permanecia indiferente à política dos partidos. À crescente preocupação da burguesia imperialista com a política externa e à sua crescente influência sobre a máquina estatal seguiu-se a firme recusa, por parte daquele setor judaico que realmente concentrava riquezas, de se engajar em indústrias e abandonar a tradição do comércio de capitais. A soma de todos esses fatores quase acabou com a utilidade econômica, para o Estado, dos judeus como um grupo e com a vantagem, para os judeus, da sua separação social. Depois da Primeira Guerra Mundial, as comunidades judaicas da Europa central foram assimiladas e incorporadas à nação, como ocorreu à comunidade judaica da França durante as primeiras décadas da Terceira República.
O grau de consciência dos Estados interessados dessa nova situação veio à luz quando, em 1917, o governo da Alemanha, seguindo uma antiga tradição, tentou usar os seus judeus para negociações experimentais de paz com os aliados. Em lugar de se dirigir aos líderes estabelecidos das comunidades judaicas alemãs, o governo apelou para a pequena e relativamente pouco influente minoria sionista, que ainda gozava da sua confiança porque insistia na existência de um povo judaico independente de cidadania, e da qual, portanto, se poderiam esperar serviços que dependessem de conexões internacionais. Isso, porém, como se verificou mais tarde, foi um erro do governo alemão. Os sionistas fizeram algo que nenhum dos banqueiros judeus havia feito antes: estabeleceram as suas próprias condições e disseram ao governo que só negociariam a paz sem anexações ou reparações (30). Já não existia a velha indiferença dos judeus pela política; a maioria dos judeus já não podia ser usada, pois não estava mais isolada da nação em cujo seio vivia, e a minoria sionista era inútil, porque tinha ideias políticas próprias.
A substituição dos governos monárquicos pela república na Europa central completou a desintegração das comunidades judaicas da região, do mesmo modo que a criação da Terceira República o havia feito na França cerca de cinquenta anos antes. Os judeus já haviam perdido grande parte da sua influência quando os novos governos se estabeleceram em condições nas quais não tinham poder para proteger os judeus nem interesse em fazê-lo. Por ocasião das negociações de paz em Versalhes, os judeus foram usados principalmente como peritos, e mesmo certos antissemitas admitiram que os pequenos escroques judeus da era do pós-guerra, dos quais muitos eram recém-chegados aos países em que agiam (e atrás de cujas atividades fraudulentas, que os distinguiam claramente dos seus correligionários nativos, havia uma atitude vagamente semelhante à antiga indiferença pelas normas do meio ambiente em que passavam a viver), não tinham quaisquer conexões com os representantes de uma suposta internacional judaica (31).
Em meio a um grande número de grupos antissemitas concorrentes e numa atmosfera carregada de antissemitismo, a propaganda nazista elaborou um método específico de tratar esse assunto, método diferente e superior a todos os outros. Não obstante, nenhum dos slogans nazistas era novo — nem mesmo a astuta imagem oferecida por Hitler de uma luta de classes provocada pelo comerciante judeu que explorava os trabalhadores, enquanto outro judeu, na fábrica, os incitava a entrarem em greve (32). O único elemento novo era que o nazismo exigia prova de ascendência não judaica aos candidatos a membros do Partido. Ademais, o nazismo sempre foi, não obstante o programa de Feder, extremamente vago quanto às verdadeiras medidas que tomaria contra os judeus quando galgasse o poder (33). Os nazistas deram à questão judaica a posição central na sua propaganda, no sentido de que o antissemitismo já não era uma questão de opinião acerca de um povo diferente da maioria, nem uma questão de política nacional (34), mas sim a preocupação íntima de todo indivíduo na sua existência pessoal; ninguém podia pertencer ao partido se a sua “árvore genealógica” não estivesse em ordem, e quanto mais alto o posto na hierarquia nazista, mais longe no passado se vasculhava essa árvore genealógica (35). Do mesmo modo, embora sem tanta coerência, o bolchevismo alterou a doutrina marxista da inevitável vitória final do proletariado, organizando os seus membros como “proletários de nascença” e tornando vergonhoso e escandaloso descender de qualquer outra classe (36).
A propaganda nazista foi suficientemente engenhosa para transformar o antissemitismo em princípio de autodefinição, libertando-o assim da inconstância de uma mera opinião. Usou a persuasão da demagogia de massa apenas como fase preparatória, e nunca superestimou sua duradoura influência, fosse em discursos ou por escrito (37). Isso deu às massas de indivíduos atomizados, indefiníveis, instáveis e fúteis um meio de se autodefinirem e identificarem, não somente restaurando a dignidade que antes lhes advinha da sua função na sociedade, como também criando uma espécie de falsa estabilidade que fazia deles melhores candidatos à participação ativa. Através desse tipo de propaganda, o movimento podia apresentar-se como extensão artificial das reuniões de massa, e racionalizar os fúteis sentimentos de empáfia e de histérica segurança que oferecia aos indivíduos isolados de uma sociedade atomizada (38).
Percebia-se a mesma engenhosa aplicação de slogans , criados por terceiros e já experimentados antes, no tratamento que os nazistas davam a outras questões importantes. Quando a atenção pública concentrou-se no nacionalismo, de um lado, e no socialismo, de outro, quando se julgava que os dois eram incompatíveis e constituíam a verdadeira linha divisória ideológica entre a Direita e a Esquerda, o “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães” (nazista) ofereceu uma síntese que supostamente levaria à unidade nacional, uma solução semântica cuja dupla marca registrada — “alemão” e “trabalhador” — ligava o nacionalismo da Direita ao internacionalismo da Esquerda. O próprio nome do movimento nazista esvaziava politicamente todos os outros partidos, e pretendia implicitamente incorporá-los a todos. Misturas de doutrinas políticas supostamente antagônicas (nacional-socialista, social-cristã etc.) já haviam sido experimentadas antes com sucesso; mas os nazistas deram tal realidade prática à sua mistura que toda a luta parlamentar entre os socialistas e os nacionalistas, entre aqueles que pretendiam ser trabalhadores em primeiro lugar e aqueles que em primeiro lugar eram alemães, parecia uma farsa destinada a ocultar motivos ulteriores e sinistros — pois o membro do movimento nazista não era tudo isso e de uma só vez?
É interessante notar que, mesmo no seu começo, os nazistas sempre tiveram a prudência de não usar slogans que, como democracia, república, ditadura ou monarquia, indicassem uma forma específica de governo (39). É como se, pelo menos nesse assunto, sempre soubessem que iriam ser completamente originais. Toda discussão a respeito da verdadeira forma do seu futuro governo podia ser rejeitada como conversa-fiada a respeito de meras formalidades — pois o Estado, segundo Hitler, era apenas um “meio” para a preservação da raça, do mesmo modo como, segundo a propaganda bolchevista, o Estado é apenas um instrumento na luta de classes (40).
De outro modo curioso e indireto, porém, os nazistas deram uma resposta propagandística à pergunta sobre qual seria o seu futuro papel, e o fizeram pela maneira como usaram os “Protocolos dos sábios do Sião” como modelo para a futura organização das massas alemãs num “império mundial”. Não foram apenas os nazistas que usaram os Protocolos; centenas de milhares de cópias foram vendidas na Alemanha após a guerra de 1918, e a sua franca adoção como manual político sequer constituía novidade (41). A fraude, porém, era usada principalmente com a finalidade de denunciar os judeus e despertar a ralé para os perigos do domínio judaico (42). Em termos de mera propaganda, a descoberta dos nazistas foi que as massas não receavam tanto que os judeus dominassem o mundo, quanto estavam interessadas em saber como isso podia ser feito; que a popularidade dos Protocolos se baseava mais na admiração e na avidez de aprender, do que no ódio; e que seria boa ideia adotar algumas de suas principais fórmulas, como no caso do famoso slogan “O direito é aquilo que é bom para o povo alemão”, que foi copiado das palavras dos Protocolos: “tudo o que beneficia o povo judaico é moralmente correto e sagrado” (43).
Em muitos sentidos, os Protocolos são um documento curioso e digno de nota. À parte o seu maquiavelismo barato, sua característica política essencial é que, de modo um tanto doido, abordam todas as questões políticas importantes da época. São por princípio antinacionais e pintam o Estado-nação como um colosso de pés de barro. Rejeitam a soberania nacional e acreditam, como Hitler disse certa vez, num império mundial à base de uma nação (44). Não se satisfazem com a revolução num determinado país, mas visam à conquista e domínio do mundo. Prometem que, a despeito da inferioridade em número, território e poder estatal, o seu povo poderá conquistar o mundo através da mera organização. É certo que parte de sua força persuasiva se deve a superstições muito antigas. A noção da existência ininterrupta de uma seita internacional que luta pelos mesmos objetivos revolucionários desde a Antiguidade é muito velha (45) e desempenhou certo papel na literatura política clandestina desde a Revolução Francesa, embora não tivesse ocorrido a nenhum escritor do fim do século XVIII que a “seita revolucionária”, essa “nação peculiar […] em meio a todas as nações civilizadas”, pudesse ser o povo judeu (46).
O que mais atraía as massas nos Protocolos era o tema de uma conspiração global, que correspondia à nova situação de forças. (Logo no início da sua carreira, Hitler prometeu que o movimento nazista iria “transcender os estreitos limites do nacionalismo moderno” (47) e já durante a guerra houve tentativas dentro da SS de riscar a palavra “nação” do vocabulário nacional-socialista.) Só as potências mundiais pareciam ter ainda uma chance de sobrevivência independente e só a política global parecia poder conseguir resultados duradouros. É bastante compreensível que essa situação assustasse as nações menores que não eram potências mundiais. Os Protocolos pareciam apontar uma solução que não dependia de condições objetivas e inalteráveis, mas apenas do poder da organização.
A propaganda nazista, em outras palavras, descobriu no “judeu supranacional porque intensamente nacional” (48) o precursor do conquistador germânico do mundo, e assegurou às massas que “as nações que primeiro conhecerem o judeu pelo que é, e forem as primeiras a combatê-lo, tomarão o seu lugar no domínio mundial” (49). A ilusão de um domínio mundial judeu já existente constituiu a base da ilusão do futuro domínio mundial alemão. Isso era o que Himmler tinha em mente quando disse que “devemos a arte de governar aos judeus”, ou seja, aos Protocolos que “o Führer sabia de cor” (50). Assim, os Protocolos apresentavam a conquista mundial como uma possibilidade prática, insinuavam que tudo era apenas uma questão de know-how inspirado ou astuto, e que o único obstáculo à vitória alemã sobre o mundo inteiro era um povo sabidamente pequeno, os judeus, que dominava sem possuir instrumentos de violência — um adversário fácil, portanto, uma vez que se desvendasse o seu segredo e se emulasse o seu método em maior escala.
A propaganda nazista concentrou toda essa nova e promissora visão num só conceito, que chamou de Volksgemeinschaft. Essa nova comunidade, tentativamente concretizada no movimento nazista na atmosfera pré-totalitária, baseava-se na absoluta igualdade de todos os alemães, igualdade não de direitos, mas de natureza, e na suprema diferença que os distinguia de todos os outros povos (51). Depois que os nazistas chegaram ao poder, esse conceito gradualmente perdeu a sua importância e cedeu lugar, por um lado, a um desprezo geral pelo povo alemão (desprezo que os nazistas sempre haviam nutrido, mas que não podiam demonstrar até então em público) (52) e, por outro lado, a um grande desejo de aumentarem os próprios escalões com “arianos” de outros países, ideia que não tivera muita importância na fase da propaganda nazista anterior à tomada do poder (53). A Volksgemeinschaft era apenas a preparação propagandística para uma sociedade racial “ariana” que, no fim, teria destruído todos os povos, inclusive os alemães.
Até certo ponto, a Volksgemeinschaft era a tentativa nazista de combater a promessa comunista de uma sociedade sem classes. A vantagem propagandística da primeira sobre a segunda parece clara, se desprezarmos todas as implicações ideológicas. Embora ambas prometessem acabar com todas as diferenças sociais e de propriedade, a sociedade sem classes tinha a conotação óbvia de que todos desceriam ao nível de um empregado de fábrica, enquanto a Volksgemeinschaft, com a sua conotação de conspiração para a conquista mundial, oferecia uma razoável esperança de que todo alemão poderia vir a ser um dono de fábrica. Mas a vantagem ainda maior da Volksgemeinschaft era que a sua criação não precisava esperar por alguma data futura e não dependia de condições objetivas: podia ser realizada imediatamente no mundo fictício do movimento.
O verdadeiro objetivo da propaganda totalitária não é a persuasão mas a organização — o “acúmulo da força sem a posse dos meios de violência” (54). Para esse fim, a originalidade do conteúdo ideológico só pode ser considerada como dificuldade desnecessária. Não foi por acaso que os dois movimentos totalitários do nosso tempo, tão assustadoramente “novos” em seus métodos de domínio e engenhosos em suas formas de organização, nunca prepararam uma doutrina nova, nunca inventaram uma ideologia que já não fosse popular (55). Não são os sucessos passageiros da demagogia que conquistam as massas, mas a realidade palpável e a força de uma “organização viva” (56). Os brilhantes dons de Hitler como orador de massa não lhe conquistaram a posição que ocupava no movimento, mas levaram os seus oponentes a subestimá-lo como simples demagogo, enquanto Stálin pôde derrotar o outro orador superior da Revolução Russa (57). O que distingue os líderes e ditadores totalitários é a obstinada e simplória determinação com que, entre as ideologias existentes, escolhem os elementos que mais se prestam como fundamentos para a criação de um mundo inteiramente fictício. A ficção dos Protocolos era tão adequada quanto a ficção de uma conspiração trotskista, pois ambas continham um elemento de plausibilidade — a influência oculta dos judeus no passado, a luta pelo poder entre Trótski e Stálin — que nem mesmo o mundo fictício do totalitarismo pode de todo dispensar. Sua arte consiste em usar e, ao mesmo tempo, transcender o que há de real, de experiência demonstrável na ficção escolhida, generalizando tudo num artifício que passa a estar definitivamente fora de qualquer controle possível por parte do indivíduo. Com tais generalizações, a propaganda totalitária cria um mundo fictício capaz de competir com o mundo real, cuja principal desvantagem é não ser lógico, coerente e organizado. A coerência da ficção e o rigor organizacional permitem que a generalização sobreviva ao desmascaramento de certas mentiras mais específicas — o poder dos judeus após o seu massacre sem defesa, a sinistra conspiração global dos trotskistas após a sua liquidação na União Soviética e o assassínio do próprio Trótski.
A obstinação com que os ditadores totalitários se aferram às suas mentiras originais, mesmo diante do absurdo, deve-se a algo mais que a supersticiosa gratidão àquilo que “funcionou” e, pelo menos no caso de Stálin, não pode ser explicada pela psicologia do mentiroso, cujo sucesso faz dele próprio a sua última vítima. Uma vez integrados numa “organização viva”, esses slogans de propaganda não podem ser eliminados sem riscos, sem destruir toda a estrutura. A propaganda totalitária transformou a suposição de uma conspiração mundial judaica de assunto discutível que era, em principal elemento da realidade nazista; o fato é que os nazistas agiam como se o mundo fosse dominado pelos judeus e precisasse de uma contraconspiração para se defender. Para eles, o racismo já não era uma teoria debatível, de duvidoso valor científico, mas sim a realidade prática de cada dia na hierarquia operante de uma organização política em cuja estrutura teria sido muito “irrealista” pô-lo em dúvida. Do mesmo modo, o bolchevismo já não precisa vencer uma discussão a respeito da luta de classes, do internacionalismo e da dependência incondicional do proletariado em relação ao bem-estar da União Soviética; a organização ativa do Comintern — até a sua dissolução nessa forma oficial — foi mais convincente do que qualquer argumento ou mera ideologia.
O motivo fundamental da superioridade da propaganda totalitária em comparação com a propaganda de outros partidos e movimentos é que o seu conteúdo, pelo menos para os membros do movimento, não é mais uma questão objetiva a respeito da qual as pessoas possam ter opiniões, mas tornou-se parte tão real e intocável de sua vida como as regras da aritmética. A organização de toda a textura da vida segundo uma ideologia só pode realizar-se completamente sob um regime totalitário. Na Alemanha nazista, duvidar da validade do racismo e do antissemitismo, quando nada importava senão a origem racial, quando uma carreira dependia de uma fisionomia “ariana” (Himmler costumava selecionar os candidatos à SS por fotografias) e a quantidade de comida que cabia a uma pessoa dependia do número dos seus avós judeus, era como colocar em dúvida a própria existência do mundo.
As vantagens de uma propaganda que constantemente empresta à voz fraca e falível do argumento a “força da organização” (58) e dessa forma realiza, por assim dizer, instantaneamente tudo o que diz, são tão óbvias que dispensam demonstração. Garantida contra argumentos baseados numa realidade que os movimentos prometeram mudar, contra uma propaganda adversária desqualificada pelo simples fato de pertencer ou defender um mundo que as massas ociosas não podem e não querem aceitar, sua inverdade só pode ser demonstrada por outra realidade mais forte ou melhor.
É no momento da derrota que a fraqueza inerente da propaganda totalitária se torna visível. Sem a força do movimento, seus membros cessam imediatamente de acreditar no dogma pelo qual ainda ontem estavam dispostos a sacrificar a vida. Logo que o movimento, isto é, o mundo fictício que as abrigou, é destruído, as massas revertem ao seu antigo status de indivíduos isolados que aceitam de bom grado uma nova função num mundo novo ou mergulham novamente em sua antiga e desesperada superfluidade. Os membros dos movimentos totalitários, inteiramente fanáticos, enquanto o movimento existe, não seguem o exemplo dos fanáticos religiosos morrendo como mártires, embora estivessem antes tão dispostos a morrer como robôs (59), mas abandonam calmamente o movimento como algo que não deu certo e procuram em torno de si outra ficção promissora, ou esperam até que a velha ficção recupere força suficiente para criar novo movimento de massa.
A experiência dos aliados, que em vão tentaram localizar um único nazista confesso e convicto entre o povo alemão, 90% do qual fora sincero simpatizante num ou noutro momento, não deve ser tomada simplesmente como sinal de fraqueza humana e grosseiro oportunismo. O nazismo, como ideologia, havia sido “realizado” de modo tão completo que o seu conteúdo deixara de existir como um conjunto independente de doutrinas. Perdera, assim, a sua existência intelectual; a destruição da realidade, portanto, quase nada deixou em seu rastro, muito menos o fanatismo dos adeptos.
2. 2 A ORGANIZAÇÃO TOTALITÁRIA
As formas da organização totalitária, em contraposição com o seu conteúdo ideológico e os slogans de propaganda, são completamente novas (60). Visam dar às mentiras propagandísticas do movimento, tecidas em torno de uma ficção central — a conspiração dos judeus, dos trotskistas, das trezentas famílias etc. —, a realidade operante e a construir, mesmo em circunstâncias não totalitárias, uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo as regras de um mundo fictício. Em contraste com partidos e movimentos aparentemente semelhantes de orientação fascista ou socialista, nacionalista ou comunista, que dão à sua propaganda o apoio terrorista assim que atingem um certo grau de extremismo (o que geralmente depende do grau de desespero dos seus membros), o movimento totalitário realmente leva a sério a sua propaganda, e essa seriedade se expressa muito mais assustadoramente na organização dos seus adeptos do que na liquidação física dos seus oponentes. A organização e a propaganda, e não o terror e a propaganda, são duas faces da mesma moeda (61).
O mais surpreendentemente novo expediente organizacional dos movimentos na fase que antecede a tomada do poder é a criação de organizações de vanguarda, ou seja, a definição da diferença entre os membros do partido e os seus simpatizantes. Comparadas a essa invenção, outras características tipicamente totalitárias, como a nomeação de funcionários por uma cúpula ideológica e a monopolização final das nomeações por um homem só, são de menor importância. O chamado “princípio de liderança” não é totalitário em si; algumas de suas características derivam do autoritarismo e da ditadura militar, que muito contribuíram para obscurecer e subestimar o fenômeno essencialmente totalitário. Se os funcionários nomeados por alguém de cima tivessem verdadeira autoridade e responsabilidade, estaríamos lidando com uma estrutura hierárquica na qual a autoridade e o poder são delegados e regulados por lei. O mesmo também se aplica à organização de um exército e à ditadura estabelecida segundo o modelo militar; neste caso, o poder absoluto de comando, de cima para baixo, e a obediência absoluta, de baixo para cima, correspondem a uma situação de extrema emergência em combate, e é precisamente por isso que não são totalitárias. Uma escala de comando hierarquicamente organizada significa que o poder do comandante depende de todo o sistema hierárquico dentro do qual atua. Toda hierarquia, por mais autoritária que seja o seu funcionamento, e toda escala de comando, por mais arbitrário e ditatorial que seja o conteúdo das ordens, tende a estabilizar-se e constituiria um obstáculo ao poder total do líder de um movimento totalitário (62). Na linguagem dos nazistas, é o “desejo do Führer”, dinâmico e sempre em movimento — e não as suas ordens, expressão que poderia indicar uma autoridade fixa e circunscrita —, que é a “lei suprema” num Estado totalitário (63). O caráter totalitário do princípio de liderança advém unicamente da posição em que o movimento totalitário, graças à sua peculiar organização, coloca o líder, ou seja, da importância funcional do líder para o movimento. Comprova essa asserção o fato de que, tanto no caso de Hitler como no de Stálin, o verdadeiro princípio de liderança só se cristalizou lentamente, em paralelo com a gradual “totalitarização” do movimento.
Um anonimato que muito contribui para a esquisitice do fenômeno encobre as origens dessa estrutura organizacional. Não sabemos quem primeiro decidiu organizar os simpatizantes em grupos de vanguarda, quem viu primeiro uma força decisiva em si, e não apenas um reservatório de onde se poderiam arregimentar membros, nas massas vagamente simpatizantes — com as quais todo partido costumava contar no dia da eleição, mas que eram consideradas demasiado flutuantes para serem aceitas como membros. As primeiras organizações de simpatizantes de inspiração comunista, tais como os Amigos da União Soviética, tornaram-se grupos de vanguarda, embora originalmente não fossem mais do que os seus nomes indicavam: agrupamentos de simpatizantes para ajuda financeira ou de outra natureza (como, por exemplo, assistência legal). Hitler foi o primeiro a dizer que cada movimento devia dividir as massas conquistadas pela propaganda em duas categorias: simpatizantes e membros. Isso, em si, já é muito interessante: porém, mais significativo ainda é ter baseado essa divisão numa filosofia mais ampla, segundo a qual as pessoas em sua maioria são demasiado preguiçosas e covardes para qualquer ato que ultrapasse o mero conhecimento teórico, é só uma minoria está disposta a lutar por suas convicções (65). Consequentemente, Hitler foi o primeiro a traçar uma política de contínua ampliação dos escalões de simpatizantes, ao mesmo tempo em que mantinha o número de membros do partido estritamente limitado (66). Essa noção de uma minoria de membros do partido cercada por uma maioria de simpatizantes aproxima-se do que vieram a ser as organizações de vanguarda — termo que realmente exprime muito bem a sua função ulterior, e indica a relação entre membros e simpatizantes dentro do próprio movimento. Pois as organizações de vanguarda de simpatizantes não são menos essenciais ao funcionamento do movimento do que os seus verdadeiros membros.
As organizações de vanguarda cercam os membros dos movimentos com uma parede protetora que os separa do mundo exterior normal; ao mesmo tempo, constituem a ponte que os leva de volta à normalidade e sem a qual os membros, na fase anterior à tomada do poder, sentiriam com demasiada clareza as diferenças entre as suas crenças e as das pessoas normais, entre a mentirosa ficção do seu mundo e a realidade do mundo normal. A engenhosidade desse expediente, durante a luta do movimento pelo poder, é que a organização de vanguarda não apenas isola os membros, mas lhes empresta uma aparência de normalidade externa que amortece o impacto da verdadeira realidade de maneira mais eficaz que a simples doutrinação. O que consolida a crença de um nazista ou bolchevista na explicação fictícia do mundo é a diferença entre a sua atitude e a do simpatizante, porque, afinal, o simpatizante tem as mesmas convicções, embora de um modo mais “normal”, isto é, menos fanático e mais confuso; de forma que parece ao membro do partido que qualquer pessoa a quem o movimento não tenha expressamente apontado como inimigo (um judeu, um capitalista etc.) está do seu lado, e que o mundo é cheio de aliados secretos que apenas não têm ainda a necessária força de espírito e de caráter para tirar as conclusões lógicas de suas próprias convicções (67).
Por outro lado, o mundo exterior geralmente tem o primeiro vislumbre do movimento totalitário através das organizações de vanguarda. Os simpatizantes que, ao que tudo indica, são ainda concidadãos inofensivos numa sociedade não totalitária, não podem propriamente ser chamados de fanáticos obstinados; através deles, os movimentos fazem com que suas fantásticas mentiras sejam mais geralmente aceitas, podem divulgar sua propaganda em formas mais suaves e respeitáveis, até que toda a atmosfera esteja impregnada de elementos totalitários disfarçados em opiniões e reações políticas normais. As organizações de simpatizantes dão aos movimentos totalitários uma aparência de normalidade e respeitabilidade que engana os seus membros quanto à verdadeira natureza do mundo exterior, da mesma forma que engana o mundo exterior quanto ao verdadeiro caráter do movimento. As organizações de vanguarda funcionam nas duas direções: como fachada do movimento totalitário para o mundo não totalitário, e como fachada deste mundo para a hierarquia interna do movimento.
Ainda mais notável do que essa relação é o fato de que ela se repete em níveis diferentes dentro do próprio movimento. Os membros do partido mantêm a mesma distância e relação com os simpatizantes que as formações de elite do movimento mantêm com os membros comuns. Se o simpatizante parece ser ainda um habitante normal do mundo exterior que adotou o credo totalitário como se pode adotar o programa de um partido comum, o membro comum do movimento nazista ou bolchevista ainda pertence, em muitos aspectos, ao mundo exterior: suas relações profissionais e sociais ainda não são determinadas de modo absoluto pelo fato de pertencer ao partido, embora ele compreenda — ao contrário do simples simpatizante – que, em caso de conflito entre a fidelidade partidária e a vida privada, deverá prevalecer a primeira. Por outro lado, o membro do grupo militante identifica-se completamente com o movimento, não tendo profissão nem vida pessoal independente deste último. Assim como os simpatizantes constituem um muro de proteção em torno dos membros do movimento e representam para eles o mundo exterior, também os membros comuns envolvem os grupos militantes e representam para estes o mundo exterior normal.
Uma vantagem definida dessa estrutura é que ela neutraliza o impacto de um dos dogmas básicos do totalitarismo, que afirma ser o mundo dividido em dois gigantescos campos inimigos, um dos quais é o movimento, e que este pode e deve lutar contra o resto do mundo — afirmação que abre o caminho para a indiscriminada agressividade dos regimes totalitários. O choque da terrível e monstruosa dicotomia totalitária é neutralizado, e nunca totalmente percebido, graças a uma cuidadosa graduação de militância, na qual cada escalão reflete para o escalão imediatamente superior a imagem do mundo não totalitário, porque é menos militante e os seus membros são menos organizados. Esse tipo de organização evita que os seus membros jamais venham a encarar diretamente o mundo exterior, cuja hostilidade permanece para eles um simples pressuposto ideológico. Permanecem tão bem protegidos contra a realidade do mundo não totalitário que subestimam constantemente os tremendos riscos da política totalitária.
Não há dúvida de que os movimentos totalitários atacam o status quo mais radicalmente que qualquer antigo partido revolucionário. Podem dar-se ao luxo desse radicalismo, aparentemente tão inadequado para organizações de massa, porque a sua organização proporciona um substituto temporário para a vida comum, não política, que o totalitarismo realmente procura abolir. Todas as pessoas que formam o mundo das relações sociais não políticas, das quais o “revolucionário profissional” teve de separar-se ou aceitar como eram, existem sob a forma de grupos menos militantes dentro do movimento; nesse mundo hierarquicamente organizado, os que lutam pela conquista do mundo e pela revolução mundial nunca se expõem ao choque inevitável da discrepância entre as crenças “revolucionárias” e o mundo “normal”. O motivo pelo qual os movimentos, em sua fase revolucionária anterior ao poder, podem atrair tantos homens comuns é que os seus membros vivem num mundo ilusoriamente normal: os membros do partido são rodeados pelo mundo normal dos simpatizantes, e as formações de elite, pelo mundo normal dos partidários comuns.
Outra vantagem do modelo totalitário é que pode ser repetido indefinidamente, e mantém a organização num estado de fluidez que permite a constante inserção de novas camadas e a definição de novos graus de militância. Toda a história do partido nazista pode ser narrada em termos de novas formações dentro do movimento. A SA, as tropas de assalto (fundada em 1922), foi a primeira formação nazista supostamente mais militante que o próprio partido (68); em 1926, foi fundada a SS como a formação de elite da SA; três anos depois, a SS foi separada da SA e colocada sob o comando de Himmler; Himmler levou apenas mais alguns anos para repetir o mesmo jogo dentro da SS: um após outro — e cada qual mais militante que o grupo anterior — vieram à luz, primeiro, as Tropas de Choque (69), depois as unidades da Caveira, criadas para guardarem os campos de concentração e mais tarde reunidas para formar a SS-Armada (Waffen-SS), e finalmente o Serviço de Segurança (o “serviço de espionagem ideológica do Partido”, com a sua ramificação para executar a “política de população negativa”) e o Centro para Questões de Raça e Colonização (Rasse-und Siedlungswesen), cuja função era de “natureza positiva” — todos emanados da SS Geral, cujos membros, com a exceção da elite do Corpo do Führer, permaneciam em suas ocupações civis. Daí em diante, as relações entre essas novas formações e o membro do Corpo do Führer eram as mesmas que entre o membro da SA e o membro da SS, ou entre o membro do partido e o membro da SA, ou entre o membro da organização de vanguarda e o membro do partido (70). Agora, a SS Geral era encarregada não apenas de “salvaguardar a […] corporificação da ideia nacional-socialista”, mas também de “proteger os membros de todos os escalões especiais da SS para que não se afastassem do próprio movimento” (71).
Esse tipo de hierarquia flutuante, com a constante adição de novas camadas e
mudanças de autoridade, é bem conhecido: existe em entidades secretas de controle, como a polícia secreta ou os serviços de espionagem, nos quais sempre há necessidade de novos controles para controlar os controladores. Antes que os movimentos tomem o poder, a espionagem total ainda não é possível; mas a hierarquia flutuante, semelhante à dos serviços secretos, torna possível, mesmo sem o poder efetivo, degradar qualquer escalão ou grupo que vacile ou mostre sinais de perda de radicalismo, através da mera inserção de mais uma camada radical, deslocando assim o grupo mais velho em direção da organização periférica de vanguarda, ou seja, na direção oposta ao centro do movimento. Assim, as formações de elite nazista eram fundamentalmente organizações vindas do âmago do partido; a SA galgou a posição de superpartido quando o radicalismo do partido pareceu diminuir, e foi depois, por sua vez e por motivos semelhantes, substituída pela SS.
Exagera-se frequentemente o valor militar das formações de elite totalitárias, especialmente da SA e da SS, e de certa forma esquece-se o significado puramente interno que tinham para o partido (72). Nenhuma das organizações fascistas, caracterizadas pela cor da camisa, foi fundada para fins específicos de defesa ou de agressão, embora a defesa dos líderes ou dos membros comuns do partido fosse citada como pretexto (73). A natureza paramilitar dos grupos de elite nazistas e fascistas resultou do fato de terem sido fundados como “instrumentos para a luta ideológica do movimento” (74) contra o pacifismo corrente na Europa depois da Primeira Guerra Mundial. Para fins totalitários, era muito mais importante criar, como “expressão de uma atitude agressiva” (75), um exército de imitação que se assemelhasse o mais possível ao falso exército dos pacifistas (os quais, incapazes de compreender a função constitucional do Exército dentro da estrutura política, denunciavam todas as instituições militares como bandos de assassinos voluntários) do que ter uma tropa de soldados bem treinados. A SA e a SS eram, sem dúvida, organizações exemplares para fins de violência arbitrária e de assassinato; não eram tão bem treinadas quanto o Reichswehr Negro e não estavam equipadas para lutar contra tropas regulares. A propaganda militarista foi mais popular na Alemanha do pós-guerra do que o treinamento militar, e os uniformes não aumentaram o valor militar das tropas paramilitares, embora fossem úteis como indicação clara da abolição das normas e da moral dos civis; de certo modo, esses uniformes apaziguavam consideravelmente a consciência dos assassinos e, além disso, tornavam-nos ainda mais acessíveis à obediência cega diante da autoridade inconteste. Apesar desses enfeites militares, a facção interna do partido nazista, que era primordialmente nazista e militarista e, portanto, encarava as tropas paramilitares não apenas como meras formações partidárias, mas como ampliação ilegal do Reichswehr (que havia sido limitado pelo Tratado de Paz de Versalhes), foi a primeira a ser liquidada. Röhm, o líder das tropas de assalto da SA, havia realmente imaginado e negociado a incorporação da sua SA ao Reichswehr depois que os nazistas tomassem o poder. Hitler mandou matá-lo por sua tentativa de transformar o novo regime nazista em ditadura militar (76). Vários anos antes, Hitler havia deixado claro que o movimento nazista não desejava tal coisa; da chefia da SA, demitiu Röhm — um verdadeiro soldado, cuja experiência na guerra e na organização do Reichswehr Negro teria feito dele um elemento indispensável a um programa sério de treinamento militar — e escolheu Himmler, um homem sem o menor conhecimento de assuntos militares, para reorganizar a SS.
Além da importância das formações de elite para a estrutura organizacional dos movimentos, onde constituíam núcleos mutáveis da militância, o seu caráter paramilitar deve ser compreendido em conjunto com outras organizações partidárias profissionais, como as dos mestres, advogados, médicos, estudantes, professores universitários, técnicos e trabalhadores. Todos eram, essencialmente, duplicatas de sociedades profissionais não totalitárias existentes; eram paraprofissionais como as tropas de assalto eram paramilitares. Era típico que, quanto mais claramente os partidos comunistas europeus se tornavam ramificações do movimento bolchevista dirigido por Moscou, tanto mais usavam também as suas organizações de vanguarda para competir com grupos puramente profissionais. A diferença entre os nazistas e os bolchevistas, a esse respeito, era que os nazistas tinham forte tendência de considerar essas formações paraprofissionais como parte da elite do partido, enquanto os bolchevistas preferiam recrutar delas o material para as suas organizações de vanguarda. O importante para os movimentos totalitários é, antes mesmo de tomarem o poder, darem a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões: o fim último da propaganda nazista era organizar todos os alemães como simpatizantes (77). Os nazistas foram um passo adiante neste jogo e criaram uma série de falsos departamentos, moldados segundo a administração regular do Estado, tais como o seu próprio departamento de relações exteriores, educação, cultura, esportes etc. O valor profissional dessas instituições era tão pequeno quanto o valor militar da imitação de exército representada pelas tropas de assalto mas, juntas, criavam um perfeito mundo de aparências onde cada realidade do mundo não totalitário era servilmente reproduzida sob forma de embuste.
Criação de uma réplica do mundo. Importante investigar isso.
Uma pista. Quem conhece hoje a Alemanha e convive com os alemães não consegue imaginar como muitos de seus avós e bisavós se comportaram como se comportaram (na época em que o nazismo estava sendo gestado e se instalou). Não é que era outro tipo de ser humano. Era, basicamente, o mesmo. O que mudou? A configuração do campo, os clusters resilientes (e não eram tantos assim). Suspeito que poucos clusters podem fazer isso. Foi assim na Alemanha nazista, foi assim no seio dos Republicanos americanos, é assim no Brasil de Bolsonaro. Tem primeiro que usinar um tipo estranho de organismo. A difusão (reprodução) vem depois…
Essa técnica de duplicação, que de nada serve para a derrubada direta de um governo, foi extremamente útil no trabalho de solapar instituições atuantes existentes e na “decomposição do status quo” (78), tarefa que as organizações totalitárias invariavelmente preferem a uma franca exibição de força. Se o objetivo dos movimentos é “penetrarem como pólipos em todas as posições de poder” (79), devem estar prontos para qualquer posição específica, social ou política. Dada a pretensão de domínio total, todo grupo organizado na sociedade não totalitária parece constituir, especificamente, uma ameaça de destruir o movimento; cada um deles requer um instrumento específico de destruição. O valor prático das falsas organizações veio à luz quando os nazistas tomaram o poder e demonstraram estar preparados para destruir imediatamente as organizações existentes de professores por meio de outras organizações de professores, os clubes existentes de advogados por meio de um clube de advogados patrocinado pelos nazistas etc. Puderam mudar, da noite para o dia, toda a estrutura da sociedade alemã — e não apenas a vida política — precisamente porque haviam preparado o correspondente exato de cada setor dentro dos seus próprios escalões. Por sinal, a tarefa das formações paramilitares terminou quando a hierarquia militar regular pôde ser colocada, durante os últimos estágios da guerra, sob a autoridade dos generais da SS. A técnica dessa “coordenação” era tão engenhosa e irresistível quanto era rápida e radical a deterioração dos padrões profissionais, embora esses resultados fossem mais imediatamente sentidos no campo altamente técnico e especializado da arte militar do que em qualquer outro.
Se a importância das formações paramilitares para os movimentos totalitários não reside no seu duvidoso valor militar, também não reside inteiramente na sua falsa imitação do Exército regular. Como formações de elite, são mais nitidamente separadas do mundo externo do que qualquer outro grupo. Os nazistas cedo compreenderam a íntima relação entre a militância total e a separação total da normalidade; as tropas de assalto nunca eram enviadas a serviço para as suas comunidades de origem e os oficiais ativos da SA, no estágio anterior ao poder, e os da SS, já sob o regime nazista, eram tão móveis e tão frequentemente substituídos que simplesmente não podiam habituar-se ou deitar raízes em nenhuma parte do mundo comum (80). Eram organizados segundo o modelo das gangues de criminosos e usados para o assassinato organizado (81). Esses assassinatos eram perpetrados publicamente e oficialmente confessados pela alta hierarquia nazista, de modo que essa franca cumplicidade quase impossibilitava aos membros deixarem o movimento, mesmo sob o governo não totalitário e mesmo que não fossem ameaçados, como realmente o eram, por seus antigos camaradas. A esse respeito, a função das formações de elite é exatamente oposta àquela das organizações de vanguarda: enquanto as últimas emprestam ao movimento um ar de respeitabilidade e inspiram confiança, as primeiras, disseminando a cumplicidade, fazem com que cada membro do partido sinta que abandonou para sempre o mundo normal onde o assassinato é colocado fora da lei, e que será responsabilizado por todos os crimes da elite (82). Consegue-se isso ainda no estágio anterior ao poder, quando a liderança sistematicamente assume responsabilidade por todos os crimes e não deixa dúvida de que foram cometidos para o bem final do movimento.
Mais uma pista…
A criação de condições artificiais de guerra civil, através das quais os nazistas exerceram chantagem até subir ao poder, não pretende apenas provocar desordens. Para o movimento, a violência organizada é o mais eficaz dos muros protetores que cercam o seu mundo fictício, cuja “realidade” é comprovada quando um membro receia mais abandonar o movimento do que as consequências da sua cumplicidade em atos ilegais, e se sente mais seguro como membro do que como oponente. Esse sentimento de segurança, resultante da violência organizada com a qual as formações de elite protegem os membros do partido contra o mundo exterior, é tão importante para a integridade do mundo fictício da organização quanto o medo do seu terrorismo.
No centro do movimento, como o motor que o aciona, senta-se o Líder. Separa-o da formação de elite um círculo interno de iniciados que o envolvem numa aura de impenetrável mistério correspondente à sua “preponderância inatingível” (83). Sua posição dentro desse círculo íntimo depende da habilidade com que arma intrigas entre os membros e efetua constantes mudanças de pessoal. Deve a liderança mais à sua extrema capacidade de manobrar as lutas intestinas do partido pelo poder do que a qualidades demagógicas ou burocrático-organizacionais. Difere do antigo tipo de ditador por não precisar vencer por meio da simples violência. Hitler não necessitou nem da SA nem da SS para assegurar a sua posição como líder do movimento nazista; pelo contrário, Röhm, o chefe da SA, que podia contar com a lealdade da SA em relação à sua pessoa, era um dos inimigos de Hitler dentro do partido. Stálin venceu Trótski, que não somente tinha muito maior poder de atração sobre as massas, mas que, ainda como chefe do Exército Vermelho, detinha em suas mãos o maior potencial de poder da Rússia soviética na época (84). E não era Stálin, mas Trótski, o maior talento organizacional, o burocrata mais capaz da Revolução Russa (85). Por outro lado, tanto Hitler como Stálin eram mestres em detalhes e, nos estágios iniciais de suas carreiras, dedicaram-se quase exclusivamente a questões de pessoal, de modo que, alguns anos depois, quase todo homem importante no partido devia a eles a sua posição (86).
Tais capacidades pessoais, no entanto, embora sejam um pré-requisito absoluto para os primeiros estágios da carreira, e mesmo mais tarde estejam longe de serem insignificantes, já não são decisivas a partir do momento em que o movimento totalitário se consolida, em que se estabelece o princípio de que “o desejo do Führer é a lei do Partido”, e toda a hierarquia partidária está eficazmente treinada para o único fim de transmitir rapidamente o desejo do Líder a todos os escalões. A essa altura, o Líder torna-se insubstituível, porque toda a complicada estrutura do movimento perderia a sua raison d’être sem as suas ordens. Agora, a despeito das eternas cabalas do círculo íntimo e das infindáveis mudanças de pessoal, com as tremendas acumulações de ódio, amargura e ressentimento pessoal que acarretam, a posição do Líder pode repousar em segurança contra as caóticas revoluções palacianas — não devido aos seus dons superiores, a respeito dos quais os homens dos círculos íntimos geralmente não têm ilusões, mas graças à sincera e sensata convicção desses homens de que, sem ele, todo o movimento iria imediatamente por água abaixo.
A suprema tarefa do Líder é personificar a dupla função que caracteriza cada camada do movimento — agir como a defesa mágica do movimento contra o mundo exterior e, ao mesmo tempo, ser a ponte direta através da qual o movimento se liga a esse mundo. O Líder representa o movimento de um modo totalmente diferente de todos os líderes de partidos comuns, já que proclama a sua responsabilidade pessoal por todos os atos, proezas e crimes cometidos por qualquer membro ou funcionário em sua qualidade oficial. Essa responsabilidade total é o aspecto organizacional mais importante do chamado princípio de liderança, segundo o qual cada funcionário não é apenas designado pelo Líder, mas é a sua própria encarnação viva, e toda ordem emana supostamente dessa única fonte onipresente. Essa completa identificação do Líder com todo sublíder nomeado por ele e esse monopólio de responsabilidade centralizado por tudo o que foi, está sendo ou virá a ser feito são também os sinais mais visíveis da grande diferença entre o líder totalitário e o ditador ou déspota comum. Um tirano jamais se identificaria com os seus subordinados, e muito menos com cada um dos seus atos (87), poderia usá-los como bodes expiatórios, deixando, com prazer, que fossem criticados para colocar-se a salvo da ira do povo, mas sempre manteria uma distância absoluta de todos os seus subordinados e súditos. O Líder, ao contrário, não pode tolerar críticas aos seus subordinados, uma vez que todos agem em seu nome; se deseja corrigir os próprios erros, tem que liquidar aqueles que os cometerem por ele; se deseja inculpar a outros por esses erros, tem de matá-los. Pois, nessa estrutura organizacional, o erro só pode ser uma fraude: o Líder estava sendo representado por um impostor (88).
Essa responsabilidade total por tudo o que o movimento faz e essa identificação total com cada um dos funcionários têm a consequência muito prática de que ninguém se vê numa situação em que tem de se responsabilizar por suas ações ou explicar os motivos que levaram a elas. Uma vez que o Líder monopoliza o direito e a possibilidade de explicação, ele é, para o mundo exterior, a única pessoa que sabe o que está fazendo, isto é, o único representante do movimento com quem ainda é possível conversar em termos não totalitários e que, em caso de censura ou de oposição, não dirá: não me pergunte, pergunte ao Líder. Estando no centro do movimento, o Líder pode agir como se estivesse acima dele. É, portanto, perfeitamente compreensível (embora perfeitamente fútil) que pessoas de fora depositem, muitas vezes, suas esperanças numa conversa pessoal com o próprio Líder, quando têm de tratar com movimentos ou governos totalitários. O verdadeiro mistério do Líder totalitário reside na organização que lhe permite assumir a responsabilidade total por todos os crimes cometidos pelas formações de elite e, ao mesmo tempo, adotar a honesta e inocente respeitabilidade do mais ingênuo simpatizante (89).
Os movimentos totalitários têm sido chamados de “sociedades secretas montadas à luz do dia” (90). Realmente, embora pouco se saiba quanto à estrutura sociológica e à história mais recente das sociedades secretas, a estrutura dos movimentos, sem precedentes quando comparada com partidos e facções, lembra-nos em primeiro lugar certas características dessas sociedades (91). As sociedades secretas formam também hierarquias de acordo com o grau de “iniciação”, regulam a vida dos seus membros segundo um pressuposto secreto e fictício que faz com que cada coisa pareça ser outra coisa diferente; adotam uma estratégia de mentiras coerentes para iludir as massas de fora, não iniciadas; exigem obediência irrestrita dos seus membros, que são mantidos coesos pela fidelidade a um líder frequentemente desconhecido e sempre misterioso, rodeado, ou supostamente rodeado, por um pequeno círculo de iniciados; e estes, por sua vez, são rodeados por semi-iniciados que constituem uma espécie de “amortecedor” contra o mundo profano e hostil (92). Os movimentos totalitários têm ainda em comum com as sociedades secretas a divisão dicotômica do mundo entre “irmãos jurados de sangue” e uma massa indistinta e inarticulada de inimigos jurados (93). Essa distinção, baseada na absoluta hostilidade contra o mundo que os rodeia, é muito diferente da tendência dos partidos comuns de dividir o povo entre os que pertencem e os que não pertencem à organização. Os partidos e as sociedades abertas, geralmente, só consideram inimigos aqueles que se lhes opõem expressamente, enquanto o princípio das sociedades secretas sempre foi que “aquele que não estiver expressamente incluído, está excluído” (94). Esse princípio esotérico parece inteiramente inadequado a organizações de massa; contudo, os nazistas ofereciam aos seus membros pelo menos o equivalente psicológico do ritual de iniciação das sociedades secretas quando, em lugar de simplesmente excluírem os judeus da organização, exigiam prova de ascendência não judaica dos seus membros, estabelecendo um complicado mecanismo para esclarecer a obscura origem genética de 80 milhões de alemães. O resultado foi uma comédia, e uma comédia cara, quando 80 milhões de alemães saíram à cata de avós judeus; mas aqueles que passavam a prova sentiam pertencer a um grupo de incluídos que se destacava contra uma multidão imaginária de inelegíveis. O mesmo princípio é aplicado no movimento bolchevista, através de repetidos expurgos no partido que inspiram em todos os que sobram uma reafirmação da sua inclusão.
Talvez a mais clara semelhança entre as sociedades secretas e os movimentos totalitários esteja na importância do ritual. As marchas na praça Vermelha em Moscou são, nesse ponto, tão típicas quanto as pomposas formalidades do nazismo do tempo de Nurembergue. No centro do ritual nazista estava a chamada “bandeira de sangue”, e no centro do ritual bolchevista está o corpo mumificado de Lênin, ambos impregnando a cerimônia com um forte elemento de idolatria. Essa idolatria não prova a existência de tendências pseudorreligiosas ou heréticas que muitos querem ver nos movimentos totalitários. Os “ídolos” são simples truques organizacionais, muito praticados nas sociedades secretas, que também forçavam os seus membros a guardar segredo por medo e respeito a símbolos assustadores. As pessoas unem-se mais firmemente através da experiência partilhada de um ritual secreto do que pela simples admissão ao conhecimento do segredo. O fato de que o segredo dos movimentos totalitários é exibido em plena luz do dia não muda necessariamente a natureza da experiência (95).
Naturalmente, essas semelhanças não são acidentais; não podem ser explicadas simplesmente pelo fato de que tanto Hitler como Stálin haviam sido membros de sociedades secretas antes de se tornarem líderes totalitários — Hitler no serviço secreto do Reichswehr e Stálin na conspiração do partido bolchevista. São, até certo ponto, resultado natural da ficção conspiratória do totalitarismo, cujas organizações são supostamente criadas para combater as sociedades secretas — a sociedade secreta dos judeus ou a sociedade dos conspiradores trotskistas. O que é notável nas organizações totalitárias é que saibam adotar expedientes organizacionais das sociedades secretas sem jamais manter em segredo o seu próprio objetivo. Que os nazistas queriam conquistar o mundo, deportar todos os que fossem “racialmente estrangeiros” e exterminar todos os que tivessem “herança biológica inferior”, que os bolchevistas lutam pela revolução mundial — nada disso jamais foi segredo; pelo contrário, esses objetivos sempre fizeram parte da sua propaganda. Em outras palavras, os movimentos totalitários imitam todos os acessórios das sociedades secretas, mas esvaziam-nas do único elemento que poderia justificar os seus métodos: a necessidade de manter segredo.
Nisso, como em tantos outros aspectos, o nazismo e o bolchevismo chegaram ao mesmo resultado organizacional a partir de origens históricas muito diferentes. Os nazistas começaram com a ficção de uma conspiração e imitaram, mais ou menos conscientemente, o modelo da sociedade secreta dos sábios do Sião, enquanto os bolchevistas vieram de um partido revolucionário, cujo objetivo era a ditadura de um só partido, atravessaram a fase em que o partido ficava “inteiramente acima e separado de tudo”, até o instante em que o Politburo do partido ficou “inteiramente acima e separado de tudo” (96) finalmente, Stálin impôs a essa estrutura partidária as rígidas normas totalitárias do seu setor conspirativo, e somente então descobriu a necessidade de uma ficção central para manter na organização de massa a férrea disciplina de uma organização secreta. A evolução nazista pode ser mais lógica, mais coerente consigo mesma, mas a história do partido bolchevista é um exemplo melhor da natureza essencialmente fictícia do totalitarismo, precisamente porque as fictícias conspirações globais, contra as quais e de acordo com as quais a conspiração bolchevista supostamente se organizou, não foram ideologicamente fixadas. Mudaram — dos trotskistas para as trezentas famílias, depois para os vários “imperialismos” e, mais recentemente, para o “cosmopolitismo sem raízes” — e foram ajustadas à realidade política segundo as necessidades do momento; mas nunca e em nenhuma das mais diversas circunstâncias pôde o bolchevismo passar sem algum tipo de ficção.
Os meios pelos quais Stálin transformou a ditadura unipartidária russa em regime totalitário e os partidos comunistas revolucionários de todo o mundo em movimentos totalitários foram a liquidação das facções divergentes, a abolição da democracia interna do partido e a transformação dos partidos comunistas nacionais em ramificações do Comintern dirigidas a partir de Moscou. As sociedades secretas em geral, e o aparelho conspirativo dos partidos revolucionários em particular, sempre foram caracterizados pela ausência de facções, pela supressão de opiniões dissidentes e pela absoluta centralização do comando. Todas essas medidas têm a óbvia finalidade utilitária de proteger os membros contra a perseguição e a sociedade contra a traição; a obediência total exigida de cada membro e o poder absoluto nas mãos do chefe foram apenas subprodutos inevitáveis de necessidades práticas. O problema, porém, é que os conspiradores têm uma tendência, compreensível aliás, de julgar como mais eficazes na política os métodos das sociedades conspirativas e de supor que, se esses métodos puderem ser aplicados abertamente com o apoio dos instrumentos de violência de toda uma nação, as possibilidades de acúmulo de poder tornam-se infinitas (97). O setor conspirativo de um partido revolucionário pode, enquanto o próprio partido ainda está intacto, ser equiparado ao Exército dentro de uma estrutura política intacta; embora as suas próprias regras de conduta sejam radicalmente diferentes das regras do corpo civil, o Exército serve ao corpo político e permanece sujeito e controlado por ele. Da mesma forma que o perigo de uma ditadura militar surge quando o Exército já não quer servir mas dominar o corpo político, também o perigo do totalitarismo surge quando o setor conspirativo do partido revolucionário se emancipa do controle do partido e aspira à liderança. Foi isso o que aconteceu aos partidos comunistas sob o regime de Stálin. Os métodos de Stálin sempre foram típicos de um homem proveniente do setor conspirativo do partido: a devoção ao detalhe, a ênfase quanto ao lado pessoal da política, a crueldade no uso e na liquidação de companheiros e amigos. Quem mais o apoiou na luta pela sucessão após a morte de Lênin foi a polícia secreta (98) que, na época, já era uma das mais importantes e poderosas seções do partido (99). Nada mais natural que as simpatias da Cheka [a polícia secreta da URSS] pendessem a favor do representante da seção conspirativa, do homem que já a encarava como uma espécie de sociedade secreta e que, portanto, provavelmente lhe preservaria e até acrescentaria os privilégios.
A tomada dos partidos comunistas pelos setores conspirativos foi, porém, apenas o primeiro passo da sua transformação em movimento totalitário. Não bastava que a polícia secreta da Rússia e os seus agentes nos partidos comunistas do exterior desempenhassem no movimento o mesmo papel das formações de elite criadas pelos nazistas sob forma de tropas paramilitares. Os próprios partidos tinham de ser transformados, para que o domínio da polícia secreta permanecesse seguro. A liquidação das facções e da democracia interna do partido foi, consequentemente, acompanhada na Rússia pela admissão, como membros, de grandes massas politicamente deseducadas e “neutras”, manobra que foi rapidamente seguida pelos partidos comunistas no estrangeiro depois que a Frente Popular a adotou na França.
O totalitarismo nazista começou com uma organização de massa que foi apenas gradualmente dominada pelas formações de elite, enquanto os bolchevistas começaram com formações de elite e organizaram as massas de acordo com elas. Em ambos os casos o resultado foi idêntico. Além disso, os nazistas, em virtude da tradição e preconceitos militaristas, moldaram inicialmente suas formações de elite segundo o padrão do Exército, enquanto os bolchevistas desde o início outorgaram à polícia secreta o direito de exercer o poder supremo. Contudo, bastaram poucos anos para que também essa diferença desaparecesse: o chefe da SS tornou-se chefe da polícia secreta, e as formações da SS foram gradualmente incorporadas ao antigo pessoal da Gestapo ao qual iriam substituir, embora esse pessoal já fosse constituído de nazistas dignos de confiança (100).
É devido à afinidade fundamental entre o funcionamento de uma sociedade secreta de conspiradores e a polícia secreta organizada para combatê-la que os regimes totalitários, baseados na ficção de um conspiração global e visando ao domínio global, passam a concentrar todo o poder nas mãos da polícia. Na fase que antecede o poder, porém, as “sociedades secretas à luz do dia” proporcionam outras vantagens organizacionais. A contradição óbvia entre uma organização de massa e uma sociedade exclusiva, que é a única à qual se pode confiar um segredo, não tem importância quando é comparada ao fato de que a própria estrutura das sociedades secretas e conspiradoras pode transformar em princípio organizacional a dicotomia ideológica do totalitarismo — a cega hostilidade das massas contra o mundo existente, independentemente de divergências e diferenças. Do ponto de vista da organização que funciona segundo o princípio de que quem não está incluído está excluído, e quem não está comigo está contra mim, o mundo perde todas as nuances, diferenciações e aspectos pluralísticos — coisas que, afinal, haviam se tornado confusas e insuportáveis para as massas que perderam o seu lugar e a sua orientação dentro dele (101). O que as levou à inabalável lealdade de membros de sociedades secretas não foi tanto o segredo como a dicotomia entre nós e todos os outros. Um meio de conservar intacta essa lealdade era imitar a estrutura organizacional das sociedades secretas, esvaziando-a da finalidade racional de preservar um segredo. Tampouco importava que isso fosse motivado por uma ideologia de conspiração, como no caso dos nazistas, ou pela hipertrofia parasitária do setor conspirativo de um partido revolucionário, como no caso dos bolchevistas. A afirmação fundamental da organização totalitária é que tudo o que está fora do movimento está “morrendo”, afirmação que é drasticamente posta em prática no clima assassino do regime totalitário, mas que, mesmo no estágio anterior ao poder, parece plausível a massas que fugiram da desintegração e da desorientação para o fictício abrigo do movimento.
Os movimentos totalitários têm repetidamente demonstrado que podem inspirar a mesma lealdade total, na vida e na morte, que caracterizava as sociedades secretas e conspiradoras (102). Espetáculo curioso foi a completa ausência de resistência de uma tropa perfeitamente treinada e armada como a SA diante do assassínio de um líder bem-amado (Röhm) e de centenas de camaradas. Naquele instante era Röhm, e não Hitler, quem contava com o apoio do Reichswehr. Hoje, porém, esses incidentes do movimento nazista perdem-se de vista diante do constante espetáculo de “criminosos” confessos nos partidos bolchevistas. Julgamentos baseados em confissões absurdas tornaram-se parte de um ritual que é importantíssimo internamente e incompreensível para quem está de fora. Contudo, independentemente de como as vítimas sejam preparadas hoje em dia, o ritual deve a sua existência às confissões, provavelmente verdadeiras, da velha guarda bolchevista de 1936. Muito antes da época dos Julgamentos de Moscou, os condenados à morte recebiam a sentença com grande calma, atitude “que predominava especialmente entre os membros da Cheka” (103). Enquanto o movimento existe, a sua forma peculiar de organização faz com que pelo menos as formações de elite não possam conceber a vida fora do grupo fechado de homens que, mesmo condenados, ainda se sentem superiores ao resto do mundo não iniciado. E, como o fim único dessa organização sempre foi burlar, combater e finalmente conquistar o mundo exterior, os seus membros pagam de bom grado com a própria vida, contanto que isso ajude a burlar o mundo mais uma vez (104).
Mas o principal valor da estrutura organizacional e dos padrões morais das organizações secretas ou conspiratórias para fins de organização da massa não está na garantia intrínseca de participação incondicional e lealdade incondicional, nem na manifestação organizacional de hostilidade cega contra o mundo exterior, mas na sua incomparável capacidade de estabelecer e proteger o mundo fictício por meio de constantes mentiras. Toda a estrutura hierárquica dos movimentos totalitários, desde os ingênuos simpatizantes até os membros do partido, as formações de elite, o círculo íntimo que rodeia o Líder e o próprio Líder, pode ser descrita em termos da mistura curiosamente variada de credulidade e cinismo com que se espera que cada membro, dependendo do seu grau e da posição que ocupa no movimento, reaja às diversas declarações mentirosas do Líder e à ficção ideológica central e imutável do movimento.
Certa mistura de credulidade e cinismo havia sido importante característica da mentalidade da ralé antes que se tornasse fenômeno diário de massa. Num mundo incompreensível e em perpétua mudança, as massas haviam chegado a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditavam em tudo e em nada, julgavam que tudo era possível e que nada era verdadeiro. A própria mistura, por si, já era bastante notável, pois significava o fim da ilusão de que a credulidade fosse fraqueza de gente primitiva e ingênua, e que o cinismo fosse o vício superior dos espíritos refinados. A propaganda de massa descobriu que o seu público estava sempre disposto a acreditar no pior, por mais absurdo que fosse, sem objetar contra o fato de ser enganado, uma vez que achava que toda afirmação, afinal de contas, não passava de mentira. Os líderes totalitários basearam a sua propaganda no pressuposto psicológico correto de que, em tais condições, era possível fazer com que as pessoas acreditassem nas mais fantásticas afirmações em determinado dia, na certeza de que, se recebessem no dia seguinte a prova irrefutável da sua inverdade, apelariam para o cinismo; em lugar de abandonarem os líderes que lhes haviam mentido, diriam que sempre souberam que a afirmação era falsa, e admirariam os líderes pela grande esperteza tática.
Essa reação das audiências de massa tornou-se importante princípio hierárquico para as organizações de massa. Uma mistura de credulidade e cinismo prevalece em todos os escalões dos movimentos totalitários, e quanto mais alto o posto, mais o cinismo prevalece sobre a credulidade. A convicção essencial compartilhada por todos os escalões, desde os simpatizantes até o Líder, é de que a política é um jogo de trapaças, e que o “primeiro mandamento” do movimento — “o Führer sempre tem razão” — é tão necessário aos fins da política mundial — isto é, da trapaça mundial — como as regras da disciplina militar o são para as finalidades da guerra (105).
A máquina que gera, organiza e dissemina as monstruosas falsidades dos movimentos totalitários também depende da posição do Líder. À afirmação propagandística de que todo evento é cientificamente previsível segundo leis naturais ou econômicas, a organização totalitária acrescenta a posição de um homem que monopolizou esse conhecimento e cuja principal qualidade é o fato de que “sempre teve razão e sempre terá razão” (106). Para o membro do movimento totalitário, esse conhecimento nada tem a ver com a verdade, da mesma forma que o fato de se estar com a razão nada tem a ver com a veracidade objetiva das afirmações do Líder, que não podem ser desmentidas pela realidade, mas somente pelos sucessos ou fracassos futuros. O Líder sempre tem razão nos seus atos, e, como estes são planejados para os séculos vindouros, o exame final do que ele faz é inacessível aos seus contemporâneos (107).
O único grupo que deve acreditar leal e textualmente nas palavras do Líder são os simpatizantes, cuja confiança envolve o movimento numa atmosfera de honestidade e ingenuidade, e que ajudam o Líder a cumprir a metade da sua tarefa, isto é, inspirar confiança no movimento. Os membros do Partido jamais acreditam em declarações públicas, nem se espera isso deles, mas a propaganda totalitária louva-lhes a inteligência superior que supostamente os distingue do mundo externo não totalitário, ao qual, por sua vez, só conhecem através da anormal credulidade dos simpatizantes. Só os simpatizantes nazistas acreditaram em Hitler quando ele prestou juramento de legalidade perante a Suprema Corte da República de Weimar; os membros do movimento sabiam muito bem que ele estava mentindo e confiaram nele mais do que nunca exatamente porque ele era capaz de iludir a opinião pública e as autoridades. Quando, anos depois, Hitler repetiu a manobra diante do mundo inteiro, quando protestou boas intenções ao mesmo tempo em que preparava abertamente os seus crimes, a admiração dos membros do partido foi, naturalmente, enorme. Da mesma forma, somente os simpatizantes bolchevistas acreditaram na dissolução do Comintern, e somente as massas não organizadas do povo russo e os simpatizantes no exterior aceitaram como honestas as declarações pró-democracias de Stálin durante a guerra. Os membros do partido bolchevista foram expressamente advertidos a não se deixarem enganar por manobras táticas; deviam admirar a esperteza com que o seu Líder atraiçoava os aliados (108).
Seriam inoperantes as mentiras do Líder sem a divisão organizacional do movimento em formações de elite, membros e simpatizantes. A graduação do cinismo traduzida na hierarquia do desdém é, pelo menos, tão necessária ante a constante refutação quanto a simples credulidade. O fato é que os simpatizantes das organizações de vanguarda desdenhavam a completa laicidade dos seus concidadãos, os membros dos partidos desdenhavam a credulidade e a falta de radicalismo dos simpatizantes, as formações de elite desdenhavam os membros dos partidos pelas mesmas razões e, dentro das formações de elite, uma idêntica hierarquia de desdém acompanhava cada nova criação ou invenção do partido (109). O resultado desse sistema é que a credulidade dos simpatizantes torna as mentiras aceitáveis para o mundo exterior, enquanto, ao mesmo tempo, o gradual cinismo dos membros e das formações de elite afasta o perigo de que o Líder venha a ser forçado, pelo peso da sua própria propaganda, a legitimar as próprias declarações e o próprio simulacro de respeitabilidade. Uma das principais desvantagens do mundo exterior no trato com sistemas totalitários é que ele ignorava esse sistema e, portanto, confiava em que, por um lado, a própria enormidade das mentiras do totalitarismo o levaria à ruína e, por outro lado, seria possível aceitar a palavra do Líder e fazer com que ele a cumprisse, a despeito das suas intenções originais. Infelizmente, o sistema totalitário é imune a essas consequências normais; sua engenhosidade reside precisamente em eliminar a realidade que desmascara o mentiroso ou o força a legitimar as suas mentiras.
Embora os membros não creiam em declarações proferidas para o consumo público, acreditam fervorosamente nos chavões comuns da justificação ideológica e nas explicações da história passada e futura que os movimentos totalitários tomaram emprestado às ideologias do século XIX e transformaram, através da organização, em realidade operante. Esses elementos ideológicos, nos quais, de um modo ou de outro, as massas haviam terminado por acreditar, se bem que vaga e abstratamente, foram convertidos em mentiras concretas de natureza universal (o domínio do mundo pelos judeus em lugar da teoria racial geral e a conspiração de Wall Street em lugar da teoria geral das classes) e foram integrados num plano geral de ação no qual somente os “agonizantes” — as classes agonizantes dos países capitalistas ou as nações decadentes — obstariam o caminho do movimento. Em contraste com as mentiras táticas do movimento, que mudam a cada dia, essas mentiras ideológicas exigem crença absoluta como verdades intocáveis e sagradas. Cerca-as um sistema cuidadosamente elaborado de provas “científicas” que não precisam ser convincentes para os “leigos”, mas que satisfazem certa sede popular de conhecimentos através da “demonstração” da inferioridade dos judeus ou da miséria dos que vivem sob o regime capitalista.
As formações de elite distinguem-se dos membros comuns do partido por não necessitarem dessas demonstrações e nem mesmo serem obrigadas a acreditar literalmente na verdade dos chavões ideológicos. Estes são fabricados para atender a uma busca da verdade por parte das massas que, no seu vezo de explicar e demonstrar, ainda têm muito em comum com o mundo normal. A elite não se compõe de ideólogos; toda a educação dos seus membros objetiva abolir a capacidade de distinguir entre a verdade e a mentira, entre a realidade e a ficção. Sua superioridade consiste na capacidade de transformar imediatamente qualquer declaração de fato em declaração de finalidade. Em contraposição às massas que, por exemplo, necessitam de alguma demonstração da inferioridade da raça judaica antes que se lhes possa exigir, sem riscos, que matem os judeus, as formações de elite compreendem que a afirmação de que todos os judeus são inferiores significa que todos os judeus devem ser mortos; quando se lhes diz que somente Moscou tem um metrô, sabem que o verdadeiro significado da declaração é que todos os outros metrôs devem ser destruídos e não se sentem muito surpresos quando descobrem o metrô de Paris. O tremendo choque da desilusão sofrida pelo Exército Vermelho na sua conquista da Europa só pôde ser curado nos campos de concentração e no exílio forçado de grande parte das tropas vitoriosas; mas as formações policiais que acompanharam o Exército estavam preparadas para o choque, não por meio de informação diferente ou mais correta — não existe na Rússia nenhuma escola de treinamento secreto que forneça dados autênticos sobre a vida no exterior —, mas simplesmente por meio de um treino de supremo desprezo por todo fato e toda realidade.
Essa mentalidade da elite não constitui simples fenômeno de massa, nem simples consequência de desarraigamento social, desastre econômico ou anarquia política; exige cuidadosa preparação e cultivo e foi uma parte mais importante, embora menos facilmente reconhecível, do currículo das escolas de liderança totalitária — as Ordensburgen nazistas para os membros da SS e os centros de treinamento bolchevistas para os agentes do Comintern — do que a doutrinação racial ou as técnicas da guerra civil. Sem a elite e sem a sua incapacidade, artificialmente adquirida, de compreender os fatos como fatos, de distinguir entre a verdade e a mentira, o movimento nunca poderia partir para a realização prática da ficção. A mais importante qualidade negativa da elite totalitária é que nunca se detém a pensar no mundo como realmente ele é e jamais compara as mentiras com a realidade. Paralelamente, a sua virtude mais cultivada é a lealdade ao Líder, que, como um talismã, assegura a vitória final da mentira e da ficção sobre a verdade e a realidade.
A camada superior da organização dos movimentos totalitários é constituída pelo círculo íntimo em torno do Líder, que pode ser uma instituição formal, como o Politburo bolchevista, ou um círculo mutável de homens que não exercem necessariamente uma função pública, como o séquito de Hitler. Para eles, os chavões ideológicos são meros expedientes destinados a congregar as massas, e não sentem qualquer constrangimento quando têm de alterá-los segundo as necessidades do momento, contanto que o princípio organizador permaneça intacto. Nesse ponto, o principal mérito da reorganização da SS por Himmler foi que ele descobriu um método muito simples de “resolver o problema do sangue pela ação”, isto é, de selecionar os membros da elite segundo o “bom sangue” e prepará-los para “realizar uma impiedosa luta racial” contra todos os que não pudessem remontar a sua origem “ariana” até 1750, ou tivessem menos de um metro e setenta de altura (“sei que as pessoas que cresceram até determinada altura devem possuir, em certo grau, o sangue desejado”), ou não tinham olhos azuis e cabelos louros (110). Esse racismo em ação tornava a organização independente de quase todo ensinamento concreto de qualquer “ciência” racial, e também independente do antissemitismo, que era uma doutrina específica e temporária, referente à natureza e ao papel dos judeus, e cuja utilidade terminaria quando os judeus fossem exterminados (111). O racismo não oferecia riscos e independia do cientificismo da propaganda, uma vez que a elite houvesse sido selecionada por uma “comissão racial” e posta sob a autoridade das “leis especiais de casamento” (112), enquanto, no extremo oposto, e sob a jurisdição dessa “elite racial”, existiam campos de concentração para uma “melhor demonstração das leis da hereditariedade e da raça” (113). À base dessa “organização viva”, os nazistas podiam dispensar o dogmatismo e estender a sua amizade a povos semitas, como os árabes, ou fazer alianças com os próprios representantes do “perigo amarelo”, os japoneses. A realidade de uma sociedade racial, a formação de uma elite selecionada de um ponto de vista supostamente racial, constituiria melhor garantia da doutrina do racismo do que as provas científicas ou pseudocientíficas.
Os homens que ditam a política do bolchevismo mostram idêntica superioridade em relação aos dogmas que eles mesmos professam. São perfeitamente capazes de interromper qualquer luta de classes com uma súbita aliança com o capitalismo, sem abalar a confiança dos seus escalões e sem trair a crença na luta de classes. Uma vez que o princípio dicótomo da luta de classes se torna expediente organizacional, e, por assim dizer, se petrifica na inflexível hostilidade contra o mundo inteiro, através dos altos escalões policiais secretos na Rússia e dos agentes do Comintern no exterior, a política bolchevista fica surpreendentemente isenta de “preconceitos”.
É essa liberdade em relação ao conteúdo de sua própria ideologia que caracteriza os mais altos escalões da hierarquia totalitária. São homens que veem a tudo e a todos em termos de organização, inclusive ao Líder que, para eles, não é nem talismã inspirado nem aquele que sempre tem razão, mas a simples consequência desse tipo de organização; é necessário não como pessoa, mas como função, e como tal é indispensável ao movimento. Contudo, diferentemente de outras formas despóticas de governo, nas quais frequentemente quem governa é um círculo restrito e o déspota tem apenas o papel representativo de governante fantoche, os líderes totalitários podem realmente fazer o que bem entendem e contar com a lealdade dos membros de seu séquito, mesmo que um dia se decidam a matá-los.
Aqui mais uma pista de como o campo é configurado…
Uma razão mais técnica dessa lealdade suicida é que não há leis de herança ou de outra natureza que regulem a sucessão ao posto supremo. Uma revolta palaciana bem-sucedida teria resultados tão desastrosos para o movimento como sistema quanto uma derrota militar. É da própria natureza do movimento que, uma vez que o Líder assume o posto, toda a organização se identifica com ele de modo tão absoluto que qualquer confissão de erro ou remoção do cargo quebraria a magia de infalibilidade que envolve a posição de Líder e arruinaria a todos os que estivessem ligados ao movimento. A base da estrutura não está na veracidade das palavras do Líder, mas na infalibilidade dos seus atos. Sem ela, e no calor de uma discussão que presume falibilidade, todo o reino da carochinha do totalitarismo se esboroa, esmagado imediatamente pela verdade do mundo real que somente o movimento, guiado pelo Líder numa direção infalivelmente certa, é capaz de evitar.
Contudo, a lealdade dos que não acreditam nem em chavões ideológicos nem na infalibilidade do Líder tem também razões mais profundas e menos técnicas. O que une esses homens é uma firme crença na onipotência humana. O seu cinismo moral e a sua crença de que tudo é permitido repousam na sólida convicção de que tudo é possível. É verdade que esses homens, pouco numerosos, não são facilmente apanhados em suas próprias mentiras específicas e não creem necessariamente em racismo ou em economia, em conspirações de judeus ou de Wall Street. Contudo, são também iludidos — iludidos pela ideia impudente e presunçosa de que se pode fazer tudo, e pela insolente convicção de que tudo o que existe é apenas um obstáculo temporário a ser certamente vencido pela organização superior. Confiantes de que a força da organização pode destruir a força da substância, como a violência de uma gangue bem organizada pode roubar a riqueza mal guardada de um homem, subestimam constantemente a força das comunidades estáveis e superestimam a força motora do movimento. Além disso, como não creem realmente que exista contra eles uma conspiração mundial, mas usam-na apenas como expediente organizacional, não percebem que a sua própria conspiração pode acabar levando o mundo inteiro a unir-se para combatê-los.
Mas, como quer que venha a ser finalmente derrotada a ilusão da onipotência humana através da organização, a sua consequência prática dentro do movimento é que o séquito do Líder, em caso de desacordo com ele, nunca estará muito seguro de suas próprias opiniões, pois acredita sinceramente que o desacordo não tem importância, e que mesmo o mais louco expediente tem boas possibilidades de sucesso se receber a devida organização. O que caracteriza a sua lealdade não é a crença na infalibilidade do Líder, mas a convicção de que pode tornar-se infalível qualquer pessoa que comande os instrumentos de violência com os métodos superiores da organização totalitária. Essa ilusão é fortalecida quando os regimes totalitários estão no poder, demonstrando como até uma perda de substância pode tornar-se uma vitória da organização. (A administração das empresas industriais na Rússia soviética, fantasticamente deficiente, levou à atomização da classe operária, enquanto o terrivelmente cruel tratamento dos prisioneiros civis pelos nazistas nos territórios ocupados da Europa oriental, embora causasse uma “deplorável perda de mão de obra”, “não podia ser lastimado em termos de gerações”) (114). Além disso, decidir o que é sucesso ou fracasso em circunstâncias totalitárias é, em grande parte, uma questão de opinião pública organizada e aterrorizada. Num mundo totalmente fictício não é preciso registrar, confessar e relembrar os fracassos. Para que a factualidade continue a existir, é preciso que exista o mundo não totalitário.
3. O TOTALITARISMO NO PODER
Quando um movimento, internacional em sua organização, universal em seu alcance ideológico e global em sua aspiração política, toma o poder num único país, coloca-se obviamente em situação contraditória. O movimento socialista escapou a essa crise, em primeiro lugar, porque a questão nacional — ou seja, o problema estratégico suscitado pela revolução — havia sido curiosamente negligenciado por Marx e Engels e, em segundo lugar, porque só teve de encarar o problema de governar depois que a Primeira Grande Guerra retirou da Segunda Internacional a autoridade sobre os membros nacionais, que em toda parte haviam aceito como fato inalterável a prioridade dos sentimentos nacionais em relação à solidariedade internacional. Em outras palavras, quando chegou o momento da tomada do poder em seus respectivos países, os movimentos socialistas já eram partidos nacionais.
Essa transformação nunca chegou a ocorrer nos movimentos totalitários nazista e bolchevista. No momento da tomada do poder, os perigos para o movimento eram a “mumificação” que poderia ocorrer se a posse da máquina estatal o levasse ao congelamento sob forma de governo absoluto (1), e a limitação de sua liberdade de movimento imposta pelas fronteiras do território em que havia galgado o poder. Para um movimento totalitário, ambos os perigos são igualmente mortais: a evolução na direção do absolutismo poria fim ao ímpeto interno do movimento, enquanto a evolução na direção do nacionalismo frustraria a expansão externa sem a qual o movimento não pode sobreviver. A forma de governo que os dois movimentos tomaram – ou melhor, que resultou quase que automaticamente da sua dupla pretensão de domínio total e governo mundial — é melhor definida pelo slogan de Trótski de “revolução permanente”, embora a teoria de Trótski fosse apenas a previsão socialista de uma série de revoluções, desde a revolução antifeudal da burguesia até a antiburguesa do proletariado, que se alastrariam de um país para outro (2). De “permanente”, a teoria tinha apenas o nome, com todas as suas implicações semianárquicas; mas até Lênin impressionou-se mais com o nome do que com o seu conteúdo teórico. Seja como for, as revoluções, sob forma de expurgos gerais, viraram instituições permanentes na União Soviética sob o regime de Stálin após 1934 (3). Neste caso como em outros, Stálin concentrou os seus ataques contra o semiesquecido slogan de Trótski exatamente porque havia decidido usar a sua técnica (4). Na Alemanha nazista, percebia-se claramente uma tendência semelhante na direção da revolução permanente, embora os nazistas não tivessem tido o tempo de realizá-la na mesma medida. De modo típico, a sua “revolução permanente” começou também com a liquidação da facção partidária que havia ousado proclamar abertamente “o próximo estágio da revolução” (5): “o Führer e a sua velha guarda sabiam que a verdadeira luta apenas havia começado” (6). No nazismo, em lugar do conceito bolchevista de revolução permanente, encontramos a noção de uma “seleção [racial] que não pode parar”, e que exige a constante radicalização dos critérios pelos quais é feita a seleção, isto é, o extermínio dos ineptos (7). O fato é que tanto Hitler como Stálin estenderam promessas de estabilidade para esconder a intenção de criar um estado de instabilidade permanente.
Não poderia ter havido melhor solução para a intrínseca ambivalência resultante da coexistência entre governo e movimento, entre a pretensão totalitária e o poder limitado num território limitado, entre a participação ostensiva na comunidade de nações, na qual cada uma respeita a soberania da outra, e a pretensão de domínio mundial, do que essa fórmula esvaziada do seu primitivo conteúdo. Porque o líder totalitário enfrenta duas tarefas que a princípio parecem absurdamente contraditórias: tem de estabelecer o mundo fictício do movimento como realidade operante da vida de cada dia, e tem, por outro lado, de evitar que esse novo mundo adquira nova estabilidade; pois a estabilização de suas leis e instituições certamente liquidaria o próprio movimento e, com ele, a esperança da futura conquista do mundo. O líder totalitário tem de evitar, a qualquer preço, que a normalização atinja um ponto em que poderia surgir um novo modo de vida — um modo de vida que, após certo tempo, poderia deixar de parecer tão falso e conquistar um lugar entre os modos de vida muito diferentes e profundamente contrastantes das outras nações da terra. No momento em que as instituições revolucionárias se tornassem modo nacional de vida — no momento em que a alegação de Hitler de que o nazismo não é produto de exportação, ou a de Stálin de que o socialismo só pode estabelecer-se num único país, fosse algo mais que uma tentativa de iludir o mundo não totalitário — o totalitarismo perderia a sua qualidade “total” e ficaria sujeito às leis das nações, segundo as quais cada uma possui um território, um povo e uma tradição histórica específicos que determinam a sua relação com as outras nações — uma pluralidade que refuta ipso facto qualquer alegação de que uma determinada forma de governo possa ser absolutamente válida.
Do ponto de vista prático, a posse de todos os instrumentos de força e de violência por parte do totalitarismo no poder cria uma situação difícil e paradoxal para o movimento totalitário. O possuir poder significa o confronto direto com a realidade, e o totalitarismo no poder procura constantemente evitar esse confronto, mantendo o seu desprezo pelos fatos e impondo a rígida observância das normas do mundo fictício que criou. Já não basta que a propaganda e a organização afirmem que o impossível é possível, que o incrível é verdadeiro e que uma coerente loucura governa o mundo; o principal esteio psicológico da ficção totalitária — o ativo ressentimento contra o status quo, que as massas recusaram aceitar como o único mundo possível — já não existe, e cada fragmento de informação concreta que se infiltra através da cortina de ferro, construída para deter a sempre perigosa torrente da realidade vinda do lado não totalitário, é uma ameaça maior para o domínio totalitário do que era a contrapropaganda para o movimento totalitário.
A luta pelo domínio total de toda a população da terra, a eliminação de toda realidade rival não totalitária, eis a tônica dos regimes totalitários; se não lutarem pelo domínio global como objetivo último, correm o sério risco de perder todo o poder que porventura tenham conquistado. Nem mesmo um homem sozinho pode ser dominado de forma absoluta e segura a não ser em condições de totalitarismo global. Portanto, a subida ao poder significa, antes de mais nada, o estabelecimento de uma sede oficial e oficialmente reconhecida para o movimento (ou sucursais, no caso de países satélites), e a aquisição de uma espécie de laboratório onde o teste possa ser feito com realismo (ou contra a realidade) — o teste de organizar um povo para objetivos finais que desprezam a individualidade e a nacionalidade. O totalitarismo no poder usa a administração do Estado para o seu objetivo a longo prazo de conquista mundial e para dirigir as subsidiárias do movimento; instala a polícia secreta na posição de executante e guardiã da experiência doméstica de transformar constantemente a ficção em realidade; e, finalmente, erige campos de concentração como laboratórios especiais para o teste do domínio total.
3.1 O CHAMADO ESTADO TOTALITÁRIO
A história ensina que a subida ao poder e à posição de responsabilidade afeta profundamente a natureza dos partidos revolucionários. A experiência e o bom senso tinham o direito de esperar que o totalitarismo no poder perdesse aos poucos o ímpeto revolucionário e o caráter utópico, que o afã diário de governar e a posse do verdadeiro poder moderassem as pretensões do movimento e destruíssem gradualmente o mundo fictício criado por suas organizações. Afinal, parece ser da natureza das coisas que as exigências e as metas extremas sejam refreadas pela objetividade; e a realidade como um todo dificilmente é determinada pela tendência à ficção de uma massa de indivíduos atomizados.
Entre os erros cometidos pelo mundo não totalitário em suas negociações diplomáticas com os governos totalitários (dos quais os principais foram a confiança no pacto de Munique com Hitler e nos acordos de Ialta com Stálin), muitos resultaram da aplicação da experiência e do bom senso a situações em que se haviam tornado obsoletos. Ao contrário de todas as expectativas, as importantes concessões que lhes foram feitas e o considerável prestígio internacional que alcançaram não levaram os países totalitários a reintegrarem-se na comunidade das nações, nem os induziram a desistir da falsa queixa de que o mundo inteiro havia se unido em bloco contra eles. Ao contrário: as vitórias diplomáticas faziam com que recorressem ainda mais rigidamente aos instrumentos de violência, e resultavam sempre em maior hostilidade contra as potências que haviam se mostrado dispostas a transigir.
Essas decepções de estadistas e diplomatas são comparáveis às anteriores desilusões de benévolos observadores e simpatizantes em relação aos novos governos totalitários. O que eles haviam esperado era o estabelecimento de novas instituições e a criação de um novo código de leis que, por mais revolucionário que fosse o seu conteúdo, levasse a uma estabilização de condições tendente a refrear o ímpeto dos movimentos totalitários, pelo menos nos países onde já haviam tomado o poder. Em lugar disso, o terror, tanto na Rússia soviética como na Alemanha nazista, aumentou na razão inversa da existência de oposição política interna, demonstrando que a oposição política, ao invés de fornecer o pretexto do terror, foi o último impedimento para que este alcançasse a fúria total (8).
Mais perturbador ainda era o modo pelo qual os regimes totalitários tratavam a questão constitucional. Nos primeiros anos de poder, os nazistas desencadearam uma avalanche de leis e decretos, mas nunca se deram ao trabalho de abolir oficialmente a Constituição de Weimar; chegaram até a deixar mais ou menos intactos os serviços públicos — fato que levou muitos observadores locais e estrangeiros a esperar que o partido mostrasse comedimento e que o novo regime caminhasse rapidamente para a normalização. Mas, após a promulgação das Leis de Nurembergue, verificou-se que os nazistas não tinham o menor respeito sequer pelas suas próprias leis. Em vez disso, continuou “a constante caminhada na direção de setores sempre novos”, de modo que, afinal, “o objetivo e a alçada da polícia secreta do Estado”, bem como de todas as outras instituições estatais ou partidárias criadas pelos nazistas, não podiam “de forma alguma definir-se pelas leis e normas que as regiam” (9). Na prática, esse estado de permanente ilegalidade era expresso pelo fato de que “muitas das normas em vigor já não [eram] do domínio público” (10). Teoricamente, correspondia ao postulado de Hitler, segundo o qual “Estado total não deve reconhecer qualquer diferença entre a lei e a ética” (11). porque, quando se presume que a lei em vigor é idêntica à ética comum que emana da consciência de todos, então não há mais necessidade de decretos públicos. A União Soviética, onde os serviços públicos pré-revolucionários haviam sido exterminados durante a revolução, e onde o regime pouco havia se incomodado com questões constitucionais durante o período de mudança revolucionária, chegou a dar-se ao trabalho de promulgar em 1936 uma constituição inteiramente nova e muito minuciosa (“um véu de frases e preceitos liberais encobrindo a guilhotina escondida no fundo” (12)), fato que foi aclamado na Rússia e no exterior como o fim do período revolucionário. No entanto, a publicação da Constituição coincidiu com o início do gigantesco superexpurgo que, em menos de dois anos, liquidou a administração existente e apagou todos os vestígios de vida normal e da recuperação econômica conseguida durante os quatro anos que se seguiram à liquidação dos kulaks e à coletivização forçada da população rural (13). Daí por diante, a Constituição stalinista de 1936 teve exatamente o mesmo papel que a Constituição de Weimar sob o regime nazista: completamente ignorada, nunca foi abolida; a única diferença é que Stálin pôde dar-se ao luxo de mais um absurdo — com a exceção de Vishinski, todos os autores da Constituição (que nunca foi repudiada) foram executados como traidores.
O que mais chama a atenção de quem observa o Estado totalitário não é, por certo, a sua estrutura monolítica. Pelo contrário, todos os estudantes sérios do assunto concordam pelo menos quanto à coexistência (ou conflito) de uma dupla autoridade, o partido e o Estado. Além disso, muitos já acentuaram que o governo totalitário é peculiarmente “amorfo” (14). Thomas Masaryk percebeu logo que “o chamado sistema bolchevista não passava de completa ausência de sistema” (15); e é perfeitamente verdadeiro que “até mesmo um perito enlouqueceria se tentasse destrinchar as relações entre o partido e o Estado” no Terceiro Reich (16). A relação entre as duas fontes da autoridade, entre o Estado e o Partido, é a relação entre uma autoridade aparente e outra real, de modo que muitos descrevem a máquina governamental do regime totalitário como fachada importante, a esconder e disfarçar o verdadeiro poder do partido (17).
Todos os níveis da máquina administrativa do Terceiro Reich eram submetidos a uma curiosa duplicação de órgãos. Com fantástica meticulosidade, os nazistas duplicaram no partido, através de algum órgão, todas as funções administrativas do Estado (18): até a divisão da Alemanha em Estados e províncias, introduzida pela constituição de Weimar, foi duplicada quando os nazistas dividiram o país em Gaue, de fronteiras diferentes das administrativas, de sorte que cada localidade pertencia, mesmo geograficamente, a duas unidades administrativas completamente diferentes (19). Essa duplicação foi mantida mesmo quando, a partir de 1933, os ministérios foram ocupados por importantes elementos nazistas; quando Frick, por exemplo, foi nomeado ministro do Interior, e Guerthner, ministro da Justiça. Uma vez engajados em carreiras oficiais fora do partido, esses antigos e fiéis nazistas perdiam o poder, tornando-se tão pouco influentes como qualquer outro servidor civil. Ambos estavam sob a autoridade real de Himmler, o prestigioso chefe de polícia, que normalmente seria subordinado ao ministro do Interior (20). Mais conhecido do resto do mundo foi o destino da antiga Secretaria de Relações Exteriores alemã na Wilhelmstrasse. Os nazistas deixaram o seu pessoal quase intacto e naturalmente nunca a aboliram; mas ao mesmo tempo mantinham ainda, da fase anterior ao poder, a Secretaria de Relações Exteriores do Partido, chefiada por Rosenberg (21); e, como essa agência se especializara em manter contatos com as organizações fascistas da Europa oriental e dos Bálcãs, criaram um novo órgão para competir com a secretaria da Wilhelmstrasse, a chamada Secretaria Ribbentrop, que tratava dos negócios exteriores no Ocidente e sobreviveu à nomeação do seu responsável para a embaixada na Inglaterra. Finalmente, além dessas instituições partidárias, a Secretaria de Relações Exteriores recebeu nova duplicação sob forma de um órgão da SS, responsável “por negociações com todos os grupos racialmente germânicos da Dinamarca, Noruega, Bélgica e Holanda” (22). Esses exemplos provam que, para os nazistas, a duplicação de órgãos era questão de princípio, e não apenas expediente destinado a criar empregos para os membros do partido.
A mesma divisão entre governo verdadeiro e governo ostensivo resultou de causas muito diferentes na Rússia soviética (23). O governo ostensivo surgiu inicialmente do Congresso Soviético Pan-Russo, que, durante a guerra civil, perdeu a influência e o poder para o partido bolchevista. Esse processo começou quando o Exército Vermelho se tornou autônomo e a polícia política secreta se restabeleceu como órgão do partido, e não do Congresso Soviético (24); e terminou em 1923, durante o primeiro ano do Secretariado Geral de Stálin (25). Daí por diante, os sovietes passaram a ser o governo fantasma em cujo meio, através de células formadas por membros do partido bolchevista, funcionavam os representantes do verdadeiro poder, nomeados pelo Comitê Central de Moscou e subordinados a ele. O ponto crucial deste último desfecho não foi a conquista dos sovietes pelo partido, mas o fato de que, “embora pudessem tê-lo feito sem dificuldades, os bolchevistas não aboliram os sovietes, mas usaram-nos como símbolo externo e decorativo da sua autoridade” (26).
Portanto, a coexistência do governo ostensivo com o real resultou em parte da própria revolução e precedeu a ditadura totalitária de Stálin. Contudo, enquanto os nazista simplesmente conservaram a administração existente, destituindo-a de todos os poderes, Stálin foi forçado a reavivar o seu governo fantasma, que, no começo da década de 30, já havia perdido todas as funções e estava semiesquecido na Rússia, e introduziu a Constituição soviética como símbolo da existência e da impotência dos sovietes. Nenhum parágrafo dessa constituição jamais teve o menor significado prático na vida ou na jurisdição russa; mas o governo ostensivo russo, completamente desprovido do fascínio da tradição, tão necessária a uma fachada, aparentemente precisava da aura sagrada da lei escrita. O desafio do totalitarismo à lei e à legalidade (que “a despeito das maiores mudanças […] ainda [são] a expressão de uma ordem permanentemente desejada” (27)) encontrou na Constituição soviética escrita, como na Constituição de Weimar que nunca foi repudiada, um modo de lançar um repto permanente ao mundo e aos critérios não totalitários, cujo desamparo e impotência podiam ser demonstrados diariamente (28).
A duplicação de órgãos e a divisão da autoridade, a existência de um poder real ao lado de um poder aparente, são suficientes para criar confusão, mas não explicam o “amorfismo” de toda a estrutura. Não se deve esquecer que somente uma construção pode ter estrutura, e que um movimento — se tomarmos o termo tão sério e literal como o queriam os nazistas — pode ter apenas direção, e que qualquer forma de estrutura, legal ou governamental, só pode estorvar um movimento que se dirige com velocidade crescente numa certa direção. Mesmo na fase anterior ao poder, os movimentos totalitários já representavam aquelas massas que não queriam viver em qualquer tipo de estrutura, qualquer que fosse a sua natureza; massas que começavam a mover-se para transpor as barreiras legais e geográficas fortemente impostas pelo governo. Portanto, julgados segundo a nossa concepção de estrutura de governo e de Estado, esses movimentos, quando ainda fisicamente limitados a um território específico, devem necessariamente procurar destruir toda e qualquer estrutura; e não basta para essa deliberada destruição a mera duplicação de todos os órgãos na existência simultânea de instituições partidárias e estatais. Como a duplicação implica um relacionamento entre a fachada do Estado e o miolo do partido, poderia resultar dele também algum tipo de estrutura, na qual a relação entre o partido e o Estado levaria automaticamente a uma regulamentação legal que restringiria e estabilizaria as duas autoridades (29).
De fato, a duplicação de órgãos, que aparentemente resulta do problema suscitado pelo relacionamento entre o partido e o Estado em todas as ditaduras unipartidárias, é apenas o principal sintoma de um fenômeno mais complicado, melhor definido como multiplicação de órgãos, e não duplicação. Os nazistas não se contentaram em criar Gaue que se somassem às antigas províncias, mas introduziram ainda uma série de outras divisões geográficas segundo as diferentes organizações do Partido: as unidades territoriais da SA, que não coincidiam nem com as Gaue nem com as províncias e que, além disso, diferiam das da SS, sendo que nenhuma delas correspondia às zonas em que se dividia a Juventude Hitlerista (30). A essa confusão geográfica deve acrescentar-se o fato de que o relacionamento original entre o poder real e o poder ostensivo se repetia em cada nível, se bem que de modo sempre diferente. O habitante do Terceiro Reich de Hitler não apenas vivia sob a simultânea e frequentemente contraditória autoridade de poderes rivais, tais como a administração estatal, o partido, a SA e a SS, como também nunca sabia ao certo, e nunca se lhe dizia explicitamente, qual autoridade deveria considerar acima de todas as outras. Tinha de desenvolver uma espécie de sexto sentido para saber, a cada momento, a quem devia obedecer e a quem devia ignorar.
Por outro lado, os que tinham de executar as ordens que a liderança julgava genuinamente necessárias para o bem do movimento — e que, em contraste com as medidas governamentais, eram confiadas somente às formações de elite do partido — ficavam na mesma situação. Geralmente, essas ordens eram “intencionalmente vagas, emitidas na expectativa de que quem as recebesse perceberia a intenção de quem ordenava, e agisse de acordo” (31); pois as formações de elite não eram obrigadas a obedecer apenas às ordens do Führer, mas a “obedecer ao desejo da liderança” (32). E, como indicam os longos processos submetidos às cortes do partido, referentes a “excessos”, as duas coisas não eram em forma alguma idênticas. A única diferença era que as formações de elite, graças à doutrinação especial, haviam sido treinadas para compreender que certas “insinuações significavam mais do que meros conteúdos verbais” (33).
Tecnicamente falando, o movimento dentro do aparato de domínio totalitário deriva a sua mobilidade do fato de que a liderança está continuamente transferindo o verdadeiro centro do poder, muitas vezes para outras organizações, mas sem dissolver e nem mesmo denunciar publicamente os grupos cuja autoridade foi eliminada. Na fase inicial do regime nazista, imediatamente após o incêndio do Reichstag, a SA era a verdadeira autoridade e o partido era o poder ostensivo; depois, o poder foi transferido da SA para a SS e, finalmente, da SS para o Serviço de Segurança (34). O fato é que nenhum dos órgãos jamais foi privado do direito de pretender representar o desejo do Líder (35). A constante divisão, sempre alterada, entre a verdadeira autoridade secreta e a representação franca e ostensiva, fazia da verdadeira sede do poder um mistério por definição, a tal ponto que sequer os membros dos círculos governantes jamais podiam estar absolutamente seguros quanto a sua própria posição na secreta hierarquia do poder. Alfred Rosenberg, por exemplo, a despeito da longa carreira no partido e do impressionante acúmulo de poder e cargos ostensivos na hierarquia do nazismo, ainda falava em criar uma série de Estados na Europa oriental como proteção contra Moscou, numa época em que aqueles que detinham o verdadeiro poder já haviam decidido que nenhuma estrutura estatal deveria sobreviver à derrota da União Soviética, e que a população dos territórios ocupados no Leste já era definitivamente apátrida e, portanto, podia ser exterminada (36). Em outras palavras, uma vez que o conhecimento da fonte das ordens e a sedimentação comparativamente permanente da hierarquia poderiam introduzir um elemento de estabilidade alheio ao domínio totalitário, os nazistas constantemente repudiavam a verdadeira autoridade, sempre que esta se tornava pública, e criavam novas instâncias de governo, em relação às quais a anterior virava governo fantasma — um jogo que, é claro, podia continuar ad infinitum. Uma das mais importantes diferenças técnicas entre o sistema soviético e o sistema nazista é que Stálin, sempre que transferia a ênfase do poder dentro do movimento de um aparelho para outro, tendia a liquidar o aparelho juntamente com o seu pessoal, enquanto Hitler, apesar dos seus desdenhosos comentários sobre pessoas que “têm medo de pular sobre a própria sombra” (37), estava perfeitamente disposto a continuar a usar essas sombras, embora em outra função.
A multiplicação de órgãos era extremamente útil para a constante transferência do poder; além disso, quanto mais tempo um regime totalitário permanece no poder, maiores se tornam o número de órgãos e a possibilidade de empregos que dependem exclusivamente do movimento, uma vez que nenhum órgão é abolido quando a sua autoridade é liquidada. O regime nazista começou essa multiplicação com uma coordenação inicial de todas as associações, sociedades e instituições existentes, sem que essa coordenação implicasse incorporá-las às organizações partidárias. Como resultado, surgiram duas organizações de estudantes nacional-socialistas, duas organizações nazistas femininas, duas organizações nazistas de professores universitários advogados, médicos, e assim por diante (38). Mas nunca se sabia ao certo se a organização partidária era mais poderosa que a sua rival coordenada (39), nem se podia prever com segurança qual o órgão partidário a ser promovido nos escalões da hierarquia interna do partido (40).
Um exemplo clássico dessa informidade planejada ocorreu na organização do antissemitismo científico. Em 1933, foi fundado em Munique um instituto para o estudo da questão judaica (Institut zur Erforschung der Judenfrage). Partindo da premissa de que a questão judaica houvesse determinado a evolução de toda a história da Alemanha, esse órgão foi logo ampliado para tornar-se um instituto de pesquisa da história alemã moderna. Chefiado pelo conhecido historiador Walter Frank, transformou as universidades tradicionais em sedes do aparente saber pseudocientífico. Em 1940, outro instituto para o estudo da questão judaica foi criado em Frankfurt, sob a chefia de Alfred Rosenberg, cuja posição como membro do partido era muito superior. Consequentemente, o instituto de Munique foi relegado a uma existência fantasma; o instituto de Frankfurt, não o de Munique, é que deveria receber os tesouros das coleções judaicas roubadas na Europa e transformar-se em biblioteca central sobre o judaísmo. No entanto, quando, alguns anos mais tarde, essas coleções chegaram à Alemanha, o que havia de mais precioso não foi para Frankfurt, mas para Berlim, para as mãos do departamento especial da Gestapo encarregado da liquidação (e não apenas do estudo) da questão judaica, cujo chefe era Eichmann. Nenhuma das instituições anteriores foi abolida, de sorte que em 1944 a situação era esta: atrás da fachada dos departamentos de história das universidades, erguia-se o poder “mais legítimo” do instituto de Munique, por trás do qual estava o instituto de Frankfurt de Rosenberg e, somente por trás dessas três fachadas, escondido e protegido por elas, estava o verdadeiro centro da autoridade, o Reichssicherheitshauptamt, uma divisão especial da Gestapo.
A despeito da sua constituição escrita, a fachada do governo soviético é ainda mais inconsistente. Destina-se ainda mais a impressionar os estrangeiros do que a administração estatal que os nazistas herdaram da República de Weimar e conservaram em funcionamento. Não tendo, como os nazistas, processado a duplicação de cargos na fase de coordenação, o regime soviético confia ainda mais na criação de novos órgãos para relegar à sombra os antigos centros do poder. O gigantesco aumento do aparelho burocrático que esse método acarreta é controlado pela repetida liquidação através de expurgos. Não obstante, podemos distinguir, também na Rússia, pelo menos três organizações absolutamente distintas: o aparelho soviético ou estatal, o aparelho do partido e o aparelho da NKVD, cada qual dispondo de seus próprios departamentos independentes de economia e de política, um ministério de educação e cultura, um departamento militar etc. (41).
Na Rússia, o poder ostensivo da burocracia do partido, em contraposição com o verdadeiro poder da polícia secreta, corresponde à duplicação original de partido e Estado que ocorreu na Alemanha nazista, e a multiplicação só é evidente na própria polícia secreta, que possui uma rede extremamente complicada e vastamente ramificada de agentes, na qual um departamento está sempre ocupado em supervisionar e espionar o outro. Cada empreendimento na União Soviética tem o seu departamento especial de polícia secreta, que espiona tanto os membros do partido como o pessoal comum. Coexiste com esse departamento outra divisão de polícia do próprio partido, que por sua vez vigia todo mundo, inclusive os agentes da NKVD, e cujos membros são desconhecidos pela entidade rival. A essas duas organizações de espionagem, devem acrescentar-se os sindicatos das fábricas, cuja função é fazer com que os trabalhadores cumpram as metas que lhes foram atribuídas. Muito mais importante que esses aparelhos, porém, é o “departamento especial” da NKVD, que representa “uma NKVD dentro da NKVD”, ou seja, uma polícia secreta dentro da polícia secreta (42). Todos os relatórios dessas agências policiais rivais vão terminar no Comitê Central de Moscou e no Politburo. É aí que se decide qual dos relatórios será levado em conta, e qual das divisões terá o direito de tomar as respectivas medidas policiais. Nem o habitante comum do país nem qualquer dos departamentos de polícia sabem, naturalmente, que decisão será tomada. Entre todos esses departamentos, não há nenhuma hierarquia de poder ou de autoridade com base na lei; a única certeza é que um dia um deles será escolhido para encarnar “o desejo da liderança”.
A única regra segura num Estado totalitário é que, quanto mais visível é uma agência governamental, menos poder detém; e, quanto menos se sabe da existência de uma instituição, mais poderosa ela é. De acordo com essa regra, os sovietes, reconhecidos por uma constituição escrita como a mais alta autoridade do Estado, têm menos poder que o partido bolchevista; o partido bolchevista, que recruta abertamente os seus membros e é reconhecido como classe governante, tem menos poder que a polícia secreta. O verdadeiro poder começa onde o segredo começa. Nesse particular, os Estados nazista e bolchevista foram muito parecidos; a diferença era principalmente o monopólio e a centralização dos serviços de polícia secreta nas mãos de Himmler, no primeiro caso, e o labirinto de atividades policiais russas, aparentemente sem qualquer relação ou ligação umas com as outras, no segundo caso.
Se considerarmos o Estado totalitário unicamente como instrumento de poder, e deixarmos de lado as questões de eficiência administrativa, capacidade industrial e produtividade econômica, então o seu “amorfismo” passa a ser instrumento ideal para a realização do chamado princípio de liderança. A contínua rivalidade entre os órgãos, cujas funções não apenas se sobrepõem, mas que são encarregados das mesmas tarefas (43), quase não permite que a oposição ou a sabotagem venham a ser eficazes; a rápida mudança de ênfase, que relega um órgão ao esquecimento para promover outro ao nível da autoridade, pode resolver todos os problemas sem que ninguém perceba a mudança ou mesmo o fato de ter existido oposição; a vantagem adicional é que o órgão opositor provavelmente nunca virá a descobrir que foi derrotado, uma vez que nunca é abolido (como no caso do regime nazista) ou é liquidado muito mais tarde, sem qualquer relação aparente com a questão específica. Isso pode ser levado a cabo com extrema facilidade, pois ninguém, exceto poucos iniciados, conhece a relação exata entre as autoridades. Só de vez em quando o mundo não totalitário tem um vislumbre dessa situação, como no caso de um alto funcionário no exterior confessar que um obscuro empregado da embaixada era o seu superior imediato. Em retrospecto, é possível muitas vezes determinar por que ocorreu tão súbita perda de autoridade ou, antes, determinar se ela realmente ocorreu. Por exemplo, não é difícil compreender hoje o motivo pelo qual, ao eclodir a guerra, homens como Alfred Rosenberg ou Hans Frank foram removidos dos seus cargos partidários e, dessa forma, eliminados do verdadeiro centro do poder, ou seja, do círculo interno do Führer (44). O que importa é que eles não somente ignoravam as razões dessas manobras, como provavelmente nem suspeitavam que os novos cargos, aparentemente tão altos, como os de governador-geral da Polônia ou Reichsminister para todos os territórios do Leste, significavam não o clímax, mas o fim de suas carreiras nacional-socialistas.
O princípio do Líder não estabelece nenhuma hierarquia no Estado totalitário, como não o faz no movimento totalitário; a autoridade não se filtra de cima para baixo através de todas as camadas intermediárias até a base da estrutura política, como no caso dos regimes autoritários. A razão concreta é que não há hierarquia sem autoridade: e, a despeito dos muitos erros de interpretação cometidos em relação à “personalidade autoritária”, o princípio da autoridade é, para todos os efeitos, diametralmente oposto ao princípio do domínio totalitário. O seu caráter primígeno já aparece na história romana: ali a autoridade, sob qualquer forma, visa restringir ou limitar a liberdade, mas nunca aboli-la. O domínio totalitário, porém, visa à abolição da liberdade e até mesmo à eliminação de toda espontaneidade humana e não a simples restrição, por mais tirânica que seja, da liberdade. Essa ausência da autoridade hierárquica no sistema totalitário é demonstrada pelo fato de que, entre o supremo poder (o Führer) e os governos, não existem níveis intermediários definidos, cada um com o seu devido quinhão de autoridade e de obediência. O desejo do Führer pode encarnar-se em qualquer parte e a qualquer momento, sem que o próprio Führer esteja ligado a qualquer hierarquia, nem mesmo àquela que ele mesmo possa ter criado. Portanto, não é exato dizer que o movimento, após a tomada do poder, cria uma multidão de principados onde cada pequeno líder é livre para fazer o que quiser e imitar o grande líder lá de cima (45). A afirmação nazista de que “o partido é uma concatenação dos líderes” (46) não passava de balela. Do mesmo modo como a multiplicação infinita de órgãos e a confusão da autoridade leva ao estado de coisas no qual cada cidadão se sente diretamente confrontado com o desejo do Líder, que escolhe arbitrariamente o órgão executante das suas decisões, também o milhão e meio de “führers” disseminados por todo o Terceiro Reich (47) sabia muito bem que a sua autoridade emanava diretamente de Hitler, sem os níveis intermediários de uma hierarquia operante (48). A dependência direta era real e a hierarquia intermediária apenas imitava de maneira ostensiva, mas espúria, um Estado autoritário.
O absoluto monopólio do poder e da autoridade por parte do Líder é mais evidente no seu relacionamento com o chefe de polícia que, num país totalitário, ocupa o cargo público mais poderoso. Contudo, a despeito do enorme poderio material e organizacional colocado à sua disposição como dirigente de um verdadeiro exército policial e de formações de elite, o chefe de polícia aparentemente nunca está em posição de tomar o poder e tornar-se o governante do país. Assim, antes da queda de Hitler, Himmler nunca sonhou com a liderança (49) e nunca foi proposto por ninguém como seu eventual sucessor. Nesse particular, ainda mais interessante foi a malfadada tentativa de Béria de tomar o poder após a morte de Stálin. Embora Stálin nunca houvesse permitido que qualquer um dos seus chefes de polícia gozasse de posição semelhante à que Himmler desfrutava durante os últimos anos de governo nazista, Béria também dispunha de tropas suficientes para desafiar o domínio do partido depois da morte de Stálin. Ninguém, exceto o Exército Vermelho, poderia ter frustrado a sua pretensão de poder, o que poderia ter levado a uma sangrenta guerra civil, cujo desfecho seria completamente incerto. O fato é que Béria abandonou voluntariamente todos os seus cargos poucos dias depois da morte de Stálin, embora devesse saber que pagaria com a vida — como pagou — a ousadia de antepor por alguns dias o poder da polícia ao poder do partido (50).
Essa falta de poder absoluto não impede ao chefe de polícia organizar a máquina sob seu comando segundo os princípios do poder autoritário. Assim, é sintomático ver como Himmler, depois de nomeado, passou a reorganizar a polícia alemã, introduzindo a multiplicação de órgãos na estrutura do serviço secreto, até então centralizada; aparentemente, fez aquilo que os mestres do jogo do poder anteriores aos regimes totalitários teriam chamado de descentralização tendente à diminuição do poder. Himmler acrescentou à Gestapo primeiro o Serviço de Segurança, originalmente uma divisão da SS criada como corpo policial interpartidário. Embora as sedes da Gestapo e do Serviço de Segurança viessem a ser centralizadas em Berlim, as suas ramificações regionais conservaram identidades separadas e cada uma reportava-se diretamente ao gabinete do próprio Himmler em Berlim (51). No decorrer da guerra, Himmler acrescentou mais dois serviços de espionagem: um consistia nos chamados inspetores sob a jurisdição da SS, que deviam controlar e coordenar com a polícia o Serviço de Segurança; o outro era uma agência de espionagem especificamente militar, que agia independentemente das forças militares do Reich e veio a absorver a própria espionagem militar do Exército (52).
A completa ausência de revoluções palacianas, bem-sucedidas ou não, é uma das mais peculiares características das ditaduras totalitárias. Com uma exceção apenas, nenhum nazista participou da conspiração militar contra Hitler em julho de 1944. Superficialmente, o princípio do Líder parece um convite a mudanças sangrentas de poder pessoal sem alteração do regime. Esse é apenas um dos numerosos indícios de que a forma totalitária de governo muito pouco tem a ver com o desejo de poder ou mesmo com o desejo de uma máquina geradora de poder, com o jogo do “poder pelo amor ao poder” que caracterizou os últimos estágios do domínio imperialista. É, contudo, uma das indicações mais importantes de que o governo totalitário, não obstante todas as aparências, não é o governo de uma clique ou de uma gangue (53). As ditaduras de Hitler e de Stálin mostram claramente o fato de que o isolamento de indivíduos atomizados não apenas constitui a base para o domínio totalitário, mas é levado a efeito de modo a atingir o próprio topo da estrutura. Stálin fuzilou quase todos os que podiam dizer que pertenciam à clique governante, e trocou e retrocou os membros do Politburo sempre que uma clique estava a ponto de consolidar-se. Hitler destruiu esses círculos na Alemanha nazista com métodos menos drásticos — o único expurgo sangrento foi dirigido contra o círculo de Röhm, que era firmemente unido pela homossexualidade dos seus principais membros: evitou a formação de cliques através de constantes transferências de poder e de autoridade, além de frequentes mudanças dos elementos íntimos que privavam do seu círculo imediato, de modo que toda a antiga solidariedade entre os que haviam chegado com ele ao poder desapareceu rapidamente. Além disso, parece óbvio que a monstruosa deslealdade, descrita em termos quase idênticos como o principal traço do caráter de Hitler e de Stálin, não lhes permitiria chefiar um grupo tão duradouro e coeso como uma clique. Seja como for, o fato é que não existe qualquer inter-relação entre os que exercem as funções de comando. Nem a igualdade de status, nem o relacionamento entre chefes e subordinados, nem mesmo a duvidosa lealdade dos gângsteres conseguem integrá-los numa hierarquia política. Na União Soviética, todos sabem que tanto um gerente geral de uma grande empresa estatal quanto o ministro das Relações Exteriores podem ser rebaixados a qualquer dia para a mais humilde condição social e política, e um completo desconhecido pode tomar-lhes o lugar. Por outro lado, a cumplicidade dos gângsteres que de fato foi importante nos estágios iniciais da ditadura nazista perde toda a força de coesão, pois o totalitarismo usa o poder exatamente para disseminar essa cumplicidade entre toda a população, até que o povo sob o seu domínio esteja totalmente unido por uma só culpa (54).
A falta de um grupo governante torna a sucessão do ditador totalitário especialmente desconcertante e incômoda. É verdade que todos os usurpadores tiveram esse problema, e é bem típico dos ditadores totalitários que nenhum jamais tenha experimentado o antigo método de fundar uma dinastia e transmitir o poder aos filhos. Ao lado do método de Hitler, de fazer tantas nomeações que nenhuma era válida, há o método de Stálin, que fez da sucessão uma das honrarias mais perigosas da União Soviética. Num regime totalitário, conhecer o labirinto de correias transmissoras que põem o sistema a funcionar equivale a ter o poder supremo, e todo sucessor nomeado que realmente descobre o que está acontecendo é automaticamente removido dentro de certo tempo. Uma nomeação válida e relativamente permanente implicaria a existência de um círculo cujos membros compartilhariam o monopólio do Líder no tocante ao saber do que acontece, coisa que o Líder tem de evitar por todos os meios. Hitler certa vez explicou isso aos comandantes supremos da Wehrmacht que, em meio ao tumulto da guerra, remoíam exatamente esse problema: “Como fator máximo, devo, com toda a modéstia, declarar-me insubstituível. […] O destino do Reich depende exclusivamente de mim” (55). Não há ironia na palavra “modéstia”; o líder totalitário, em agudo contraste com todos os antigos usurpadores, déspotas e tiranos, parece acreditar que a questão da sua sucessão não é tão importante assim, que a tarefa não exige dons ou treinamentos especiais, que o país no fim obedecerá a quem quer que seja nomeado por ocasião da sua morte, e que nenhum rival sedento de poder contestará a legitimidade do substituto (56).
Como técnicas de governo, os expedientes do totalitarismo parecem simples e engenhosamente eficazes. Asseguram não apenas um absoluto monopólio do poder, mas a certeza incomparável de que todas as ordens serão sempre obedecidas; a multiplicidade das correias que acionam o sistema e a confusão da hierarquia asseguram a completa independência do ditador em relação a todos os subordinados e possibilitam as súbitas e surpreendentes mudanças de política pelas quais o totalitarismo é famoso. A estrutura política do país mantém-se à prova de choques exatamente por ser amorfa.
As razões pelas quais tão extraordinária eficiência nunca havia sido experimentada antes são tão simples como o próprio expediente. A multiplicação de cargos destrói todo o senso de responsabilidade e de competência; não apenas representa um aumento tremendamente oneroso e improdutivo de administração, mas é realmente um estorvo à produtividade, pois o trabalho genuíno é constantemente retardado por ordens contraditórias até que o comando do Líder venha a decidir a questão. O fanatismo dos altos escalões da elite, absolutamente essencial para o funcionamento do movimento, liquida sistematicamente todo real interesse em tarefas específicas e produz uma mentalidade que vê em toda e qualquer ação um meio de atingir algo completamente diferente (57). E essa mentalidade não se limita à elite, mas gradualmente toma conta de toda a população, cuja vida ou morte depende, em seus menores detalhes, de decisões políticas — isto é, de motivos e causas ulteriores que nada têm a ver com o seu desempenho. As constantes remoções, demoções e promoções impossibilitam o desenvolvimento do trabalho de equipe e impedem o acúmulo da experiência. Um exemplo: do ponto de vista econômico, a escravidão é um luxo ao qual a Rússia não se poderia dar; numa época de grave escassez de técnicos, os campos de concentração estavam abarrotados de “engenheiros altamente qualificados [que] competem pelo direito de trabalhar como encanadores, consertadores de relógios, de rede elétrica e de telefones” (58). Por outro lado, do ponto de vista puramente utilitário, a Rússia não deveria ter empreendido os expurgos na década de 30: eles interromperam uma recuperação econômica longamente esperada e, por causa da destruição física do estado-maior do Exército Vermelho, quase levaram o país à derrota na guerra sino-soviética.
Na Alemanha, as condições diferiam em intensidade. No começo, os nazistas demonstraram certa tendência de conservar a mão de obra técnica e administrativa, permitir a lucratividade nos negócios e exercer domínio econômico sem excesso de interferência. Quando a guerra eclodiu, a Alemanha ainda não estava completamente totalitarizada e, se aceitarmos o preparo bélico como motivo racional, temos de reconhecer que, até por volta de 1942, a sua economia pôde funcionar mais ou menos racionalmente. Em si, o preparo bélico não é antiutilitário, a despeito do seu custo proibitivo (59), pois realmente pode ser muito “mais barato apoderar-se da riqueza e dos recursos de outras nações através da conquista do que comprá-los de países estrangeiros ou produzi-los em casa” (60). As leis econômicas do investimento e da produção, da rentabilidade, do lucro e da depreciação perdem sua validade quando se pretende reabastecer a economia nacional através da pilhagem de outros países; a verdade é que o famoso slogan nazista de “canhões ou manteiga” realmente significava “manteiga por meio de canhões”, e o povo alemão, simpatizante do nazismo, sabia disso muito bem (61). Somente em 1942 é que as normas do domínio totalitário passaram a prevalecer sobre tudo, mesmo sobre a economia.
O processo de radicalização totalitária começou imediatamente após a deflagração da guerra; pode-se até conjecturar que Hitler provocou a guerra, entre outras razões, porque ela lhe permitia acelerar esse processo de uma forma que teria sido inconcebível em tempos de paz (62). O mais curioso, porém, é que essa radicalização não foi absolutamente prejudicada por uma derrota tão fragorosa como a de Stalingrado, e que o risco de perder inteiramente a guerra foi apenas mais um motivo para pôr de lado quaisquer considerações utilitárias e procurar atingir, por meio da impiedosa organização total, os objetivos da ideologia racial totalitária, nem que fosse por pouco tempo (63). Depois de Stalingrado, as formações de elite, antes tão rigidamente separadas do povo, foram amplamente expandidas; a proibição de militares pertencerem ao partido foi suspensa e o comando militar foi subordinado aos comandantes da SS. O monopólio do crime, zelosamente guardado pela SS, foi abandonado e agora qualquer soldado podia ser incumbido de assassínios em massa (64). Nem considerações econômicas, nem militares nem políticas podiam mais interferir com o oneroso e incômodo programa de extermínio e deportação em massa.
Quem estuda esses últimos anos de governo nazista e a sua versão de um “plano quinquenal”, que não foi realizado por falta de tempo, mas que visava ao extermínio do povo polonês e ucraniano, de 170 milhões de russos (como um dos planos menciona), da intelligentsia da Europa ocidental (como a da Holanda) e do povo da Alsácia e Lorena, bem como de todos os alemães que não se enquadrassem na projetada lei de saúde pública do Reich ou numa futura lei de “estrangeiros em comunidade”, não pode deixar de perceber a semelhança com o plano quinquenal bolchevista de 1929, que foi o primeiro ano de clara ditadura totalitária na Rússia. No primeiro caso, os vulgares slogans da eugenia e, no segundo, os altissonantes lemas econômicos foram o prelúdio de “um exemplo de prodigiosa loucura, que virava de cabeça para baixo todas as regras da lógica e os princípios da economia” (65).
É claro que os ditadores totalitários não enveredam conscientemente pelo caminho da loucura. O caso é que nosso espanto em face da natureza antiutilitária da estrutura estatal do totalitarismo se deve à falsa noção de que, afinal, estamos lidando com um Estado normal — uma burocracia, uma tirania, uma ditadura —, e ao fato de não levarmos em conta a enfática afirmação dos governos totalitários de que consideram o país no qual galgaram o poder apenas como sede temporária do movimento internacional a caminho da conquista do mundo; de que, para eles, as vitórias e as derrotas são computadas em termos de séculos ou milênios; e de que os interesses globais sempre terão prioridade sobre os interesses locais do seu próprio território (66). A famosa frase “o direito é aquilo que é bom para o povo alemão” destinava-se apenas à propaganda de massa; o que se dizia aos nazistas era que “o direito é aquilo que é bom para o movimento” (67) e os dois interesses absolutamente não coincidiam. Os nazistas não achavam que os alemães fossem uma raça superior, à qual pertenciam, mas sim que deviam ser comandados, como todas as outras nações, por uma raça superior que somente agora estava nascendo (68). A aurora dessa nova raça não eram os alemães, mas a SS (69). O “império mundial germânico”, como disse Himmler, ou o império mundial “ariano”, como teria preferido Hitler, só viria dali a séculos (70). Para o “movimento”, era mais importante demonstrar que era possível fabricar uma raça pela aniquilação de outras “raças” do que vencer uma guerra de objetivos limitados. O que ao observador de fora parece “um exemplo de prodigiosa loucura” é apenas a consequência do primado absoluto do movimento, não apenas em relação ao Estado, mas também no que tange à nação, ao povo e à posição de poder dos próprios líderes. O motivo pelo qual os engenhosos expedientes do governo totalitário, com a sua absoluta e inaudita concentração do poder nas mãos de um só homem, nunca haviam sido experimentados antes é que nenhum tirano comum foi jamais suficientemente louco para desprezar todos os interesses limitados e locais — econômicos, nacionais, humanos, militares — em favor da realidade puramente fictícia de um futuro distante e indefinido.
Uma vez que o totalitarismo no poder permanece fiel aos dogmas originais do movimento, as notáveis semelhanças entre os expedientes organizacionais do movimento e o chamado Estado totalitário não devem causar surpresa. A divisão entre membros do partido e simpatizantes agrupados em organizações de vanguarda, longe de desaparecer, leva à “coordenação” de toda população, organizada agora como simpatizantes. Controla-se o grande aumento de simpatizantes limitando-se a força partidária a uma “classe” privilegiada de alguns milhões, e criando-se um superpartido de várias centenas de milhares, que são as formações de elite. A multiplicação de cargos, a duplicação de funções e a adaptação do relacionamento do simpatizante a essas novas condições significam simplesmente a conservação da estrutura peculiar do movimento, no qual cada camada é a vanguarda da próxima formação mais militante. A máquina estatal vira uma organização de vanguarda de burocratas simpatizantes, cuja função nos negócios nacionais é propagar confiança entre as massas de cidadãos meramente coordenados, e cujas relações exteriores consistem em burlar o mundo exterior não totalitário. O Líder, na dupla capacidade de chefe do Estado e líder do movimento, continua a concentrar em si mesmo um máximo de falta de escrúpulos militante e uma aparência de normalidade capaz de inspirar confiança.
Uma das importantes diferenças entre movimento e Estado totalitários é que o ditador totalitário pode e necessita praticar a arte totalitária de mentir com maior consistência e em maior escala que o líder do movimento. Isso é, em parte, consequência automática da ampliação dos escalões de simpatizantes e, em parte, resultado do fato de que uma declaração desagradável, vinda de um estadista, não é tão fácil de revogar quanto a de um demagógico líder partidário. Para esse fim, Hitler preferiu apelar, sem maiores rodeios, para o velho nacionalismo que ele mesmo denunciara tantas vezes antes da subida ao poder; assumindo a pose de nacionalista violento, afirmando que o nacional-socialismo não era “produto de exportação”, aplacava ao mesmo tempo alemães e não alemães, e insinuava que as ambições nazistas estariam satisfeitas quando fossem cumpridas as tradicionais exigências da política externa alemã nacionalista — a volta dos territórios cedidos no tratado de Versalhes, o Anschluss da Áustria, e a anexação das regiões da Boêmia de língua alemã. Stálin também levou em conta a opinião pública russa e o mundo não russo quando inventou a sua teoria de “socialismo num só país” e culpou Trótski pela ideia da revolução mundial (71).
Mentir ao mundo inteiro de modo sistemático e seguro só é possível sob um regime totalitário, no qual a qualidade fictícia da realidade de cada dia quase dispensa a propaganda. Na fase que antecede o poder, os movimentos não se podem dar ao luxo de esconder a esse ponto os seus verdadeiros objetivos — afinal, o que eles visam é inspirar organizações de massa. Mas, dada a possibilidade de exterminar os judeus como se fossem insetos, isto é, com gás venenoso, já não há necessidade de propagar que os judeus sejam insetos (72); dado o poder de ensinar à nação inteira a história da Revolução Russa sem mencionar o nome de Trótski, já não há mais necessidade de fazer propaganda contra Trótski. Contudo, o emprego dos métodos de realizar os objetivos ideológicos só pode ser “esperado” daqueles que são “absolutamente firmes quanto à ideologia” — tenham eles adquirido essa firmeza nas escolas do Comintern ou nos centros especiais de doutrinação nazista —, mesmo que esses objetivos continuem a ser disseminados pela propaganda. É então que se verifica, invariavelmente, que os meros simpatizantes nunca sabem o que está acontecendo (73). Isso nos leva ao paradoxo de que a “sociedade secreta à luz do dia” nunca é tão conspirativa em sua natureza e em seus métodos como depois de ter sido aceita como membro da comunidade das nações em pleno gozo dos seus direitos. É apenas lógico que Hitler, antes da tomada do poder, resistisse a todas as tentativas de organizar o partido, e até mesmo as organizações de elite, numa base conspirativa; contudo, após 1933, vemo-lo bastante desejoso de ajudar a transformar a SS numa espécie de sociedade secreta (74). Do mesmo modo, os partidos comunistas dirigidos por Moscou preferem o clima da conspiração, mesmo onde se lhes permite existir em completa legalidade (75). Quanto mais visível o poder do totalitarismo, mais secretos são os seus verdadeiros objetivos. Para que se conhecessem os objetivos finais do governo de Hitler, era muito mais sensato confiar nos seus discursos de propaganda e no Mein Kampf do que na oratória do chanceler do Terceiro Reich; da mesma forma como teria sido mais sensato desconfiar das palavras de Stálin acerca do “socialismo num só país”, inventadas com a finalidade passageira de tomar o poder após a morte de Lênin, e levar mais a sério a sua constante hostilidade contra os países democráticos. Os ditadores totalitários mostraram conhecer muito bem o perigo que acarretava a sua afetação de normalidade, isto é, o perigo de uma política verdadeiramente nacionalista ou da verdadeira instalação do socialismo num só país. Procuraram evitar esse risco através de uma discrepância permanente e constante entre as palavras tranquilizadoras e a realidade do domínio, desenvolvendo conscientemente um método de fazerem sempre o oposto do que dizem (76). Stálin levou essa arte do equilíbrio, que exige mais habilidade do que a rotina comum da diplomacia, ao ponto em que toda moderação na política externa ou na linha política do Comintern era quase invariavelmente seguida de expurgos radicais no partido russo. Por certo não foi mera coincidência o fato de que a política da Frente Popular no Ocidente e a redação da Constituição soviética, comparativamente liberal, precederam os julgamentos de Moscou.
As literaturas nazista e bolchevista provam repetidamente que os governos totalitários visam conquistar o globo e trazer todos os países para debaixo do seu jugo. Contudo, não chegam a ser decisivos esses programas ideológicos, herdados dos movimentos pré-totalitários (dos partidos antissemitas supranacionais e dos sonhos pangermânicos de império, no caso dos nazistas, e do conceito internacional do socialismo revolucionário, no caso dos bolchevistas). Decisivo é que os regimes totalitários realmente conduzem a sua política estrangeira na constante pressuposição de que um dia conseguirão atingir o seu objetivo final, e nunca o perdem de vista, por mais remoto que ele pareça ou por mais que se choque com as necessidades do momento. Assim, não consideram país algum como permanentemente estrangeiro, mas, ao contrário, todo país é potencialmente uma parte do seu território. A subida ao poder, o fato de que o mundo fictício do movimento se tornou realidade tangível num determinado país, cria com os outros países um relacionamento semelhante à situação do partido totalitário sob um governo não totalitário: a realidade tangível da ficção, com o apoio de um poder estatal internacionalmente reconhecido, pode ser exportada da mesma forma como o desprezo pelo parlamento pôde ser importado por um parlamento não totalitário. Nesse particular, a “solução” da questão judaica de antes da guerra era o principal produto de exportação da Alemanha nazista: a expulsão dos judeus carreou para outros países uma importante parcela do nazismo; forçando os judeus a deixarem o Reich sem passaportes e sem dinheiro, os nazistas tornaram real a lenda do Judeu Errante e, forçando os judeus à hostilidade contra os países entre os quais eles realizaram a imagem do judeu estrangeiro, criaram o pretexto para que se interessassem apaixonadamente pela política nacional de todos os países (77).
A seriedade com que os nazistas encaravam a ficção conspiratória, segundo a qual seriam os futuros senhores do mundo, veio à luz em 1940, quando — a despeito da necessidade, e apesar da possibilidade demasiado real de converterem à sua causa os povos ocupados da Europa — começaram a sua política de despovoamento dos territórios do Leste, sem atentar para a perda de mão de obra e as sérias consequências militares, e introduziram leis que, com força retroativa, exportaram parte do código penal do Terceiro Reich para os países ocidentais ocupados (78). Não havia maneira mais eficaz de propagar a pretensão de domínio mundial dos nazistas do que punir como alta traição qualquer pronunciamento ou ato contra o Terceiro Reich, não importa quando, onde ou por quem fosse feito. A lei nazista tratava o mundo inteiro como se estivesse potencialmente sob a sua jurisdição, de sorte que o exército de ocupação já não era um instrumento de conquista que levasse consigo a nova lei do conquistador, mas um órgão executivo que fazia cumprir uma lei que tacitamente já existia para todos.
O pressuposto de que a lei nazista estava em vigor além das fronteiras da Alemanha e a punição de cidadão de outros países eram mais do que simples expedientes de opressão. Os regimes totalitários não receiam as implicações lógicas da conquista mundial, mesmo que estas lhes sejam contrárias e em detrimento dos interesses do seu próprio povo. Logicamente, é indiscutível que um plano de conquista mundial acarreta a abolição das diferenças entre a nação conquistadora e os territórios ocupados, bem como da diferença entre a política externa e interna, nas quais se baseiam todas as instituições não totalitárias existentes e todo o intercâmbio internacional. Se o conquistador totalitário age em toda parte como se estivesse em casa, deve pelo mesmo motivo tratar a sua própria população como conquistador estrangeiro (79). E a pura verdade é que o movimento totalitário toma o poder no mesmo sentido em que um conquistador estrangeiro ocupa um país que passa a governar em benefício de terceiros. Os nazistas agiram como conquistadores estrangeiros na Alemanha quando, contra todos os interesses nacionais, tentaram e quase conseguiram transformar a sua derrota numa catástrofe final para todo o povo alemão; e também quando, em caso de vitória, pretendiam estender a sua política de extermínio aos escalões de alemães “racialmente inadequados” (80).
Atitude semelhante parece ter inspirado a política externa soviética após a guerra. O custo da sua agressividade foi proibitivo para o próprio povo soviético, e foi rejeitado até o elevado empréstimo dos Estados Unidos que teria permitido à Rússia reconstruir as áreas devastadas e industrializar o país de modo racional e produtivo. A instalação de governos do Comintern em quase todos os países balcânicos e a ocupação de extensos territórios do Leste não trouxeram qualquer benefício tangível, mas, ao contrário, abalaram ainda mais os recursos da Rússia. Mas essa política certamente serviu aos interesses do movimento bolchevista, que se espalhou por quase metade do mundo habitado.
Como um conquistador estrangeiro, o ditador totalitário vê as riquezas naturais e industriais de cada país, inclusive o seu, como fonte de pilhagem e como meio de preparar o próximo passo da expansão. Uma vez que a economia de sistemática espoliação é levada a cabo para o bem do movimento e não do país, nenhum povo e nenhum território, como beneficiário em potencial, pode constituir ponto de saturação para o processo. O ditador totalitário é como um conquistador estrangeiro que não vem de parte alguma; a sua pilhagem provavelmente não beneficiará ninguém. A distribuição dos despojos não se destina a fortalecer a economia do seu país, mas é apenas uma manobra tática temporária. Para fins econômicos, os regimes totalitários sentem-se tão à vontade em seus países como os gafanhotos. O fato de que o ditador totalitário governa o seu país como um conquistador estrangeiro torna as coisas ainda piores, pois acrescenta à crueldade uma eficácia que as tiranias certamente não alcançam nos territórios ocupados. A guerra de Stálin contra a Ucrânia, no início da década de 30, foi duas vezes mais eficaz que a invasão e a ocupação alemã, terrivelmente sangrentas (81). Esse é o motivo pelo qual o totalitarismo prefere o governo de quislings ao governo direto, a despeito dos riscos óbvios de tais regimes.
O problema com os regimes totalitários não é que eles joguem a política do poder de um modo especialmente cruel, mas que atrás de suas políticas esconde-se um conceito de poder inteiramente novo e sem precedentes, assim como atrás de sua Realpolitik jaz um conceito de realidade inteiramente novo e sem precedentes. Supremo desprezo pelas consequências imediatas e não a falta de escrúpulos; desarraigamento e desprezo pelos interesses nacionais e não o nacionalismo; desdém em relação aos motivos utilitários e não a promoção egoísta do seu próprio interesse; “idealismo”, ou seja, a fé inabalável num mundo ideológico fictício e não o desejo de poder — tudo isso introduziu na política internacional um fator novo e mais perturbador do que teria resultado da mera agressão.
O poder, como concebido pelo totalitarismo, reside exclusivamente na força produzida pela organização. Do mesmo modo como Stálin via cada instituição, qualquer que fosse a sua função verdadeira, apenas como “a correia de transmissão que liga o partido ao povo” (82), e acreditava honestamente que os tesouros mais preciosos da União Soviética não eram as riquezas do solo nem a capacidade produtiva da sua enorme população, mas os “quadros” do partido (83) (ou seja, a polícia), também Hitler, já em 1929, via a “grandeza” do movimento no fato de que 60 mil homens “pareciam quase uma só unidade, que realmente esses membros são uniformes não apenas nas ideias, mas até a expressão facial é quase a mesma. Vejam esses olhos sorridentes, esse entusiasmo fanático, e ficarão sabendo […] como 100 mil homens num movimento podem tornar-se um só” (84). Para o homem ocidental, o poder tem certa conexão com as posses, a riqueza, os tesouros e os bens terrenos; para o homem totalitário, essa conexão desaparece numa espécie de mecanismo desmaterializado cujo movimento gera poder como a fricção gera eletricidade. A divisão totalitária entre as nações-que-têm e as-que-não-têm é mais do que um artifício demagógico; os que a fazem estão realmente convencidos de que a força das posses materiais é desprezível e apenas estorva o caminho da evolução do poder organizacional. Para Stálin, o constante crescimento e desenvolvimento dos escalões policiais era incomparavelmente mais importante que o petróleo de Baku, o carvão e os minérios dos Urais, os celeiros da Ucrânia ou os tesouros potenciais da Sibéria — enfim, o desenvolvimento de todo o arsenal de poder da Rússia. A mesma mentalidade fez com que Hitler sacrificasse toda a Alemanha aos quadros da SS; para ele, a guerra não estava perdida quando cidades alemãs tombaram em ruínas e a capacidade industrial havia sido destruída, mas somente quando soube que já não podia confiar nas tropas da SS (85). Para um homem que acreditava na onipotência da organização contra todos os fatores meramente materiais, militares ou econômicos, e que, além disso, calculava o futuro triunfo de sua obra em termos de séculos, a derrota não era a catástrofe militar nem a ameaça de fome para a população, mas apenas a destruição das organizações de elite, que deveriam levar a conspiração de domínio mundial ao seu fim último.
A ausência de estrutura no Estado totalitário, o seu desprezo pelos interesses materiais, a sua independência da motivação do lucro e as suas atitudes não utilitárias em geral contribuíram, mais que qualquer outro elemento, para tornar quase imprevisível a política contemporânea. O mundo não totalitário é incapaz de compreender uma mentalidade que funciona independentemente de toda ação calculável em termos de homens e de bens materiais, e que é completamente indiferente ao interesse nacional e ao bem-estar do povo; e isso o coloca num curioso dilema de julgamento. Aqueles que compreendem corretamente a terrível eficiência da organização e da polícia totalitárias tendem a subestimar a força material dos países totalitários, enquanto aqueles que compreendem a esbanjadora incompetência da economia totalitária tendem a subestimar o potencial de poder que pode ser criado à revelia de todos os fatores materiais.
3. 2 A POLÍCIA SECRETA
Até hoje conhecemos apenas duas formas autênticas de domínio totalitário: a ditadura do nacional-socialismo, a partir de 1938, e a ditadura bolchevista, a partir de 1930. Essas formas de domínio diferem basicamente de outros tipos de governo ditatorial, despótico ou tirânico; e embora tenham emanado, com certa continuidade, de ditaduras partidárias, suas características essencialmente totalitárias são novas e não podem resultar de sistemas unipartidários. O objetivo dos sistemas unipartidários não é apenas apoderar-se da administração do governo, mas, sim, através do preenchimento de todos os postos com membros do partido, atingir uma completa amálgama de Estado e partido, de sorte que, após a tomada do poder, o partido se torna uma espécie de organização de propaganda do governo. O sistema é “total” somente no sentido negativo, isto é, o partido governante não tolera outros partidos nem oposição, nem admite a liberdade de opinião política. Uma vez no poder, a ditadura partidária deixa intacta a antiga relação de poder entre o Estado e o partido; o governo e o Exército têm o mesmo poder de antes, e a “revolução” consiste apenas no fato de que todas as posições governamentais são agora ocupadas por membros do partido. Em todos esses casos, o poder do partido reside num monopólio garantido pelo Estado, e o partido já não possui um centro de poder próprio.
De natureza consideravelmente mais radical é a revolução iniciada pelos movimentos totalitários após a tomada do poder. Desde o começo, procuram conscientemente manter todas as diferenças essenciais entre o Estado e o movimento e evitar que as instituições “revolucionárias” do movimento sejam absorvidas pelo governo (86). O problema de apoderar-se da máquina estatal sem se fundir a ela é resolvido permitindo-se que ascendam na hierarquia do Estado somente aqueles membros do partido cuja importância seja secundária para o movimento. Todo o poder verdadeiro é investido nas instituições do movimento, fora da estrutura do Estado e do Exército. Todas as decisões são tomadas dentro do movimento, que permanece como o centro de ação do país. Os serviços públicos oficiais muitas vezes nem são informados do que está acontecendo, e aqueles membros do partido que têm a ambição de subir ao nível de ministros pagam sempre por esse desejo “burguês” com a perda da influência sobre o movimento e até da confiança dos líderes.
O totalitarismo no poder usa o Estado como fachada externa para representar o país perante o mundo não totalitário. Como tal, o Estado totalitário é o herdeiro lógico do movimento totalitário, do qual deriva a sua estrutura organizacional. Os governantes totalitários tratam os governos não totalitários da mesma forma como tratavam os partidos parlamentares ou as facções intrapartidárias antes de terem tomado o poder e, num cenário maior porque internacional, têm de encarar mais uma vez o duplo problema de proteger o mundo fictício do movimento (ou do país totalitário) contra o impacto da realidade, e de manter a aparência de normalidade e de bom senso perante o mundo normal de fora.
Acima do Estado e por trás das fachadas do poder ostensivo, num labirinto de cargos multiplicados, por baixo de todas as transferências de autoridade e em meio a um caso de ineficiência, está o núcleo do poder do país, os supereficientes e supercompetentes serviços da polícia secreta (86a). A importância da polícia como único órgão do poder e o desprezo em relação ao poder do Exército, que caracterizam os regimes totalitários, podem ainda ser parcialmente explicados pela aspiração totalitária de domínio mundial e pela consciente abolição da diferença entre um país estrangeiro e o país de origem, entre assuntos externos e assuntos domésticos. As forças militares, treinadas para lutar contra um agressor estrangeiro, sempre constituíram instrumento duvidoso para fins de guerra civil; mesmo em condições totalitárias, sentem dificuldades em olhar o próprio povo com os olhos do conquistador estrangeiro (87). Mais importante a esse respeito, porém, é que os seus valores se tornam duvidosos mesmo em tempo de guerra. Como o governante totalitário conduz a polícia no pressuposto de que haverá um governo mundial, trata as vítimas da sua agressão como se fossem rebeldes, culpados de alta traição e, consequentemente, prefere dominar os territórios ocupados por meio da polícia, e não de forças militares.
Mesmo antes de galgar o poder, o movimento dispõe de polícia secreta e de serviço de espionagem com ramificações em vários países. Mais tarde, os seus agentes recebem mais dinheiro e autoridade que o serviço de espionagem militar convencional, e tornam-se muitas vezes chefes secretos de embaixadas e de consulados no exterior (88). São encarregados principalmente de formar quinta-colunas, dirigir as ramificações do movimento, influenciar a política doméstica dos respectivos países e prepará-los de modo geral para o dia em que o governante totalitário — após a derrubada do governo ou uma vitória militar — possa abertamente sentir-se em casa. Em outras palavras, as ramificações internacionais da polícia secreta transformam a política ostensivamente externa do Estado totalitário no assunto potencialmente doméstico do movimento totalitário.
Contudo, essas funções, que a polícia secreta exerce para preparar a utopia totalitária do futuro domínio global, são secundárias em relação àquelas exigidas para pôr em prática, no presente, a ficção totalitária em determinado país. O papel dominante da polícia secreta na política doméstica dos países totalitários muito contribuiu para que fosse errônea a concepção comum do totalitarismo. Todos os despotismos dependem grandemente de serviços secretos e sentem-se muito mais ameaçados por seu próprio povo do que por qualquer povo estrangeiro. Contudo, essa analogia entre o totalitarismo e o despotismo só se verifica nos primeiros estágios do governo totalitário, quando ainda existe oposição política. Nesse ponto como em outros, o totalitarismo explora e apoia conscientemente as noções erradas não totalitárias, por mais desfavoráveis que sejam. Himmler, no famoso discurso perante o estado-maior do Reichswehr em 1937, assumiu o papel de um tirano comum quando explicou a constante expansão das forças policiais pela suposição de que a Alemanha seria um campo de batalha interno em caso de guerra (89). Do mesmo modo e quase ao mesmo tempo, Stálin convenceu a velha guarda bolchevista, de cujas “confissões” precisaria, de uma ameaça de guerra contra a União Soviética e, consequentemente, de uma emergência na qual o país devia permanecer unido, mesmo sob um despotismo. O aspecto mais surpreendente dessas declarações é que ambas foram feitas depois que toda oposição política havia sido extinta, e que os serviços secretos estavam sendo ampliados quando na verdade não havia mais oponentes a vigiar. Quando veio a guerra, Himmler nem precisou nem usou das tropas da SS na própria Alemanha, a não ser para o funcionamento dos campos de concentração e o policiamento dos trabalhadores estrangeiros escravizados; o grosso da SS armada serviu na frente oriental, onde foi empregada em “tarefas especiais” — geralmente homicídios em massa — e para a execução de normas que frequentemente colidiam com a hierarquia militar e a hierarquia nazista civil. Tal como a polícia secreta da União Soviética, as formações da SS geralmente chegavam depois que as forças militares haviam pacificado o território conquistado e eliminado a oposição política aberta.
Nos primeiros estágios do regime totalitário, porém, a polícia secreta e as formações de elite do partido ainda desempenham um papel semelhante àquele que as caracteriza em outras formas de ditadura e nos antigos regimes de terror; e a excessiva crueldade dos seus métodos não tem paralelos na história dos países ocidentais modernos. O primeiro estágio, de desencavar os inimigos secretos e caçar os antigos oponentes, geralmente coincide com a arregimentação de toda a população em organizações de vanguarda e a reeducação dos velhos membros do partido para serviços voluntários de espionagem, de sorte que os escalões especialmente treinados da polícia não precisam se preocupar com as duvidosas simpatias dos simpatizantes arregimentados. É durante esse estágio que um vizinho gradualmente se torna mais perigoso para os que nutrem “pensamentos perigosos” que os agentes policiais oficialmente nomeados. O fim do primeiro estágio advém com a liquidação da resistência aberta e secreta sob qualquer forma organizada; isso ocorreu por volta de 1935 na Alemanha e em aproximadamente 1930 na União Soviética.
Só depois do completo extermínio dos reais inimigos e após o início da caça aos “inimigos objetivos” é que o terror se torna o verdadeiro conteúdo dos regimes totalitários. A pretexto de instalar o socialismo num país, ou de usar certo território como campo de prova para uma experiência revolucionária, ou de realizar a Volksgemeinschaft, a segunda pretensão do totalitarismo — a do domínio total — é posta em prática. E, embora teoricamente o domínio total seja possível apenas nas condições de domínio mundial, os regimes totalitários já demonstraram que essa parte da utopia totalitária pode ser realizada quase com perfeição, porque temporariamente independe de derrota ou vitória. Assim, Hitler podia exultar, mesmo em meio a reveses militares, com o extermínio dos judeus e a criação das fábricas da morte em massa; qualquer que fosse o resultado final, nunca teria sido possível, sem a guerra, “queimar as pontes” e realizar alguns dos objetivos do movimento totalitário (90).
As formações de elite do movimento nazista e os “quadros partidários” do movimento bolchevista são úteis para fins de domínio total e não para a segurança do regime no poder. Da mesma forma como a pretensão totalitária de domínio mundial apenas aparentemente equivale à expansão imperialista, também a pretensão de domínio total apenas parece familiar a quem estuda o despotismo. Se as diferenças principais entre o totalitarismo e a expansão imperialista estão no fato de que o primeiro não distingue entre o país de origem e um país estrangeiro, então a principal diferença entre a polícia secreta despótica e a totalitária é que a última não se dedica à caça de pensamentos secretos nem emprega o velho método da provocação peculiar dos serviços secretos (91).
Uma vez que a polícia secreta totalitária inicia a sua carreira após a pacificação do país, qualquer observador de fora julga-a inteiramente desnecessária, ou então, pelo contrário, supõe erradamente que de fato exista alguma resistência secreta (92). A superfluidade dos serviços secretos não é novidade; sempre foram atormentados pela necessidade de demonstrar a sua utilidade e de conservar-se no emprego depois de cumprida a tarefa original. Os métodos que usam para esse fim dificultam o estudo da história das revoluções. Parece, por exemplo, que não houve um único ato contra o governo de Luís Napoleão que não tivesse sido inspirado pela própria polícia (93). Do mesmo modo, o papel dos agentes secretos infiltrados em todos os partidos revolucionários da Rússia czarista sugere fortemente que, sem a “inspiração” dos seus atos provocadores, a marcha do movimento revolucionário russo teria tido muito menos sucesso (94).
Esse papel duvidoso da provocação pode ter sido um dos motivos pelos quais os governantes totalitários o abandonaram. Além disso, a provocação só é claramente necessária quando se admite que a suspeita não é suficiente para que alguém seja preso e punido. Naturalmente, nenhum dos líderes totalitários jamais sonhou com uma situação em que tivesse de recorrer à provocação para apanhar alguém que considerasse inimigo. Mais importante que essas considerações técnicas é o fato de que o totalitarismo define os seus inimigos ideologicamente antes de tomar o poder, de sorte que não há necessidade de informações policiais para que se estabeleçam categorias de “suspeitos”. Assim, os judeus da Alemanha nazista ou os descendentes das antigas classes governantes da União Soviética não estavam realmente sob suspeita de ação hostil alguma; tinham sido declarados inimigos “objetivos” do regime em decorrência da sua ideologia, e isso bastava para serem eliminados.
A principal diferença entre a polícia secreta despótica e a totalitária reside na distinção entre inimigo “suspeito” e inimigo “objetivo”. Este último é definido pela política do governo e não por demonstrar o desejo de derrubar o sistema (95). Nunca é um indivíduo cujos pensamentos perigosos tenham de ser provocados ou cujo passado justifique suspeita, mas é um “portador de tendências”, como o portador de uma doença (96). Na prática, o governante totalitário age como alguém que persistentemente insulta outra pessoa até que todo o mundo saiba que ela é sua inimiga, a fim de que possa — com certa plausibilidade — matá-la em autodefesa. É, sem dúvida, um método meio grosseiro, mas funciona, como o sabe quem quer que tenha visto como certos carreiristas bem-sucedidos eliminam os concorrentes.
A introdução da noção de “inimigo objetivo” é muito mais decisiva para o funcionamento dos regimes totalitários que a definição ideológica das respectivas categorias. Se fosse apenas uma questão de odiar os judeus ou os burgueses, os regimes totalitários poderiam, após cometerem um crime gigantesco, como que retornar às regras normais de vida e de governo. Mas sabemos que acontece exatamente o oposto. A categoria dos inimigos objetivos sobrevive aos primeiros inimigos do movimento, ideologicamente determinados; e novos inimigos objetivos são encontrados segundo as circunstâncias: os nazistas, prevendo o fim do extermínio dos judeus, já haviam tomado as providências preliminares necessárias para a liquidação do povo polonês, enquanto Hitler chegou a planejar a dizimação de certas categorias de alemães (97); os bolchevistas, tendo começado com os descendentes das antigas classes governamentais, dirigiram todo o seu terror contra os kulaks (no começo da década de 30), que por sua vez foram seguidos pelos russos de origem polonesa (entre 1936 e 1938), os tártaros e os alemães do Volga (durante a Segunda Guerra), os antigos prisioneiros de guerra e unidades das forças de ocupação do Exército Vermelho (depois da guerra), e finalmente a população judaica tachada de cosmopolita (depois do estabelecimento de um Estado judaico). A escolha dessas categorias nunca é inteiramente arbitrária; uma vez que são divulgadas e usadas para fins de propaganda do movimento no exterior, devem parecer plausíveis como possíveis inimigos; a escolha de uma determinada categoria pode até ser motivada por certas necessidades de propaganda do movimento em geral — como, por exemplo, o repentino surgimento do antissemitismo governamental na União Soviética, inteiramente sem precedentes, cuja finalidade pode ter sido a de angariar simpatias para a União Soviética nos países satélites europeus. Os julgamentos ostensivos, que exigem confissões subjetivas de culpa por parte de inimigos “objetivamente” identificados têm a mesma finalidade; podem ser melhor encenados com aqueles que receberam doutrinação totalitária, pois esta lhes permite compreender “subjetivamente” a sua própria nocividade “objetiva” e confessar “pelo bem da causa” (98). O conceito de “oponente objetivo”, cuja identidade muda de acordo com as circunstâncias do momento — de sorte que, assim que uma categoria é liquidada, pode declarar-se guerra à outra —, corresponde exatamente à situação de fato reiterada muitas vezes pelos governantes totalitários, isto é, que o seu regime não é um governo no sentido tradicional, mas um movimento, cuja marcha constantemente esbarra contra novos obstáculos que têm de ser eliminados. Se é que se pode falar de algum raciocínio legal dentro do sistema totalitário, o “oponente objetivo” é a sua ideia central.
Intimamente ligada a essa transformação do suspeito em inimigo objetivo é a nova posição da polícia secreta no Estado totalitário. Os serviços secretos já foram chamados corretamente de um Estado dentro do Estado, e isso não se aplica apenas aos despotismos, mas também aos governos constitucionais ou semiconstitucionais. A simples posse de informes secretos sempre lhes deu nítida superioridade sobre todas as outras agências do serviço público, e constituiu franca ameaça aos membros do governo (99). A polícia totalitária, ao contrário, é totalmente sujeita ao desejo do Líder, que é o único a decidir quem será o próximo inimigo em potencial e, como o fez Stálin, pode dizer até quais os escalões da própria polícia secreta devem ser liquidados. Como a provocação não é mais permitida, a polícia perde o único meio ao seu dispor de perpetuar-se independentemente do governo, e depende inteiramente das autoridades superiores para a manutenção do seu cargo. Como o Exército num Estado não totalitário, a polícia nos países totalitários apenas executa as normas políticas, e já não tem nenhuma das prerrogativas que tinha nas burocracias despóticas (100).
O dever da polícia totalitária não é descobrir crimes, mas estar disponível quando o governo decide aprisionar ou liquidar certa categoria da população. Sua principal distinção política é que somente ela confidencia com a mais alta autoridade e sabe que linha política será adotada. Isso não se aplica somente a questões de alta política, como a liquidação de toda uma classe ou todo um grupo étnico (só os oficiais da GPU conheciam o verdadeiro objetivo do governo soviético no início da década de 30, como só as formações da SS sabiam que os judeus iriam ser exterminados no início da década de 40); o que caracteriza a vida diária nas condições do regime totalitário é que somente os agentes da NKVD numa indústria são informados do que pretende Moscou quando, por exemplo, ordena que se intensifique a produção de canos — se realmente deseja mais canos, ou a ruína do diretor da fábrica, ou a liquidação de toda a gerência, ou a eliminação da fábrica, ou, finalmente, a repetição dessa ordem em todo o país para que um novo expurgo possa começar.
Um dos motivos da duplicação dos serviços secretos, cujos agentes se desconhecem entre si, é que o domínio total precisa da mais ampla flexibilidade: para usar o nosso exemplo, ao pedir canos, Moscou pode ainda não saber se deseja canos — coisa que sempre é necessária — ou se visa a um expurgo. A multiplicação dos serviços secretos possibilita mudanças de última hora, de sorte que um setor governamental pode estar planejando condecorar o diretor da fábrica com a Ordem de Lênin enquanto outro toma providências para a sua prisão. A eficiência da polícia reside no fato de que essas tarefas contraditórias podem ser planejadas simultaneamente.
No regime totalitário, como em outros regimes, a polícia secreta tem o monopólio de certas informações vitais. Mas há uma importante diferença quanto ao tipo de conhecimento que só a polícia pode ter: já não lhe interessa saber o que se passa na cabeça das futuras vítimas, mas é a depositária dos maiores segredos do Estado. Isso significa automaticamente uma grande melhoria de posição e prestígio, embora seja acompanhada da perda do verdadeiro poder. Os serviços secretos já não sabem de coisa alguma que o Líder não saiba melhor que eles. Em termos de poder, a polícia desceu à categoria do carrasco.
Do ponto de vista legal, a substituição totalitária da ofensa presumível pelo crime possível é ainda mais interessante que a transformação do inimigo suspeito em inimigo objetivo. O crime possível não é mais subjetivo do que o inimigo objetivo. Enquanto o suspeito é preso porque se presume que ele é capaz de cometer um crime que mais ou menos se ajusta à sua personalidade (ou ao que se suspeita corresponder à sua personalidade) (101), a versão totalitária do crime possível baseia-se na previsão lógica de fatos objetivos. Os Julgamentos de Moscou da velha guarda bolchevista e dos chefes do Exército Vermelho foram exemplos clássicos de punição de crimes possíveis. Das acusações fantásticas e falsificadas, depreende-se o seguinte cálculo lógico: os acontecimentos na União Soviética podiam levar a uma crise, uma crise podia levar à derrubada da ditadura de Stálin, o que poderia enfraquecer o poderio militar do país e possivelmente gerar uma situação em que o novo governo poderia ter de assinar uma trégua ou até uma aliança com Hitler (102). Consequentemente, Stálin passou a denunciar um complô para derrubar o governo e uma conspiração em que Hitler estava envolvido. Contra essas possibilidades “objetivas”, embora inteiramente improváveis, só existiam fatores “subjetivos”, como a fidelidade dos acusados, sua fadiga, sua incapacidade de compreender o que estava acontecendo, sua firme convicção de que, sem Stálin, tudo estaria perdido, seu sincero ódio ao fascismo — isto é, um número de detalhes reais que, naturalmente, não tinham a consistência do crime fictício, lógico e possível. O pressuposto central do totalitarismo — de que tudo é possível — leva assim, através da constante eliminação de restrições reais, à consequência absurda e terrível de que todo crime que o governante possa conceber como viável deve ser punido, tenha sido cometido ou não. O crime possível, como o inimigo objetivo, está, naturalmente, fora da alçada da polícia, que não pode descobri-lo, nem inventá-lo, nem provocá-lo. Mais uma vez, os serviços secretos dependem inteiramente das autoridades políticas. Sua independência como um Estado dentro do Estado já não existe.
Apenas num ponto a polícia secreta totalitária ainda lembra os serviços secretos dos países não totalitários. A polícia secreta tradicionalmente tirava proveito das vítimas, suplementando o orçamento oficial autorizado pelo Estado por meio de certas fontes não ortodoxas, associando-se simplesmente a atividades que deveria combater, como o jogo e a prostituição (103). Esses métodos ilegais de autofinanciamento, que iam desde a cordial aceitação de subornos até a franca chantagem, muito contribuíram para que os serviços secretos se libertassem das autoridades públicas, fortalecendo a sua posição como um Estado dentro do Estado. É curioso verificar que o financiamento das autoridades policiais com a renda proveniente de suas vítimas sobreviveu a todas as outras mudanças. Na Rússia soviética, a NKVD depende quase exclusivamente da exploração do trabalho escravo que, na verdade, parece não produzir outro lucro nem servir economicamente para outra coisa senão para financiar o enorme aparelho secreto (104). No início Himmler financiou suas tropas SS, constituídas ainda de quadros de oficiais da polícia secreta nazista, com o confisco de propriedades judaicas; depois, fez um acordo com Darré, o ministro da Agricultura, segundo o qual reverteriam a Himmler os lucros de Darré — várias centenas de milhões de marcos — ganhos anualmente com a compra de produtos agrícolas a baixo preço no exterior e sua venda a preços prefixados na Alemanha (105). Após o início da guerra, essa fonte de renda “regular” naturalmente acabou; Albert Speer, o sucessor de Todt e o maior empregador de mão de obra na Alemanha após 1942, propôs a Himmler um arranjo semelhante em 1942: se Himmler concordasse em lhe entregar os trabalhadores escravos importados, até então colocados sob a jurisdição da SS, a organização de Speer daria à SS certa porcentagem dos lucros (106). A essas fontes de renda mais ou menos regulares, Himmler acrescentava os velhos métodos de chantagem dos serviços secretos em tempos de crise financeira: em cada comunidade, as unidades da SS fundavam grupos de “Amigos da SS” que tinham de prover “voluntariamente” os fundos para as necessidades dos homens da SS local (107). É digno de nota o fato de que, em suas várias operações financeiras, a polícia secreta nazista não explorava os prisioneiros. Exceto nos últimos anos de guerra, quando o uso do material humano nos campos de concentração já não era determinado apenas por Himmler, o trabalho nos campos “não tinha outra finalidade racional a não ser a de aumentar as provações e a tortura dos infelizes prisioneiros” (108).
Contudo, essas irregularidades financeiras são os únicos — e não muito importantes – vestígios da tradição da polícia secreta, e foram possíveis devido ao desprezo geral dos regimes totalitários pelos assuntos econômicos e financeiros. Assim, certos métodos que seriam ilegais em condições normais e caracterizariam a diferença entre a polícia secreta e outros departamentos mais respeitáveis da administração não significam que estejamos lidando com um departamento independente, fora do controle de outras autoridades, vivendo numa atmosfera de irregularidade, irrespeitabilidade e insegurança. Pelo contrário, a posição da polícia secreta estabiliza-se completamente no regime totalitário, e os seus serviços são inteiramente integrados na administração. A organização não só não está fora do âmbito da lei, mas ela é a própria encarnação da lei e a sua respeitabilidade está acima de qualquer suspeita. Já não organiza homicídios por conta própria, já não provoca ofensas contra o Estado e a sociedade e age severamente contra toda forma de suborno, chantagem ou lucros financeiros irregulares. A lição de moral, aliada a ameaças bem claras, que Himmler se permitiu transmitir aos seus homens em plena guerra — “Tínhamos o direito moral […] de exterminar esse povo [judeu] que nos queria liquidar, mas não temos o direito de enriquecer seja de que modo for, com um casaco de peles, um relógio, um único marco, ou um cigarro” (109) — soa como algo que procuraríamos em vão nos anais da polícia secreta. Se ela ainda se preocupa com “pensamentos perigosos”, os suspeitos não sabem quais são esses pensamentos; a arregimentação de toda a vida intelectual e artística exige uma constante recriação e revisão de critérios, naturalmente acompanhada de repetidas eliminações de intelectuais, cujos “pensamentos perigosos” muitas vezes não passam de ideias que ainda ontem eram perfeitamente ortodoxas. Portanto, enquanto a sua função policial, na acepção comum do termo, se tornou supérflua, a função econômica da polícia secreta, que às vezes se julga haver substituído a primeira, é ainda mais dúbia. A NKVD reúne periodicamente uma porcentagem da população soviética e despacha-a para campos que são conhecidos pela denominação errônea e lisonjeira de campos de trabalho forçado (110), cuja produção é infinitamente menor que a do trabalho comum na Rússia e mal chega a cobrir as despesas com o aparato policial.
Nem dúbia nem supérflua é a função política da polícia secreta, o “mais bem organizado e mais eficiente” dos departamentos do governo (111), no sistema de poder do regime totalitário. É ela o verdadeiro ramo executivo do governo, através do qual todas as ordens são transmitidas. Através da rede de agentes secretos, o governante totalitário cria uma correia transmissora diretamente executiva que, em contraposição com a estrutura de camadas superpostas da hierarquia ostensiva, é completamente separada e isolada de todas as outras instituições (112). Nesse sentido, os agentes da polícia secreta são a classe francamente governante nos países totalitários, e as suas normas e escala de valores permeiam toda a textura da sociedade totalitária.
Assim, não é muito surpreendente o fato de que certas qualidades peculiares da polícia secreta correspondem às qualidades gerais da sociedade totalitária, sem serem idiossincrasias peculiares da polícia secreta totalitária. Nas condições do regime totalitário, a categoria dos suspeitos compreende toda a população; todo pensamento que se desvia da linha oficialmente prescrita e permanentemente mutável já é suspeito, não importa o campo de atividade humana em que ocorra. Simplesmente em virtude da sua capacidade de pensar, os seres humanos são suspeitos por definição, e essa suspeita não pode ser evitada pela conduta exemplar, pois a capacidade humana de pensar é também a capacidade de mudar de ideia. Além disso, como é impossível conhecer, fora de qualquer dúvida, a mente de uma pessoa — e a tortura, nesse contexto, é apenas a tentativa desesperada e fútil de tentar-se o que não se pode conseguir —, a suspeita já não pode ser afastada quando não existe nem a comunhão de valores nem a previsibilidade do interesse pessoal como realidades sociais (em contraste com as realidades meramente psicológicas). A suspeita mútua, portanto, impregna todas as relações sociais nos países totalitários e cria uma atmosfera geral mesmo fora do campo de ação especial da polícia secreta.
Esta parece ser a forma mais eficiente – e mais cruel – de exterminar capital social.
Nos regimes totalitários, a provocação, que antes era apenas a especialidade do agente secreto, torna-se um método de lidar com os vizinhos que é forçosamente seguido por todos, quer queiram, quer não. Todo mundo, de certa forma, é o agent provocateur de todo mundo; pois é claro que cada um se arrogará em agent provocateur se jamais uma troca comum e amistosa de ‘‘pensamentos perigosos” (ou daquilo que, nesse meio-tempo, viesse a se tornar pensamento perigoso) chegar ao conhecimento das autoridades. A colaboração da população na denúncia de oponentes políticos e no serviço voluntário da delação certamente não é algo sem precedentes mas, nos países totalitários, é tão bem organizada que torna quase supérfluo o trabalho de especialistas. Num sistema de espionagem ubíqua, onde todos podem ser agentes policiais e onde cada indivíduo se sente sob constante vigilância; e, além disso, em circunstâncias nas quais as carreiras pessoais são extremamente inseguras e onde as mais espetaculares ascensões e quedas são ocorrências de todos os dias, cada palavra se torna equívoca e sujeita a “interpretações” retrospectivas.
O exemplo mais gritante de como os métodos e critérios da polícia secreta impregnam a sociedade totalitária é a questão da carreira pessoal. O agente duplo dos regimes não totalitários servia à causa que de fato combatia quase tanto quanto as autoridades, e às vezes mais do que elas. Nutria muitas vezes uma espécie de dupla ambição; subir nos escalões dos partidos revolucionários tanto quanto nos escalões dos serviços secretos. Para conquistar a promoção em ambos os campos, bastava que adotasse certos expedientes que, numa sociedade normal, só existem nos sonhos secretos do pequeno funcionário que depende da antiguidade para ser promovido: através das suas conexões com a polícia, podia sem dúvida eliminar do partido os rivais e os superiores e, por meio de suas conexões com os revolucionários, tinha pelo menos uma chance de se descartar do seu chefe na polícia (113). Se considerarmos as condições da atual sociedade russa, veremos que a semelhança com esses métodos é surpreendente. Não apenas quase todos os oficiais superiores devem a sua posição a expurgos que removeram os seus predecessores, mas a promoção em todos os campos é acelerada dessa forma. Periodicamente, um expurgo de dimensões nacionais abre o caminho para a nova geração, recém-formada e com fome de empregos. O próprio governo criou as condições para o progresso que o agente policial do passado teve de inventar sozinho.
Esse rodízio regular e violento de toda a gigantesca máquina administrativa, embora evite que a competência se desenvolva, tem muitas vantagens: assegura a relativa juventude dos oficiais e impede uma estabilização de condições que, pelo menos em tempos de paz, é cheia de perigos para o governo totalitário. Eliminando a antiguidade e o mérito, o governo impede que nasçam as lealdades que geralmente ligam os membros mais jovens da equipe aos mais antigos, de cuja opinião e boa vontade depende o seu progresso; elimina de uma vez por todas os perigos do desemprego e assegura a todos uma ocupação compatível com a sua educação. Assim, em 1939, depois de terminado o gigantesco expurgo na União Soviética, Stálin podia observar, com grande satisfação, que “o Partido pôde promover para posições de comando nos negócios do Estado ou do Partido mais de 500 mil jovens bolchevistas” (114). A humilhação implícita no fato de dever o emprego à injusta eliminação do predecessor tem o mesmo efeito desmoralizante que a eliminação dos judeus teve nas profissões alemãs: cada pessoa que tenha uma ocupação se torna cúmplice consciente dos crimes do governo e seu beneficiário, voluntário ou não, com o resultado de que, quanto mais sensível for o indivíduo, mais ardentemente defenderá o regime. Em outras palavras, esse sistema é o resultado lógico do princípio do Líder em suas mais amplas implicações, e a melhor garantia de lealdade, pois torna cada geração dependente, para viver, daquela linha política do Líder que tenha originado o expurgo criador de empregos. Além disso, promove a identidade dos interesses públicos e privados, da qual os defensores da União Soviética tanto se orgulhavam (ou, na versão nazista, a abolição da esfera da vida privada), pois todo indivíduo de alguma importância deve toda a sua existência ao interesse político do regime; e, quando essa identidade factual se rompe e o próximo expurgo o elimina do cargo, o regime cuida para que ele desapareça do mundo dos vivos. De modo não muito diferente, o agente duplo identificava-se com a causa da revolução (sem a qual perderia o emprego) e não apenas com a polícia secreta; também no seu caso, uma ascensão espetacular só poderia terminar em morte anônima, pois era muito difícil que o duplo jogo durasse para sempre. O governo totalitário, ao estabelecer para todas as carreiras aquelas condições de promoção que antes só haviam prevalecido entre párias sociais, conseguiu levar a cabo uma das mudanças de maior alcance na psicologia social. A psicologia do agente duplo, que estava disposto a pagar o preço de uma vida curta pela nobre existência de alguns anos no topo, tornou-se, em questões pessoais, a base do pensamento de toda a geração que se seguiu à revolução na Rússia, e em grau menor, porém ainda mais perigoso, na Alemanha.
De certo modo, trata-se de transformar toda a população em polícia política.
É nessa sociedade, impregnada pelas normas e vivendo pelos métodos que antes eram o monopólio da polícia secreta, que funciona a polícia secreta totalitária. Somente nos estágios iniciais, quando a luta pelo poder ainda está sendo travada, as suas vítimas são pessoas suspeitas de oposição. Depois disso, ela mergulha em sua carreira totalitária com a perseguição dos inimigos objetivos, que podem ser os judeus ou os poloneses (como no caso dos nazistas) ou os chamados “contrarrevolucionários” — uma acusação que “na Rússia soviética […] se faz […] antes que surja qualquer pergunta quanto [à] conduta [do acusado]” — ou pessoas que, em algum momento da vida, tiveram uma loja ou casa, ou que “tinham pais ou avós que tinham essas coisas” (115), ou que pertenceram a uma das forças de ocupação do Exército Vermelho, ou eram de origem polonesa. Somente nesse último estágio inteiramente totalitário os conceitos de inimigo objetivo e do crime logicamente possível são abandonados; agora as vítimas são escolhidas inteiramente ao acaso e, sem mesmo terem sido acusadas, são declaradas indignas de viver. Essa nova categoria de “indesejáveis” pode consistir, como no caso dos nazistas, em doentes mentais ou portadores de moléstias do pulmão ou do coração, ou, na União Soviética, naqueles que simplesmente foram incluídos naquela porcentagem, variável de uma província para outra, cuja deportação foi decretada.
Essa consistente arbitrariedade nega a liberdade humana de modo muito mais eficaz que qualquer tirania jamais foi capaz de negar. Numa tirania, era preciso ser pelo menos um inimigo do regime para ser punido por ele. A liberdade de opinião ainda existia para aqueles que tinham a coragem de arriscar o pescoço. Teoricamente, ainda se pode fazer oposição também nos regimes totalitários; mas essa liberdade é quase anulada quando a prática de um ato voluntário apenas acarreta uma “punição” que todos, de uma forma ou de outra, têm de sofrer. No totalitarismo, a liberdade não apenas se reduz à sua última e aparentemente indestrutível garantia, que é a possibilidade do suicídio, mas perde toda a importância porque as consequências do seu exercício são compartilhadas por pessoas completamente inocentes. Se Hitler tivesse tido tempo para pôr em prática o seu sonhado Projeto de Lei Geral da Saúde Alemã, o homem que padecia de uma doença do pulmão teria sofrido o mesmo destino que, nos primeiros anos do regime nazista, um comunista ou, nos últimos anos, um judeu. Do mesmo modo, o oponente do regime na Rússia, que sofre o mesmo destino de milhões de pessoas escolhidas para os campos de concentração a fim de completarem alguma cota, apenas alivia a polícia do ônus da escolha arbitrária. O inocente e o culpado são igualmente indesejáveis.
A mudança do conceito de crime e de criminosos determina os métodos da polícia secreta totalitária. Os criminosos são punidos, os indesejáveis desaparecem da face da terra; o único vestígio que resta deles é a memória daqueles que os conheceram e amaram, e uma das tarefas mais difíceis da polícia secreta é fazer com que até esses vestígios desapareçam juntamente com o condenado.
A Okhrana, predecessora czarista da GPU, inventou, ao que consta, um sistema de arquivo no qual cada suspeito era registrado numa grande ficha, no centro da qual o seu nome era rodeado por um círculo vermelho; os seus amigos políticos eram designados por círculos vermelhos menores, e os conhecidos não políticos, por círculos verdes; círculos marrons indicavam pessoas que mantinham contato com os amigos do suspeito, mas que este não conhecia pessoalmente; os relacionamentos entre os amigos do suspeito, políticos e não políticos, e os amigos dos seus amigos, eram indicados por linhas ligando os respectivos círculos (116).
Curioso: precursor do mapa de rede (Social Network Analysis).
É claro que esse método só é limitado pelo tamanho das fichas e, teoricamente, uma única e gigantesca folha poderia mostrar as relações diretas e indiretas de toda a população. É esse o objetivo utópico da polícia secreta totalitária. Abandonou o antigo e tradicional sonho da polícia, que o detector de mentiras ainda supostamente realiza, e já não busca saber quem é quem, ou quem pensa o quê. (O detector de mentiras é talvez o exemplo mais ilustrativo do fascínio que esse sonho aparentemente exerce sobre a mentalidade do policial; pois obviamente o complicado aparelho de medição não pode determinar outra coisa senão a frieza ou o temperamento nervoso de suas vítimas. Na verdade, o raciocínio simplório que existe por trás do uso desse mecanismo só pode ser explicado pelo desejo irracional de que, afinal de contas, seja possível a leitura da mente.) Esse velho sonho já era suficientemente terrível quando, desde os tempos mais remotos, levava à tortura. O sonho moderno da polícia totalitária, com as suas técnicas recentes, é incomparavelmente mais terrível. Agora, a polícia sonha que basta olhar um mapa gigantesco na parede do escritório para que possa, a qualquer momento, determinar quem tem relações com quem e em que grau de intimidade; e teoricamente esse sonho não é irrealizável, embora a sua execução técnica deva ser algo difícil. Se esse mapa realmente existisse, nem mesmo a lembrança impediria a pretensão totalitária de domínio do mundo; permitiria a obliteração de pessoas sem que ficassem quaisquer vestígios, como se elas jamais houvessem existido.
Se devemos crer nos relatos de agentes da NKVD que foram presos, a polícia secreta russa já chegou perigosamente perto desse ideal do governo totalitário. A polícia possui dossiês secretos de cada habitante do vasto país, indicando cuidadosamente as numerosas relações que existem entre as pessoas, desde os conhecidos fortuitos até parentes e amizade genuínas; pois é apenas para descobrir essas relações que se interrogam tão rigorosamente os acusados, cujos “crimes” já foram determinados “objetivamente” antes mesmo de serem presos. Finalmente, quanto à faculdade da memória, tão perigosa para o regime totalitário, certos observadores estrangeiros acham que “se é verdade que os elefantes nunca esquecem, os russos parecem opostos aos elefantes. […] A psicologia da Rússia soviética torna possível a amnésia total” (117).
Verifica-se a importância desse completo desaparecimento das vítimas para o mecanismo do domínio total naqueles casos em que, por um motivo ou outro, o regime se defrontou com a memória dos sobreviventes. Durante a guerra, um comandante da SS cometeu o terrível erro de informar a uma mulher francesa que o seu marido havia morrido num campo de concentração alemão; esse lapso provocou uma pequena avalanche de ordens e instruções para todos os comandantes dos campos, advertindo-os de que, em hipótese alguma, deviam dar informações ao mundo exterior (118). Pelo mesmo motivo, os oficiais da polícia soviética, afeitos a esse sistema desde crianças, podiam apenas olhar com espanto aqueles que, na Polônia, buscavam desesperadamente saber o que havia acontecido aos seus amigos e parentes detidos (119).
Nos países totalitários, todos os locais de detenção administrados pela polícia constituem verdadeiros poços de esquecimento onde as pessoas caem por acidente, sem deixar atrás de si os vestígios tão naturais de uma existência anterior como um cadáver ou uma sepultura. Comparado a essa novíssima invenção de se fazer desaparecer até o rosto das pessoas, o antiquado método do homicídio, seja político ou criminoso, é realmente ineficaz. O assassino deixa atrás de si um cadáver e, embora tente apagar os traços da sua própria identidade, não pode apagar da memória dos que ficaram vivos a identidade da vítima. A operação da polícia secreta, ao contrário, faz com que a vítima simplesmente jamais tenha existido.
A conexão entre a polícia secreta e as sociedades secretas é óbvia. A criação da primeira sempre necessitou e decorreu do argumento de que a existência destas últimas constituía perigo. A polícia secreta totalitária é a primeira na história que não precisa usar desses antigos pretextos de que todos os tiranos lançavam mão. O anonimato das vítimas, que não podem ser chamadas de inimigas do regime, e cuja identidade é desconhecida dos perseguidores até que a decisão arbitrária do governo as elimina do mundo dos vivos e apaga a sua memória do mundo dos mortos, é algo além de todo sigilo, além do silêncio mais profundo, além da maior mestria da dupla vida que a disciplina das sociedades conspirativas costumava impor aos seus membros.
Os movimentos totalitários, que, durante a subida ao poder, imitam certas características organizacionais das sociedades secretas e, no entanto, se instalam à luz do dia, criam uma verdadeira sociedade secreta somente depois de chegarem ao governo. A sociedade secreta dos regimes totalitários é a polícia secreta; o único segredo religiosamente guardado num país totalitário, o único conhecimento esotérico que existe, diz respeito às operações da polícia e às condições dos campos de concentração (120). Naturalmente, a população como um todo e, em especial, os membros do Partido, conhecem os fatos gerais — que existem campos de concentração, que certas pessoas desaparecem, que inocentes são presos; ao mesmo tempo, todos num país totalitário sabem que o maior dos crimes é falar a respeito desses “segredos”. Como o conhecimento do homem depende da afirmação e da compreensão dos seus semelhantes, essa informação geralmente sabida, individualmente guardada e nunca comunicada perde toda a realidade e assume a natureza de simples pesadelo. Só aqueles que estão de posse do conhecimento estritamente esotérico quanto às novas categorias possíveis de pessoas indesejáveis e dos métodos operacionais dos altos escalões podem comunicar-se uns com os outros sobre o que realmente constitui a realidade de todos. Só eles estão numa posição de acreditar no que sabem ser verdadeiro. Esse é o seu segredo e, para guardá-lo, instalam-se como sociedade secreta. E permanecem como membros, mesmo quando a organização secreta os prende, os obriga a fazer confissões e finalmente os liquida. Enquanto guardam o segredo, pertencem à elite, e geralmente não o revelam, mesmo quando eles próprios vão para a cadeia ou para os campos de concentração (121).
Afinal uma explicação convincente para as confissões falsas de acusados no grande expurgo stalinista.
Já observamos que um dos muitos paradoxos que ofendem o bom senso do mundo não totalitário é o uso aparentemente irracional que o totalitarismo faz dos métodos conspiratórios. Os movimentos totalitários, aparentemente perseguidos pela polícia, raramente usam os métodos da conspiração para a derrubada do governo em sua luta pelo poder, enquanto o totalitarismo no poder, depois de reconhecido por todos os governos e depois de ter aparentemente superado o estágio revolucionário, cria uma verdadeira polícia secreta como núcleo do poder e do governo. Parece que enxerga no reconhecimento oficial um perigo maior para o conteúdo conspiratório do movimento revolucionário — um perigo de desintegração interna — que as hesitantes medidas policiais dos regimes não totalitários.
A verdade é que os líderes totalitários, embora estejam convencidos de que devem seguir consistentemente a ficção e as normas do mundo fictício estabelecidas durante a luta pelo poder, só aos poucos descobrem toda a implicação desse mundo irreal e de suas normas. A fé na onipotência humana e a convicção de que tudo pode ser feito através da organização leva-os a experiências com que a imaginação humana pode ter sonhado, mas que a atividade humana nunca realizou. Suas abomináveis descobertas no reino do possível são inspiradas por um cientificismo ideológico que já vimos ser menos controlado pela razão e menos disposto a reconhecer os fatos que as mais loucas fantasias da especulação pré-científica e pré-filosófica. Criam a sociedade secreta, que agora já não opera à luz do dia, a sociedade da polícia secreta, ou o soldado político, ou o guerreiro ideologicamente treinado, para que possam realizar a pesquisa experimental do possível.
Por outro lado, a conspiração totalitária contra o mundo não totalitário — a pretensão do domínio mundial — permanece tão aberta e franca nas condições do governo totalitário como nos movimentos totalitários. É praticamente inculcada à mente da população coordenada de simpatizantes sob forma de suposta conspiração de todo o mundo contra o seu país. Propaga-se a dicotomia totalitária fazendo-se um dever de todo cidadão no exterior reportar-se ao seu país como se fosse agente secreto, e levando-o a tratar cada estrangeiro como se fosse um espião a soldo do seu governo (122). É para a realização prática dessa dicotomia, e não por causa de segredos específicos, militares ou de outra natureza, que as cortinas de ferro separam do resto do mundo os habitantes do país totalitário. O verdadeiro segredo — os campos de concentração, esses laboratórios onde se experimenta o domínio total — os regimes totalitários ocultam dos olhos do seu próprio povo e de todos os outros povos.
Durante um tempo considerável, a normalidade do mundo normal é a mais eficaz proteção contra a denúncia dos crimes em massa dos regimes totalitários. “Os homens normais não sabem que tudo é possível” (123) e, diante do monstruoso, recusam-se a crer em seus próprios olhos e ouvidos, tal como os homens da massa não confiaram nos seus quando se depararam com uma realidade normal onde já não havia lugar para eles (124). O motivo pelo qual os regimes totalitários podem ir tão longe na realização de um mundo invertido e fictício é que o mundo exterior não totalitário também só acredita naquilo que quer e foge à realidade ante a verdadeira loucura, tanto quanto as massas diante do mundo normal. A repugnância do bom senso diante da fé no monstruoso é constantemente fortalecida pelo próprio governante totalitário, que não permite que nenhuma estatística digna de fé, nenhum fato ou algarismo passível de controle venha a ser publicado, de sorte que só existem informes subjetivos, incontroláveis e inafiançáveis acerca dos países dos mortos-vivos.
Devido a essa política, só parcialmente se conhecem os resultados da experiência totalitária. Embora haja um número suficiente de relatos dos campos de concentração para que se avalie a possibilidade do domínio total e se vislumbre o abismo do “possível”, não sabemos até onde um regime totalitário pode transformar o caráter. Menos ainda sabemos quantas pessoas normais, ao nosso redor, estariam dispostas a aceitar o modo totalitário de vida — isto é, pagar o preço de uma vida consideravelmente mais curta pela realização segura de todos os seus sonhos profissionais. É fácil compreender o quanto a propaganda totalitária e até mesmo certas instituições totalitárias correspondem aos sonhos das novas massas desarraigadas, mas é quase impossível saber qual o número daqueles que, se continuarem expostos por mais tempo a uma constante ameaça de desemprego, aceitarão de bom grado uma “política populacional” de eliminação regular do excesso de pessoas, e quantos, compreendendo perfeitamente a sua crescente incapacidade de suportar a carga da vida moderna, se conformarão de boa vontade a um sistema que, juntamente com a espontaneidade, elimina a responsabilidade.
Em outras palavras, embora conheçamos a operação e a função específica da polícia secreta totalitária, não sabemos quão bem ou até onde o “segredo” dessa sociedade secreta corresponde aos desejos e cumplicidades secretos das massas do nosso tempo.
3. 3 DOMÍNIO TOTAL
Os campos de concentração e de extermínio dos regimes totalitários servem como laboratórios onde se demonstra a crença fundamental do totalitarismo de que tudo é possível. Comparadas a esta, todas as outras experiências têm importância secundária — inclusive as médicas, cujos horrores estão registrados em detalhe nos julgamentos contra os médicos do Terceiro Reich —, embora seja característico que esses laboratórios fossem usados para experimentos de todo tipo.
O domínio total, que procura sistematizar a infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos como se toda a humanidade fosse apenas um indivíduo, só é possível quando toda e qualquer pessoa seja reduzida à mesma identidade de reações. O problema é fabricar algo que não existe, isto é, um tipo de espécie humana que se assemelhe a outras espécies animais, e cuja única “liberdade” consista em “preservar a espécie” (125). O domínio totalitário procura atingir esse objetivo através da doutrinação ideológica das formações de elite e do terror absoluto nos campos; e as atrocidades para as quais as formações de elite são impiedosamente usadas constituem a aplicação prática da doutrina ideológica — o campo de testes em que a última deve colocar-se à prova —, enquanto o terrível espetáculo dos campos deve fornecer a verificação “teórica” da ideologia.
Os campos destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres humanos, mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente controladas, da própria espontaneidade como expressão da conduta humana, e da transformação da personalidade humana numa simples coisa, em algo que nem mesmo os animais são; pois o cão de Pavlov que, como sabemos, era treinado para comer quando tocava um sino, mesmo que não tivesse fome, era um animal degenerado. Em circunstâncias normais, isso nunca pode ser conseguido, porque a espontaneidade jamais pode ser inteiramente eliminada, uma vez que se relaciona não apenas com a liberdade humana, mas com a própria vida, no sentido da simples manutenção da existência. É somente nos campos de concentração que essa experiência é possível e, portanto, os campos são não apenas la société la plus totalitaire encore réalisé (David Rousset), mas também o modelo social perfeito para o domínio total em geral. Da mesma forma como a estabilidade do regime totalitário depende do isolamento do mundo fictício criado pelo movimento em relação ao mundo exterior, também a experiência do domínio total nos campos de concentração depende de seu fechamento ao mundo de todos os homens, ao mundo dos vivos em geral, até mesmo ao mundo do próprio país que vive sob o domínio totalitário. Esse isolamento explica a peculiar irrealidade e a incredibilidade que caracterizam todos os relatos provenientes dos campos de concentração e constitui uma das principais dificuldades para a verdadeira compreensão do domínio totalitário, pois, por mais incrível que pareça, os campos são a verdadeira instituição central do poder organizacional totalitário.
Existem numerosos relatos de sobreviventes (126). Quanto mais autênticos, menos procuram transmitir coisas que escapam à compreensão humana e à experiência humana – ou seja, sofrimentos que transformam homens em “animais que não se queixam” (127). Nenhum desses relatórios inspira arroubos de indignação e de simpatia capazes de mobilizar os homens em nome da justiça. Pelo contrário, qualquer pessoa que fale ou escreva sobre campos de concentração é tida como suspeita; e se o autor do relato voltou resolutamente ao mundo dos vivos, ele mesmo é vítima de dúvidas quanto à sua própria veracidade, como se pudesse haver confundido um pesadelo com a realidade (128).
Essa dúvida em relação a si mesmo e à realidade de suas próprias experiências apenas demonstra aquilo que os nazistas sempre souberam: que, para os que se dispõem a cometer crimes, convém organizá-los da maneira mais vasta e mais inverossímil. Não apenas porque isso torna inadequada e absurda qualquer punição prevista em lei, mas porque a própria imensidade dos crimes garante que os assassinos, que proclamam a sua inocência com toda sorte de mentiras, sejam mais facilmente acreditados do que as vítimas que dizem a verdade. Os nazistas nem mesmo acharam necessário guardar essa descoberta: Hitler fez circular milhões de cópias do seu livro em que dizia abertamente que, para ser bem-sucedida, a mentira deve ser enorme — o que não impediu que as pessoas acreditassem nele, do mesmo modo como as proclamações nazistas, repetidas ad nauseam, de que os judeus seriam exterminados como insetos (isto é, com gás venenoso), não levaram ninguém a acreditar seriamente nessas enunciações.
Somos todos tentados a explicar o intrinsecamente inacreditável por meio de racionalização. Em cada um de nós existe um liberal que procura persuadir-nos com a voz do bom senso. O caminho do domínio totalitário passa por vários estágios intermediários dos quais podemos encontrar muitas analogias e precedentes. O terror extraordinariamente sangrento durante a fase inicial do governo totalitário atende realmente ao fim exclusivo de derrotar o oponente e de impossibilitar qualquer oposição futura; mas o terror total só é lançado depois de ultrapassada essa fase inicial, quando o regime já nada tem a recear da oposição. O meio se transforma no fim e a afirmação de que “o fim justifica os meios” já não se aplica, pois o terror, não sendo mais o meio de aterrorizar as pessoas, perdeu a sua “finalidade”. Tampouco basta dizer que a revolução, como no caso da Revolução Francesa, passou a devorar os próprios filhos, pois o terror continua mesmo quando todos aqueles que eram, ou se podiam julgar, filhos da revolução de um modo ou de outro — as facções russas, os centros de poder do partido, o Exército, a burocracia — já foram eliminados há muito tempo. Muito do que hoje é peculiar ao governo totalitário é bastante conhecido através dos estudos da história. Sempre houve guerras de agressão; o massacre de populações hostis após uma vitória campeou à solta mesmo depois que os romanos o abrandassem com o parcere subjectis; o extermínio dos povos nativos acompanhou a colonização das Américas, da Austrália e da África; a escravidão é uma das mais antigas instituições da humanidade, e todos os impérios da Antiguidade se basearam no trabalho dos escravos do Estado, que erigiam os seus edifícios públicos. Nem mesmo os campos de concentração são invenção dos movimentos totalitários. Surgiram pela primeira vez durante a Guerra dos Bôeres, no começo do século XX, e continuaram a ser usados na África do Sul e na Índia para os “elementos indesejáveis”; aqui também encontramos pela primeira vez a expressão “custódia protetora”, que mais tarde foi adotada pelo Terceiro Reich. Esses campos correspondem, em muitos detalhes, aos campos de concentração do começo do regime totalitário; eram usados para “suspeitos” cujas ofensas não se podiam provar, e que não podiam ser condenados pelo processo legal comum. Tudo isso aponta claramente na direção dos métodos totalitários; são elementos que eles empregam, desenvolvem e cristalizam à base do princípio niilístico de que “tudo é permitido”, princípio que eles herdaram e aceitaram com naturalidade. Mas, onde essas novas formas de domínio adquirem a estrutura autenticamente totalitária, transcendem esse princípio, que ainda se relaciona com os motivos utilitários e o interesse dos governantes, e vão atuar numa esfera que até agora nos era completamente desconhecida: a esfera onde “tudo é possível”. E, tipicamente, esta é precisamente a esfera que não pode ser limitada nem por motivos utilitários nem pelo interesse pessoal, não importa o conteúdo deste último.
O que contraria o bom senso não é o princípio niilístico de que “tudo é permitido”, já delineado no conceito utilitário de bom senso do século XIX. O que o bom senso e as “pessoas normais” se recusam a crer é que tudo seja possível (129). Tentamos compreender certos elementos da experiência atual ou passada que simplesmente ultrapassam os nossos poderes de compreensão. Tentamos classificar como criminoso um ato que essa categoria jamais poderia incluir. Porque, no fundo, qual o significado do conceito de homicídio quando nos defrontamos com a produção de cadáveres em massa? Tentamos compreender psicologicamente a conduta dos presos dos campos de concentração e dos homens da SS, quando o que é preciso compreender é que a psique humana pode ser destruída mesmo sem a destruição física do homem; que, na verdade, a psique, o caráter e a individualidade parecem, em certas circunstâncias, manifestar-se apenas pela rapidez ou lentidão com que se desintegram (130). Como resultado final surgem homens inanimados, que já não podem ser compreendidos psicologicamente, cujo retorno ao mundo psicologicamente humano (ou inteligivelmente humano) se assemelha à ressurreição de Lázaro. Diante disso, qualquer julgamento do bom senso serve apenas para justificar aqueles que acham “superficial” “deter-se em horrores” (131).
Se é verdade que os campos de concentração são a instituição que caracteriza mais especificamente o governo totalitário, então deter-se nos horrores que eles representam é indispensável para compreender o totalitarismo. Mas a recordação não pode levar a isso mais do que o pode o relato incomunicativo da testemunha ocular. Em ambos há uma tendência de fugir da experiência; instintiva ou racionalmente, ambos são tão conscientes do abismo que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos-vivos que não conseguem oferecer senão uma série de ocorrências relembradas, que parecem tão incríveis para os que as relatam como para os que as ouvem. Somente pode dar-se ao luxo de continuar a pensar em horrores a imaginação amedrontada dos que, embora provocados por esses relatos, não foram realmente feridos na própria carne, daqueles que, consequentemente, estão a salvo do pavor bestial e desesperado que, após a experiência do horror verdadeiro e presente, paralisa inexoravelmente tudo. Tais pensamentos são úteis apenas para a percepção dos contextos políticos e para a mobilização das paixões políticas. Pois pensar em horrores não leva a mudanças de personalidade de qualquer espécie, como, aliás, também não o faz a verdadeira experiência do horror. A redução do homem a um feixe de reações separa-o tão radicalmente de tudo o que há nele de personalidade e caráter quanto uma doença mental. Mas quando, como Lázaro, ele se ergue dentre os mortos, reencontra inalterados a personalidade e o caráter, exatamente como os havia deixado.
Como o horror não altera o caráter do homem nem pode deixá-lo melhor ou pior, também não pode tornar-se a base de uma comunidade política ou de um partido. A tentativa de criar uma elite europeia baseada no programa de entendimento gerado pela experiência dos campos de concentração, sofrida por toda a Europa, falhou do mesmo modo como haviam falhado as tentativas, feitas depois da Primeira Guerra Mundial, de extrair conclusões políticas da experiência internacional da geração interligada pela vivência das trincheiras. Em ambos os casos, verificou-se que a experiência, em si, nada comunica senão banalidades niilísticas (132). As consequências políticas, como o pacifismo de pós-guerra, por exemplo, resultaram do temor geral da guerra, não das experiências da guerra. Em vez de produzir um pacifismo destituído de realidade, o conhecimento da estrutura das guerras modernas deveria ter levado à compreensão de que o único critério para uma guerra necessária é a luta contra condições em que as pessoas perdem o desejo de viver — e a experiência que tivemos com o inferno atroz dos campos totalitários fez-nos compreender demasiado bem que essas condições são possíveis (133). Assim, o temor dos campos de concentração e o resultante conhecimento do que é o domínio total podem servir para anular todas as obsoletas divergências políticas da direita e da esquerda e introduzir, ao lado e acima delas, a maneira politicamente mais importante de julgar os eventos da nossa época, ou seja: se são úteis ou não ao domínio totalitário.
Em qualquer caso, a imaginação amedrontada tem a grande vantagem de anular as interpretações sofístico-dialéticas da política, que partem da premissa de que algo de bom pode advir do mal. Enquanto o pior que o homem podia infligir ao homem era o homicídio, essa acrobata dialética tinha ao menos uma aparência de justificação. Mas, como sabemos hoje, o homicídio é apenas um mal limitado. O assassino que mata um homem — um homem que, sendo mortal, tem que morrer um dia de qualquer modo — habita o nosso mundo de vida e morte; entre ambos — o assassino e a vítima — existe de fato um elo que serve de base à dialética, mesmo que esta nem sempre o perceba. Mas o assassino que deixa atrás de si um cadáver não afirma nem pretende impor a ideia de que a sua vítima nunca tenha existido; se apaga quaisquer vestígios, são os da sua própria identidade, e não a memória e a dor daqueles que amaram a vítima; destrói uma vida, mas não destrói o fato da própria existência.
Os nazistas, com a precisão que lhes era peculiar, costumavam registrar suas operações nos campos de concentração sob o título “na calada da noite” (Nacht und Nebel). Muitas vezes não se percebe à primeira vista o radicalismo de medidas destinadas a tratar pessoas como se nunca houvessem existido e a fazê-las desaparecer no sentido literal do termo, porque o sistema nazista alemão e o sistema bolchevista russo não são uniformes, mas consistem em um conjunto de categorias em que as pessoas são tratadas de modo muito diferente. No caso da Alemanha, houve diferentes categorias de pessoas no mesmo campo, desprovidas de contato entre si; frequentemente, o isolamento entre as categorias era mais severo que o isolamento entre o campo e o mundo exterior. Assim, por motivos “raciais”, os cidadãos escandinavos, embora fossem inimigos declarados dos nazistas, eram tratados pelos alemães, durante a guerra, diferentemente dos membros de outros grupos inimigos; estes, por sua vez, dividiam-se entre aqueles cujo “extermínio” era imediato, como no caso dos judeus, ou era previsto em futuro próximo, como no caso dos poloneses, russos e ucranianos, e aqueles a respeito dos quais ainda não existiam instruções quanto a uma “solução final” global, como no caso dos franceses e dos belgas. Na Rússia, por outro lado, podemos distinguir três sistemas mais ou menos independentes. Primeiro, há os grupos condenados a autêntico trabalho forçado, que vivem em relativa liberdade e cujas sentenças são limitadas. Depois, há os campos de concentração nos quais o material humano é impiedosamente explorado e o índice de mortalidade é extremamente alto, mas que ainda assim são organizados fundamentalmente para fins de trabalho. E, finalmente, existem os campos de aniquilação, onde os internos são sistematicamente exterminados pela fome ou pelo abandono.
O verdadeiro horror dos campos de concentração e de extermínio reside no fato de que os internos, mesmo que consigam manter-se vivos, estão mais isolados do mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o horror compele ao esquecimento. No mundo concentracionário mata-se um homem tão impessoalmente como se mata um mosquito. Uma pessoa pode morrer em decorrência de tortura ou de fome sistemática, ou porque o campo está superpovoado e há necessidade de liquidar o material humano supérfluo. Inversamente, pode ocorrer que, devido a uma falta de novas remessas humanas, surja o perigo de que os campos se esvaziem, e seja dada a ordem de reduzir o índice de mortalidade a qualquer preço (134). David Rousset deu ao relato do período que passou num campo de concentração alemão o título de Les jours de notre mort, e, realmente, é como se se pudesse tornar permanente o próprio processo de morrer e criar uma situação em que tanto a morte como a vida são retardadas com a mesma eficácia.
O surgimento de um mal radical antes ignorado põe fim à noção de gradual desenvolvimento e transformação de valores. Não há modelos políticos nem históricos nem simplesmente a compreensão de que parece existir na política moderna algo que jamais deveria pertencer à política como costumávamos entendê-la, a alternativa de tudo ou nada — e esse algo é tudo, isto é, um número absolutamente infinito de formas pelas quais os homens podem viver em comum, ou nada, pois a vitória dos campos de concentração significaria a mesma inexorável ruína para todos os seres humanos que o uso militar da bomba de hidrogênio traria para toda a raça humana.
Não há paralelos para comparar com algo a vida nos campos de concentração. O seu horror não pode ser inteiramente alcançado pela imaginação justamente por situar-se fora da vida e da morte. Jamais pode ser inteiramente narrado, justamente porque o sobrevivente retorna ao mundo dos vivos, o que lhe torna impossível acreditar completamente em suas próprias experiências passadas. É como se o que tivesse a contar fosse uma história de outro planeta, pois para o mundo dos vivos, onde ninguém deve saber se ele está vivo ou morto, é como se ele jamais houvesse nascido. Assim, todo paralelo cria confusão e desvia a atenção do que é essencial. O trabalho forçado nas prisões e colônias penais, o banimento, a escravidão, todos parecem, por um instante, oferecer possibilidade de comparação, mas, num exame mais cuidadoso, não levam a parte alguma.
O trabalho forçado como punição é limitado no tempo e na intensidade. O preso retém os direitos sobre o próprio corpo; não é torturado de forma absoluta nem dominado de modo absoluto. O banimento apenas transfere o banido de uma parte do mundo para outra, também habitada por seres humanos; não o exclui inteiramente do mundo dos homens. Em toda a história, a escravidão foi uma instituição dentro de uma ordem social; os escravos não estavam, como os internos dos campos de concentração, longe dos olhos e, portanto, da proteção dos seus semelhantes; como instrumentos de trabalho, tinham um preço definido e, como propriedade, um valor definido. O interno do campo de concentração não tem preço algum, porque sempre pode ser substituído; ninguém sabe a quem ele pertence, porque nunca é visto. Do ponto de vista da sociedade normal, ele é absolutamente supérfluo, embora em épocas de intensa falta de mão de obra, como na Rússia e na Alemanha durante a guerra, fosse usado para o trabalho.
Como instituição, o campo de concentração não foi criado em nome da produtividade; a única função econômica permanente do campo é o financiamento dos seus próprios supervisores; assim, do ponto de vista econômico, os campos de concentração existem principalmente para si mesmos. Qualquer trabalho que neles tenha sido realizado poderia ter sido feito muito melhor e mais barato em condições diferentes (135). A Rússia especialmente, cujos campos de concentração são em geral descritos como campos de trabalho forçado, porque a burocracia soviética preferiu honrá-los com esse nome, revela com mais clareza que o trabalho forçado não é a questão fundamental; o trabalho forçado é a condição normal de todos os trabalhadores russos, já que eles não têm liberdade de movimento e podem ser arbitrariamente convocados para trabalhar em qualquer lugar a qualquer momento. A incredibilidade dos horrores é intimamente ligada à inutilidade econômica. Os nazistas levaram essa inutilidade ao ponto da franca antiutilidade quando, em meio à guerra e a despeito da escassez de material rolante e de construções, edificaram enormes e dispendiosas fábricas de extermínio e transportaram milhões de pessoas de um lado para o outro (136). Aos olhos de um mundo estritamente utilitário, a evidente contradição entre esses atos e a conveniência militar dava a todo o sistema a aparência de louca irrealidade.
Essa atmosfera de loucura e irrealidade, criada pela aparente ausência de propósitos, é a verdadeira cortina de ferro que esconde dos olhos do mundo todas as formas de campos de concentração. Vistos de fora, os campos e o que neles acontece só podem ser descritos com imagens extraterrenas, como se a vida fosse neles separada das finalidades deste mundo. Os campos de concentração podem ser classificados em três tipos correspondentes às três concepções ocidentais básicas de uma vida após a morte: o Limbo, o Purgatório e o Inferno. Ao Limbo correspondem aquelas formas relativamente benignas, que já foram populares mesmo em países não totalitários, destinadas a afastar da sociedade todo tipo de elementos indesejáveis — os refugiados, os apátridas, os marginais e os desempregados —; os campos de pessoas deslocadas, por exemplo, que continuaram a existir mesmo depois da guerra, nada mais são do que campos para os que se tornaram supérfluos e importunos. O Purgatório é representado pelos campos de trabalho da União Soviética, onde o abandono alia-se ao trabalho forçado e desordenado. O Inferno, no sentido mais literal, é representado por aquele tipo de campo que os nazistas aperfeiçoaram e onde toda a vida era organizada, completa e sistematicamente, de modo a causar o maior tormento possível.
Os três tipos têm uma coisa em comum: as massas humanas que eles detêm são tratadas como se já não existissem, como se o que sucedesse com elas não pudesse interessar a ninguém, como se já estivessem mortas e algum espírito mau, tomado de alguma loucura, brincasse de suspendê-las por certo tempo entre a vida e a morte, antes de admiti-las na paz eterna.
Mais que o arame farpado, é a irrealidade dos detentos que ele confina, que provoca uma crueldade tão incrível que termina levando à aceitação do extermínio como solução perfeitamente normal. Tudo o que se faz nos campos tem o seu paralelo no mundo das fantasias malignas e perversas. O que é difícil entender, porém, é que esses crimes ocorriam num mundo fantasma materializado num sistema em que, afinal, existiam todos os dados sensoriais da realidade, faltando-lhe apenas aquela estrutura de consequências e responsabilidade sem a qual a realidade não passa de um conjunto de dados incompreensíveis. Como resultado, passa a existir um lugar onde os homens podem ser torturados e massacrados sem que nem os atormentadores nem os atormentados, e muito menos o observador de fora, saibam que o que está acontecendo é algo mais do que um jogo cruel ou um sonho absurdo (137).
Os filmes documentários divulgados na Alemanha e em outros países depois da guerra demonstraram claramente que essa atmosfera de loucura e irrealidade não se dissipa com a simples reportagem. Para o observador sem preconceitos essas visões são quase tão pouco convincentes quanto as fotos de misteriosas substâncias tiradas em sessões espíritas (138). O bom senso reagiu aos horrores de Auschwitz com o argumento plausível: “Que crime essas pessoas devem ter cometido para que se lhes fizessem tais coisas!”; ou, na Alemanha e na Áustria, em meio à fome e ao ódio geral: “Que pena que pararam de matar os judeus!”; e, em toda parte, com o ceticismo com que é recebida a propaganda ineficaz.
Se a propaganda da verdade não convence o homem comum, por ser demasiado monstruosa, é positivamente perigosa para aqueles que sabem, em sua própria imaginação, o que são capazes de fazer e, portanto, acreditam plenamente na realidade dos filmes. De repente, torna-se-lhes claro que aquilo que durante milhares de anos fora relegado pela imaginação do homem a uma esfera além da competência humana pode ser fabricado aqui mesmo na Terra, que o Inferno e o Purgatório, e até mesmo um arremedo da sua duração perpétua, podem ser criados pelos métodos mais modernos da destruição e da terapia. Para essas pessoas (e em qualquer cidade grande elas são mais numerosas do que desejamos admitir), o inferno totalitário prova somente que o poder do homem é maior do que jamais ousaram pensar, e que podemos realizar nossas fantasias infernais sem que o céu nos caia sobre a cabeça ou a terra se abra sob os nossos pés.
Essas analogias, repetidas nos relatos do mundo dos agonizantes (139), parecem ser mais que uma tentativa desesperada de exprimir o que está além da linguagem humana. Talvez nada melhor do que a perda da fé num Julgamento Final distinga tão radicalmente as massas modernas daquelas dos séculos passados: os piores elementos perderam o temor, os melhores perderam a esperança. Incapazes de viver sem temor e sem esperança, as massas são atraídas por qualquer esforço que pareça prometer uma imitação humana do Paraíso que desejaram e do Inferno que temeram. Do mesmo modo como a versão popularizada da sociedade sem classes de Marx tem uma estranha semelhança com a Era Messiânica, também a realidade dos campos de concentração lembra, antes de mais nada, as pinturas medievais do Inferno.
Há, porém, um detalhe que tornava a antiga concepção de Inferno tolerável para o homem e que não pode ser reproduzido: o Julgamento Final, a ideia de um critério absoluto de justiça aliado à infinita possibilidade da misericórdia. Pois, no cálculo humano, não existe crime nem pecado comensuráveis com os tormentos eternos do Inferno. Daí a perplexidade, daí a pergunta decorrente do bom senso: que crimes essas pessoas podem ter cometido para sofrer tão desumanamente? Daí, também, a absoluta inocência das vítimas: nenhum homem jamais mereceu tal coisa. E daí, finalmente, a grotesca casualidade da escolha das vítimas dos campos de concentração no reino aperfeiçoado do terror: esse “castigo” pode, com igual justiça ou injustiça, ser aplicado a qualquer um.
Comparado ao insano resultado final — uma sociedade de campos de concentração -, o processo pelo qual os homens são preparados para esse fim e os métodos pelos quais os indivíduos se adaptam a essas condições são transparentes e lógicos. A desvairada fabricação em massa de cadáveres é precedida pela preparação, histórica e politicamente inteligível, de cadáveres vivos. O incentivo e, o que é mais importante, o silencioso consentimento a tais condições sem precedentes resultam daqueles eventos que, num período de desintegração política, súbita e inesperadamente tornaram centenas de milhares de seres humanos apátridas, desterrados, proscritos e indesejados, enquanto o desemprego tornava milhões de outros economicamente supérfluos e socialmente onerosos. Por sua vez, isso só pôde acontecer porque os Direitos do Homem, apenas formulados mas nunca filosoficamente estabelecidos, apenas proclamados mas nunca politicamente garantidos, perderam, em sua forma tradicional, toda a validade.
O primeiro passo essencial no caminho do domínio total é matar a pessoa jurídica do homem. Por um lado, isso foi conseguido quando certas categorias de pessoas foram excluídas da proteção da lei e quando o mundo não totalitário foi forçado, por causa da desnacionalização maciça, a aceitá-los como os fora da lei; logo a seguir, criaram-se campos de concentração fora do sistema penal normal, no qual um crime definido acarreta uma pena previsível. Assim, os criminosos, que, aliás, constituíam um elemento essencial na sociedade dos campos de concentração, geralmente só eram ali confinados depois de completarem a sentença a que haviam sido condenados. Em todas as circunstâncias, o domínio totalitário cuidava para que as categorias confinadas nos campos — judeus, portadores de doenças, representantes das classes agonizantes — perdessem a capacidade de cometer quaisquer atos normais ou criminosos. Do ponto de vista da propaganda, essa “custódia protetora” era apresentada como “medida policial preventiva” (140), isto é, medida que tira das pessoas a capacidade de agir. As exceções a essa regra, na Rússia, devem ser atribuídas à calamitosa escassez de prisões e a um desejo, até agora não realizado, de transformar todo o sistema penal num sistema de campos de concentração (141).
A inclusão de criminosos — a que acabamos de aludir — é necessária para emprestar credibilidade à alegação propagandística do movimento de que a instituição existe para abrigar elementos fora da sociedade (142). Os criminosos não deveriam estar em campos de concentração, porque é mais difícil matar a pessoa jurídica de um homem culpado por algum crime do que a de um outro totalmente inocente. O fato de constituírem categoria permanente entre os internos é uma concessão do Estado totalitário aos preconceitos da sociedade, que assim pode habituar-se mais facilmente à existência dos campos. Por outro lado, para não alterar o sistema de campos, é essencial, enquanto exista no país um sistema penal, que os criminosos somente sejam enviados para lá depois de haverem completado a sentença, isto é, quando de fato já têm direito à liberdade. Em hipótese alguma deve o campo de concentração transformar-se em castigo previsível para um crime definido.
Misturar criminosos às outras categorias de presos tem, além disso, a vantagem de tornar chocantemente evidente a todos os outros internos o fato de que atingiram o mais baixo nível social. E, na verdade, estes logo perceberão que não lhes faltam motivos para invejar o mais vil ladrão ou assassino; mas, no início parecia o nível mais baixo um bom começo. Ademais, tratava-se de eficiente meio de camuflagem: isso só acontece a criminosos; e não está acontecendo nada pior do que os criminosos merecem.
Os criminosos constituem a aristocracia de todos os campos. (Na Alemanha, durante a guerra, foram substituídos na liderança dos campos pelos presos comunistas, pois as caóticas condições criadas por uma administração de criminosos não permitiam a realização sequer de uma transformação temporária na época em que o andamento da guerra o exigia. Tratava-se, porém, apenas de uma transformação temporária dos campos de concentração em campos de trabalho forçado, fenômeno inteiramente atípico e de curta duração (143)). O que leva os criminosos à liderança não é tanto a sua afinidade com o pessoal da supervisão — na União Soviética, aparentemente, os supervisores não são, como a SS, uma elite especial, treinada para cometer crimes (144) — quanto o fato de que somente os criminosos são mandados para o campo em virtude de alguma atividade definida. Eles, pelo menos, sabem por que estão num campo de concentração, e, portanto, conservam ainda um resíduo da personalidade jurídica. Para os criminosos políticos, isso é apenas subjetivamente verdadeiro; seus atos, enquanto atos e não meras opiniões ou vagas suspeitas de terceiros, ou a participação acidental num grupo politicamente condenado, geralmente não são previstos no sistema legal do país nem juridicamente definidos (145).
À mistura de políticos e criminosos com que os campos de concentração da Rússia e da Alemanha iniciaram a sua carreira foi logo acrescentado um terceiro elemento que, em breve, iria constituir a maioria dos internos dos campos de concentração. Desde então, esse grupo mais amplo tem consistido em pessoas que absolutamente nada fizeram que tivesse alguma ligação racional com o fato de terem sido presas, nem em sua consciência nem na consciência dos seus atormentadores. Na Alemanha, a partir de 1938, esse componente era representado por judeus; na Rússia, por qualquer grupo que, por motivos que nada tinham a ver com os seus atos, havia incorrido no desagrado das autoridades. Esses grupos, inocentes em todos os sentidos, prestam-se melhor a experiências radicais de privação de direitos e destruição da pessoa jurídica e são, portanto, em qualidade e quantidade, a categoria mais essencial da população dos campos — princípio que teve a sua aplicação mais ampla nas câmaras de gás, que, pelo menos por sua enorme capacidade, não podiam destinar-se a casos individuais, mas a grandes números de pessoas. A esse respeito, o seguinte diálogo espelha a situação do indivíduo: “Para que servem essas câmaras de gás?” “E para que é que você nasceu?” (146) Esse terceiro grupo dos totalmente inocentes é o que sempre leva a pior nos campos. Certos criminosos e políticos são incorporados a essa categoria; destituídos da distinção protetora de haverem feito alguma coisa, ficam completamente expostos à arbitrariedade. O objetivo final, parcialmente conseguido na União Soviética e claramente visível nas últimas fases do terror nazista, é que toda a população dos campos seja composta dessa categoria de pessoas inocentes.
Em contraste com o completo acaso com que os internos são escolhidos, existem as categorias, inexpressivas em si, mas úteis do ponto de vista organizacional, em que geralmente são divididos por ocasião da chegada. Nos campos alemães, essas categorias eram os criminosos, os políticos, os elementos antissociais, os infratores religiosos e os judeus, cada uma com a sua insígnia diferente. Quando os franceses criaram campos de concentração depois da Guerra Civil Espanhola, adotaram imediatamente o método totalitário de misturar políticos com criminosos e inocentes (no caso, os apátridas) e, a despeito da sua inexperiência, mostraram-se extraordinariamente inventivos na criação de categorias inexpressivas de internos (147). Originalmente destinada a evitar qualquer solidariedade entre os internos, essa técnica demonstrou-se particularmente valiosa, pois ninguém podia saber se a categoria a que pertencia era melhor ou pior que as outras, embora na Alemanha os judeus fossem, em toda e qualquer circunstância, a categoria mais baixa. O aspecto grotesco de tudo isso é que internos se identificavam com as categorias que lhes eram imputadas, como se elas fossem o último vestígio autêntico da sua pessoa jurídica. Não é de se admirar que, em 1933, um comunista saísse dos campos mais comunista do que antes, um judeu mais judeu e, na França, a esposa de um legionário mais convencida do valor da Legião Estrangeira, como se as categorias a que pertenciam lhes acenassem com o último vislumbre de tratamento previsível, como se representassem uma identidade jurídica derradeira e, portanto, fundamental.
A divisão de presos em categorias é apenas uma medida tática organizacional, mas a seleção arbitrária das vítimas indica o princípio essencial da instituição dos campos. Se esses campos dependessem da existência de adversários políticos, não poderiam ter sobrevivido aos primeiros anos dos regimes totalitários. Basta consultar o número de internos de Buchenwald, depois de 1936, para compreender como os inocentes eram necessários para manter a continuidade dos campos. “Os campos teriam desaparecido se, ao prender gente, a Gestapo houvesse levado em conta somente a oposição” (148) e, em fins de 1937, Buchenwald, com menos de mil internos, estava para desaparecer quando os pogroms de novembro trouxeram um reforço de mais de 20 mil deportados (149). Na Alemanha, esse componente de inocentes foi proporcionado em vastos números pelos judeus desde 1938; na Rússia, eram grupos aleatórios da população que, por alguma razão completamente alheia ao que haviam feito, tinham caído em desgraça (150). Mas, se na Alemanha o tipo realmente totalitário de campo de concentração, com a sua vasta maioria de internos completamente inocentes, não foi estabelecido antes de 1938, na Rússia data de começos da década de 30, pois até 1930 a maioria da população dos campos ainda consistia em criminosos, contrarrevolucionários e “presos políticos” (que, nesse caso, eram em geral comunistas membros das facções dissidentes). Desde então, tem havido tantos inocentes nos campos que é difícil classificá-los — pessoas que mantinham algum tipo de contato com algum país estrangeiro; russos de origem polonesa (particularmente entre 1936 e 1938); camponeses cujas aldeias, por alguma razão econômica, foram liquidadas; nacionalidades inteiras deportadas; soldados desmobilizados do Exército Vermelho que, por acaso, pertenciam a regimentos que haviam passado uma temporada longa demais como forças de ocupação ou haviam sido prisioneiros de guerra na Alemanha etc. Mas a existência de oposição política é, para o sistema de campos de concentração, apenas um pretexto: a finalidade do sistema não é atingida, nem mesmo quando, sob o mais monstruoso terror, a população se torna mais ou menos voluntariamente coordenada, isto é, desiste de seus direitos políticos. O fim do sistema arbitrário é destruir os direitos civis de toda a população, que se vê, afinal, tão fora da lei em seu próprio país como os apátridas e os refugiados. A destruição dos direitos de um homem, a morte da sua pessoa jurídica, é a condição primordial para que seja inteiramente dominado. E isso não se aplica apenas àquelas categorias especiais, como os criminosos, os oponentes políticos, os judeus, os homossexuais (com os quais se fizeram as primeiras experiências), mas a qualquer habitante do Estado totalitário. O livre consentimento é um obstáculo ao domínio total, como o é a livre oposição (151). A prisão arbitrária que escolhe pessoas inocentes destrói a validade do livre consentimento, da mesma forma como a tortura — em contraposição à morte — destrói a possibilidade da oposição.
Qualquer limitação dessa perseguição arbitrária a certas opiniões de natureza religiosa ou política, a certas formas de comportamento social, intelectual ou sexual, a certos “crimes” recém-inventados, tornaria os campos supérfluos porque, a longo prazo, nenhuma atitude e nenhuma opinião resistem à ameaça de tanto horror; e, acima de tudo, criaria um novo sistema de justiça que, com alguma estabilidade, produziria inevitavelmente no homem uma nova pessoa jurídica a furtar-se ao domínio totalitário. Os chamados Volksnutzen [necessidades do povo] dos nazistas, que mudavam constantemente (porque o que é útil hoje pode ser nocivo amanhã), e a eternamente variável linha partidária da União Soviética, que, sendo retrospectiva, quase diariamente traça a novos grupos de pessoas o caminho para os campos de concentração, são a única segurança da existência contínua dos campos e, portanto, da contínua e total privação dos direitos do homem.
O próximo passo decisivo do preparo de cadáveres vivos é matar a pessoa moral do homem. Isso se consegue, principalmente, tornando impossível, pela primeira vez na história, o surgimento da condição de mártir: “Quantos aqui ainda acreditam que um protesto tenha mesmo algum valor histórico? Esse ceticismo é a verdadeira obra-prima da SS. Sua grande realização. Corromperam toda a solidariedade humana. A noite caiu sobre o futuro. Quando não há testemunhas, não pode haver testemunho. Dizer quando a morte já não pode ser adiada é uma tentativa de dar à morte um significado, de agir mesmo depois da morte Para ser bem-sucedido, um gesto deve ter significação social. Somos aqui centenas de milhares, todos na mais absoluta solidão. É por isso que somos submissos, aconteça o que acontecer” (152).
Os campos e a matança de adversários políticos são apenas facetas do esquecimento sistemático em que se mergulham não apenas os veículos da opinião pública, como a palavra escrita e falada, mas até as famílias e os amigos das vítimas. A dor e a recordação são proibidas. Na União Soviética, uma esposa pede divórcio assim que o marido é preso, para salvar a vida dos filhos; se ele por acaso retorna, ela o expulsa de casa, indignada (153). Mesmo em seus períodos mais negros, o mundo ocidental deu sempre ao inimigo morto o direito de ser lembrado, num reconhecimento evidente de que todos somos homens (e apenas homens). Até mesmo Aquiles providenciou os funerais de Heitor; os governos mais despóticos honraram o inimigo morto; os romanos permitiam que os cristãos escrevessem martirológios; a Igreja manteve os seus hereges vivos na memória dos homens; e por isso, somente por isso, tudo não foi em vão e jamais poderia ter sido em vão. Os campos de concentração, tornando anônima a própria morte e tornando impossível saber se um prisioneiro está vivo ou morto, roubaram da morte o significado de desfecho de uma vida realizada. Em certo sentido, roubaram a própria morte do indivíduo, provando que, doravante, nada — nem a morte — lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o fato de que ele jamais havia existido.
A consciência do homem, que lhe diz que é melhor morrer como vítima do que viver como burocrata do homicídio, poderia ainda ter-se oposto a esse ataque contra a pessoa moral. O mais terrível triunfo do terror totalitário foi evitar que a pessoa moral pudesse refugiar-se no individualismo, e tornar as decisões da consciência questionáveis e equívocas. Ante a alternativa de trair e assim matar os seus amigos, de mandar para a morte a esposa e os filhos, pelos quais é em todos os sentidos responsável, quando até mesmo o suicídio significaria a matança imediata da sua família — como deve um homem decidir? A alternativa já não é entre o bem e o mal, mas entre matar e matar. Quem poderia resolver o dilema moral daquela mãe grega, a quem os nazistas permitiram escolher um dos seus três filhos para ser morto? (154)
Pela criação de condições em que a consciência deixa de ser adequada e fazer o bem se torna inteiramente impossível, a cumplicidade conscientemente organizada de todos os homens nos crimes dos regimes totalitários é estendida às vítimas e, assim, torna-se realmente total. Os homens da SS implicavam os internos dos campos de concentração – criminosos, políticos, judeus — em seus crimes, tornando-os responsáveis por grande parte da administração e confrontando-os, assim, com o desesperado dilema de mandarem os seus amigos para a morte ou ajudarem a matar outros homens que lhes eram estranhos — forçando-os, num caso e no outro, a agirem como assassinos (155). Não apenas o ódio era desviado dos que tinham culpa (os capos [presos colaboracionistas] eram mais odiados que os homens da SS), mas também desaparecia a linha divisória entre o perseguidor e o perseguido, entre o assassino e a vítima (156).
Morta a pessoa moral, a única coisa que ainda impede que os homens se transformem em mortos-vivos é a diferença individual, a identidade única do indivíduo. Sob certa forma estéril, essa individualidade pode ser conservada por um estoicismo persistente, e sabemos que muitos homens em regimes totalitários se refugiaram, e ainda se refugiam diariamente, nesse absoluto isolamento de uma personalidade sem direitos e sem consciência. Sem dúvida, essa parte da pessoa humana, precisamente por depender tão essencialmente da natureza e de forças que não podem ser controladas pela vontade alheia, é a mais difícil de destruir (e, quando destruída, é a mais fácil de restaurar) (157).
As maneiras de lidar com essa singularidade da pessoa humana são muitas e não tentaremos arrolá-las. Começam com as monstruosas condições dos transportes a caminho do campo, onde centenas de seres humanos amontoam-se num vagão de gado, completamente nus, colados uns aos outros, e são transportados de uma estação para outra, de desvio a desvio, dia após dia; continuam quando chegam ao campo: o choque bem organizado das primeiras horas, a raspagem dos cabelos, as grotescas roupas do campo; e terminam nas torturas inteiramente inimagináveis, dosadas de modo a não matar o corpo ou, pelo menos, não matá-lo rapidamente. O objetivo desses métodos, em qualquer caso, é manipular o corpo humano — com as suas infinitas possibilidades de dor — de forma a fazê-lo destruir a pessoa humana tão inexoravelmente como certas doenças mentais de origem orgânica.
É aqui que a completa sandice de todo o processo se torna mais evidente. É verdade que a tortura é parte essencial de toda polícia totalitária e do seu aparelho judiciário; é usada diariamente para fazer com que as pessoas falem. Esse tipo de tortura, de objetivo definido e racional, tem certos limites: ou o prisioneiro fala dentro de certo tempo, ou matam-no. A essa tortura racionalmente aplicada ajuntou-se outro tipo irracional e sádico, nos primeiros campos de concentração nazistas e nos porões da Gestapo. Administrada geralmente pela SA, não tinha quaisquer objetivos nem sistema, mas dependia da iniciativa de elementos geralmente anormais. A mortalidade era tão alta que somente uns poucos internos dos campos de concentração de 1933 sobreviveram a esses primeiros anos. Esse tipo de tortura parecia ser menos uma instituição política calculada que uma concessão do regime aos seus partidários criminosos e anormais, dessa forma recompensados pelos serviços prestados. Atrás da cega bestialidade da SA, havia muitas vezes um profundo ódio e ressentimento contra os que eram social, intelectual ou fisicamente melhores que eles, e que estavam agora à sua mercê, como numa realização dos seus mais loucos sonhos. Esse ressentimento, que nunca chegou a desaparecer inteiramente dos campos, parece-nos o derradeiro vestígio de um sentimento humanamente compreensível (158).
O verdadeiro horror, porém, começou quando a SS tomou a seu cargo a administração dos campos. A antiga bestialidade espontânea cedeu lugar à destruição absolutamente fria e sistemática de corpos humanos, calculada para aniquilar a dignidade humana. Os campos já não eram parques de diversões de animais sob forma humana, isto é, de homens que realmente deveriam estar no hospício ou na prisão; agora eram “campos de treinamento”, onde homens perfeitamente normais eram treinados para tornarem-se perfeitos membros da SS (159).
O ato de matar a individualidade do homem, de destruir a sua singularidade, fruto da natureza, da vontade e do destino, a qual tornou-se uma premissa tão autoevidente para todas as relações humanas que até mesmo gêmeos idênticos inspiram certa inquietude, cria um horror que de longe ultrapassa a ofensa da pessoa político-jurídica e o desespero da pessoa moral. É esse horror que dá azo às generalizações niilistas que afirmam, com certa plausibilidade, que todos os homens são essencialmente animais (160). A experiência dos campos de concentração demonstra realmente que os seres humanos podem transformar-se em espécimes do animal humano, e que a “natureza” do homem só é “humana” na medida em que dá ao homem a possibilidade de tornar-se algo eminentemente não natural, isto é, um homem.
Natureza e socialeza.
Depois da morte da pessoa moral e da aniquilação da pessoa jurídica, a destruição da individualidade é quase sempre bem-sucedida. É possível que se descubram leis da psicologia de massa que expliquem por que milhões de seres humanos se deixaram levar, sem resistência, às câmaras de gás, embora essas leis nada venham a explicar senão a destruição da individualidade. Mais importante é o fato de que os que eram condenados individualmente quase nunca tentavam levar consigo um dos seus carrascos, de que raramente havia uma revolta séria, e de que, mesmo no momento da libertação, houve poucos massacres espontâneos de homens da SS. Porque destruir a individualidade é destruir a espontaneidade, a capacidade do homem de iniciar algo novo com os seus próprios recursos, algo que não possa ser explicado à base de reação ao ambiente e aos fatos (161). Morta a individualidade, nada resta senão horríveis marionetes com rostos de homem, todas com o mesmo comportamento do cão de Pavlov, todas reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte. Esse é o verdadeiro triunfo do sistema: “O triunfo da SS exige que a vítima torturada se deixe levar à forca sem protestos, que renuncie e se entregue ao ponto de deixar de afirmar a sua identidade. Não é gratuitamente nem por mero sadismo que os homens da SS desejam a sua submissão. Sabem que o sistema que consegue destruir a vítima antes que ela suba ao patíbulo […] é, sem dúvida, o melhor para manter um povo inteiro na escravidão, na submissão. Nada é mais terrível que essas procissões de seres humanos que vão para a morte como fantoches. Quem vê isso, diz consigo mesmo: ‘Para que tenham ficado subjugados desse modo, que poder deve estar oculto nas mãos dos dirigentes’, e vira as costas, cheio de impotente amargura, mas derrotado” (162).
Se levarmos a sério as aspirações totalitárias e não nos deixarmos iludir pela sensata afirmação de que são utópicas e irrealizáveis, veremos que a sociedade dos que estão prestes a morrer, criada nos campos, é a única forma de sociedade em que é possível dominar o homem completamente. Quem aspira ao domínio total deve liquidar no homem toda a espontaneidade, produto da existência da individualidade, e persegui-la em suas formas mais peculiares, por mais apolíticas e inocentes que sejam. O cão de Pavlov, o espécime humano reduzido às reações mais elementares, o feixe de reações que sempre pode ser liquidado e substituído por outros feixes de reações de comportamento exatamente igual, é o “cidadão” modelo do Estado totalitário; e esse cidadão não pode ser produzido de maneira perfeita a não ser nos campos de concentração.
É apenas aparente a inutilidade dos campos, sua antiutilidade cinicamente confessada. Na verdade, nenhuma outra de suas instituições é mais essencial para preservar o poder do regime. Sem os campos de concentração, sem o medo indefinido que inspiram e sem o treinamento muito definido que oferecem em matéria de domínio totalitário, que em nenhuma outra parte pode ser inteiramente testado em todas as suas mais radicais possibilidades, o Estado totalitário não pode inspirar o fanatismo das suas tropas nem manter um povo inteiro em completa apatia. Dominador e dominados voltariam logo facilmente à “velha rotina burguesa”; após alguns primeiros “excessos”, sucumbiriam à vida de cada dia e às leis humanas; enfim, marchariam na direção que todos os observadores, aconselhados pelo bom senso, previram tantas vezes. O engano trágico dessas profecias, provenientes de um mundo que ainda vivia em segurança, foi supor a existência de uma natureza humana que era imutável através dos tempos, identificar essa natureza humana com a história, e assim declarar que a ideia de domínio total era não apenas desumana como irrealista. De lá para cá, aprendemos que o poder do homem é tão grande que ele realmente pode vir a ser o que o homem desejar.
É da própria natureza dos regimes totalitários exigir o poder ilimitado. Esse poder só é conseguido se literalmente todos os homens, sem exceção, forem totalmente dominados em todos os aspectos da vida. No reino das relações exteriores, novos territórios devem ser constantemente subjugados, enquanto no país de origem grupos humanos sempre novos devem ser dominados em campos de concentração cada vez maiores ou, quando necessário, liquidados para ceder lugar a outros. O problema da oposição não tem importância, nem em assuntos domésticos nem em assuntos externos. Qualquer neutralidade, e mesmo qualquer amizade oferecida espontaneamente, é tão perigosa quanto a franca hostilidade, exatamente porque a espontaneidade em si, com a sua imprevisibilidade, é o maior de todos os obstáculos para o domínio total do homem.
Os comunistas dos países não comunistas, que fugiram ou foram chamados para Moscou, tiveram a amarga experiência de aprender que constituíam uma ameaça à União Soviética. Nesse sentido, os comunistas convictos são tão ridículos e perigosos para o regime da Rússia como, por exemplo, os nazistas convictos da facção de Röhm o foram para os nazistas.
O que torna a convicção e a opinião de qualquer espécie tão ridículas e perigosas nas condições totalitárias é que os regimes totalitários orgulham-se de não precisarem delas, como dispensam qualquer tipo de auxílio humano. Os homens, na medida em que são mais que simples reações animais e realização de funções, são inteiramente supérfluos para os regimes totalitários. O totalitarismo não procura o domínio despótico dos homens, mas sim um sistema em que os homens sejam supérfluos. O poder total só pode ser conseguido e conservado num mundo de reflexos condicionados, de marionetes sem o mais leve traço de espontaneidade. Exatamente porque os recursos do homem são tão grandes, só se pode dominá-lo inteiramente quando ele se torna um exemplar da espécie animal humana.
Portanto, o caráter pode ser uma ameaça, e até mesmo as normas legais mais injustas podem ser um obstáculo; mas a individualidade, ou qualquer outra coisa que distinga um homem do outro, é intolerável. Enquanto todos os homens não se tornam igualmente supérfluos — e isso só se consegue nos campos de concentração —, o ideal do domínio totalitário não é atingido. Os Estados totalitários procuram constantemente, embora nunca com pleno sucesso, demonstrar a superfluidade do homem — pela arbitrária escolha de vários grupos para os campos de concentração, pelos constantes expurgos do aparelho do governo, pelas liquidações em massa. O bom senso grita desesperadamente, mas em vão, que as massas são submissas e que todo esse gigantesco aparelho de terror é, portanto, supérfluo; se fossem capazes de dizer a verdade, os governantes totalitários responderiam: o aparelho parece supérfluo unicamente porque serve para tornar os homens supérfluos.
A tentativa totalitária de tornar supérfluos os homens reflete a sensação de superfluidade das massas modernas numa terra superpovoada. O mundo dos agonizantes, no qual os homens aprendem que são supérfluos através de um modo de vida em que o castigo nada tem a ver com o crime, em que a exploração é praticada sem lucro, e em que o trabalho é realizado sem proveito, é um lugar onde a insensatez é diariamente renovada. No entanto, na estrutura da ideologia totalitária, nada poderia ser mais sensato e lógico. Se os presos são insetos daninhos, é lógico que sejam exterminados por meio de gás venenoso; se são degenerados, não se deve permitir que contaminem a população; se têm “almas escravas” (Himmler), ninguém deve perder tempo tentando reeducá-los. Vistos através do prisma da ideologia, os campos parecem até ser lógicos demais.
Enquanto os regimes totalitários vão, assim, resoluta e cinicamente, esvaziando o mundo da única coisa que faz sentido para a expectativa utilitária do bom senso, impõem-lhe ao mesmo tempo uma espécie de supersentido que, na verdade, as ideologias sempre insinuaram quando pretenderam haver encontrado a chave da história ou a solução para os enigmas do universo. Acima da insensatez da sociedade totalitária, entrona-se o ridículo supersentido da sua superstição ideológica. As ideologias somente são opiniões inócuas, arbitrárias e destituídas de crítica enquanto não se as leva a sério. Uma vez que se lhes toma literalmente a pretensão de validade total, tornam-se núcleos de sistemas de lógica nos quais, como nos sistemas dos paranoicos, tudo se segue compreensiva e até mesmo compulsoriamente, uma vez que se aceita a primeira premissa. A insanidade desses sistemas reside não apenas na primeira premissa, mas na própria lógica em que se baseiam. A curiosa lógica de todos os ismos, sua simplória confiança no valor salvador da devoção obstinada que não atende a fatores específicos e variados, já contém os primeiros germes do desprezo a realidades e aos fatos próprios do totalitarismo.
O bom senso treinado no pensamento utilitário é impotente contra esse supersentido ideológico, pois os regimes totalitários criam um mundo demente que funciona. O desprezo ideológico pelos fatos ainda continha o orgulhoso pressuposto do domínio do homem sobre o mundo; é, afinal, o desprezo à realidade que torna possível mudar o mundo, construir o artifício humano. O que anula o elemento de orgulho no desprezo totalitário pela realidade (e, assim, o distingue radicalmente das teorias e atitudes revolucionárias) é o supersentido que dá a esse desprezo a sua irrefutabilidade, a sua lógica e consistência. A afirmação bolchevista de que o sistema soviético é superior a todos os outros torna-se expediente realmente totalitário pelo fato de que o governante totalitário tira dessa afirmação a conclusão logicamente impecável de que, sem esse sistema, os homens jamais poderiam ter construído uma coisa maravilhosa como, digamos, um metrô; daí, novamente tira a conclusão lógica de que qualquer pessoa que saiba que existe um metrô em Paris é suspeita, porque pode fazer com que as outras duvidem de que as coisas só podem ser feitas à maneira bolchevista. Isso leva à conclusão final de que, para que um bolchevista se conserve leal, tem de destruir o metrô de Paris. Nada importa a não ser a coerência.
Com essas novas estruturas, constituídas à força do supersentido e impulsionadas pelo motor da lógica, chegamos realmente ao fim da era burguesa dos lucros e do poder, assim como ao fim do imperialismo e da expansão. A agressividade do totalitarismo não advém do desejo do poder e, se tenta expandir-se febrilmente, não é por amor à expansão e ao lucro, mas apenas por motivos ideológicos: para tornar o mundo coerente, para provar que o seu supersentido estava certo.
É principalmente em benefício desse supersentido, em benefício da completa coerência, que se torna necessário ao totalitarismo destruir todos os vestígios do que comumente chamamos de dignidade humana. Pois o respeito à dignidade humana implica o reconhecimento de todos os homens ou de todas as nações como entidades, como construtores de mundos ou coautores de um mundo comum. Nenhuma ideologia que vise à explicação de todos os eventos históricos do passado e o planejamento de todos os eventos futuros pode suportar a imprevisibilidade que advém do fato de que os homens são criativos, de que podem produzir algo novo que ninguém jamais previu.
O que as ideologias totalitárias visam, portanto, não é a transformação do mundo exterior ou a transmutação revolucionária da sociedade, mas a transformação da própria natureza humana. Os campos de concentração constituem os laboratórios onde mudanças na natureza humana são testadas, e, portanto, a infâmia não atinge apenas os presos e aqueles que os administram segundo critérios estritamente “científicos”; atinge a todos os homens. A questão não está no sofrimento, do qual sempre houve demasiado na terra, nem no número de vítimas. O que está em jogo é a natureza humana em si; e, embora pareça que essas experiências não conseguem mudar o homem, mas apenas destruí-lo, criando uma sociedade na qual a banalidade niilística do homo homini lupus é consistentemente realizada, é preciso não esquecer as necessárias limitações de uma experiência que exige controle global para mostrar resultados conclusivos.
Até agora, a crença totalitária de que tudo é possível parece ter provado apenas que tudo pode ser destruído. Não obstante, em seu afã de provar que tudo é possível, os regimes totalitários descobriram, sem o saber, que existem crimes que os homens não podem punir nem perdoar. Ao tornar-se possível, o impossível passou a ser o mal absoluto, impunível e imperdoável, que já não podia ser compreendido nem explicado pelos motivos malignos do egoísmo, da ganância, da cobiça, do ressentimento, do desejo do poder e da covardia; e que, portanto, a ira não podia vingar, o amor não podia suportar, a amizade não podia perdoar. Do mesmo modo como as vítimas nas fábricas da morte ou nos poços do esquecimento já não são “humanas” aos olhos de seus carrascos, também essa novíssima espécie de criminosos situa-se além dos limites da própria solidariedade do pecado humano.
É inerente a toda a nossa tradição filosófica que não possamos conceber um “mal radical”, e isso se aplica tanto à teologia cristã, que concedeu ao próprio Diabo uma origem celestial, como a Kant, o único filósofo que, pela denominação que lhe deu, ao menos deve ter suspeitado de que esse mal existia, embora logo o racionalizasse no conceito de um “rancor pervertido” que podia ser explicado por motivos compreensíveis. Assim, não temos onde buscar apoio para compreender um fenômeno que, não obstante, nos confronta com sua realidade avassaladora e rompe com todos os parâmetros que conhecemos. Apenas uma coisa parece discernível: podemos dizer que esse mal radical surgiu em relação a um sistema no qual todos os homens se tornaram igualmente supérfluos. Os que manipulam esse sistema acreditam na própria superfluidade tanto quanto na de todos os outros, e os assassinos totalitários são os mais perigosos porque não se importam se eles próprios estão vivos ou mortos, se jamais viveram ou se nunca nasceram. O perigo das fábricas de cadáveres e dos poços do esquecimento é que hoje, com o aumento universal das populações e dos desterrados, grandes massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso mundo em termos utilitários. Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos. O bom senso utilitário das massas, que, na maioria dos países, estão demasiado desesperadas para ter muito medo da morte, compreende muito bem a tentação a que isso pode levar. Os nazistas e bolchevistas podem estar certos de que as suas fábricas de extermínio, que demonstram a solução mais rápida do problema do excesso de população, das massas economicamente supérfluas e socialmente sem raízes, são ao mesmo tempo uma atração e uma advertência. As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem.
4. IDEOLOGIA E TERROR: UMA NOVA FORMA DE GOVERNO
Nos capítulos precedentes, reiteramos o fato de que os métodos do domínio total não são apenas mais drásticos, mas que o totalitarismo difere essencialmente de outras formas de opressão política que conhecemos, como o despotismo, a tirania e a ditadura. Sempre que galgou o poder, o totalitarismo criou instituições políticas inteiramente novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do país. Independentemente da tradição especificamente nacional ou da fonte espiritual particular da sua ideologia, o governo totalitário sempre transformou as classes em massas, substituiu o sistema partidário não por ditaduras unipartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o centro do poder do Exército para a polícia e estabeleceu uma política exterior que visava abertamente ao domínio mundial. Os governos totalitários do nosso tempo evoluíram a partir de sistemas unipartidários; sempre que estes se tornavam realmente totalitários, passavam a operar segundo um sistema de valores tão radicalmente diferente de todos os outros que nenhuma das nossas tradicionais categorias utilitárias — legais, morais, lógicas ou de bom senso — podia mais nos ajudar a aceitar, julgar ou prever o seu curso de ação.
Se é verdade que podemos encontrar os elementos do totalitarismo se repassarmos a história e analisarmos as implicações políticas daquilo que geralmente chamamos de crise do nosso século, chegaremos à conclusão inelutável de que essa crise não é nenhuma ameaça de fora, nenhuma consequência de alguma política exterior agressiva da Alemanha ou da Rússia, e que não desaparecerá com a morte de Stálin, como não desapareceu com a queda da Alemanha nazista. Pode ser até que os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica — embora não necessariamente a mais cruel — quando o totalitarismo pertencer ao passado.
Profética previsão. Quando o totalitarismo acaba ele deixa esporos no ar, que podem, se as circunstâncias forem adequadas, florescer em outras regiões do tempo, materializando-se novamente não propriamente como governo (ou regime) totalitário e sim como novas formas de autoritarismo. É o que estamos vendo, no século 21, com a ascensão dos populismos, por exemplo.
Com relação a essas reflexões, podemos indagar se o governo totalitário, nascido dessa crise e, ao mesmo tempo, o seu mais claro sintoma, o único inequívoco, é apenas um arranjo improvisado que adota os métodos de intimidação, os meios de organização e os instrumentos de violência do conhecido arsenal político da tirania, do despotismo e das ditaduras, e deve a sua existência apenas ao fracasso, deplorável mas talvez acidental, das tradicionais forças políticas — liberais ou conservadoras, nacionais ou socialistas, republicanas ou monarquistas, autoritárias ou democratas. Ou se, pelo contrário, existe algo que se possa chamar de natureza do governo totalitário, se ele tem essência própria e pode ser comparado com outras formas de governo conhecidas do pensamento ocidental e reconhecidas desde os tempos da filosofia antiga, e definido como elas podem ser definidas. Se a segunda suposição for verdadeira, então as formas inteiramente novas e inauditas da organização e do modo de agir do totalitarismo devem ter fundamento numa das poucas experiências básicas que os homens podem realizar quando vivem juntos e se interessam por assuntos públicos. Se existe uma experiência básica que encontre expressão no domínio totalitário, então, dada a novidade da forma totalitária de governo, deve ser uma experiência que, por algum motivo, nunca antes havia servido como base para uma estrutura política, e cujo ânimo geral — embora conhecido sob outras formas — nunca antes permeou e dirigiu o tratamento das coisas públicas.
Em função da história das ideias, isso parece extremamente improvável. Pois as formas de governo sob as quais os homens vivem são muito poucas; foram descobertas cedo, classificadas pelos gregos, e demonstraram rara longevidade. Se aplicarmos esses dados, cuja ideia fundamental, a despeito de muitas variações, não mudou nos dois milênios e meio que vão de Platão a Kant, somos imediatamente tentados a interpretar o totalitarismo como forma moderna de tirania, ou seja, um governo sem leis no qual o poder é exercido por um só homem. De um lado, o poder arbitrário, sem o freio das leis, exercido no interesse do governante e contra os interesses dos governados; e, de outro, o medo como princípio da ação, ou seja, o medo que o povo tem pelo governante e o medo do governante pelo povo — eis as marcas registradas da tirania no decorrer de toda a nossa tradição.
Em vez de dizer que o governo totalitário não tem precedentes, poderíamos dizer que ele destruiu a própria alternativa sobre a qual se baseiam, na filosofia política, todas as definições da essência dos governos, isto é, a alternativa entre o governo legal e o ilegal, entre o poder arbitrário e o poder legítimo. Nunca se pôs em dúvida que o governo legal e o poder legítimo, de um lado, e a ilegalidade e o poder arbitrário, de outro, são aparentados e inseparáveis. No entanto, o totalitarismo nos coloca diante de uma espécie totalmente diferente do governo. É verdade que desafia todas as leis positivas, mesmo ao ponto de desafiar aquelas que ele próprio estabeleceu (como no caso da Constituição Soviética de 1936, para citar apenas o exemplo mais notório) ou que não se deu ao trabalho de abolir (como no caso da Constituição de Weimar, que o governo nazista nunca revogou). Mas não opera sem a orientação de uma lei, nem é arbitrário, pois afirma obedecer rigorosa e inequivocamente àquelas leis da Natureza ou da História que sempre acreditamos serem a origem de todas as leis.
A afirmação monstruosa e, no entanto, aparentemente irrespondível do governo totalitário é que, longe de ser “ilegal”, recorre à fonte de autoridade da qual as leis positivas recebem a sua legitimidade final; que, longe de ser arbitrário, é mais obediente a essas forças sobre-humanas que qualquer governo jamais o foi; e que, longe de exercer o seu poder no interesse de um só homem, está perfeitamente disposto a sacrificar os interesses vitais e imediatos de todos à execução do que supõe ser a lei da História ou a lei da Natureza. O seu desafio às leis positivas pretende ser uma forma superior de legitimidade que, por inspirar-se nas próprias fontes, pode dispensar legalidades menores. A legalidade totalitária pretende haver encontrado um meio de estabelecer a lei da justiça na terra — algo que a legalidade da lei positiva certamente nunca pôde conseguir. A discrepância entre a legalidade e a justiça nunca pôde ser corrigida, porque os critérios de certo e errado nos quais a lei positiva converte a sua fonte de autoridade – a “lei natural” que governa todo o universo, ou a lei divina revelada na história humana, ou os costumes e tradições que representam a lei comum para os sentimentos de todos os homens — são necessariamente gerais e devem ser válidos para um número sem conta e imprevisível de casos, de sorte que cada caso individual concreto, com o seu conjunto de circunstâncias irrepetíveis, lhes escapa de certa forma.
A legitimidade totalitária, desafiando a legalidade e pretendendo estabelecer diretamente o reino da justiça na terra, executa a lei da História ou da Natureza sem convertê-la em critérios de certo e errado que norteiem a conduta individual. Aplica a lei diretamente à humanidade, sem atender à conduta dos homens. Espera que a lei da Natureza ou a lei da História, devidamente executada, engendre a humanidade como produto final; essa esperança — que está por trás da pretensão de governo global — é acalentada por todos os governos totalitários. A política totalitária afirma transformar a espécie humana em portadora ativa e inquebrantável de uma lei à qual os seres humanos somente passiva e relutantemente se submeteriam. Se é verdade que os monstruosos crimes dos regimes totalitários destruíram o elo de ligação entre os países totalitários e o mundo civilizado, também é verdade que esses crimes não foram consequência de simples agressividade, crueldade, guerra e traição, mas do rompimento consciente com aquele consensus iuris que, segundo Cícero, constitui um “povo”, e que, como lei internacional, tem constituído o mundo civilizado nos tempos modernos, na medida em que se mantém como pedra fundamental das relações internacionais, mesmo em tempos de guerra. Tanto o julgamento moral como a punição legal pressupõem esse consentimento básico; o criminoso só pode ser julgado com justiça porque faz parte do consensus iuris, e mesmo a lei revelada de Deus só pode funcionar entre os homens quando eles a ouvem e aceitam.
A essa altura, torna-se clara a diferença fundamental entre o conceito totalitário de lei e de todos os outros conceitos. A política totalitária não substitui um conjunto de leis por outro, não estabelece o seu próprio consensus iuris, não cria, através de uma revolução, uma nova forma de legalidade. O seu desafio a todas as leis positivas, inclusive às que ela mesma formula, implica a crença de que pode dispensar qualquer consensus iuris e ainda assim não resvalar para o estado tirânico da ilegalidade, da arbitrariedade e do medo. Pode dispensar o consensus iuris porque promete libertar o cumprimento da lei de todo ato ou desejo humano; e promete a justiça na terra porque afirma tornar a humanidade a encarnação da lei.
Essa identificação do homem com a lei, que parece fazer desaparecer a discrepância entre a legalidade e a justiça que tanto atormentou o pensamento legal desde os tempos antigos, nada tem em comum com o lumen naturale ou com a voz da consciência, por meio dos quais a Natureza ou a Divindade, como fonte de autoridade para o ius naturale ou para os históricos mandamentos de Deus, supostamente revela a sua autoridade no próprio homem. Esta nunca fez do homem uma encarnação viva da lei mas, pelo contrário, permaneceu separada dele com a autoridade que exige consentimento e obediência. A Natureza ou a Divindade, como fonte de autoridade para as leis positivas, eram tidas como permanentes e eternas; as leis positivas eram inconstantes e mudavam segundo as circunstâncias, mas possuíam uma permanência relativa em comparação com as ações dos homens, que mudavam muito mais depressa; e derivavam essa permanência da presença eterna da sua fonte de autoridade. As leis positivas, portanto, destinam-se primariamente a funcionar como elementos estabilizadores para os movimentos do homem, que são eternamente mutáveis.
Na interpretação do totalitarismo, todas as leis se tornam leis de movimento. Embora os nazistas falassem da lei da natureza e os bolchevistas falem da lei da história, natureza e história deixam de ser a força estabilizadora da autoridade para as ações dos homens mortais; elas próprias tornam-se movimentos. Sob a crença nazista em leis raciais como expressão da lei da natureza, está a ideia de Darwin do homem como produto de uma evolução natural que não termina necessariamente na espécie atual de seres humanos, da mesma forma como, sob a crença bolchevista numa luta de classes como expressão da lei da história, está a noção de Marx da sociedade como produto de um gigantesco movimento histórico que se dirige, segundo a sua própria lei de dinâmica, para o fim dos tempos históricos, quando então se extinguirá a si mesmo.
A diferença entre a atitude histórica de Marx e a atitude naturalista de Darwin já foi apontada muitas vezes, quase sempre com justiça, a favor de Marx. Isso nos leva a esquecer o profundo e positivo interesse de Marx pelas teorias de Darwin; para Engels, o maior cumprimento à obra erudita de Marx era chamá-lo de “Darwin da história” (1). Se considerarmos não a obra propriamente dita, mas as filosofias básicas de ambos, verificaremos que, afinal, o movimento da história e o movimento da natureza são um só. O fato de Darwin haver introduzido o conceito de evolução na natureza, sua insistência em que, pelo menos no terreno da biologia, o movimento natural não é circular, mas unilinear, numa direção que progride infinitamente, significa de fato que a natureza está, por assim dizer, sendo assimilada à história, que a vida natural deve ser vista como histórica. A lei “natural” da sobrevivência dos mais aptos é lei tão histórica – e pôde ser usada como tal pelo racismo — quanto a lei de Marx da sobrevivência da classe mais progressista. Por outro lado, a luta de classes de Marx como força motriz da história é apenas a expressão externa do desenvolvimento de forças produtivas que, por sua vez, emanam da “energia-trabalho” dos homens. O trabalho, segundo Marx, não é uma força histórica, mas natural-biológica — produzida pelo “metabolismo [do homem] com a natureza”, através do qual ele conserva a sua vida individual e reproduz a espécie (2). Engels viu com muita clareza a afinidade entre as convicções básicas dos dois homens porque compreendia o papel decisivo que o conceito de evolução desempenhava nas duas teorias. A tremenda mudança intelectual que ocorreu em meados do século XIX consistiu na recusa de encarar qualquer coisa “como é” e na tentativa de interpretar tudo como simples estágio de algum desenvolvimento ulterior. Que a força motriz dessa evolução fosse chamada de natureza ou de história tinha importância relativamente secundária. Nessas ideologias, o próprio termo “lei” mudou de sentido: deixa de expressar a estrutura de estabilidade dentro da qual podem ocorrer os atos e os movimentos humanos, para ser a expressão do próprio movimento.
A política totalitária, que passou a adotar a receita das ideologias, desmascarou a verdadeira natureza desses movimentos, na medida em que demonstrou claramente que o processo não podia ter fim. Se é lei da natureza eliminar tudo o que é nocivo e indigno de viver, a própria natureza seria eliminada quando não se pudessem encontrar novas categorias nocivas e indignas de viver; se é lei da história que, numa luta de classes, certas classes “fenecem”, a própria história humana chegaria ao fim se não se formassem novas classes que, por sua vez, pudessem “fenecer” nas mãos dos governantes totalitários. Em outras palavras, a lei de matar, pela qual os movimentos totalitários tomam e exercem o poder, permaneceria como lei do movimento mesmo que conseguissem submeter toda a humanidade ao seu domínio.
Por governo legal compreendemos um corpo político no qual há necessidade de leis positivas para converter e realizar o imutável ius naturale ou a eterna lei de Deus, em critérios de certo e errado. Somente nesses critérios, no corpo das leis positivas de cada país, o ius naturale ou os Mandamentos de Deus atingem realidade política. No corpo político do governo totalitário, o lugar das leis positivas é tomado pelo terror total, que se destina a converter em realidade a lei do movimento da história ou da natureza. Do mesmo modo como as leis positivas, embora definam transgressões, são independentes destas — a ausência de crimes numa sociedade não torna as leis supérfluas, mas, pelo contrário, significa o mais perfeito domínio da lei —, também o terror no governo totalitário deixa de ser um meio para suprimir a oposição, embora ainda seja usado para tais fins. O terror torna-se total quando independe de toda oposição; reina supremo quando ninguém mais lhe barra o caminho. Se a legalidade é a essência do governo não tirânico e a ilegalidade é a essência da tirania, então o terror é a essência do domínio totalitário.
O terror é a realização da lei do movimento. O seu principal objetivo é tornar possível à força da natureza ou da história propagar-se livremente por toda a humanidade sem o estorvo de qualquer ação humana espontânea. Como tal, o terror procura “estabilizar” os homens a fim de liberar as forças da natureza ou da história. Esse movimento seleciona os inimigos da humanidade contra os quais se desencadeia o terror, e não pode permitir que qualquer ação livre, de oposição ou de simpatia, interfira com a eliminação do “inimigo objetivo” da História ou da Natureza, da classe ou da raça. Culpa e inocência viram conceitos vazios; “culpado” é quem estorva o caminho do processo natural ou histórico que já emitiu julgamento quanto às “raças inferiores”, quanto a quem é “indigno de viver”, quanto a “classes agonizantes e povos decadentes”. O terror manda cumprir esses julgamentos, mas no seu tribunal todos os interessados são subjetivamente inocentes: os assassinados porque nada fizeram contra o regime, e os assassinos porque realmente não assassinaram, mas executaram uma sentença de morte pronunciada por um tribunal superior. Os próprios governantes não afirmam serem justos ou sábios, mas apenas executores de leis históricas ou naturais; não aplicam leis, mas executam um movimento segundo a sua lei inerente. O terror é a legalidade quando a lei é a lei do movimento de alguma força sobre-humana, seja a Natureza ou a História. O terror, como execução da lei de um movimento cujo fim ulterior não é o bem-estar dos homens nem o interesse de um homem, mas a fabricação da humanidade, elimina os indivíduos pelo bem da espécie, sacrifica as “partes” em benefício do “todo”. A força sobre-humana da Natureza ou da História tem o seu próprio começo e o seu próprio fim, de sorte que só pode ser retardada pelo novo começo e pelo fim individual que é, na verdade, a vida de cada homem.
Deve-se entender “fabricação da humanidade” como alteração (ou destruição) da humanidade.
No governo constitucional, as leis positivas destinam-se a erigir fronteiras e a estabelecer canais de comunicação entre os homens, cuja comunidade é continuamente posta em perigo pelos novos homens que nela nascem. A cada nascimento, um novo começo surge para o mundo, um novo mundo em potencial passa a existir. A estabilidade das leis corresponde ao constante movimento de todas as coisas humanas, um movimento que jamais pode cessar enquanto os homens nasçam e morram. As leis circunscrevem cada novo começo e, ao mesmo tempo, asseguram a sua liberdade de movimento, a potencialidade de algo inteiramente novo e imprevisível; os limites das leis positivas são para a existência política do homem o que a memória é para a sua existência histórica: garantem a preexistência de um mundo comum, a realidade de certa continuidade que transcende a duração individual de cada geração, absorve todas as novas origens e delas se alimenta.
Confundir o terror total com um sintoma de governo tirânico é tão fácil porque o governo totalitário, em seus estágios iniciais, tem de conduzir-se como uma tirania e põe abaixo as fronteiras da lei feita pelos homens. Mas o terror total não deixa atrás de si nenhuma ilegalidade arbitrária, e a sua fúria não visa ao benefício do poder despótico de um homem contra todos, e muito menos a uma guerra de todos contra todos. Em lugar das fronteiras e dos canais de comunicação entre os homens individuais, constrói um cinturão de ferro que os cinge de tal forma que é como se a sua pluralidade se dissolvesse em Um-Só-Homem de dimensões gigantescas. Abolir as cercas da lei entre os homens – como o faz a tirania — significa tirar dos homens os seus direitos e destruir a liberdade como realidade política viva; pois o espaço entre os homens, delimitado pelas leis, é o espaço vital da liberdade. O terror total usa esse velho instrumento da tirania mas, ao mesmo tempo, destrói também o deserto sem cercas e sem lei, deserto da suspeita e do medo que a tirania deixa atrás de si. Esse deserto da tirania certamente já não é o espaço vital da liberdade, mas ainda deixa margem aos movimentos medrosos e cheios de suspeita dos seus habitantes.
Pressionando os homens, uns contra os outros, o terror total destrói o espaço entre eles; comparado às condições que prevalecem dentro do cinturão de ferro, até mesmo o deserto da tirania, por ainda constituir algum tipo de espaço, parece uma garantia de liberdade. O governo totalitário não restringe simplesmente os direitos nem simplesmente suprime as liberdades essenciais; tampouco, pelo menos ao que saibamos, consegue erradicar do coração dos homens o amor à liberdade, que é simplesmente a capacidade de mover-se, a qual não pode existir sem espaço.
O terror total, a essência do regime totalitário, não existe a favor nem contra os homens. Sua suposta função é proporcionar às forças da natureza ou da história um meio de acelerar o seu movimento. Esse movimento, transcorrendo segundo a sua própria lei, não pode ser tolhido a longo prazo; no fim, a sua força se mostrará sempre mais poderosa que as mais poderosas forças engendradas pela ação e pela vontade do homem. Mas pode ser retardado, e é retardado quase inevitavelmente pela liberdade do homem; nem mesmo os governantes totalitários podem negar essa liberdade — por mais irrelevante e arbitrária que lhes pareça —, porque ela equivale ao fato de que os homens nascem e que, portanto, cada um deles é um novo começo e, em certo sentido, o início de um mundo novo. Do ponto de vista totalitário, o fato de que os homens nascem e morrem não pode ser senão um modo aborrecido de interferir com forças superiores. O terror, portanto, como servo obediente do movimento natural ou histórico, tem de eliminar do processo não apenas a liberdade em todo sentido específico, mas a própria fonte de liberdade que está no nascimento do homem e na sua capacidade de começar de novo. No cinturão de ferro do terror, que destrói a pluralidade dos homens e faz de todos aquele Um que invariavelmente agirá como se ele próprio fosse parte da corrente da história ou da natureza, encontrou-se um meio não apenas de libertar as forças históricas ou naturais, mas de imprimir-lhes uma velocidade que elas, por si mesmas, jamais atingiriam. Na prática, isso significa que o terror executa sem mais delongas as sentenças de morte que a Natureza supostamente pronunciou contra aquelas raças ou aqueles indivíduos que são “indignos de viver”, ou que a História decretou contra as “classes agonizantes”, sem esperar pelos processos mais lerdos e menos eficazes da própria história ou natureza.
Nesse conceito, onde o movimento se torna a essência do próprio regime, um problema muito antigo do pensamento político parece encontrar solução semelhante à que já vimos para a discrepância entre a legalidade e a justiça. Se a essência do governo é definida como a legalidade, e se fica compreendido que as leis são as forças estabilizadoras dos negócios públicos dos homens (como realmente sempre o foram desde que Platão invocou em suas Leis a Zeus, o deus dos limites), surge então o problema do movimento do corpo político e dos atos dos seus cidadãos. A legalidade impõe limites aos atos, mas não os inspira; a grandeza, mas também a perplexidade, das leis nas sociedades livres está em que apenas dizem o que não se deve fazer, mas nunca o que se deve fazer. O necessário movimento de um corpo político não se encontra em sua essência, porque essa essência — novamente desde Platão — sempre foi definida com vistas à sua permanência. A continuidade sempre pareceu um dos modos mais seguros de medir a virtude de um governo. Para Montesquieu, a suprema prova da imperfeição da tirania era ainda o fato de que somente as tiranias tendiam a se destruir por dentro, a engendrar o seu declínio, enquanto eram circunstâncias externas que destruíam todos os outros governos. Portanto, o que sempre faltou à definição de governo é o que Montesquieu chamou de um “princípio de ação” que, sendo diferente para cada forma de governo, inspiraria governantes e cidadãos em sua atividade pública e serviria como critério, além da avaliação meramente negativa da legalidade, para julgar todos os atos no terreno das coisas públicas. Esses princípios orientadores e critérios da ação, segundo Montesquieu, são, numa monarquia, a honra; numa república, a virtude; e numa tirania, o medo.
Num perfeito governo totalitário — onde todos os homens tornaram-se Um-Só-Homem, onde toda ação visa à aceleração do movimento da natureza ou da história, onde cada ato é a execução de uma sentença de morte que a Natureza ou a História já pronunciou, isto é, em condições nas quais se pode ter plena certeza de que o terror manterá o movimento em constante atividade —, um princípio de ação separado da sua essência seria absolutamente desnecessário. Não obstante, enquanto o governo totalitário não conquista toda a terra e, com o cinturão de ferro do terror, não transforma cada homem em parte de uma humanidade única, o terror, em sua dupla função de essência de governo e princípio não de ação mas de movimento, não pode ser completamente realizado. Do mesmo modo como a legalidade, no governo constitucional, é insuficiente para inspirar e guiar as ações dos homens, também o terror no governo totalitário não é suficiente para inspirar e guiar o comportamento humano.
Embora, nas condições atuais, o domínio totalitário ainda compartilhe com outras formas de governo a necessidade de um guia para a conduta dos seus cidadãos na esfera pública, não precisa e nem poderia, a rigor, usar um princípio de ação, pois este só fará eliminar no homem precisamente a capacidade de agir. Nas condições do terror total, nem mesmo o medo pode aconselhar a conduta do cidadão, porque o terror escolhe as suas vítimas independentemente de ações ou pensamentos individuais, unicamente segundo a necessidade objetiva do processo natural ou histórico. Nas condições totalitárias, o medo é provavelmente mais difundido do que nunca; mas o medo perde a sua utilidade prática quando as ações que inspira já não ajudam a evitar o perigo que se teme. O mesmo se pode dizer da simpatia ou do apoio ao regime; pois o terror total não apenas seleciona as suas vítimas segundo critérios objetivos: escolhe os seus carrascos com o mais completo descaso pelas convicções e simpatias do candidato. A consistente eliminação da convicção como um motivo para a ação tornou-se um fato desde os grandes expurgos da Rússia soviética e dos países satélites. O objetivo da educação totalitária nunca foi insuflar convicções, mas destruir a capacidade de adquiri-las. A introdução de critérios puramente objetivos no sistema de seleção das tropas da SS foi a grande invenção organizacional de Himmler; selecionava os candidatos através de fotografias segundo critérios puramente raciais. A própria natureza decidia não apenas quem seria eliminado, mas também quem seria treinado como carrasco.
Nenhum princípio orientador da conduta que seja, ele próprio, extraído da esfera da ação humana, como a virtude, a honra ou o medo, é necessário ou pode servir para acionar um corpo político que já não emprega o terror como forma de intimidação, mas cuja essência é o próprio terror. Em seu lugar, o totalitarismo introduziu um princípio inteiramente novo no terreno das coisas públicas que dispensa inteiramente o desejo humano de agir, e atende à desesperada necessidade de alguma intuição da lei do movimento, segundo a qual o terror funciona e da qual, portanto, dependem todos os destinos pessoais.
Os habitantes de um país totalitário são arremessados e engolfados num processo da natureza ou da história para que se acelere o seu movimento; como tal, só podem ser carrascos ou vítimas da sua lei inseparável. O processo pode decidir que aqueles que hoje eliminam raças e indivíduos ou membros das classes agonizantes e dos povos decadentes serão amanhã os que devam ser imolados. Aquilo de que o sistema totalitário precisa para guiar a conduta dos seus súditos é um preparo para que cada um se ajuste igualmente bem ao papel de carrasco e ao papel de vítima. Essa preparação bilateral, que substitui o princípio de ação, é a ideologia.
As ideologias — os ismos que podem explicar, a contento dos seus aderentes, toda e qualquer ocorrência a partir de uma única premissa — são fenômeno muito recente e, durante várias décadas, tiveram papel insignificante na vida política. Somente agora, com a vantagem que nos dá o seu estudo retrospectivo, podemos descobrir os elementos que as tornaram tão perturbadoramente úteis para o governo totalitário. As grandes potencialidades das ideologias não foram descobertas antes de Hitler e de Stálin.
As ideologias são notórias por seu caráter científico: combinam a atitude científica com resultados de importância filosófica, e pretendem ser uma filosofia científica. A palavra “ideologia” parece sugerir que uma ideia pode tornar-se o objeto do estudo de uma ciência, como os animais são o objeto de estudo na zoologia, e que o sufixo – logia da palavra ideologia, como em zoologia, indica nada menos que os logoi — os discursos científicos que se fazem a respeito da ideia. Se isso fosse verdadeiro, a ideologia seria realmente uma pseudociência e uma pseudofilosofia, violando ao mesmo tempo os limites da ciência e os da filosofia. O deísmo, por exemplo, passaria a ser a ideologia que trata da ideia de Deus, da qual se ocupa a filosofia, à maneira científica da teologia, para a qual Deus é uma realidade revelada. (Uma teologia que não se baseasse na revelação como realidade admitida, mas tratasse Deus como ideia, seria tão louca como uma zoologia que já não estivesse segura da existência física e tangível dos animais.) Contudo, sabemos que isso é apenas parte da verdade. O deísmo, embora negue a revelação divina, não faz meras afirmações “científicas” a respeito de um Deus que é apenas uma “ideia”, mas usa a ideia de Deus para explicar os destinos do mundo. As “ideias” dos ismos — a raça no racismo, Deus no deísmo etc. — nunca constituem o objeto das ideologias, e o sufixo – logia – nunca indica simplesmente um conjunto de postulados “científicos”.
Uma ideologia é bem literalmente o que o seu nome indica: é a lógica de uma ideia. O seu objeto de estudo é a história, à qual a “ideia” é aplicada; o resultado dessa aplicação não é um conjunto de postulados acerca de algo que é, mas a revelação de um processo que está em constante mudança. A ideologia trata o curso dos acontecimentos como se seguisse a mesma “lei” adotada na exposição lógica da sua “ideia”. As ideologias pretendem conhecer os mistérios de todo o processo histórico — os segredos do passado, as complexidades do presente, as incertezas do futuro — em virtude da lógica inerente de suas respectivas ideias.
As ideologias nunca estão interessadas no milagre do ser. São históricas, interessadas no vir a ser e no morrer, na ascensão e queda das culturas, mesmo que busquem explicar a história através de alguma “lei da natureza”. A palavra “raça” no racismo não significa qualquer curiosidade genuína acerca das raças humanas como campo de exploração científica, mas é a “ideia” através da qual o movimento da história é explicado como um único processo coerente.
A “ideia” de uma ideologia não é a essência eterna de Platão, vislumbrada pelos olhos da mente, nem o princípio regulador da razão, de Kant, mas passa a ser instrumento de explicação. Para uma ideologia, a história não é vista à luz de uma ideia (o que significaria ver a história sob forma de alguma eternidade ideal que, por si, está além do movimento histórico), mas como algo que pode ser calculado por ela. O que torna a “ideia” capaz dessa nova função é a sua própria “lógica”, que é um movimento decorrente da própria “ideia” e dispensa qualquer fator externo para colocá-la em atividade. O racismo é a crença de que existe um movimento inerente da própria ideia de raça, tal como o deísmo é a crença de que existe um movimento inerente da própria noção de Deus.
O movimento da história e o processo lógico da noção de história supostamente correspondem um ao outro, de sorte que o que quer que aconteça, acontece segundo a lógica de uma “ideia”. Mas o único movimento possível no terreno da lógica é o processo de dedução a partir de uma premissa. Nas mãos de uma ideologia, a lógica dialética, com o seu processo de ir da tese, através da antítese, para a síntese, que por sua vez se torna a tese do próximo movimento dialético, não difere em princípio; a primeira tese passa a ser a premissa, e a sua vantagem para a explicação ideológica é que esse expediente dialético pode fazer desaparecer as contradições factuais, explicando-as como estágios de um só movimento coerente e idêntico.
Brilhante!
Assim que se aplica a uma ideia a lógica como movimento de pensamento — e não como o necessário controle do ato de pensar — essa ideia se transforma em premissa. As explicações ideológicas do mundo realizaram essa operação muito antes que ela se tornasse tão eminentemente útil para o raciocínio totalitário. A coerção puramente negativa da lógica, a proibição das contradições, passou a ser “produtiva”, de modo que se podia criar toda uma linha de pensamento e forçá-la sobre a mente, pelo fato de se tirarem conclusões através da mera argumentação. Esse processo argumentativo não podia ser interrompido nem por uma nova ideia (que teria sido outra premissa com um diferente conjunto de consequências) nem por uma nova experiência. As ideologias pressupõem sempre que uma ideia é suficiente para explicar tudo no desenvolvimento da premissa, e que nenhuma experiência ensina coisa alguma porque tudo está compreendido nesse coerente processo de dedução lógica. O perigo de trocar a necessária insegurança do pensamento filosófico pela explicação total da ideologia e por sua Weltanschauung não é tanto o risco de ser iludido por alguma suposição geralmente vulgar e sempre destituída de crítica quanto o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa de força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente quanto uma força externa.
As Weltanschauungen e ideologias do século XIX não constituem por si mesmas o totalitarismo. Embora o racismo e o comunismo tenham se tornado as ideologias decisivas do século XX, não eram, em princípio, “mais totalitárias” do que as outras; isso aconteceu porque os elementos da experiência nos quais originalmente se baseavam — a luta entre as raças pelo domínio do mundo, e a luta entre as classes pelo poder político nos respectivos países — vieram a ser politicamente mais importantes que os das outras ideologias. Nesse sentido, a vitória ideológica do racismo e do comunismo sobre todos os outros ismos já estava definida antes que os movimentos totalitários se apoderassem precisamente dessas ideologias. Por outro lado, todas as ideologias contêm elementos totalitários, mas estes só se manifestam inteiramente através de movimentos totalitários – o que nos dá a falsa impressão de que somente o racismo e o comunismo são de caráter totalitário. Mas, no fundo, é a verdadeira natureza de todas as ideologias que se revelou no papel que a ideologia desempenhou no mecanismo do domínio totalitário. Vistas desse ângulo, surgem três elementos especificamente totalitários, peculiares de todo pensamento ideológico.
Em primeiro lugar, na pretensão de explicação total, as ideologias têm a tendência de analisar não o que é, mas o que vem a ser, o que nasce e passa. Em todos os casos, elas estão preocupadas unicamente com o elemento de movimento, isto é, a história no sentido corrente da palavra. As ideologias sempre se orientam na direção da história, mesmo quando, como no caso do racismo, parecem partir da premissa da natureza; nesse caso, a natureza serve apenas para explicar as questões históricas e reduzi-las a elementos da natureza. A pretensão de explicação total promete esclarecer todos os acontecimentos históricos — a explanação total do passado, o conhecimento total do presente e a previsão segura do futuro.
Em segundo lugar, o pensamento ideológico, nessa capacidade, liberta-se de toda experiência da qual não possa aprender nada de novo, mesmo que se trate de algo que acaba de acontecer. Assim, o pensamento ideológico emancipa-se da realidade que percebemos com os nossos cinco sentidos e insiste numa realidade “mais verdadeira” que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis, que as domina a partir desse esconderijo e exige um sexto sentido para que possamos percebê-la. O sexto sentido é fornecido exatamente pela ideologia, por aquela doutrinação ideológica particular que é ensinada nas instituições educacionais, estabelecidas exclusivamente para esse fim, para treinar os “soldados políticos” nas Ordensburgen do nazismo ou nas escolas do Comintern e do Cominform. A propaganda do movimento totalitário serve também para libertar o pensamento da experiência e da realidade; procura sempre injetar um significado secreto em cada evento público tangível e farejar intenções secretas atrás de cada ato político público. Quando chegam ao poder, os movimentos passam a alterar a realidade segundo as suas afirmações ideológicas. O conceito de inimizade é substituído pelo conceito de conspiração, e isso produz uma mentalidade na qual já não se experimenta e se compreende a realidade em seus próprios termos — a verdadeira inimizade ou a verdadeira amizade — mas automaticamente se presume que ela significa outra coisa.
Em terceiro lugar, como as ideologias não têm o poder de transformar a realidade, conseguem libertar o pensamento da experiência por meio de certos métodos de demonstração. O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela; isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade. A dedução pode ser lógica ou dialética: num caso ou no outro, acarreta um processo de argumentação que, por pensar em termos de processos, supostamente pode compreender o movimento dos processos sobre-humanos, naturais ou históricos. Atinge-se a compreensão pelo fato de a mente imitar, lógica ou dialeticamente, as leis dos movimentos “cientificamente” demonstrados, aos quais ela se integra pelo processo de imitação. A argumentação ideológica, sempre uma espécie de dedução lógica, corresponde aos dois elementos das ideologias que mencionamos acima – o elemento do movimento e o elemento da emancipação da realidade e da experiência —, primeiro, porque o movimento do pensamento não emana da experiência, mas gera-se a si próprio e, depois, porque transforma em premissa axiomática o único ponto que é tomado e aceito da realidade verificada, deixando, daí em diante, o subsequente processo de argumentação inteiramente a salvo de qualquer experiência ulterior. Uma vez que tenha estabelecido a sua premissa, o seu ponto de partida, a experiência já não interfere com o pensamento ideológico, nem este pode aprender com a realidade.
O expediente que ambos os governantes totalitários usaram para transformar suas respectivas ideologias em armas, com as quais cada um dos seus governados podia obrigar-se a entrar em harmonia com o movimento do terror, era enganadoramente simples e imperceptível: levavam-nas mortalmente a sério e orgulhavam-se, um, do seu supremo dom de “raciocínio frio como o gelo” (Hitler), e o outro, da “impiedade da sua dialética”, e passaram a levar as implicações ideológicas aos extremos da coerência lógica que, para o observador, pareciam despropositadamente “primitivos” e absurdos: a “classe agonizante” consistia em pessoas condenadas à morte; as raças “indignas de viver” eram pessoas que iam ser exterminadas. Quem concordasse com a existência de “classes agonizantes” e não chegasse à consequência de matar os seus membros, ou com o fato de que o direito de viver tinha algo a ver com a raça e não deduzisse que era necessário matar as “raças incapazes”, evidentemente era ou estúpido ou covarde. Essa lógica persuasiva como guia da ação impregna toda a estrutura dos movimentos e governos totalitários. Deve-se exclusivamente a Hitler e a Stálin, que, embora não acrescentassem um único pensamento novo às ideias e aos slogans de propaganda dos seus movimentos, só por isso merecem ser considerados ideólogos da maior importância.
Esses novos ideólogos totalitários distinguiam-se dos seus predecessores por já não serem atraídos basicamente pela “ideia” da ideologia — a luta de classes e a exploração dos trabalhadores, ou a luta de raças e a proteção dos povos germânicos — mas sim pelo processo lógico que dela pode ser deduzido. Segundo Stálin, nem a ideia nem a oratória mas “a força irresistível da lógica subjugava completamente o público [de Lênin]”. Verificou-se que a força, que Marx julgava surgir quando a ideia se apossava das massas, residia não na própria ideia, mas no seu processo lógico, que, “como um poderoso tentáculo, nos aperta por todos os lados, como num torno, e de cujo controle não temos a força de sair; ou nos entregamos, ou nos resignamos à mais completa derrota” (3). Essa força somente se manifesta quando está em jogo a realização dos objetivos ideológicos, a sociedade sem classes ou a raça dominante. No processo da realização, a substância original que servia de base às ideologias no tempo em que buscavam atrair as massas — a exploração dos trabalhadores ou as aspirações nacionais da Alemanha — gradualmente se perde, como que devorada pelo próprio processo: em perfeita consonância com o “raciocínio frio” e a “irresistível força da lógica”, os trabalhadores perderam, sob o domínio bolchevista, até mesmo aqueles direitos que haviam tido sob a opressão czarista, e o povo alemão sofreu um tipo de guerra que não tinha a mais leve ligação com as necessidades mínimas de sobrevivência da nação alemã. É da natureza das políticas ideológicas — e não simples traição cometida em benefício do egoísmo ou do desejo do poder — que o verdadeiro conteúdo da ideologia (a classe trabalhadora ou os povos germânicos), que originalmente havia dado azo à “ideia” (a luta de classes como lei da história, ou a luta de raças como lei da natureza), seja devorado pela lógica com que a “ideia” é posta em prática.
O preparo das vítimas e dos carrascos, que o totalitarismo requer em lugar do princípio de ação de Montesquieu, não é a ideologia em si — o racismo ou o materialismo dialético —, mas a sua lógica inerente. Nesse ponto, o argumento mais persuasivo — argumento muito do gosto de Hitler e de Stálin — é: não se pode dizer A sem dizer B e C, e assim por diante, até o fim do mortífero alfabeto. Parece ser esta a origem da força coerciva da lógica: emana do nosso pavor à contradição. Quando o expurgo bolchevista faz com que as vítimas confessem delitos que nunca cometeram, confia principalmente nesse medo básico e argumenta da seguinte forma: todos concordamos com a premissa de que a história é uma luta de classes e com o papel do Partido nessa luta. Sabemos, portanto, que, do ponto de vista histórico, o Partido sempre tem razão (nas palavras de Trótski, “só podemos ter razão com o Partido e através dele, pois a história não nos concede outro meio de termos razão”). Neste momento histórico, que obedece à lei da história, certos crimes certamente serão cometidos, e o Partido, conhecendo a lei da história, deve puni-los. Para esses crimes, o Partido necessita de criminosos; pode suceder que o Partido, conhecendo os crimes, não conheça inteiramente os criminosos; porém, mais importante que ter certeza quanto aos criminosos é punir os crimes, porque, sem essa punição, a História não poderia progredir, e até mesmo o seu curso poderia ser tolhido. Tu, portanto, ou cometeste os crimes ou foste convocado pelo Partido para desempenhar o papel de criminoso — de qualquer forma, és objetivamente um inimigo do Partido. Se não confessares, deixarás de ajudar a História através do Partido, e te tornarás um verdadeiro inimigo. A força coerciva do argumento é: se te recusas, te contradizes e, com essa contradição toda a tua vida perde o sentido; pois o A que pronunciaste domina toda a tua vida através das consequências do B e do C que se lhe seguem logicamente.
Para a limitada mobilização das pessoas, que nem ele pode dispensar, o governante totalitário conta com a compulsão que nos impele para a frente; essa compulsão interna é a tirania da lógica, contra a qual nada se pode erguer senão a grande capacidade humana de começar algo novo. A tirania da lógica começa com a submissão da mente à lógica como processo sem fim, no qual o homem se baseia para elaborar os seus pensamentos. Através dessa submissão, ele renuncia à sua liberdade interior, tal como renuncia à liberdade de movimento quando se curva a uma tirania externa. A liberdade, como capacidade interior do homem, equivale à capacidade de começar, do mesmo modo que a liberdade como realidade política equivale a um espaço que permita o movimento entre os homens. Contra o começo, nenhuma lógica, nenhuma dedução convincente pode ter qualquer poder, porque o processo da dedução pressupõe o começo sob forma de premissa. Tal como o terror é necessário para que o nascimento de cada novo ser humano não dê origem a um novo começo que imponha ao mundo a sua voz, também a força autocoerciva da lógica é mobilizada para que ninguém jamais comece a pensar — e o pensamento, como a mais livre e a mais pura das atividades humanas, é exatamente o oposto do processo compulsório de dedução. O governo totalitário só se sente seguro na medida em que pode mobilizar a própria força de vontade do homem para forçá-lo a mergulhar naquele gigantesco movimento da História ou da Natureza que supostamente usa a humanidade como material e ignora nascimento ou morte.
Por um lado, a compulsão do terror total — que, com o seu cinturão de ferro, comprime as massas de homens isolados umas contra as outras e lhes dá apoio num mundo que para elas se tornou um deserto — e, por outro, a força autocoerciva da dedução lógica — que prepara cada indivíduo em seu isolamento solitário contra todos os outros — correspondem uma à outra e precisam uma da outra para acionar o movimento dominado pelo terror e conservá-lo em atividade. Do mesmo modo como o terror, mesmo em sua forma pré-total e meramente tirânica, arruína todas as relações entre os homens, também a autocompulsão do pensamento ideológico destrói toda relação com a realidade. O preparo triunfa quando as pessoas perdem o contato com os seus semelhantes e com a realidade que as rodeia; pois, juntamente com esses contatos, os homens perdem a capacidade de sentir e de pensar. O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento).
A questão que levantamos no início destas considerações, e à qual agora retornaremos, diz respeito ao tipo de experiência básica na vida humana em comum que inspira uma forma de governo cuja essência é o terror e cujo princípio de ação é a lógica do pensamento ideológico. Obviamente, nunca antes se havia usado tal mistura nas várias formas de domínio político. Não obstante, a experiência básica em que ela se fundamenta deve ser humana e conhecida dos homens, uma vez que esse corpo político absolutamente “original” foi planejado por homens e, de alguma forma, está respondendo a necessidades humanas.
Já se observou muitas vezes que o terror só pode reinar absolutamente sobre homens que se isolam uns contra os outros e que, portanto, uma das preocupações fundamentais de todo governo tirânico é provocar esse isolamento. O isolamento pode ser o começo do terror; certamente é o seu solo mais fértil e sempre decorre dele. Esse isolamento é, por assim dizer, pré-totalitário; sua característica é a impotência, na medida em que a força sempre surge quando os homens trabalham em conjunto, “agindo em concerto” (Burke); os homens isolados são impotentes por definição.
O isolamento e a impotência, isto é, a incapacidade básica de agir, sempre foram típicos das tiranias. Os contatos políticos entre os homens são cortados no governo tirânico, e as capacidades humanas de ação e poder são frustradas. Mas nem todos os contatos entre os homens são interrompidos, e nem todas as capacidades humanas são destruídas. Toda a esfera da vida privada, juntamente com a capacidade de sentir, de inventar e de pensar, permanece intacta. Sabemos que o cinturão de ferro do terror total elimina o espaço para essa vida privada, e que a autocoerção da lógica totalitária destrói a capacidade humana de sentir e pensar tão seguramente como destrói a capacidade de agir.
O que chamamos de isolamento na esfera política é chamado de solidão na esfera dos contatos sociais. Isolamento e solidão não são a mesma coisa. Posso estar isolado — isto é, numa situação em que não posso agir porque não há ninguém para agir comigo — sem que esteja solitário; e posso estar solitário — isto é, numa situação em que, como pessoa, me sinto completamente abandonado por toda companhia humana — sem estar isolado. O isolamento é aquele impasse no qual os homens se veem quando a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse comum, é destruída. E, no entanto, o isolamento, embora destrua o poder e a capacidade de agir, não apenas deixa intactas todas as chamadas atividades produtivas do homem, mas lhes é necessário. O homem, como homo faber, tende a isolar-se com o seu trabalho, isto é, a deixar temporariamente o terreno da política. A fabricação (poiesis, o ato de fazer coisas), que se distingue, por um lado, da ação (praxis) e, por outro, do mero trabalho, sempre é levada a efeito quando o homem, de certa forma, se isola dos interesses comuns, não importa que o seu resultado seja um objeto de artesanato ou de arte. No isolamento, o homem permanece em contato com o mundo como obra humana; somente quando se destrói a forma mais elementar de criatividade humana, que é a capacidade de acrescentar algo de si mesmo ao mundo ao redor, o isolamento se torna inteiramente insuportável. Isso pode acontecer num mundo cujos principais valores são ditados pelo trabalho, isto é, onde todas as atividades humanas se resumem em trabalhar. Nessas condições, a única coisa que sobrevive é o mero esforço do trabalho, que é o esforço de se manter vivo, e desaparece a relação com o mundo como criação do homem. O homem isolado que perdeu o seu lugar no terreno político da ação é também abandonado pelo mundo das coisas, quando já não é reconhecido como homo faber, mas tratado como animal laborans cujo necessário “metabolismo com a natureza” não é do interesse de ninguém. É aí que o isolamento se torna solidão. A tirania baseada no isolamento geralmente deixa intactas as capacidades produtivas do homem; mas uma tirania que governasse “trabalhadores”, como por exemplo o domínio sobre os escravos na Antiguidade, seria automaticamente um domínio de homens solitários, não apenas isolados, e tenderia a ser totalitária.
Enquanto o isolamento se refere apenas ao terreno político da vida, a solidão se refere à vida humana como um todo. O governo totalitário, como todas as tiranias, certamente não poderia existir sem destruir a esfera da vida pública, isto é, sem destruir, através do isolamento dos homens, as suas capacidades políticas. Mas o domínio totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter.
A solidão, o fundamento para o terror, a essência do governo totalitário, e, para a ideologia ou a lógica, a preparação de seus carrascos e vítimas, tem íntima ligação com o desarraigamento e a superfluidade que atormentavam as massas modernas desde o começo da Revolução Industrial e se tornaram cruciais com o surgimento do imperialismo no fim do século passado e o colapso das instituições políticas e tradições sociais do nosso tempo. Não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros; ser supérfluo significa não pertencer ao mundo de forma alguma. O desarraigamento pode ser a condição preliminar da superfluidade, tal como o isolamento pode (mas não deve) ser a condição preliminar da solidão. Se a tomarmos em sua essência, sem atentar para as suas recentes causas históricas e o seu novo papel na política, a solidão é, ao mesmo tempo, contrária às necessidades básicas da condição humana e uma das experiências fundamentais de toda vida humana. Até mesmo a experiência do mundo, que nos é dado material e sensorialmente, depende do nosso contato com os outros homens, do nosso senso comum que regula e controla todos os outros sentidos, sem o qual cada um de nós permaneceria enclausurado em sua própria particularidade de dados sensoriais, que, em si mesmos, são traiçoeiros e indignos de fé. Somente por termos um senso comum, isto é, somente porque a terra é habitada, não por um homem, mas por homens no plural, podemos confiar em nossa experiência sensorial imediata. No entanto, basta que nos lembremos que um dia teremos de deixar este mundo comum, que continuará como antes, e para cuja continuidade somos supérfluos, para que nos demos conta da solidão e da experiência de sermos abandonados por tudo e por todos.
Solidão não é estar só. Quem está desacompanhado está só, enquanto a solidão se manifesta mais nitidamente na companhia de outras pessoas. À parte algumas observações ocasionais — geralmente de espírito paradoxal como a afirmação de Catão (relatada por Cícero, De re publica, I, 17): numquam minus solum esse quam cum solus esset, “nunca ele esteve menos só do que quando estava sozinho”, ou, antes, “nunca ele esteve menos solitário do que quando estava a sós” — parece que foi Epicteto, o filósofo escravo-forro de origem grega, o primeiro a distinguir entre solidão e ausência de companhia. De certa forma, a sua descoberta foi acidental, uma vez que o seu principal interesse não era uma coisa nem outra, mas o ser só (monos) no sentido de ser absolutamente independente. Na opinião de Epicteto (Dissertationes, livro 3, capítulo 12), o homem solitário (éremos) vê-se rodeado por outros com os quais não pode estabelecer contato e a cuja hostilidade está exposto. O homem só, ao contrário, está desacompanhado e, portanto, “pode estar em companhia de si mesmo”, já que os homens têm a capacidade de “falar consigo mesmos”. Em outras palavras, quando estou só, estou “comigo mesmo”, em companhia do meu próprio eu, e sou, portanto, dois em um; enquanto, na solidão, sou realmente apenas um, abandonado por todos os outros. A rigor, todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois em um não perde o contato com o mundo dos meus semelhantes, pois que eles são representados no meu eu, com o qual estabeleço o diálogo do pensamento. O problema de estar a sós é que esses dois em um necessitam dos outros para que voltem a ser um — um indivíduo imutável cuja identidade jamais pode ser confundida com a de qualquer outro. Para a confirmação da minha identidade, dependo inteiramente de outras pessoas; e o grande milagre salvador da companhia para os homens solitários é que os “integra” novamente; poupa-os do diálogo do pensamento no qual permanecem sempre equívocos, e restabelece-lhes a identidade que lhes permite falar com a voz única da pessoa impermutável.
Viver a sós pode levar à solidão; isso acontece quando, estando a sós, o meu próprio eu me abandona. Os que vivem sozinhos sempre correm o risco de se tornarem solitários, quando já não podem alcançar a graça redentora de uma companhia que os salve da dualidade, do equívoco e da dúvida. Historicamente, parece que somente no século XIX esse risco se tornou suficientemente grande para ser notado e registrado. Foi claramente percebido quando os filósofos, os únicos para os quais estar a sós é um meio de vida e uma condição para o trabalho, já não se contentavam com o fato de que “a filosofia é apenas para uns poucos”, e puseram-se a insistir em que ninguém os “compreendia”. A esse respeito, é típica a frase de Hegel, em seu leito de morte, que não poderia aplicar-se a nenhum outro grande filósofo antes dele: “Ninguém me compreendeu a não ser um homem; e, assim mesmo, me compreendeu mal”. Inversamente, existe sempre a possibilidade de que um homem solitário se encontre a si próprio e inicie o diálogo pensado dos que estão a sós. É o que parece ter ocorrido com Nietzsche em Sils Maria, quando concebeu Zarathustra. Em dois poemas (“Sils Maria” e “Aus Hohen Bergen”), ele nos descreve a expectação vazia e a ansiosa espera do homem solitário, até que, de repente, um Mittag war’s, da wurde Eins zu Zwei…/ Nun feiern wir, vereinten Siegs gewiss,/ das Fest der Feste; / Freund Zarathustra kam , der Gast der Gäste! (“Ao meio-dia, o Um tornou-se Dois… Certos de que venceremos unidos, celebramos a festa das festas; chegou o amigo Zaratustra, o convidado dos convidados.”)
O que torna a solidão tão insuportável é a perda do próprio eu, que pode realizar-se quando está a sós, mas cuja identidade só é confirmada pela companhia confiante e fidedigna dos meus iguais. Nessa situação, o homem perde a confiança em si mesmo como parceiro dos próprios pensamentos, e perde aquela confiança elementar no mundo que é necessária para que se possam ter quaisquer experiências. O eu e o mundo, a capacidade de pensar e de sentir, perdem-se ao mesmo tempo.
A única capacidade do espírito humano que não precisa do eu nem dos outros nem do mundo para funcionar sem medo de errar, e que independe tanto da experiência como do pensamento, é a capacidade do raciocínio lógico, cuja premissa é aquilo que é evidente por si mesmo. As regras elementares da evidência irrefutável, o truísmo de que dois e dois são quatro, não podem se perverter mesmo na solidão absoluta. É a única “verdade” segura em que os seres humanos podem apoiar-se quando perdem a garantia mútua, que é o senso comum, de que necessitam para sentir, viver e encontrar o seu caminho num mundo comum. Mas essa “verdade” é vazia ou, antes, não chega a ser verdade, uma vez que nada revela. (Definir a verdade como coerência, como o fazem certos lógicos modernos, é negar a existência da verdade.) Na solidão, portanto, o que é evidente por si mesmo já não é apenas um instrumento do intelecto, e passa a ser produtivo, a desenvolver as suas próprias linhas de “pensamento”. Os processos do pensamento, caracterizados pela lógica exata e evidente por si mesma, da qual aparentemente não há como escapar, têm algo a ver com a solidão; como observou certa vez Lutero (cuja experiência dos fenômenos da solidão e da vida a sós provavelmente não foram suplantadas pelas de ninguém, e que uma vez ousou dizer que “deve existir um Deus porque o homem precisa de um ser em que possa confiar”), numa frase pouco conhecida acerca das palavras da Bíblia, “não é bom que os homens estejam a sós”. O homem solitário, diz Lutero, “sempre deduz uma coisa da outra e sempre pensa o pior de tudo” (4). O famoso extremismo dos movimentos totalitários, longe de se relacionar com o verdadeiro radicalismo, consiste, na verdade, em “pensar o pior”, nesse processo dedutivo que sempre leva às piores conclusões possíveis.
O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não totalitário é o fato de que a solidão, que já foi uma experiência fronteiriça, sofrida geralmente em certas condições sociais marginais como a velhice, passou a ser, em nosso século, a experiência diária de massas cada vez maiores. O impiedoso processo no qual o totalitarismo engolfa e organiza as massas parece uma fuga suicida dessa realidade. O “raciocínio frio como o gelo” e o “poderoso tentáculo” da dialética que nos “segura como um torno” parecem ser o último apoio num mundo onde ninguém merece confiança e onde não se pode contar com coisa alguma. É a coerção interna, cujo conteúdo único é a rigorosa evitação de contradições, que parece confirmar a identidade de um homem independentemente de todo relacionamento com os outros. Prende-o no cinturão de ferro do terror mesmo quando ele está sozinho, e o domínio totalitário procura nunca deixá-lo sozinho, a não ser na situação extrema da prisão solitária. Destruindo todo o espaço entre os homens e pressionando-os uns contra os outros, destrói-se até mesmo o potencial produtivo do isolamento; ensinando e glorificando o raciocínio lógico da solidão, onde o homem sabe que estará completamente perdido se deixar fugir a primeira premissa que dá início a todo o processo, elimina-se até mesmo a vaga possibilidade de que a solidão espiritual se transforme em solidão física, e a lógica se transforme em pensamento. Quando comparamos esse método com o da tirania, parece-nos ter sido encontrado um meio de imprimir movimento ao próprio deserto, um meio de desencadear uma tempestade de areia que pode cobrir todas as partes do mundo habitado.
As condições em que hoje vivemos no terreno da política são realmente ameaçadas por essas devastadoras tempestades de areia. O perigo não é que possam estabelecer um mundo permanente. O domínio totalitário, como a tirania, traz em si o germe da sua própria destruição. Tal como o medo e a impotência que vem do medo são princípios antipolíticos e levam os homens a uma situação contrária à ação política, também a solidão e a dedução do pior por meio da lógica ideológica, que advém da solidão, representam uma situação antissocial e contêm um princípio que pode destruir toda forma de vida humana em comum. Não obstante, a solidão organizada é consideravelmente mais perigosa que a impotência organizada de todos os que são dominados pela vontade tirânica e arbitrária de um só homem. É o seu perigo que ameaça devastar o mundo que conhecemos — um mundo que, em toda parte, parece ter chegado ao fim — antes que um novo começo, surgindo desse fim, tenha tido tempo de firmar-se.
À parte essas considerações — que, como predições, são de pouca valia e ainda menos consolo —, permanece o fato de que a crise do nosso tempo e a sua principal experiência deram origem a uma forma inteiramente nova de governo que, como potencialidade e como risco sempre presente, tende infelizmente a ficar conosco de agora em diante, como ficaram, a despeito de derrotas passageiras, outras formas de governo surgidas em diferentes momentos históricos e baseadas em experiências fundamentais — monarquias, repúblicas, tiranias, ditaduras e despotismos.
Mais uma vez uma avaliação profética. A de que o totalitarismo, como forma inteiramente nova de governo e como risco sempre presente, tende a ficar conosco. Mesmo depois da derrocada dos governos totalitários, eles estarão presentes nos autoritarismos que surgirem – seja qual for a sua forma.
Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única “mensagem” que o fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est — “o homem foi criado para que houvesse um começo”, disse Agostinho (5). Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós.
Notas do Prefácio
1. É muito perturbador o fato de o regime totalitário, malgrado o seu caráter evidentemente criminoso, contar com o apoio das massas. Embora muitos especialistas neguem-se a aceitar essa situação, preferindo ver nela o resultado da força da máquina de propaganda e de lavagem cerebral, a publicação, em 1965, dos relatórios, originalmente sigilosos, das pesquisas de opinião pública alemã dos anos 1939-44, realizadas então pelos serviços secretos da SS (Meldungen aus dem Reich Auswahl aus den Geheimen Lageberichten des Sicherheitsdienstes der S. S. 1939-1945 [Relatórios do Reich. Seleção dos relatórios sigilosos colhidos pelo Serviço de Segurança da SS], Neuwied & Berlin, 1965), demonstra que a população alemã estava notavelmente bem informada sobre o que acontecia com os judeus ou sobre a preparação do ataque contra a Rússia, sem que com isso se reduzisse o apoio dado ao regime.
2. Desde o início, a investigação e a publicação de material documental têm-se guiado pelo interesse quanto a atividades criminosas, e usualmente a seleção tem sido feita para fins de acusação de criminosos de guerra. Como resultado, uma grande quantidade de material altamente interessante foi negligenciada. O livro mencionado na nota 1 é uma exceção muito bem-vinda à regra.
3. Ver Merle Fainsod, Smolensk under Soviet rule, Cambridge, 1958, pp. 210, 306, 365 etc.
4. Ibid., pp. 73, 93.
5. Às vítimas do Primeiro Plano Quinquenal (Piatiletka: 1928-33), estimadas em 9 a 12 milhões de pessoas, é preciso adicionar aproximadamente 3 milhões de executados durante os Grandes Expurgos e de 5 a 9 milhões de deportados. Mas todas essas estimativas ainda parecem situar-se aquém da realidade factual. Prova disso são diversas execuções maciças (como a de milhares de pessoas, descoberta pelos alemães em Vinitsa, que data de 1937 ou 1938) e das quais nada se sabia no Ocidente. Isso reforça a semelhança existente entre os regimes nazista e bolchevista, a despeito das variantes entre esses dois modelos.
6. Tucker, op. cit., pp. XVII-XVIII.
7. Citado por Merle Fainsod em How Russia is ruled, Cambridge, 1959, p. 516. Segundo Abdurakham Avtorkhanov (que, sob o pseudônimo de Uralov, publicou, em 1953, em Londres, o livro The reign of Stalin), numa reunião secreta do Comitê Central do Partido, realizada em 1936, Bukharin teria acusado Stálin de transformar o partido de Lênin em um Estado policial. De qualquer modo, segundo Fainsod ( op. cit., pp. 449 ss.), o descontentamento geral era particularmente forte entre os componentes e, até 1928, as greves não eram raras na União Soviética.
8. “O curioso não é que o Partido fosse vitorioso, mas que ele conseguiu simplesmente sobreviver” (Fainsod, op. cit., p. 38).
9. Um relato de 1929 menciona violentas manifestações antissemitas durante uma reunião, estando os jovens do Komsomol tacitamente solidários com os atacantes dos judeus (ibid., pp. 49 ss.).
10. Os relatórios de 1926 falam da diminuição dos participantes nas manifestações ‘‘contrarrevolucionárias”, o que corresponde “à trégua que o regime deu ao campesinato”. Comparados aos de 1926, os relatórios de 1929-30 “parecem-se com os comunicados de uma frente de batalha” (ibid., p. 177).
11. Ibid., pp. 252 ss.
12. Ibid., especialmente pp. 240 ss. e 446 ss.
13. Ibid. Todas as declarações desse tipo provêm dos relatórios da GPU; ver especialmente pp. 248 ss. Mas é bastante característico que tais observações tenham se tornado muito menos frequentes após 1934, o começo do Grande Expurgo.
14. Ibid., p. 310.
15. A literatura sobre esse assunto negligencia em geral tal alternativa, por causa da convicção — compreensível, embora historicamente insustentável — de que houve, de Lênin a Stálin, uma evolução normal. É verdade que Stálin se utilizava de terminologia leninista, mas, como lembra Tucker, “Stálin preencheu os velhos conceitos leninistas com o conteúdo novo, eminentemente stalinista” (Robert C. Tucker: “Stálin, Bukharin and history as conspiracy”, em The Great Purge trial, Nova York, 1965, p. XVI). A diferença não consiste apenas na brutalidade — na “loucura” — de Stálin, mas também na insistência totalmente antileninista, por parte dele, de que a história se desenrola atualmente sob o signo da conspiração constante contra a revolução.
16. Ver Fainsod, op. cit., especialmente pp. 365 ss.
17. Ibid., pp. 93 e 71. É característico constatar que todas as mensagens, em todos os níveis, se referiam às obrigações para com “o camarada Stálin” e jamais para com o regime, o partido ou o país. A semelhança entre os dois sistemas — o nazista e o comunista — transparece da comparação entre as declarações dos chefes nazistas logo após a derrota alemã (“Hitler de nada sabia, os culpados eram os líderes locais, chefes de polícia” etc.) e dos escritores e intelectuais que, como Ilia Ehrenburg, compactuaram com o stalinismo, dizendo depois (cf. Tucker, op. cit., p. XIII) que “Stálin de nada sabia” quanto às atrocidades cometidas, a culpa sendo de tal ou qual chefe de polícia local.
18. Ibid., pp. 166 ss.
19. As palavras são tiradas do apelo de “um elemento individualista” de 1936: “Não quero ser criminoso sem crime” (p. 229).
20. Um relatório da GPU, de 1931, sublinha a “completa apatia” e passividade resultantes do terror exercido sobre os inocentes. Ele menciona a diferença entre a resistência inicial, quando um homem, “inimigo do regime”, mobilizava dois milicianos no seu aprisionamento, e os aprisionamentos maciços, quando “um miliciano pode conduzir grandes grupos que marcham tranquilamente sem que ninguém sequer tente fugir” (p. 248).
21. Ibid., p. 135.
22. Ibid., pp. 57-8. No tocante à histeria crescente e às denúncias maciças, ver também as pp. 222 e 229 ss. e a deliciosa história da p. 235, onde ficamos sabendo como um dos camaradas estava convicto de que “o camarada Stálin havia tido uma atitude conciliatória frente ao grupo trotskista-zinovievista”, uma acusação que, na época, implicava no mínimo a expulsão imediata do partido. Mas ele não teve tal sorte. O orador seguinte acusou-o de ser “politicamente desleal” ao criticar o camarada Stálin, após o que ele prontamente “confessou” seu erro.
23. Fainsod não é o único autor que tira conclusões desse tipo, embora elas sejam tão incompatíveis com os fatos revelados pelos documentos. O terror e a permanente instabilidade que ele cria permitem manter o totalitarismo, como contribuem também para organizar o sistema de satélites, enquanto a gradativa liberalização da Rússia soviética, embora levasse ao reforço da sua economia, a fez perder o controle tanto sobre os satélites quanto sobre os cidadãos.
24. Quando, em 1922, os “professores reacionários”, isto é, não pertencentes ao partido, foram eliminados, provocando protestos dos estudantes que quiseram manter o corpo docente de alto nível independentemente da filiação política, os expurgos atingiram de imediato os “elementos individualistas” entre os estudantes. Aliás, é provável que um dos alvos dos Grandes Expurgos fosse abrir carreiras à geração jovem criada após a Revolução e sem contato com o passado.
25. Armstrong, op. cit., p. 3f19, afirma que a importância da intervenção do marechal Zhukov na luta intrapartidária foi “extremamente exagerada”, e sustenta que Khrushchev “triunfou sem qualquer necessidade de intervenção militar”, porque era “apoiado pelo aparato do partido”. Isso não parece ser verdade. Mas é verdade que “muitos observadores estrangeiros”, por causa do papel do Exército no apoio a Khrushchev contra o aparato partidário, chegaram à conclusão equivocada de um aumento duradouro do poder dos militares às expensas do partido, como se a União Soviética estivesse para passar de uma ditadura partidária para uma ditadura militar.
26. Ibid., p. 320.
27. Ibid., p. 325.
28. Ibid., pp. 339 ss.
29. Ver Stanley Vardys, “How the Baltic republics fare in the Soviet Union”, em Foreign Affairs, abril de 1966.
30. Armstrong, op. cit., pp. 235 ss.
31. Fainsod, op. cit., p. 56.
Notas do Capítulo 1
1. O “feitiço” com que Hitler dominava os seus ouvintes foi reconhecido muitas vezes, e recentemente pelos editores de Hitlers Tischgespräche , Bonn, 1951 ( Hitler’s table talks, edição americana, Nova York, 1953; citações da edição original alemã). Esse fascínio — “o estranho magnetismo que Hitler irradiava com tanta força” — era devido “à crença fanática que ele tinha em si mesmo” (introdução de Gerhard Ritter, p. 14), em sua competência sobre qualquer assunto, e no fato de que qualquer parecer que emitisse — fosse a respeito dos efeitos nocivos do fumo ou sobre a política de Napoleão — sempre podia ser incluído numa ideologia que pretendia abranger todas as coisas do mundo. O fascínio é um fenômeno social, e o fascínio que Hitler exercia sobre o seu ambiente deve ser definido em termos daqueles que o rodeavam. A sociedade tende a aceitar uma pessoa pelo que ela pretende ser, de sorte que um louco que finja ser um gênio sempre tem certa possibilidade de merecer crédito, pelo menos no início. Na sociedade moderna, com a sua falta de discernimento, essa tendência é ainda maior, de modo que uma pessoa que não apenas tem certas opiniões, mas as apresenta num tom de inabalável convicção, não perde facilmente o prestígio, não importa quantas vezes tenha sido demonstrado o seu erro. Hitler descobriu que o inútil jogo entre as várias opiniões e “a convicção […] de que tudo é conversa fiada” (p. 281) podia ser evitado se se aderisse a uma das muitas opiniões correntes com “inflexível consistência”. A arbitrariedade de tal atitude exerce um forte fascínio sobre a sociedade porque lhe permite salvar-se da confusão de opiniões que ela mesma constantemente produz. Esse “dom” do fascínio, no entanto, tem importância apenas social. Em Tischgespräche Hitler estava envolvido num jogo social, falando não aos da sua espécie, mas aos generais da Wehrmacht, dos quais todos pertenciam à “sociedade”. Seria, porém, errôneo acreditar que os sucessos de Hitler se baseassem em seu “poder de fascínio”; se fosse só por isso, nunca teria passado de figura de proa dos círculos sociais.
2. Ver as esclarecedoras observações de Carlton J. H. Hayes sobre “The novelty of totalitarianism in the history of Western civilization”, em Symposium on the totalitarian state, 1939, Proceedings of the American Philosophical Society, Filadélfia, 1940, vol. LXXXII.
3. Tratava-se “da primeira grande revolução da história realizada com a aplicação da lei existente no momento da tomada do poder” (Hans Frank, Recht und Verwaltung, 1939, p. 8).
4. O melhor estudo de Hitler e da sua carreira é a biografia de Hitler por Alan Bullock, Hitler, a study in tyranny, Londres, 1952. Segundo a tradição inglesa da biografia política, o autor emprega meticulosamente todas as fontes disponíveis e dá uma visão completa do ambiente político contemporâneo. Com essa publicação, as excelentes obras de Konrad Heiden — principalmente Der Fuehrer: Hitler’s rise to power, Boston, 1944 — foram superadas, embora continuem sendo importantes para a interpretação geral dos acontecimentos. No tocante à carreira de Stálin, uma obra fundamental é ainda Stalin: a critical survey of Bolshevism, Nova York, 1939, de Boris Souvarine. Isaac Deutscher, Stalin: a political biography, Nova York e Londres, 1949, é indispensável pela rica documentação e grande conhecimento das lutas internas do partido bolchevista; peca pela comparação de Stálin a Cromwell, Napoleão e Robespierre.
5. Franz Borkenau, The totalitarian enemy, Londres, 1940, p. 231.
6. Citado da edição alemã dos “Protocolos dos sábios do Sião”: Die Zionistischen Protokolle mit einem Vorund Nachwort von Theodor Fritsch, 1924, p. 29.
7. Essa é, na verdade, uma especialidade do totalitarismo russo. É interessante observar que nos primeiros julgamentos de engenheiros estrangeiros da União Soviética a simpatia pelo comunismo era usada para induzir a pessoa à autoacusação: “Durante todo o tempo as autoridades insistiam em que devia confessar haver cometido atos de sabotagem dos quais não era culpado. Recusei-me. Disseram-me: ‘Se és a favor do governo soviético, como afirmas, prova-o pelos teus atos; o governo precisa da tua confissão’”. Relatado por Anton Ciliga, The Russian enigma, Londres, 1940, p. 153. Trótski nos deu uma justificativa teórica para esse tipo de conduta: “Só podemos ter razão com o Partido e através dele, pois a história não nos concede outra forma de certeza. Os ingleses têm um ditado, ‘Minha pátria, certa ou errada’. […] Temos um motivo histórico muito melhor para dizer que o partido, certo ou errado em certos casos individuais, é o meu partido” (Souvarine, op. cit., p. 362). Por outro lado, os oficiais do Exército Vermelho que não pertenciam ao movimento eram julgados a portas fechadas.
8. O autor nazista Andreas Pfenning rejeita explicitamente a ideia de que a SA estivesse lutando por um “ideal” ou fosse motivada por uma “experiência idealista”. “A experiência básica [dos homens da SA] ocorreu no decorrer da luta.” (Em “Gemeinschaft und Staatswissenschaft” [Comunidade e ciência do Estado], publicada na revista Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, vol. 96. Tradução citada de Ernst Fraenkel, The dual state, Nova York e Londres, 1941, p. 92.) Vê-se, aliás, do extenso material impresso pelo Hauptamt-Schulungsamt, principal centro de doutrinação da SS, que a palavra “idealismo” foi cuidadosamente evitada. Não se exigia idealismo dos membros da SS, mas “perfeita consistência lógica em todas as questões de ideologia e o prosseguimento impiedoso da luta política” (Werner Best, Die deutsche Polizei, 1941, p. 99).
9. A esse respeito, a Alemanha do pós-guerra oferece muitos exemplos esclarecedores. O fato de que as tropas negras americanas não foram, de modo algum, recebidas com hostilidade, a despeito da maciça doutrinação racial levada a cabo pelos nazistas, já é bastante interessante. De modo igualmente surpreendente, a Waffen-SS “não lutou até o último homem”, e os componentes dessa unidade especial, “cujos sacrifícios ultrapassaram de longe os da Wehrmacht, se comportavam nas últimas semanas de guerra como qualquer unidade militar composta de civis” (Karl O. Paetel: “Die SS”, em: Vierteljahreshefte für Zeitgeschichte, janeiro de 1954).
10. Excluam-se dessa afirmativa os governos da Europa oriental dominados por Moscou, pois eles governam em benefício de Moscou e atuam como agentes do Comintern, sendo exemplos do alastramento do movimento totalitário dirigido por Moscou, não de criações nativas. A única exceção parece ter sido Tito, da Iugoslávia, que pôde romper com Moscou não apenas por perceber que os métodos totalitários inspirados pela Rússia lhe custariam o apoio da população, mas por estar longe do alcance do Exército Vermelho.
11. Uma prova da natureza não totalitária da ditadura fascista é o número surpreendentemente pequeno de criminosos políticos, e as sentenças relativamente suaves que lhes eram aplicadas. Durante os anos de 1926 a 1932, em que foram particularmente ativos, os tribunais especiais para julgamento dos criminosos políticos pronunciaram sete sentenças de morte, 257 sentenças de dez ou mais anos de prisão, 1.360 de menos de dez anos, e muitos outros mais foram exilados; 12 mil pessoas foram presas e julgadas inocentes, o que seria inconcebível nas condições do terror nazista ou bolchevista. Ver E. Kohn-Bramstedt, Dictatorship and political police: the technique of control by fear, Londres, 1945, pp. 51 ss.
12. Os teóricos políticos do nazismo sempre afirmaram enfaticamente que “o ‘estado ético’ de Mussolini e o ‘Estado ideológico’ [Weltanschauungsstaat] de Hitler não podem ser mencionados no mesmo fôlego” (Gottfried Neesse, “Die verfassungsrechtliche Gestaltung der Ein-Partei”, em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, 1938, vol. 98). Disse Goebbels acerca da diferença entre o fascismo e o nacional-socialismo: “[O fascismo] é […] completamente diferente do nacional-socialismo. Enquanto este último desce até as raízes, o fascismo é superficial” ( The Goebbels diaries 1942-1943, ed. por Louis Lochner, Nova York, 1948, p. 71). “[O Duce] não é um revolucionário como o Führer ou Stálin. Está tão preso ao povo italiano que lhe faltam as amplas qualidades de um revolucionário em escala mundial” (ibid., p. 468). Himmler expressou a mesma opinião num discurso pronunciado em 1943 numa Conferência de Oficiais Comandantes: “O fascismo e o nacional-socialismo são fundamentalmente diferentes, […] não há absolutamente nenhuma comparação entre eles como movimentos espirituais e ideológicos”. (Ver Kohn-Bramstedt, op. cit., apêndice A.) Por outro lado, ainda no começo da década de 20, Hitler reconheceu a afinidade entre os movimentos nazista e comunista: “Em nosso movimento, os dois extremos se tocam: os comunistas da esquerda e os oficiais e estudantes da direita. Esses sempre foram os dois elementos mais ativos. […] Os comunistas foram os idealistas do socialismo”. (Ver Heiden, op. cit., p. 147.) Röhm, o chefe da SA, apenas repetia uma opinião corrente quando escreveu, no fim da década de 20: “Muito nos separa dos comunistas, mas respeitamos a sinceridade de sua convicção e sua disposição de fazer sacrifícios em benefício da própria causa, e isto nos une a eles” (Ernst Röhm, Die Geschichte eines Hochverräters [A história de um traidor], 1933, Volksausgabe, p. 273). Durante a guerra, os nazistas reconheceriam os russos como seus pares com mais facilidade do que qualquer outra nação. Falando em maio de 1943, Hitler “começou mencionando o fato de que, nesta guerra, a burguesia e os Estados revolucionários se confrontam. Para nós tem sido fácil condenar os Estados burgueses, pois são bastante inferiores a nós em sua educação e atitude. Os países que têm uma ideologia ostentam uma vantagem sobre os Estados burgueses […] [No Leste] encontramos um oponente que também alimenta uma ideologia, embora errada” (Goebbels diaries, p. 355). Essa opinião baseava-se em considerações ideológicas, não militares. Gottfried Neesse, Partei und Staat [Partido e Estado], 1936, oferece-nos a versão oficial da luta do movimento pelo poder, quando escreve: “Para nós, a frente unida do sistema abrange desde o Partido Nacional do Povo Alemão [i. e., a extrema direita] até os social-democratas. O Partido Comunista é um inimigo fora do sistema. Por isso, quando, nos primeiros meses de 1933, a morte do sistema já estava decretada, ainda nos restava travar uma batalha decisiva contra o Partido Comunista” (p. 76).
13. Hitlers Tischgespräche , p. 113. Nessa obra encontramos ainda numerosos exemplos que demonstram que, ao contrário de certas lendas do pós-guerra, Hitler nunca pretendeu defender “o Ocidente” contra o bolchevismo, mas sempre esteve disposto a unir-se aos “vermelhos” para destruir o Ocidente, mesmo durante a luta contra a União Soviética. Ver especialmente pp. 95, 108, 113 ss., 158, 385.
14. Sabemos hoje que Stálin foi repetidamente advertido quanto ao iminente ataque de Hitler à União Soviética. Mesmo quando o adido militar soviético em Berlim o informou quanto ao dia do ataque nazista, Stálin recusou-se a crer que Hitler violaria o tratado. (Ver Speech on Stalin de Khrushchev, texto distribuído pelo Departamento de Estado norte-americano, New York Times, 5 de junho de 1956.)
15. A seguinte informação, relatada por Souvarine, op. cit., p. 669, constitui importante exemplo: “Segundo W. Krivitsky, cuja excelente fonte de informes confidenciais é a GPU: ‘Em lugar dos 171 milhões de habitantes estimados para 1937, só foram recenseados 145 milhões; assim, não se conseguem encontrar 30 milhões de pessoas na União Soviética”. Como se sabe, só a liquidação dos kulaks, no início da década de 30, havia custado perto de 8 milhões de vidas. Ver Communism in action, U. S. Government, Washington, 1946, p. 140.
16. Parte desses planos relativa ao extermínio de povos não germânicos, principalmente dos eslavos, pode ser encontrada no Bréviaire de la haine, de Léon Poliakov, Paris, 1951, cap. 8. Um projeto de lei de saúde do Reich, escrito pelo próprio Hitler, mostra que a máquina de destruição nazista não se teria detido nem mesmo diante do povo alemão. Nesse projeto, ele propõe “isolar” do resto da população todas as famílias que tenham casos de moléstias do coração ou do pulmão, sendo que o próximo passo nesse programa era, naturalmente, a liquidação física. Este e vários outros projetos preparados para depois da vitória estão contidos numa circular aos líderes distritais (Kreisleiter) de Hesse-Nassau, sob a forma de relatório de uma discussão, havida no quartel-general do Führer, sobre “medidas que deviam ser adotadas antes […] e depois da vitória”. Ver a coleção de documentos em Nazi conspiracy and aggression, Washington, 1946, et seq., vol. VII, p. 175. Nesse contexto, há ainda a planejada promulgação de uma “legislação global quanto a estranhos”, por meio da qual a “autoridade institucional” da polícia promoverá o embarque para os campos de concentração de pessoas inocentes de quaisquer crimes (Paul Werner, SS- Standartenführer, em Deutsches Jugendrecht, vol. 4, 1944). Com relação a essa “política de população negativa”, que, no seu objetivo de extermínio, positivamente se iguala aos expurgos no partido bolchevista da década de 30, é importante lembrar que “neste processo de seleção não deve haver nenhuma solução de continuidade” (Himmler, “Die Schutztaffel” [O Esquadrão de Proteção — ou seja, a unidade SS], em Grundlagen Aufbau und Wirtschaftsordnung des nationalsozialistischen Staates [Fundamentos, estrutura e ordem econômica do Estado nacional-socialista], no 7b). “A luta do Führer e do seu partido fora uma seleção que até agora não tinha sido atingida. […] Esta seleção e esta luta foram ostensivamente realizadas em 30 de janeiro de 1933. […] O Führer e sua velha guarda sabiam que o verdadeiro esforço apenas havia começado.” (Robert Ley, Der Weg zur Ordensburg [O caminho para a liderança], o. D. Verlag der Deutschen Arbeitsfront. Livro fora de comércio).
17. F. Borkenau descreve corretamente a situação: “Os comunistas obtiveram sucesso apenas modesto na tentativa de inAuenciar as massas da classe trabalhadora; portanto, sua base de massa, se a têm, é cada vez mais afastada do proletariado” (“Die neue Komintern” [O novo Comintern], em Der Monat [O Mês], Berlim, 1949, vol. 4).
18. William Ebenstein, The Nazi state, Nova York, 1943, p. 247.
19. Na descrição de Maksim Górki. Ver Souvarine, op. cit., p. 290.
20. Discurso de Heinrich Himmler sobre a “Organização e dever da SS e da polícia”, publicado em National- politischer Lehrgang der Wehrmacht vom 15–23. Januar 1937 [Instrução político-nacional das Forças Armadas, 15-23 de janeiro de 1937]. Tradução citada de Nazi conspiracy and aggression. Office of the United States Chief of Counsel for the Prosecution of Axis Criminality. U. S. Government, Washington, 1946, IV, pp. 616 ss.
21. Gustave Le Bon, La psychologie des foules, 1895, menciona o peculiar desprendimento das massas. Ver o cap. II, parágrafo 5.
22. Os fundadores do partido nazista referiam-se uma vez ou outra a esse nacionalismo, mesmo antes de Hitler havê-lo chefiado como “partido da Esquerda”. Interessante também é um incidente que ocorreu após as eleições parlamentares de 1932: “Gregor Strasser disse ao Führer, com certa amargura, que antes das eleições os nazistas poderiam ter constituído no Reichstag uma maioria com o Centro; agora já não havia essa possibilidade, os dois partidos tinham menos da metade das cadeiras do parlamento; […] Mas com os comunistas ainda tinham uma maioria, disse Hitler; e por isto ninguém pode governar contra nós” (Heiden, op. cit., pp. 94 e 495, respectivamente).
23. Compare-se Carlton J. H. Hayes, op. cit., que não diferencia entre a ralé e as massas, e supõe que os ditadores totalitários “vieram das massas e não das classes”.
24. Essa é a teoria central de K. Heiden, cujas análises do movimento nazista ainda são das mais importantes. “Dos escombros das classes mortas surge a nova classe de intelectuais, e à sua frente vão os mais inescrupulosos, aqueles que menos têm a perder e, portanto, os mais fortes: os boêmios armados, para quem a guerra é o lar, e a pátria é a guerra civil” (op. cit., p. 100).
25. A trama entre o general Schleicher, do Reichswehr, e Röhm, o chefe da SA, consistia em um plano para colocar todas as formações paramilitares sob o comando militar do Reichswehr, o que de imediato acrescentaria milhões às fileiras do Exército. Isso, naturalmente, teria certamente levado a uma ditadura militar. Em junho de 1934, Hitler liquidou Röhm e Schleicher. As negociações iniciais começaram com o pleno conhecimento de Hitler, que usou as conexões de Röhm com o Reichswehr para ludibriar os círculos militares alemães acerca de suas verdadeiras intenções. Em abril de 1932, Röhm declarou, como testemunha em um dos processos legais de Hitler, que a condição militar da SA era perfeitamente entendida pelo Reichswehr. (Para documentação comprovatória do plano Röhm- Schleicher, ver Nazi conspiracy, V, 466 ss. Ver também Heiden, op. cit., p. 450.) O próprio Röhm fala com orgulho das suas negociações com Schleicher que, segundo ele, foram iniciadas em 1931. Schleicher havia prometido colocar a SA sob o comando dos oficiais do Reichswehr em caso de emergência. (Ver Die Memoiren des Stabschefs Röhm [As memórias do comandante Röhm], Saarbrücken, 1934, p. 170.) O caráter militar da SA, moldado por Röhm e constantemente combatido por Hitler, continuou a ditar o seu vocabulário mesmo depois da liquidação da facção de Röhm. Ao contrário dos SS, os membros da SA sempre insistiram em que eram os “representantes da vontade militar da Alemanha”, e para eles o Terceiro Reich era uma “comunidade militar [apoiada em] duas colunas: o Partido e a Wehrmacht” (ver Handbuch der SA, Berlim, 1939, e Victor Lutze, “Die Sturmabteilungen” [As Seções de Assalto — ou seja, a SA], em Grundlagen, Aufbau und Wirtschaftsordnung des nationalsozialistischen Staates, no 7a).
26. A autobiografia de Röhm é, em especial, um verdadeiro clássico desse tipo de literatura.
27. Os anti-stalinistas basearam a sua crítica do desenvolvimento da União Soviética nessa formulação marxista, e até hoje continuam dominados por essa ideia. Rakovsky, escrevendo do seu exílio na Sibéria em 1930, é da seguinte opinião: “Sob as nossas vistas surgiu e está sendo formada uma ampla classe de diretores que tem suas subdivisões internas e que cresce através de cooptação calculada e nomeações diretas ou indiretas. […] O que une essa classe original é uma forma, também original, de propriedade privada, a saber, o poder do Estado” (citado por Souvarine, op. cit., p. 564). Trata-se de uma análise bastante precisa do desenvolvimento da era pré-stalinista. Para a evolução da relação entre o partido e os sovietes, que tem importância decisiva no curso da Revolução de Outubro, ver I. Deutscher, The prophet armed: Trotsky 1879-1921, 1954.
28. Em 1927, 90% dos membros dos sovietes rurais e 75% dos seus presidentes não eram membros do Partido; os comitês executivos das regiões eram formados por 50% de não partidários, enquanto no Comitê Central 75% dos delegados eram membros do partido. Ver o artigo “Bolshevism”, de Maurice Dobb, na Encyclopedia of social sciences.
A. Rosenberg, A history of bolshevism, Londres, 1934, cap. VI, descreve em detalhes como os membros do partido nos sovietes, votando “de acordo com as instruções que recebiam das autoridades permanentes do Partido”, destruíram internamente o sistema dos sovietes.
29. Citamos esses algarismos do livro de Victor Kravchenko, I chose freedom: the personal and political life of a Soviet official, Nova York, 1946, pp. 278 e 303. Trata-se, naturalmente, de uma fonte altamente duvidosa. Mas, como no caso da Rússia soviética, basicamente não se pode recorrer a não ser a fontes duvidosas, e temos de confiar inteiramente em reportagens, relatos e estimativas de um tipo ou de outro — tudo o que podemos fazer é usar qualquer informação que, pelo menos, pareça ter alto grau de probabilidade. Alguns historiadores acreditam que o método oposto — ou seja, usar exclusivamente o material fornecido pelo governo russo — é mais fidedigno, mas não é o caso, porque o material oficial não passa de propaganda.
30. O Relatório de Stálin ao Décimo Sexto Congresso denunciava o deviacionismo como “reflexo” da resistência dos camponeses e das classes pequeno-burguesas nos escalões do partido. (Ver Leninism, 1933, vol. II, cap. III.) O curioso é que a oposição ficava indefesa contra esses ataques, porque também os opositores, e especialmente Trótski, estavam “sempre ansiosos por descobrir uma luta de classes por trás da luta de cliques” (Souvarine, op. cit., p. 440).
31. Kravchenko, op. cit., p. 187.
32. Souvarine, op. cit., p. 575.
33. A senha da SS, formulada pelo próprio Himmler, começa com as palavras: “Não existe tarefa dedicada a si mesma”. Ver Gunter d’Alquen, “Die SS”, em Schriften der Hochschule für Politik [Escritos da Escola Superior de Política], 1939. Os panAetos publicados pela SS para o consumo interno repetidamente insistem na “absoluta necessidade de se compreender a futilidade de tudo o que venha a ser um fim por si mesmo” (ver Der Reichsführer SS und Chef der deutschen Polizei [O líder nacional da SS e chefe da polícia alemã], sem data, “exclusivamente para uso interno da polícia”).
34. A própria prática tem sido abundantemente documentada. W. Krivitsky, em seu livro In Stalin’s secret services (Nova York, 1939), remonta essa diretriz diretamente a Stálin.
35. Hitler escreveu em Mein Kampf (2 vols., 1a edição alemã, 1925 e 1927 respectivamente) que era melhor ter um programa antiquado do que permitir uma discussão de programa (livro II, cap. V). Pouco depois, declararia publicamente: “Quando tomarmos o governo, o programa virá por si mesmo. […] O primeiro passo deverá ser uma inconcebível onda de propaganda. Isto é, uma ação política que pouco teria a ver com os outros problemas do momento”. Ver Heiden, op. cit., p. 203.
36. Souvarine sugere (erradamente, em nossa opinião) que já Lênin havia abolido o papel de um programa partidário. “Nada podia mostrar mais claramente que o bolchevismo, como doutrina, não existia a não ser na cabeça de Lênin; todo bolchevista, se fosse deixado sozinho, desviava-se da ‘linha’ de sua facção […] pois o que unia esses homens era o seu temperamento e a autoridade de Lênin, e não as ideias” (op. cit., p. 85).
37. O programa de Gottfried Feder para o partido nazista, com os seus famosos 25 pontos, teve papel mais importante na literatura acerca do movimento do que no próprio movimento.
38. O impacto do lema, formulado pelo próprio Himmler, é difícil de traduzir. Em alemão, Meine Ehre heisst Treue indica uma devoção e uma obediência absolutas, que transcendem o significado da mera disciplina ou fidelidade pessoal. Nazi conspiracy, cujas traduções de documentos alemães e da literatura nazista são uma fonte indispensável de material, mas que, infelizmente, são muito irregulares, traduz a senha da SS como “Minha honra significa fidelidade” (V, 346).
39. Mussolini foi provavelmente o primeiro líder de partido a rejeitar conscientemente um programa formal e substituí-lo apenas pela liderança e pela ação inspiradas. Por trás dessa atitude, estava a noção de que a atualidade do próprio momento era o principal elemento de inspiração, ao qual um programa partidário somente poderia prejudicar. A filosofia do fascismo italiano foi expressa pelo “atualismo” de Gentile e não pelos “mitos” de Sorel. Compare-se também o artigo “Fascism” da Encyclopedia of social sciences. O programa de 1921 foi formulado quando o movimento existia havia apenas dois anos, e continha, na maior parte, a sua filosofia nacionalista.
40. Ernst Bayer, Die SA, Berlim, 1938. Traduzido do Nazi conspiracy, IV, p. 783.
41. Isso ocorre pela primeira vez na Política de Platão, 305, onde a ação é interpretada em termos de archein e prattein — de ordenar o início de um ato e de executar a ordem.
42. Hitlers Tischgespräche, p. 198.
43. Mein Kampf, livro I, cap. XI. Veja-se também, por exemplo, Dieter Schwartz, “Angriffe auf die nationalsozialistische Weltanschauung” [Ataques à ideologia nacional-socialista], em Aus dem Schwarzen Korps, no 2, 1936, que responde à crítica óbvia de que o nacional-socialismo, após haver galgado o poder, continuava a falar de “luta”: “Como ideologia [Weltanschauung], o nacional-socialismo não abandonará a sua luta até que […] o modo de vida de cada indivíduo alemão tenha sido moldado segundo os seus valores fundamentais, postos em prática a cada dia”.
44. Ver a descrição que Hitler faz de suas reações ao eclodir a Primeira Guerra Mundial ( Mein Kampf, livro 1, cap. V).
45. Ver a coleção de artigos sobre a “crônica interna da Primeira Guerra Mundial” por Hanna Hafkesbrink, Unknown Germany, New Haven, 1948, pp. 43, 45 e 81, respectivamente. Trata-se de trabalho de profundo valor, que nos revela os fatores imponderáveis da atmosfera histórica, e que torna deplorável a ausência de estudos semelhantes para a França, Inglaterra e Itália.
46. Ibid., pp. 20-1.
47. Tudo começava com uma sensação de completo alheamento em relação à vida normal. Escreveu Rodolf Binding, por exemplo: “Cada vez mais fazemos parte dos mortos, dos alienados — porque a grandeza do que ocorre nos aliena e separa — e não dos banidos, cuja volta é possível” (ibid., p. 160). Uma curiosa reminiscência da pretensão da elite da geração das trincheiras pode ainda ser encontrada no relato de Himmler sobre a “forma de seleção” para a reorganização da SS: “[…] o processo de seleção mais severo é proporcionado pela guerra, pela luta de vida e morte. Nesse processo, o valor do sangue se manifesta pela realização. […] Mas a guerra é uma circunstância excepcional, e era preciso encontrar uma forma de seleção contínua também em tempos de paz” (op. cit.).
48. Ver, por exemplo, Ernst Jünger, The storm of steel, Londres, 1929.
49. Hafkesbrink, op. cit., p. 156.
50. Heiden, op. cit., mostra a consistência com que Hitler preferia a catástrofe nos primeiros dias do movimento, como receava uma possível recuperação da Alemanha. “Uma meia dúzia de vezes [durante o Ruhrputsch], com palavras diferentes, declarou às suas tropas de choque que a Alemanha estava afundando. ‘Nossa tarefa é assegurar o sucesso do nosso movimento’” — (p. 167) — sucesso que, naquele instante, dependia do colapso da luta no Ruhr.
51. Hafkesbrink, op. cit., pp. 156-7.
52. Esse sentimento já era generalizado durante a guerra, quando Rudolf Binding escreveu: “Esta guerra não deve ser comparada a uma campanha. Pois, numa campanha, a vontade de um líder se confronta com a de outro. Mas nesta guerra ambos os adversários jazem por terra, e somente a Guerra impõe a sua vontade” (ibid., p. 67).
53. Bakúnin, numa carta escrita a 7 de fevereiro de 1870. Ver Max Nomad, Apostles of Revolution, Boston, 1939, p. 180.
54. O “Catecismo da Revolução” não foi escrito nem pelo próprio Bakúnin nem por seu discípulo Nechayev. Quanto à questão da autoria e tradução do texto completo, ver Nomad, op. cit., pp. 227 ss. De qualquer forma, o “sistema de completo descaso por quaisquer dogmas de simples decência e integridade na atitude [do revolucionário] em relação aos outros seres humanos […] ficou na história da revolução russa com o nome de ‘Nechayevshtchina” (ibid., p. 224).
55. Ernest Seillière, Mysticisme et domination: essais de critique impérialiste, 1913, é um dos principais teóricos políticos do imperialismo. Ver também Cargill Sprietsma, We imperialists : notes on Ernest Seillière’s philosophy of imperialism, Nova York, fi93fi; G. Monod em La Revue Historique, janeiro de 1912; e Louis Estève, Une nouvelle psychologie de l’impérialisme: Ernest Seillière, 1913.
56. Na França, desde 1930, o marquês de Sade tornou-se um dos autores favoritos da avant-garde literária. Jean Paulhan, em sua introdução a uma nova edição de Les infortunes de la vertu, de Sade, Paris, 1946, observa: “Quando vejo hoje tantos escritores tentando conscientemente negar o artifício e o jogo literário em benefício do inexprimível [un événement indicible] […], ansiosamente buscando o sublime no infame, o grande no subversivo […], pergunto-me […] se a nossa literatura moderna, naqueles setores que nos parecem mais vitais — ou, pelo menos, mais agressivos — não se voltou inteiramente para o passado, e se a causa disso não foi precisamente Sade”. Ver também Georges Bataille, “Le secret de Sade”, em La critique, tomo III, nos 15-6, 17, 1947.
57. Goebbels, op. cit., p. 139.
58. As teorias da arte de Bauhaus eram características nesse particular. Ver também as observações de Bertolt Brecht sobre o teatro em Gesammelte Werke, Londres, 1938.
59. O seguinte trecho, de autoria de Röhm, é típico do sentimento de quase toda a geração mais jovem, e não apenas de uma elite: “a hipocrisia e o domínio do fariseu são as mais notáveis características da sociedade de hoje. […] Nada podia ser mais falso do que a chamada moral da sociedade. Os moços estão perdidos no mundo filisteu da dupla moral burguesa, e já não sabem como distinguir entre a verdade e o erro” (Die Geschichte eines Hochverräters, pp. 267 e 269). A homossexualidade que reinava nesses círculos era também, pelo menos em parte, uma expressão do seu protesto contra a sociedade.
60. O papel da Weltanschauung na formação do movimento nazista foi acentuado muitas vezes pelo próprio Hitler. É interessante notar que em Mein Kampf ele alega ter compreendido a necessidade de basear um partido numa Weltanschauung em virtude da superioridade dos partidos marxistas (livro II, cap. I: “Weltanschauung e o Partido”).
61. Nicolai Berdyaev, The origin of Russian Communism, 1937, pp. 124-5.
62. Houve, por exemplo, a curiosa intervenção de Welhelm Kube, comissário-geral em Minsk e um dos mais antigos membros do partido, que, em 1941, ou seja, no começo do assassínio em massa, escreveu a seu chefe: “Não há dúvida de que desejo cooperar com a solução da questão judaica, mas aqueles que foram criados em nossa cultura são, afinal de contas, diferentes das hordas bestiais locais. Devemos designar para a tarefa de matá-los os lituanos e letões que são desprezados até mesmo pela população local? Não poderia fazê-lo. Solicito que me sejam dadas instruções claras para tratar do assunto do modo mais humano possível, em benefício do prestígio do nosso Reich e do nosso Partido”. Essa carta foi publicada em Hitler’s professors, de Max Weinreich, Nova York, 1946, pp. 153-4. A intervenção de Kube foi prontamente rejeitada, mas uma tentativa quase idêntica de salvar a vida de judeus dinamarqueses, feita por W. Best, plenipotenciário do Reich na Dinamarca e conhecido nazista, foi melhor sucedida. Ver Nazi conspiracy, V, 2. Da mesma forma, Alfred Rosenberg, que havia pregado a inferioridade dos povos eslavos, obviamente nunca imaginara que as suas teorias seriam um dia usadas para liquidá-los. Encarregado da administração da Ucrânia, escreveu relatórios indignados sobre as condições que lá prevaleciam no outono de 1942, depois de haver tentado obter a intervenção direta do próprio Hitler. Ver Nazi conspiracy, III, pp. 83 ss., e IV, pp. 62. Há, naturalmente, certas exceções a essa regra. O homem que salvou Paris da destruição foi o general Von Choltitz, que, no entanto, ainda “temia ser destituído do comando por não haver cumprido as ordens”, embora soubesse que “a guerra estava perdida havia anos”. Parece duvidoso que ele houvesse tido a coragem de resistir às ordens de “transformar Paris num monte de ruínas” sem o enérgico apoio de um velho nazista, Otto Abetz, embaixador alemão na França, segundo o seu próprio testemunho durante o julgamento de Abetz em Paris.
63. Um inglês, Stephen H. Roberts, The house that Hitler built, Londres, 1939, descreve Himmler como “um homem de fina cortesia e ainda interessado nas coisas simples da vida. Não tem aquela pose dos nazistas que agem como se fossem semideuses. […] Nenhum homem aparenta menos o cargo que exerce do que esse ditador da polícia alemã, e estou convencido de que ninguém que eu tenha encontrado na Alemanha é mais normal […]” (pp. 89-90). Isso nos faz lembrar, de modo curioso, a observação da mãe de Stálin que, segundo a propaganda bolchevista, disse dele: “Um filho exemplar. Quisera que todos fossem como ele” (Souvarine, op. cit., p. 656).
64. Quem fez essa observação foi Robert Ley. Ver Kohn-Bramstedt, op. cit., p. 178.
65. A política bolchevista, que, nesse particular, é surpreendentemente coerente, é bem conhecida e dispensa maiores comentários. Picasso, para citar o exemplo mais famoso, não é apreciado na Rússia, embora tenha se tornado comunista. É possível que a súbita mudança de atitude de André Gide, depois que viu a realidade bolchevique na Rússia soviética (Retour de l’URSS) em 1936, tenha definitivamente convencido Stálin da inutilidade dos artistas criativos, mesmo como simpatizantes. A política nazista diferia das medidas bolchevistas apenas no fato de que não matava os seus talentos. Valeria a pena estudar em detalhe a carreira dos eruditos alemães, comparativamente poucos, que foram além da mera cooperação e ofereceram os seus serviços por serem nazistas convictos. (Weinreich, op. cit., não distingue entre os professores que adotaram o credo nazista e os que deviam sua carreira exclusivamente ao regime, omite as carreiras anteriores dos eruditos que se preocupavam com a situação, e coloca assim, indiscriminadamente, conhecidos homens de grandes méritos na mesma categoria de fanáticos.) Interessantíssimo é o exemplo do jurista Carl Schmitt, cujas engenhosas teorias acerca do fim da democracia e do governo legal ainda constituem leitura impressionante; já em meados da década de 30, foi substituído pelo tipo nazista de teóricos políticos como Hans Frank, que mais tarde foi governador da Polônia ocupada, Gottfried Neesse, e Reinhard Hoehn. O último a cair em desgraça foi Walter Frank, que havia sido antissemita convicto e membro do partido nazista antes da tomada do poder e que, em 1933, foi diretor do recém-fundado Reichsinstitut für Geschichte des Neuen Deutschlands [Instituto do Reich para a História da Nova Alemanha] com o seu famoso Forschungsabteilung Judenfrage [Seção de Pesquisas para a Questão Judaica], e editor da volumosa (nove tomos!) obra Forschungen zur Judenfrage (1937-44). Em começos da década de 40, Frank teve de ceder a sua posição e inAuência a Alfred Rosenberg, cujo Der Mythos des 20. Jahrhunderts [O mito do século XX] certamente não constitui nenhum exemplo de “erudição”. O motivo pelo qual Frank não merecia a confiança dos nazistas era, obviamente, o fato de não ser charlatão. O que nem a elite nem a ralé que “abraçava” o nacional-socialismo com tanto fervor podia compreender era que “não se pode abraçar esta Ordem […] por acaso. Além e acima do desejo de servir, está a implacável necessidade da seleção, que não reconhece nem circunstâncias atenuantes nem clemência” ( Der Weg der SS [O caminho da SS], emitido pela SS Hauptamt-Schulungsamt, sem data, p. 4). Em outras palavras, no tocante à seleção dos que desejavam unir-se a eles, os nazistas tomavam sua própria decisão, independentemente do “acidente” das opiniões. O mesmo parece aplicar-se à seleção de bolchevistas para a polícia secreta. F. Beck e W. Godin contam em Russian purge and the extraction of confessions, 1951, p. 160, que os membros da NKVD eram arregimentados dentre membros do partido que não tinham tido a menor oportunidade de se oferecerem para essa “carreira”.
Notas do Capítulo 2
1. Ver, por exemplo, E. Kohn-Bramstedt: em Dictatorship and political police: the technique of control by fear, Londres, 1945, pp. 164 ss, afirma que “o terror sem a propaganda perderia muito do seu efeito psicológico, enquanto a propaganda sem o terror cresce de impacto” (p. 175). O que não é considerado nessa e em outras declarações, que na sua maioria andam em círculos, é o fato de que não apenas a propaganda política mas toda a moderna publicidade de massa contêm um elemento de ameaça; que o terror, por outro lado, pode ser totalmente efetivo sem a propaganda, desde que se trate apenas do terror político convencional da tirania. Somente quando o terror objetiva coagir não apenas de fora mas, como foi o caso, de dentro, quando o regime político quer mais do que poder, somente então o terror precisa da propaganda. Nesse sentido, o teórico nazista, Eugen Hadamovsky, pôde dizer em Propaganda und nationale Macht [Propaganda e poder nacional], 1933: “A propaganda e a violência nunca são contraditórias. O uso da violência pode ser parte da propaganda” (p. 22).
2. “Quando se anunciou oficialmente que o desemprego havia sido eliminado na Rússia soviética, foram realmente eliminados como resultado desse sintoma todos os benefícios para os desempregados”. (Anton Ciliga, The Russian enigma, Londres, 1940, p. 109.)
3. A chamada “Operação Feno” começou com um decreto datado de 16 de fevereiro de 1942, assinado por Himmler, “referente [a indivíduos] de raça germânica na Polônia”. Segundo o decreto, as crianças de características “arianas” deveriam ser enviadas a famílias alemãs “dispostas [a aceitá-las] sem reserva, por amor ao bom sangue que elas têm” (Documento de Nurembergue R 135). Parece que, em junho de 1944, o Nono Exército sequestrou aproximadamente 40 mil a 50 mil crianças, transportando-as para a Alemanha. Um relatório sobre o assunto, remetido ao Estado-Maior Geral da Wehrmacht em Berlim por um funcionário chamado Brandenburg, menciona planos semelhantes para a Ucrânia (Documento PS 031, publicado por Léon Poliakov em Bréviaire de la haine, p. 317). O próprio Himmler fez várias referências a esse plano. (Ver Nazi conspiracy and aggression, Office of the United States Chief of Counsel for the Prosecution of Axis Criminality, U. S. Government, Washington, 1946, III, 640, que contém excertos do discurso de Himmler proferido em Cracóvia em março de 1942; ver também os comentários sobre o discurso de Himmler em Bad Schachen, de 1943, em Kohn-Bramstedt, op. cit., p. 244.) O modo de selecionar essas crianças pode ser deduzido pelos certificados médicos emitidos pela Seção Médica II em Minsk, na Bielo- Rússia, em fi0 de agosto de 1942: “O exame racial de Natalie Harpf, nascida a 4 de agosto de 1922, mostrou uma jovem normalmente desenvolvida, de tipo predominantemente báltico-oriental com traços nórdicos” — “Exame de Arnold Coenies, nascido a 19 de fevereiro de 1930, mostrou um garoto normalmente desenvolvido, de doze anos de idade, de tipo predominantemente oriental com traços nórdicos”. Assinado: N. Wc. (Documento nos arquivos do Yiddish Scientifíc Institute, Nova York, no Occ E 3a-17.) Quanto ao extermínio da intelectualidade polonesa, que, na opinião de Hitler, podia ser “liquidada sem escrúpulos”, ver Poliakov, op. cit., p. 321, e Documento no 2471.
4. Ver Hitlers Tischgespräche. No verão de 1942, ele ainda fala de expulsar “até o último judeu para fora da Europa” (p. 113), e de reinstalá-los na Sibéria ou na África (p. 311) ou em Madagascar, quando, na realidade, muito antes de invadir a Rússia, provavelmente em 1940, já havia tomado a decisão quanto à “solução final” e havia mandado construir as câmaras de gás no outono de 1941 (ver Nazi conspiracy and aggression, II, pp. 265 ss; III, pp. 783 ss. Documento PS 1104; V, pp. 322 ss. Documento PS 2605). Na primavera de 1941, Himmler já sabia que “os judeus [devem ser] exterminados [pois] este é o desejo e ordem inequívoca do Führer” (Dossiê Kersten no Centre de Documentation Juive).
5. A esse respeito, há um relatório muito interessante, datado de 16 de julho de 1940, sobre uma discussão no quartel-general do Führer na presença de Rosenberg, Lammers e Keitel, a que Hitler deu início declarando os seguintes “princípios básicos”: “Era essencial então não exibir nosso objetivo ulterior aos olhos de todo o mundo; […] Portanto, não deve ficar óbvio que os decretos que mantenham ordem nos territórios ocupados levem à solução final [dos judeus]. Todas as medidas necessárias — execuções, transferências de população etc. — podem ser e serão executadas apesar da letra dos decretos”. Segue-se uma discussão que não faz qualquer referência às palavras de Hitler e da qual Hitler já não participa. É óbvio que ele não foi “compreendido” (Documento L 221 no Centre de Documentation Juive, Paris).
6. Quanto à convicção de Stálin de que Hitler não atacaria a Rússia, ver Isaac Deutscher, Stalin: a political biography, Nova York, Londres, 1949, pp. 454 ss, e especialmente a nota ao pé da página 458: “Foi somente em 1948 que o chefe da Comissão de Planejamento do Estado, o vice-premiê N. Voznessensky, revelou que os planos econômicos para o terceiro trimestre de 1941 haviam sido baseados na premissa de que haveria paz, sendo que um novo plano, adequado à guerra, só havia sido elaborado após o início das hostilidades”. A suposição de Deutscher foi confirmada por relato de Khrushchev quanto à reação de Stálin ao ataque alemão contra a União Soviética. (Ver o seu “Discurso sobre Stálin” no Vigésimo Congresso, transcrito pelo New York Times, 5 de junho de 1956.)
7. “A educação [nos campos de concentração] consiste em disciplina e nunca em instrução baseada na ideologia, uma vez que os prisioneiros em sua maioria têm almas de escravos” (Heinrich Himmler, Nazi conspiracy, IV, pp. 616 ss).
8. Eugen Hadamovsky, op. cit., é um dos mais importantes autores na literatura sobre propaganda totalitária. Sem o dizer explicitamente, Hadamovsky oferece uma inteligente e reveladora interpretação pró-nazista da exposição do próprio Hitler sobre o assunto em “Propaganda e organização”, no livro II, capítulo xi, de Mein Kampf (2 vols., 1a edição alemã, 1925 e 1927 respectivamente). Ver também F. A. Six, Die politische Propaganda der NSDAP im Kampf um die Macht [A propaganda política do NSDAP na luta pelo poder], 1936, pp. 21 ss.
9. A análise de Hitler da “Propaganda de guerra” (Mein Kampf, livro I, cap. vi) acentua o lado comercial da propaganda e usa exatamente o exemplo da publicidade de sabonetes. Sua importância tem sido geralmente superestimada, enquanto suas positivas ideias posteriores sobre “Propaganda e organização” foram negligenciadas.
10. Ver o importante memorando de Martin Borman sobre “A relação entre o nacional-socialismo e o cristianismo” em Nazi conspiracy, VI, pp. 1036 ss. Formulações semelhantes se repetem com frequência na literatura panAetária publicada pela SS para a “doutrinação ideológica” de seus cadetes. “As leis da natureza estão sujeitas a uma vontade imutável que não pode ser inAuenciada. Daí ser necessário reconhecer essas leis” (“SS-Mann und Blutsfrage” [O SS e a questão do sangue], em Schriftenreihe für die weltanschauliche Schulung der Ordnungspolizei [Escritos para a instrução ideológica da polícia], 1942). Todas elas são meras variações de certas frases extraídas de Mein Kampf, de Hitler, das quais esta é citada como lema para o panfleto que acabamos de mencionar: “Quando o homem tenta lutar contra a lógica de ferro da natureza, entra em conAito com os princípios básicos aos quais deve a sua própria existência como homem”.
11. J. Stálin, Leninism (1933), vol. II, capítulo III.
12. Eric Voegelin, “The origins of scientism”, em Social Research, dezembro de 1948.
13. Ver F. A. v. Hayek, “The counter-revolution of Science”, em Economica, vol. VIII (fevereiro, maio, agosto de 1941), p. 13.
14. Ibid., p. 137. A citação é da revista saint-simonista Producteur, I, p. 399.
15. Voegelin, op. cit.
16. William Ebenstein, The Nazi State, Nova York, 1943, quando discute a permanente economia de guerra do Estado nazista é praticamente o único crítico a compreender que “a interminável discussão […] quanto à natureza socialista ou capitalista da economia alemã sob o regime nazista é em grande parte artificial, […] [porque] tende a esquecer o fato vital de que tanto o capitalismo quanto o socialismo são categorias pertinentes à economia de bem- estar ocidental” (p. 239).
17. Nesse contexto, é característico o testemunho de Karl Brandt, um dos médicos encarregados por Hitler de executar o programa de eutanásia (Medical trial. US against Karl Brandt et al. Hearing of May 14, 1947 ). Brandt protestou violentamente contra a suspeita de que o projeto havia sido iniciado com a finalidade de eliminar consumidores supérfluos de alimentos; acentuou que os membros do partido que haviam mencionado tais argumentos na discussão tinham sido severamente repreendidos. Em sua opinião, as medidas haviam sido ditadas unicamente por “considerações éticas”. Naturalmente, o mesmo se aplica às deportações. Os arquivos estão cheios de memorandos desesperados dos militares, queixando-se de que as deportações de milhões de judeus poloneses constituíam um completo descaso às “necessidades econômicas e militares”. Ver Poliakov, op. cit., p. 321, bem como os documentos ali publicados.
18. O decreto decisivo que originou todos os assassínios em massa subsequentes foi assinado por Hitler a fio de setembro de 1939 — no dia em que foi declarada a guerra à Polônia — e se refere não aos loucos apenas (como se supõe erradamente muitas vezes) mas a todos os que eram “doentes incuráveis”. Os loucos foram apenas os primeiros a morrer.
19. Ver Friedrich Percyval Reck-Malleczewen, Tagebuch eines Verzweifelten [Diário de um desesperado], Sttutgart, 1947, p. 190.
20. Hitler baseava a superioridade dos movimentos ideológicos em relação aos partidos políticos no fato de que as ideologias (Weltanschauungen) sempre “proclamam sua infalibilidade” (Mein Kampf, livro II, capítulo v, “Weltanschauung e organização”). As primeiras páginas do manual oficial da Juventude Hitlerista ( The Nazi primer, Nova York, 1938) acentuam consequentemente que todas as questões de Weltanschauung, antes consideradas “irrealistas” e “incompreensíveis”, “se tornaram tão claras, simples e definidas [o grifo é meu] que qualquer um dos nossos camaradas pode entendê-las e cooperar na sua solução”.
21. O primeiro dos “juramentos do membro do Partido”, enumerados pelo Organisationsbuch der NSDAP, diz: “O Führer sempre tem razão”. Edição publicada em 1936, p. 8. Mas o Dienstvorschrift für die P. D. der NSDAP, 1932, p. 38, assim se exprime: “A decisão de Hitler é final!”. Note-se a grande diferença de fraseologia. “A pretensão de serem infalíveis, [o fato de que] nenhum deles jamais sinceramente admitiu um erro”, eis a diferença decisiva entre Stálin e Trótski, de um lado e Lênin, de outro. Ver Boris Souvarine, Stalin: a critical survey of Bolshevism, Nova York, 1939, p. 583.
22. É óbvio que a dialética hegeliana constitui maravilhoso instrumento para que sempre se tenha razão, uma vez que permite a interpretação de todas as derrotas como o começo da vitória. Um dos mais belos exemplos desse tipo de sofisma ocorreu após 1933, quando os comunistas alemães, durante quase dois anos, recusaram-se a reconhecer que a vitória de Hitler havia sido uma derrota para o Partido Comunista Alemão.
23. Ver Goebbels: The Goebbels diaries (1942-1943), editados por Louis Lochner, Nova York, 1948, p. 148.
24. Stálin, op. cit., loc. cit.
25. Num discurso que pronunciou em setembro de 1942, quando o extermínio dos judeus estava em pleno andamento, Hitler referiu-se explicitamente ao seu discurso de 30 de janeiro de 1939 (publicado como folheto com o título Der Führer vor dem ersten Reichstag Grossdeutchlands [O Führer diante do primeiro Parlamento da Grande Alemanha], 1939) e à sessão do Reichstag de fio de setembro de 1939, quando anunciou que, “se o povo judeu instigasse o mundo internacional a exterminar os povos arianos da Europa, não os povos arianos, mas os judeus seriam [resto da frase abafado pelos aplausos]” (ver Der Führer zum Kriegswinterhilfswerd, Schriften NSV, no 14, p. 33).
26. No discurso de 30 de janeiro de 1939, cf. citado acima.
27. Konrad Heiden, De Fuehrer: Hitler’s rise to power, acentua a “fenomenal deslealdade” de Hitler, “a falta de realidade demonstrável em quase todos os seus pronunciamentos”, a sua “indiferença pelos fatos, que ele não considerava vitalmente importantes” (pp. 368, 374). Em termos quase idênticos, Khrushchev descreve “a relutância de Stálin em levar em conta as realidades da vida” e a sua indiferença “quanto ao verdadeiro estado das coisas”, op. cit. O melhor exemplo da opinião de Stálin quanto à importância dos fatos são as revisões a que ele periodicamente submetia a história da Rússia.
28. Do Manual da Juventude Hitlerista (Hitlerjugend).
29. É interessante notar que os bolchevistas, durante a era de Stálin, de certa forma acumularam conspirações, e que a descoberta de uma nova trama não significava que abandonassem a anterior. A conspiração trotskista começou por volta de 1930; a das trezentas famílias foi acrescentada no período da Frente Popular na França, a partir de 1935; o imperialismo britânico foi apotando como verdadeira conspiração durante a aliança Stálin-Hitler; o “Serviço Secreto Americano” seguiu-lhe pouco depois do fim da guerra.
30. Ver a autobiografia de Chaim Weizmann, Trial and error, Nova York, 1949, p. 185.
31. Ver, por exemplo, Otto Bonhard, Jüdische Geld Weltherrschaft? [Domínio financeiro e mundial judaico?], 1926, p. 57.
32. Hitler usou essa imagem pela primeira vez em 1922: “Moisés Kohn, por um lado, incita a sua companhia a recusar as exigências dos trabalhadores, enquanto o seu irmão Isaac na fábrica convida as massas […] a entrarem em greve”. (Hitler’s speeches: 1922-1939, editado por Baynes, Londres, 1942, p. 29). É digno de nota que nenhuma coleção completa dos discursos de Hitler jamais foi publicada na Alemanha nazista, de modo que é necessário recorrer à edição inglesa. Não se trata de mero acaso, como se pode ver da bibliografia compilada por Philipp Bouhler, Die Reden des Führers nach der Machtübernahme [Os discursos do Führer após a tomada do poder], 1940: somente os discursos públicos eram impressos verbatim no Völkischer Beobachter; os outros discursos para o Fuehrerkorps e outras unidades do partido eram meramente “mencionados” naquele jornal. Não se destinavam de modo algum à publicação.
33. Os 25 pontos de Feder continham apenas medidas habituais exigidas por todos os grupos antissemitas: expulsão do país dos judeus naturalizados e tratamento dos judeus nativos como estrangeiros. A oratória antissemita nazista era sempre muito mais radical do que o seu programa. Waldemar Gurian, “Antisemitism in modern Germany”, em Essays on antisemitism, editado por Koppel S. Pinson, Nova York, 1946, p. 243, acentua a falta de originalidade do antissemitismo nazista: “Nenhuma dessas exigências e opiniões era notável por sua originalidade — eram evidentes em todos os círculos nacionalistas —; o que era notável era a habilidade demagógica e oratória com que eram apresentadas”.
34. Um exemplo típico de mero antissemitismo nacionalista dentro do próprio partido nazista é Röhm, que escreve: “E mais uma vez neste ponto a minha opinião difere da do filisteu nacional. Não digo: o Judeu é culpado de tudo! Nós é que temos a culpa do fato de o judeu poder dominar hoje em dia” (Ernst Röhm, Die Geschichte eines Hochverräters, 1933, Volksausgabe, p. 284).
35. Os candidatos à SS tinham de vasculhar seus antepassados até o ano de 1750. Os que se candidatavam a posições de liderança partidária tinham de responder a apenas três perguntas: 1. O que é que você fez pelo Partido? 2. Você é absolutamente são, física, mental e moralmente? 3. Sua árvore genealógica está em ordem? Ver Nazi primer. Típico da afinidade entre os dois sistemas é o fato de que a elite e as formações policiais dos bolchevistas — a NKVD — também exigiam prova da genealogia dos seus membros. Ver F. Beck e W. Godin, Russian purge and the extraction of confessions, 1951.
36. As tendências totalitárias do macarthismo nos Estados Unidos também vieram à tona claramente na tentativa de não apenas perseguir os comunistas, mas de forçar todo cidadão a provar que não era comunista.
37. “Não se deve exagerar a influência da imprensa […], ela geralmente diminui à medida que cresce a influência da organização” (Hadamovsky, op. cit., p. 64). Os “jornais são inúteis quando procuram lutar contra a força agressiva de uma organização viva” (ibid., p. 65). “As formações de poder que têm sua origem na mera propaganda são instáveis e podem desaparecer rapidamente a não ser que a violência de uma organização apoie a propaganda” (ibid., p. 21).
38. “As reuniões de massa são a forma mais poderosa de propaganda […] [porque] cada indivíduo se sente mais confiante e mais forte na unidade da massa” (ibid., p. 47). “O entusiasmo do momento torna-se um princípio e uma atitude espiritual através da organização e do treinamento e disciplina sistemáticos” (ibid., pp. 21-2).
39. Nas poucas vezes em que Hitler se preocupou com essa questão, costumava acentuar: “Aliás, não sou chefe de um Estado como o é um ditador ou monarca, mas sou o líder do povo alemão” (ver Ausgewählte Reden des Führers [Discursos escolhidos do Führer], 1939, p. 114). Hans Frank expressa-se no mesmo tom: “O Reich Nacional- Socialista não é um regime ditatorial, e muito menos arbitrário. Baseia-se na lealdade mútua do Führer e do povo” (em Recht und Verwaltung) [Direito e administração], Munique, 1939, p. 15).
40. Hitler repetiu muitas vezes: “O Estado é apenas um meio para um fim. O fim é: conservação da raça” ( Reden, 1939, p. 125). Acentuou ainda que o seu movimento “não se baseia na ideia do Estado, mas principalmente na Volksgemeinschaft fechada” (ver Reden, 1933, p. 125, e o discurso à nova geração de líderes políticos [ Führemachwuchs], 1937, que é publicado como adendo em Hitlers Tischgespräche , p. 446). Mutatis mutandi, é esse também o cerne da complicada algaravia que é a “teoria estatal” de Stálin: “Somos a favor da morte do Estado, e ao mesmo tempo defendemos o fortalecimento da ditadura do proletariado, que representa a mais forte e poderosa autoridade entre todas as formas de Estado que já existiram até hoje. O desenvolvimento maior possível do poder do Estado com o fim de preparar as condições para a morte do Estado: eis a fórmula marxista” (op. cit., loc. cit.)
41. Alexander Stein, em Adolf Hitler, Schüler der “Weisen von Zion ” [A. H., aluno dos “sábios do Sião”], Karlsbad, 1936, foi o primeiro a analisar, por comparação filológica, a identidade ideológica entre os ensinamentos dos nazistas e os dos “sábios do Sião”. Ver também R. M. Blank, Adolf Hitler et les “Protocoles des sages de Sion”, Paris, 1938. O primeiro a admitir a sua dívida para com os ensinamentos dos Protocolos foi Theodor Fritsch, o “patriarca” do antissemitismo alemão do pós-guerra. Diz ele no epílogo da sua edição dos Protocolos, 1924: “Nossos futuros estadistas e diplomatas terão de aprender com os mestres orientais da velhacaria até mesmo o ABC do governo e, para esse fim, os ‘Protocolos do Sião’ são um excelente curso preparatório”.
42. Quanto à história dos Protocolos, ver John S. Curtiss, An appraisal of the Protocols of Zion, 1942. O fato de que os Protocolos eram forjados não importava para fins de propaganda. O publicista russo S. A. Nilus, que publicou a edição russa em 1905, conhecia muito bem o caráter duvidoso desse “documento” e acrescentou o óbvio: “Mas, se fosse possível demonstrar a sua autenticidade por meio de documentos ou do depoimento fidedigno de testemunhas, se fosse possível revelar quem são as pessoas à frente dessa trama mundial […] então […] ‘a secreta iniquidade’ poderia ser desfeita. […]”. Tradução de Curtiss, op. cit.
Hitler não precisou de Nilus para usar o mesmo truque: a melhor prova de sua autenticidade é o fato de ter se provado que se trata de uma falsificação. E acrescentou ainda o argumento da sua “plausibilidade”: “O que muitos judeus podem fazer inconscientemente é conscientemente exposto aqui com clareza. E isto é o que importa” (Mein Kampf, livro I, capítulo XI).
43. Fritsch, op. cit.: [Der Juden] oberster Grundsatz laute: ‘‘Alles was dem Volke Juda nützt, ist moralisch und ist heilig”.
44. “Os impérios mundiais têm origem numa base nacional, mas logo se expandem muito além dela” (Reden).
45. Henri Rollin, L’Appocalypse de notre temps, Paris, 1939, em cuja opinião a popularidade dos Protocolos só perde para a Bíblia (p. 40), mostra a semelhança entre eles e os Monita secreta, publicados pela primeira vez em 1612 e ainda vendidos em 1939 nas ruas de Paris, que pretendem denunciar uma conspiração jesuíta “que justifica todas as vilezas e todos os usos da violência. […] Trata-se de verdadeira campanha contra a ordem estabelecida” (p. 32).
46. Um significativo representante de toda essa literatura é Chevalier de Malet, Recherches politiques et historiques qui prouvent l’existence d’une secte révolutionnaire, 1817, com extensas citações de autores anteriores. Para ele, os heróis da Revolução Francesa são mannequins de uma agence secrète, agentes da franco-maçonaria. Mas a franco-maçonaria é apenas o nome que os seus contemporâneos deram a uma “seita revolucionária” que existiu em todas as épocas, e cujo método sempre consistiu em atacar “permanecendo atrás das cortinas, manipulando os cordões das marionetes que lhe convinha colocar em cena”. Começa dizendo: “Provavelmente será difícil acreditar num plano que foi concebido na Antiguidade e se manteve com a mesma constância; […] os autores da Revolução não são mais franceses do que alemães, italianos, ingleses etc. Constituem uma nação peculiar que nasceu e cresceu às ocultas, em meio a todas as nações civilizadas, com o objetivo de submetê-las ao seu domínio”. Para uma ampla discussão dessa literatura, ver E. Lesueur, La Franc-Maçonnerie Artésiénne au 18e siècle, Bibliothèque d’Histoire Révolutionnaire, 1914. Verifica-se como são persistentes essas lendas de conspiração, mesmo em circunstâncias normais, pela enorme quantidade de livros malucos antimaçons na França, tão numerosos quanto os seus equivalentes antissemitas. Uma espécie de compêndio de todas as teorias que viam na Revolução Francesa o produto de sociedades conspirativas secretas pode ser encontrado em G. Bord, La Franc-Maçonnerie en France dès origines à 1815, 1908.
47. Reden. Ver a transcrição de uma sessão do Comitê da SS para Questões Trabalhistas, no quartel-general da SS em Berlim, no dia 12 de janeiro de 1943, onde se sugeriu que a palavra “nação”, conceito carregado de conotações liberais, devia ser eliminada por ser inadequada aos povos germânicos (Documento 705 — PS em Nazi conspiracy and aggression, V, 515).
48. Hitler’s speeches, editado por Baynes, p. 6.
49. Goebbels, op. cit., p. 377. Essa promessa, implícita em toda propaganda antissemita do tipo nazista, já se anunciava nas palavras de Hitler. “O maior contraste do ariano é o judeu” (Mein Kampf, livro I, capítulo XI).
50. Dossiê Kersten, no Centre de Documentation Juive, Paris.
51. A antiga promessa de Hitler (Reden) — “Nunca reconhecerei que as outras nações têm o mesmo direito que a nação alemã” — tornou-se doutrina oficial: “O fundamento do modo nacional-socialista de encarar a vida é a percepção da dessemelhança entre os homens” (Nazi primer, p. 5).
52. Por exemplo, Hitler disse em 1923: “O povo alemão consiste em um terço de heróis, outro terço de covardes, e outros são traidores” (Hitlers speeches, editado por Baynes, p. 76). Após a tomada do poder, essa tendência tornou-se mais brutal e franca. Ver, por exemplo, Goebbels, em 1934: “Quem é o povo para reclamar? Membros do Partido? Não. O resto do povo alemão? Devem dar-se por felizes por ainda estarem vivos. Seria o cúmulo se deixássemos que nos criticassem aqueles que vivem à nossa mercê”. Citado de Kohn-Bramstedt, op. cit., pp. 178-9. Hitler declarou durante a guerra: “Sou apenas um ímã que se move constantemente sobre a nação alemã, extraindo o aço dessa gente. E já disse muitas vezes que o tempo virá em que todos os homens de valor da Alemanha se passarão para o meu lado. E os que não passarem para o meu lado, não valem nada”. Já nessa época o séquito imediato de Hitler sabia muito bem o que sucederia àqueles que “não valiam nada” (ver Der grossdeutsche Freiheitskampf. Reden Hitlers vom 1.9.1939-10.3.1940 [A luta pela liberdade da Grande Alemanha. Discursos do Führer…], p. 174). Himmler queria dizer a mesma coisa quando declarou: “O Führer não pensa em alemão, mas em termos germânicos” (Dossiê Kersten, cf. acima), mas sabemos pelo Hitlers Tischgespräche (pp. 315 ss) que já naquele tempo ele ridicularizava esse “clamor” germânico e pensava mais amplamente em “termos arianos”.
53. Himmler, num discurso para os líderes da SS em Kharkov, em abril de 1943 ( Nazi Conspiracy, IV, pp. 572 ss), disse: “Logo fundei uma SS germânica nos vários países”. Uma velha indicação, da fase anterior à tomada do poder, dessa política não nacional foi dada por Hitler (Reden): “Certamente aceitaremos também na nova classe dominante representantes de outras nações, ou seja, aqueles que o merecerem devido à sua participação em nossa luta”.
54. Hadamovsky, op. cit.
55. Heiden, op. cit., p. 139: a propaganda não é “a arte de inspirar nas massas uma opinião. Na verdade, é a arte de receber uma opinião das massas”.
56. Hadamovsky, op. cit., passim. A expressão é extraída do Mein Kampf de Hitler (livro II, capítulo IX), em que a “organização viva” de um movimento é contrastada com o “mecanismo morto” de um partido burocrático.
57. Seria grave erro interpretar os líderes totalitários em termos da categoria de Max Weber de “liderança carismática”. Ver Hans Gerth, “The Nazi Party”, em American Journal of Sociology, 1940, vol. XLV. (Um erro semelhante constitui o defeito da biografia de Heiden, op. cit.) Gerth descreve Hitler como líder carismático de um partido burocrático. Em sua opinião, somente isso pode explicar o fato de que, “por mais Aagrante que fosse a contradição entre os atos e as palavras, nada podia destruir a organização firmemente disciplinada”. (Essa contradição, aliás, é muito mais característica de Stálin, que “tinha o cuidado de dizer sempre o oposto do que fazia, e de fazer o oposto do que dizia”. Souvarine, op. cit., p. 431.) Para a origem desse erro de interpretação, ver Alfred von Martin, “Zur Soziologie der Gegenwart” [Para a sociologia da atualidade], em Zeitschrift für Kulturgeschichte, vol. 27, e Arnold Koettgen, “Die Gesetzmässigkeit der Verwaltung im Führerstaat” [A normalidade administrativa no Estado do Führer], em Reichsverwaltungsblatt, 1936; ambos caracterizam o Estado nazista como uma burocracia sob liderança carismática.
58. Hadamovsky, op. cit., p. 21. Para fins totalitários, é um erro propagar a ideologia através do ensino e da persuasão. Nas palavras de Robert Ley, ela não pode ser “ensinada” nem “aprendida”, mas apenas exercida” e “praticada” (em: Der Weg zur Ordensburg, sem data).
59. R. Hoehn, um dos principais teóricos políticos nazistas, interpreta essa ausência de doutrina, ou mesmo de um conjunto comum de ideais e crenças no movimento, em seu Reichsgemeinschaft und Volksgemeinschaft, Hamburgo, 1935: “Do ponto de vista da comunidade do povo, é destrutiva toda a comunidade de valores” (p. 83).
* Em 1917, para conquistar as simpatias dos sionistas, disseminados entre os judeus de todos os países, o governo imperial alemão, após a consulta com seu aliado, a Turquia otomana, revelou ser favorável à colonização judaica na Palestina, com o que pretendia enfraquecer a posição idêntica do governo britânico. (N. E.)
60. Hitler, discutindo a relação entre a Weltanschauung e a organização, admite como natural que os nazistas tomassem emprestado a outros grupos e partidos a “ideia racial” (die völkische Idee); e, se agiram como se fossem os seus únicos representantes, é por terem sido os primeiros a basearem nela uma organização combativa e a formularem-na para fins práticos. Op. cit., livro II, capítulo V.
61. Ver Hitler, “Propaganda e organização”, op. cit., livro II, capítulo XI.
62. Exemplo disso é o pedido de Himmler, veementemente urgente, para que “não se emitisse nenhum decreto referente à definição do termo ‘judeu’”; porque, “com todos esses compromissos idiotas, estaremos atando as nossas próprias mãos” (Documento de Nurembergue no 626, carta a Berger datada de 28 de julho de 1942, cópia fotostática no Centre de Documentation Juive).
63. A fórmula “O desejo do Führer é a lei suprema” encontra-se em todas as normas e regulamentações oficiais sobre a conduta do Partido e da SS. A melhor fonte nesse assunto é Otto Gauweiler, Rechtseinrichtungen und Rechtaufgaben der Bewegung [Disposições e tarefas jurídicas do movimento], 1939.
64. Heiden, op. cit., p. 292, menciona a seguinte diferença entre a primeira edição e as edições seguintes de Mein Kampf: a primeira edição propõe a eleição de autoridades do partido que, somente após a eleição, recebem “poder e autoridade ilimitados”; todas as edições posteriores estabelecem a nomeação das autoridades do partido pelo líder imediatamente superior. Naturalmente, para a estabilidade dos regimes totalitários, a nomeação vinda de cima é um princípio muito mais importante do que a “autoridade ilimitada” da autoridade eleita. Na prática, a autoridade do sublíder era limitada pela absoluta soberania do líder. Stálin, que vinha do aparelho conspiratório do partido bolchevista, provavelmente nunca achou que isso constituísse problema. Para ele, as nomeações na máquina do partido eram uma questão de acúmulo de poder pessoal. Contudo, foi somente em meados da década de 30, depois de haver estudado o exemplo de Hitler, que ele se deixou tratar por “líder”. Mas, é forçoso admitir que poderia facilmente justificar esses métodos citando a teoria de Lênin de que “a história de todos os países demonstra que a classe trabalhadora, se depender apenas dos seus próprios esforços, só é capaz de desenvolver uma consciência sindical”, e que a sua liderança, portanto, advém necessariamente de fora. (Ver Que fazer?, publicado pela primeira vez em 1902.) O fato é que Lênin considerava o Partido Comunista como a parte “mais progressista” da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, “a alavanca da organização política” que “dirige toda a massa do proletariado”, isto é, uma organização que está fora e acima da classe. (Ver W. H. Chamberlin, The Russian Revolution, 1917-1921, Nova York, 1935, II, 361.) Não obstante, Lênin não punha em dúvida a validez da democracia intrapartidária, embora se inclinasse pela restrição da democracia com relação à própria classe trabalhadora.
65. Hitler, op. cit., livro II, capítulo XI.
66. Ibid. Esse princípio foi rigorosamente adotado logo que os nazistas tomaram o poder. Dos 7 milhões de membros da juventude hitlerista, somente 50 mil foram aceitos como membros do partido em 1937. Ver o prefácio de H. L. Childs a The Nazi primer. Compare-se também Gottfried Neesse, “Die verfassungsrechtliche Gestaltung der Ein-Partei”, em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, 1948, vol. 98, p. 678: “Mesmo o Partido Único jamais deve crescer a ponto de incluir toda a população. Ele é total devido à influência ideológica que exerce sobre a nação”.
67. Ver a diferenciação feita por Hitler entre as “pessoas radicais”, que eram as únicas que estavam preparadas para se tornarem membros do partido, e as centenas de milhares de simpatizantes, que eram demasiado “covardes” para fazer o necessário sacrifício. Op. cit., loc. cit.
68. Ver Hitler: capítulo sobre a SA, op. cit., livro II, cap. IX, 2a parte.
69. Ao traduzir Verfügungstruppe, ou seja, as unidades da SS que deviam estar à disposição especial de Hitler, como tropas de choque, sigo O. C. Giles, The Gestapo, Oxford Pamphlets on World Affairs, no 36, 1940.
70. A fonte mais importante para a organização e a história da SS é “Wesen und Aufgabe der SS und der Polizei” [Caráter e função da SS e da polícia], de Himmler, em Sammelhefte ausgewählter Vorträge und Reden , 1939. No decorrer da guerra, quando os escalões da Waffen- SS tiveram de ser preenchidos com voluntários, devido às perdas no front, a Waffen-SS perdeu o seu caráter de elite dentro da SS a tal ponto que a SS Geral, isto é, o Corpo do Führer mais elevado, passou mais uma vez a representar o verdadeiro núcleo de elite do movimento em seu aspecto geral. Documentação muito reveladora sobre essa última fase da SS encontra-se nos arquivos da Hoover Library, arquivo Himmler, pasta no 278. Mostra que a SS passou a recrutar trabalhadores estrangeiros e a população nativa, imitando deliberadamente os métodos e normas da Legião Estrangeira Francesa. O recrutamento entre os alemães baseava-se numa ordem de Hitler (nunca publicada), de dezembro de 1942, segundo a qual “a classe de 1925 [devia] ser recrutada para a Waffen-SS” (carta de Himmler a Bormann). A convocação e o recrutamento eram tratados, ostensivamente, como serviços voluntários. Mas numerosos relatórios de líderes da SS encarregados da tarefa mostram o que de fato aconteceu. Um relatório de 21 de julho de 1943 descreve como a polícia cercava o pavilhão dos trabalhadores franceses que seriam recrutados, e como os franceses primeiro cantavam a Marselhesa e depois tentavam pular pelas janelas. As tentativas de recrutamento dos jovens alemães também não eram encorajadoras. Embora fossem submetidos a extraordinárias pressões, e fosse-lhes dito que “certamente não iriam querer incorporar-se aos ‘bandos sujos vestidos de cinza’” (o Exército), somente dezoito de 220 membros da Juventude Hitlerista apresentaram-se para o serviço da SS (segundo relatório de 30 de abril de 1943, submetido por Häussler, chefe do Centro de Recrutamento do Sudoeste, da Waffen- SS); todos os outros preferiram alistar-se na Wehrmacht. É possível que as perdas da SS, maiores que as da Wehrmacht, inAuenciassem a sua decisão (ver Karl O. Paetel, “Die SS”, em Vierteljahresheft für Zeitgeschichte , janeiro de 1954). Mas esse fator, por si só, não poderia ter sido decisivo, como prova o seguinte: já em janeiro de 1940, Hitler havia ordenado o recrutamento de homens da SA para as fileiras da Waffen- SS; os resultados em Koenigsberg, baseados num relatório que foi preservado, foram esses: 1807 membros da SA foram convocados “para serviço policial” (de SS); desses, 1094 deixaram de apresentar-se; 631 foram desclassificados; 82 estavam aptos para servir na SS.
71. Werner Best, op. cit., 1941, p. 99.
72. Hitler sempre insistiu em que o próprio nome da SA (Sturmabteilung) indicava que ela era apenas “uma seção do movimento” como qualquer outra formação partidária. Ele procurou também desfazer a ilusão do possível valor militar de uma formação paramilitar, e queria que o treinamento fosse realizado segundo as necessidades do partido, e não segundo os princípios de um exército. Op. cit., loc. cit.
73. O motivo oficial da fundação da SA foi a proteção dos comícios nazistas, enquanto a tarefa original da SS era a proteção dos líderes nazistas.
74. Hitler, op. cit., loc. cit.
75. Ernst Bayer, Die SA, Berlim, 1938. Tradução citada de Nazi conspiracy, IV.
76. A autobiografia de Röhm mostra claramente quão pouco as suas convicções políticas concordavam com as dos nazistas. Ele desejou um Soldatenstaat (Estado dos soldados) e insistiu na primazia do soldado com relação ao político (op. cit., p. 349). A seguinte passagem revela especialmente a sua incapacidade de compreender o totalitarismo: “Não vejo por que estas três coisas não possam ser compatíveis: a minha lealdade ao príncipe herdeiro da casa de Wittelsbach, herdeiro da coroa da Baviera; minha admiração pelo intendente-geral da Guerra Mundial [isto é, Ludendorff], que hoje representa a consciência do povo alemão; e a minha camaradagem com o arauto e veículo da luta política, Adolf Hitler” (p. 348). O que finalmente custou a Röhm a sua cabeça foi que, após a tomada do poder pelos nazistas, ele visualizava uma ditadura fascista nos moldes do regime italiano, na qual o partido nazista “quebraria as correntes do partido” e “se tornaria, ele próprio, o Estado”, o que era exatamente o que Hitler estava disposto a evitar. Ver o discurso pronunciado por Ernst Röhm perante o corpo diplomático, em dezembro de 1933, em Berlim e publicado, sem data, sob o título Warum SA? [Por que a SA?]. Dentro do partido nazista, nunca foi esquecida a possibilidade de uma trama entre a SA e o Reichswehr contra o domínio da SS e da polícia. Até Hans Frank, governador-geral da Polônia ocupada, foi posto sob suspeita em 1942 — isto é, oito anos depois do assassínio de Röhm (SA) e do general Schleicher (Reichswehr) — por desejar “após a guerra […] iniciar a luta pela justiça, contra a SS, com a ajuda das Forças Armadas e da SA” (Nazi conspiracy, VI, 747).
77. Hitler, op. cit., livro II, capítulo xi, afirma que a propaganda procura forçar uma doutrina sobre todo o povo, enquanto a organização incorpora apenas uma proporção relativamente pequena dos seus membros mais militantes. Compare-se também G. Neesse, op. cit.
78. Hitler, op. cit., loc. cit.
79. Hadamovsky, op. cit., p. 28.
80. As unidades da Caveira da SS eram submetidas às seguintes regras: 1. Nenhuma unidade é convocada para serviço em seu distrito natal. 2. Toda unidade é transferida após três semanas de serviço. 3. Os membros nunca devem ser enviados às ruas sozinhos, nem devem jamais exibir em público sua insígnia da Caveira. Ver “Secret speech by Himmler to the German Army General Staff 1938” (o discurso foi proferido em 1937) em Nazi conspiracy, IV, 616. Publicado também pelo American Committee for Anti-Nazi Literature.
81. Heinrich Himmler, “Die Schutzstaffel als antibolschewistische Kampforganisation” [A SS como organização de luta antibolchevista], em Aus dem Schwarzen Korps, no 3, 1936, disse publicamente: “Sei que existem pessoas na Alemanha que sentem náuseas quando veem este dólmã negro. Compreendemos isto, e não esperamos que muita gente goste de nós”.
82. Em seus discursos para a SS, Himmler sempre acentuava os crimes cometidos, mencionando a sua gravidade. Diria, por exemplo, acerca da liquidação dos judeus: “Desejo também falar-vos de um assunto muito grave. Entre nós, ele pode ser mencionado francamente, mas nunca o mencionaremos em público”. Sobre a liquidação dos intelectuais poloneses: “[…] deveis ser informados disto, e também esquecê-lo imediatamente […]” ( Nazi conspiracy, IV, 558 e 553, respectivamente). Goebbels, op. cit., p. 266, observa no mesmo tom: “No tocante à questão judaica, especialmente, tomamos uma posição da qual não é possível recuar. […] A experiência nos ensina que um movimento e um povo que queimou as suas pontes luta com determinação muito maior que aqueles que ainda podem recuar”.
83. Souvarine, op. cit., p. 648. A maneira como os movimentos totalitários mantiveram absolutamente secreta a vida privada dos seus líderes (Hitler e Stálin) contrasta com a importância que as democracias veem na divulgação da vida privada de presidentes, reis, primeiros-ministros etc. Os métodos totalitários não permitem uma identificação baseada na convicção de que mesmo o mais importante dos homens é apenas um ser humano. Souvarine, op. cit., cita os rótulos mais frequentemente usados para descrever Stálin: “Stálin, o misterioso morador do Kremlin”; “Stálin, personalidade impenetrável”; “Stálin, a Esfinge Comunista”; “Stálin, o Enigma”; o “mistério insolúvel” etc.
84. “Se [Trótski] houvesse preferido montar um coup d’état militar, teria possivelmente derrotado os triúnviros. Mas deixou o cargo sem fazer a menor tentativa de chamar em sua defesa o exército que havia criado e comandado durante sete anos” (Isaac Deutscher, op. cit., p. 297).
85. O Comissariado da Guerra, sob Trótski, “era uma instituição [tão] modelar” que Trótski era procurado sempre que havia desordem nos outros ministérios. Souvarine, op. cit., p. 288.
86. As circunstâncias da morte de Stálin parecem contradizer a infalibilidade desses métodos. É muito possível que Stálin, o qual, antes de morrer, sem dúvida planejava outro expurgo geral, tenha sido morto por alguns elementos do seu séquito devido ao fato de que ninguém mais se sentia seguro — mas isso nunca pôde ser provado. O fato é que os sucessores de Stálin — seus acólitos, sem dúvida, mas, talvez, dentro dos critérios acima, seus assassinos — desfizeram-se depois do único homem que, entre eles, detinha o poder suficiente para eliminá-los. [Trata-se de Beria, o todo-poderoso chefe da polícia secreta da URSS. (N. E.)].
87. Hitler telegrafou pessoalmente aos assassinos da SA assumindo a responsabilidade pelo assassinato de Potempa, embora provavelmente nada tivesse a ver com ele. O que importava, no caso, era estabelecer um princípio de identificação ou, nas palavras dos nazistas, “a lealdade mútua do Líder e do povo” na qual “se baseava o Reich” (Hans Frank, op. cit.).
88. “Uma das principais características de Stálin […] é jogar sistematicamente os seus crimes e malfeitorias, bem como os seus erros políticos […] nos ombros daqueles que ele planeja desacreditar e arruinar” (Souvarine, op. cit., p. 655). É óbvio que um líder totalitário pode escolher livremente quem ele deseja que assuma a culpa dos seus erros, uma vez que todos os atos conhecidos pelos sublíderes são inspirados por ele, de modo que qualquer pessoa pode ser forçada a assumir o papel de impostor.
89. Já ficou provado, por meio de numerosos documentos, que era o próprio Hitler — e não Himmler, nem Bormann, nem Goebbels — quem sempre tomava a iniciativa das medidas realmente “radicais”; que essas medidas eram sempre mais radicais que aquelas propostas por seus seguidores imediatos; que até mesmo Himmler ficou horrorizado quando recebeu a incumbência da “solução final” da questão judaica. E tampouco merece alguma fé a lenda de que Stálin era mais moderado que as facções esquerdistas do partido bolchevista. É importante lembrar que os líderes totalitários procuram invariavelmente parecer mais moderados para o mundo exterior, e que o seu principal papel — que é o de impelir para frente o movimento a qualquer preço, e de acelerá-lo, e não retardá-lo — é sempre cuidadosamente oculto. Ver, por exemplo, o memorando do almirante Erich Raeder, “My relationship to Adolf Hitler and to the Party”, em Nazi conspiracy, VIII, pp. 707 ss: “Quando surgiram informações e boatos acerca de medidas radicais do Partido e da Gestapo, era possível chegar-se à conclusão, pela conduta do Führer, de que essas medidas não haviam sido ordenadas pelo próprio Führer. […] Em anos subsequentes, cheguei gradualmente à conclusão de que o próprio Führer sempre se inclinava pela solução mais radical, sem deixar que ninguém o percebesse”. Na luta intrapartidária que precedeu a subida ao poder absoluto, Stálin sempre teve o cuidado de assumir a pose do “homem do meio-termo” (ver Deutscher, op. cit., pp. 295 ss); embora certamente não fosse nenhum “homem afeito a acomodações”, nunca abandonou inteiramente esse papel. Quando, por exemplo, um jornalista estrangeiro lhe indagou, em 1936, acerca dos objetivos de revolução mundial do movimento comunista, ele respondeu: “Nunca tivemos tais planos e intenções. […] Trata-se de um mal-entendido. […] Um mal-entendido cômico, ou, antes, tragicômico” (Deutscher, op. cit., p. 422).
90. Ver Alexandre Koyré, “The political function of the modern lie”, em Contemporary Jewish Record, junho de 1945. Hitler, op. cit., livro II, capítulo IX, discute longamente os prós e contras das sociedades secretas como modelos para os movimentos totalitários. Na verdade, as considerações que ele faz levam-no à conclusão de Koyré de que é preciso adotar os princípios das sociedades secretas sem o seu sigilo e instalá-las “à plena luz do dia”. No estágio anterior à tomada do poder, os nazistas nada mantinham em segredo. Foi somente durante a guerra, quando o regime nazista se tornou inteiramente totalitarizado e a liderança do partido se viu cercada por todos os lados pela hierarquia militar, da qual dependia para a condução da guerra, que as formações de elite receberam instruções perfeitamente claras para manterem absolutamente secreto tudo o que dissesse respeito à “solução final”, isto é, o extermínio em massa dos judeus. Foi também por essa época que Hitler passou a agir como chefe de um bando de conspiradores, mas não sem anunciar e divulgar pessoalmente esse fato com bastante clareza. No decorrer de uma reunião com o Estado-Maior, em maio de 1939, Hitler estabeleceu as seguintes normas, que parecem haver sido copiadas de uma cartilha de sociedades secretas: “1. Nenhuma informação será dada a quem não precisa saber. 2. Ninguém deve saber mais do que precisa. 3. Ninguém deve saber antes do tempo necessário” (citadas por Heinz Holldack, Was wirklich geschah [O que realmente aconteceu], 1949, p. 378).
91. A análise que fazemos a seguir acompanha de perto “Sociology of secrecy and of secret societies”, de Georg Simmel, em The American Journal of Sociology, vol. XI, no 4, janeiro de 1906, que constitui o capítulo v de sua Soziologie, Leipzig, 1908, da qual alguns trechos foram traduzidos por Kurt Wolff, sob o título The sociology of Georg Simmel, 1950.
92. “Exatamente pelo fato de que os graus inferiores da sociedade constituem uma transição mediatória para o verdadeiro centro do segredo, permitem a compreensão gradual da esfera de repulsa em torno do mesmo, o que proporciona uma proteção mais segura do que adviria da aspereza de uma posição radical, fosse de fora ou de dentro” (ibid., p. 489).
93. As expressões “irmãos jurados”, “camaradas jurados”, “comunidade jurada” etc. são repetidas ad nauseam em toda a literatura nazista, em parte devido à atração que tinham para o romantismo juvenil muito comum no movimento da juventude alemã. Foi principalmente Himmler quem usou essas expressões com um sentido mais definido, introduzindo-as na “senha central” da SS (“Unimo-nos assim e marchamos para um futuro distante segundo as leis imutáveis, como uma classe nacional-socialista de homens nórdicos e comunidade jurada das suas tribos [Sippen].” Ver D’Alquen, op. cit.) e lhes deu o expressivo significado de “absoluta hostilidade” contra todos os outros (ver Simmel, op. cit., p. 489): “Assim, quando a massa da humanidade de 1 a 1,5 bilhão [ sic!] se unir contra nós, o povo alemão […]”. Ver o discurso de Himmler na reunião dos generais da SS em Posen (atual Poznan, Polônia), a 4 de outubro de 1943, Nazi conspiracy, IV, 558.
94. Simmel, op. cit., p. 490. Esse princípio, como tantos outros, foi adotado pelos nazistas após cuidadoso estudo das implicações dos “Protocolos dos sábios do Sião”. Hitler dizia já em 1922: “[Os homens da Direita] ainda não compreenderam que não é necessário ser inimigo dos judeus para que um dia […] acabem na forca. […] Basta […] não ser judeu: com isso se vai parar na forca” (Hitler’s speeches, p. 12). Na época, ninguém podia imaginar que esse tipo de propaganda realmente significava que, um dia, não seria necessário ser um inimigo dos nazistas para ser levado à forca; bastaria ser um judeu ou, finalmente, membro de algum outro povo, para ser declarado “racialmente inapto” à vida por alguma Comissão de Saúde. Himmler acreditava e pregava que toda a SS se baseava no princípio de que “devemos ser honestos, decentes, leais e amigos com os membros do nosso próprio sangue, e com ninguém mais” ( op. cit., loc. cit.).
95. Simmel, op. cit., pp. 480-1.
96. Souvarine, op. cit., p. 319, adota uma expressão de Bukharin.
97. Souvarine, op. cit., p. 113, menciona que Stálin “sempre se impressionava com aqueles que eram bem-sucedidos ‘nos negócios’. Via a política como um ‘negócio’ que exigia destreza”.
98. Nas lutas intrapartidárias dos anos 20, “os colaboradores da GPU eram, quase sem exceção, fanáticos seguidores de Stálin. Os serviços da GPU naquela época eram os baluartes da seção stalinista” (Ciliga, op. cit., p. 48). Souvarine, op. cit., p. 289, relata que, mesmo antes, Stálin havia “continuado a ação policial que havia iniciado durante a Guerra Civil” e havia sido representante do Politburo na GPU.
99. Imediatamente após a guerra civil na Rússia, o Pravda afirmava que “a fórmula ‘Todo o poder aos Sovietes’ havia sido substituída por ‘Todo o poder à Cheka’. […] O fim das hostilidades armadas reduziu o controle militar […] mas deixou uma Cheka ramificada, que se aperfeiçoava através da simplificação operacional” (Souvarine, op. cit., p. 251).
100. A Gestapo [Geheime Staatspolizei: Polícia Secreta do Estado] foi instituída por Göring em 1933: Himmler foi nomeado chefe da Gestapo em 1934 e passou imediatamente a substituir o seu pessoal por homens da SS; no fim da guerra, 75% dos agentes da Gestapo eram homens da SS. Deve-se considerar também que as unidades da SS eram particularmente qualificadas para esse tipo de trabalho, uma vez que Himmler as havia organizado, mesmo na fase anterior ao poder, para tarefas de espionagem entre membros do partido (Heiden, op. cit., p. 308). Quanto à história da Gestapo, ver Giles, op. cit., e também Nazi conspiracy, vol. II, capítulo XII.
101. Provavelmente, um dos erros ideológicos decisivos de Rosenberg, que caiu na desgraça do Führer e perdeu a sua inAuência no movimento a favor de homens como Himmler, Bormann e até mesmo Streicher, foi que o seu Mito do século XX admite um pluralismo racial do qual somente os judeus eram excluídos. Violou, assim, o princípio conforme o qual quem não estivesse incluído (“o povo germânico”) estava excluído (“a massa da humanidade”). Cf. nota 87.
102. Simmel, op. cit., p. 492, menciona sociedades secretas criminosas nas quais os membros voluntariamente escolhem um comandante ao qual passam a obedecer sem crítica e sem limite.
103. Ciliga, op. cit., pp. 96-7. O autor descreve como os prisioneiros comuns da prisão da GPU em Leningrado condenados à morte deixavam-se levar à execução “sem uma palavra, sem um grito de revolta contra o governo que os executava” (p. 183).
104. Ciliga nos diz que os membros do partido que haviam sido condenados “achavam que, se essas execuções serviam para salvar a ditadura burocrática como um todo, se levavam à calma os camponeses rebelados (ou, antes, ao erro), o sacrifício de suas vidas não teria sido em vão” (op. cit., pp. 96-7).
105. A imagem do papel da diplomacia na política, expressa por Goebbels, é típica: “Não há dúvida que o melhor a fazer é manter os diplomatas desinformados quanto ao que ocorre na política. […] O argumento mais convincente de sua fidedignidade política é a sinceridade com que representam o papel de apaziguadores” (op. cit., p. 87).
106. Rudolf Hess numa transmissão radiofônica em 1934. Nazi conspiracy, I, p. 193.
107. Werner Best, op. cit., explica: “O fato de a vontade do governo estabelecer as normas ‘certas’ […] já não é uma questão de lei, mas de destino. Pois os abusos que ocorrerem […] serão punidos perante a história de modo mais seguro pelo próprio destino — com o infortúnio, a destituição e a ruína, devido à violação das ‘leis da vida’ — do que por uma Corte de Justiça”. Tradução citada de Nazi conspiracy, IV, 490.
108. Ver Kravchencko, op. cit., p. 422. “Nenhum comunista devidamente doutrinado achava que o Partido estivesse ‘mentindo’ por pregar em público um tipo de política, enquanto na intimidade professava o oposto”.
109. “O nacional-socialista despreza o seu vizinho alemão, o homem da SA despreza os outros nacional-socialistas, e o homem da SS despreza o homem da SA” (Heiden, op. cit., p. 308).
110. Himmler selecionava os candidatos à SS, em primeiro lugar, por fotografias. Mais tarde, um Comitê Racial, perante o qual o candidato tinha de comparecer pessoalmente, aprovava ou desaprovava a sua aparência racial. Ver Himmler no tocante à “Organização e obrigação da SS e da polícia”, Nazi conspiracy, IV, pp. 616 ss.
111. Himmler estava bem consciente do fato de que uma de suas “mais importantes realizações” era haver transformado a questão racial, de “conceito negativo baseado no antissemitismo natural”, em “uma tarefa organizacional para a constituição da SS” (Der Reichsführer SS und Chef der deutschen Polizei, “exclusivamente para uso da polícia”; sem data). Assim, “pela primeira vez, a questão racial havia sido colocada em foco, ou melhor, se tornara o próprio foco, indo muito além do conceito negativo que havia por trás do ódio natural aos judeus. A ideia revolucionária do Führer recebia uma infusão de sangue novo” (Der Weg der SS. Der Reichsführer SS. SS-Hauptamt- Schulungsamt. Na jaqueta: “difusão proibida”, sem data, p. 25).
112. Logo que foi nomeado chefe da SS, em 1929, Himmler introduziu o princípio de seleção racial e leis de casamento, e acrescentou: “A SS sabe muito bem que esta ordem é da maior importância. A zombaria, o escárnio e a incompreensão não nos afetam; o futuro é nosso”. Citado por D’Alquen, op. cit. E novamente, catorze anos mais tarde, num discurso em Kharkov (Nazi conspiracy, IV, pp. 572 ss), Himmler lembra aos seus líderes da SS que “fomos os primeiros a realmente resolver o problema do sangue pela ação […] e por problema de sangue não entendemos, naturalmente, o antissemitismo. O antissemitismo é exatamente a mesma coisa que catar piolhos. Catar piolhos não é uma questão de ideologia: é uma questão de limpeza. […] Mas para nós a questão do sangue era um lembrete do nosso próprio valor, um lembrete do que realmente mantém unido este povo alemão”.
113. Himmler, op. cit., Nazi conspiracy, IV, pp. 616 ss.
114. Himmler em seu discurso em Posen, Nazi conspiracy, IV, p. 558.
Notas do Capítulo 3
1. Os nazistas compreendiam muito bem que a tomada do poder poderia levar ao estabelecimento do absolutismo. “Mas o nacional-socialismo não encabeçou a luta contra o liberalismo para atolar-se no absolutismo e começar tudo de novo” (Werner Best, Die deutsche Polizei, p. 20). A advertência dessa frase é dirigida ao absolutismo do Estado.
2. A teoria de Trótski, enunciada pela primeira vez em 1905, naturalmente não diferia da estratégia revolucionária de todos os leninistas, para quem “a própria Rússia é apenas o primeiro domínio, o primeiro baluarte da revolução internacional: os seus interesses seriam subordinados à estratégia supranacional do socialismo militante. Por enquanto, porém, os limites da Rússia e os do socialismo vitorioso são os mesmos” (Isaac Deutscher, Stalin: a political biography, Nova York e Londres, 1949, p. 243).
3. O ano de 1934 é significativo devido ao novo estatuto do Partido, anunciado no Décimo Sétimo Congresso, que estabelecia que “periódicos […] expurgos [serão] realizados para a limpeza sistemática do Partido”. (Citado de A. Avtorkhanov, “Social differentiation and contradictions in the Party”, Bulletin of the Institute for the Study of the USSR, Munique, fevereiro de 1956.) Os expurgos do Partido, realizados durante os primeiros anos da Revolução Russa, nada têm em comum com a sua transformação posterior em instrumento de instabilidade permanente. Os primeiros expurgos foram levados a efeito por comissões locais de controle, perante um foro aberto, ao qual membros do Partido, ou mesmo os de fora do Partido, tinham livre acesso. Foram planejados como um órgão democrático de controle contra a corrupção burocrática do Partido e “deveriam servir como substituto das verdadeiras eleições” (Deutscher, op. cit., pp. 233-4). Um excelente apanhado da evolução dos expurgos encontra-se no artigo de Avtorkhanov, que também refuta a lenda de que o assassinato de Kirov tenha motivado a nova política. O expurgo geral já havia começado antes da morte de Kirov, que não passou de um “pretexto para lhe dar mais força”. Em vista das muitas circunstâncias “inexplicáveis e misteriosas” em torno do assassinato de Kirov, suspeita-se que o “pretexto” foi cuidadosamente planejado e executado pelo próprio Stálin. Ver o “Discurso sobre Stálin”, de Khrushchev, New York Times, 5 de junho de 1956.
4. Deutscher, op. cit., p. 282, descreve o primeiro ataque contra a “revolução permanente” de Trótski e a contrafórmula de Stálin de “socialismo num só país” como um “acidente” em manobras políticas. Em 1924, a “finalidade imediata [de Stálin] era desacreditar Trótski. […] Rebuscando o passado de Trótski, os triúnviros encontraram a teoria de ‘revolução permanente’, que ele havia formulado em 1905. […] Foi no decurso dessa polêmica que Stálin chegou à sua fórmula do ‘socialismo num só país’”.
5. A liquidação da facção de Röhm, em junho de 1934, foi precedida por um breve intervalo de estabilização. No começo do ano, Rudolf Diels, chefe da polícia política de Berlim, podia comunicar que não havia mais prisões ilegais (“revolucionárias”) por parte da SA e que as prisões anteriores desse tipo estavam sendo investigadas. (Nazi conspiracy, U. S. Government, Washington, 1946, V, 205). Em abril de 1934, o ministro do Interior, Wilhelm Frick, antigo membro do partido nazista, assinou um decreto limitando a prática da “custódia protetora” ( ibid., III, 555), em face da “estabilização da situação nacional”. (Ver Das Archiv, abril de 1934, p. 31.) Esse decreto, porém, nunca foi publicado (Nazi conspiracy, VII, 1099; II, 259). A polícia política da Prússia havia preparado para Hitler um relatório especial sobre os excessos da SA cometidos em 1933, e sugeriu que se processassem os líderes da SA nele mencionados. Hitler resolveu a situação matando esses líderes da SA sem processo legal e demitindo todas as autoridades policiais que se haviam oposto à SA. (Ver o testemunho, sob juramento, de Rudolf Diels, ibid., V, 224.) Dessa forma, ele ficava completamente a salvo de qualquer legalização e estabilização. Entre os numerosos juristas que entusiasticamente serviram à “ideia nacional-socialista”, somente uns poucos compreenderam o que realmente estava em jogo. A esse grupo pertence principalmente Theodor Maunz, cujo ensaio Gestalt und Recht der Polizei [Constituição e jurisdição da polícia] (Hamburgo, 1943) é citado e aprovado mesmo por aqueles autores que, como Paul Werner, pertenciam à camada superior (Fuehrerkorps) da SS.
6. Robert Ley, Der Weg zur Ordensburg (sem data, cerca de 1936). “Edição especial […] para o Führerkorps do Partido […] Venda Proibida”.
7. Heinrich Himmler, “Dei Schutzstaffel”, em Grundlagen, Aufbau und Wirtschaftsordnung des nationalsozialitischen Staates, Nr. 7b . A radicalização do princípio da antiga seleção racial pode ser verificada em todas as fases da política nazista. Assim, os primeiros a serem exterminados eram os judeus “puro-sangue”, seguidos dos que eram “meio- judeus” e “um-quarto-judeus”; em outra área, os primeiros a serem incluídos eram os loucos, seguidos dos portadores de doenças incuráveis e, depois, pelas famílias em que surgisse algum “doente incurável”. A “seleção que não pode ser detida” não o foi nem sequer diante dos membros da SS. Um decreto do Führer, de 19 de maio de 1943, ordenava que todos os que tivessem ligações com estrangeiros através de laços familiares, casamento ou amizade deviam ser eliminados do Estado, do partido, da Wehrmacht e da economia; isso afetou 1200 líderes da SS (ver os Hoover Library Archives, arquivo Himmler, pasta 300).
8. É sabido que na Rússia “a repressão contra os socialistas e anarquistas aumentou na mesma proporção em que o país foi sendo pacificado” (Anton Ciliga, The Russian enigma, Londres, 1940, p. 244). Deutscher, op. cit., p. 218, acha que a razão para o desaparecimento do “espírito de liberdade da revolução” no momento da vitória está numa mudança de atitude dos camponeses: estes viraram-se contra o bolchevismo “tanto mais resolutamente quanto mais se convenciam de que o poder dos proprietários de terras e dos generais brancos tinha sido destruído”. A explicação parece muito débil em face das dimensões que o terror assumiria depois de 1930. E deixa de levar em consideração o fato de que o terror total não foi desencadeado na década de 20, mas na de 30, quando nem sequer a oposição das classes camponesas era atuante. Também Khrushchev ( op. cit.) observa que “medidas extremas de repressão não foram usadas” contra a oposição durante a luta contra os trotskistas e bukharinistas, mas que “a repressão contra eles começou” muito mais tarde, quando já estavam vencidos havia muito tempo. O terror, no regime nazista, alcançou o seu ponto mais alto durante a guerra, quando a nação alemã realmente já estava “unida”. A preparação do terror data de 1936, quando havia desaparecido toda a resistência interna organizada e Himmler propôs uma expansão do sistema de campos de concentração. Típico desse espírito de opressão, independentemente de resistência, é o discurso de Himmler em Kharkov, perante os líderes da SS, em 1943: “temos uma só tarefa, […] levar adiante a luta racial sem dó nem piedade. […] Nunca deixaremos que se perca aquela excelente arma — o pavor e a terrível reputação que nos precedeu nas batalhas por Kharkov — mas continuaremos a cultivá-la” (Nazi conspiracy, IV, pp. 572 ss).
9. Ver Theodor Maunz, op. cit., pp. 5 e 49. O pouco caso que os nazistas faziam das leis e normas que eles próprios haviam criado, e que eram regularmente publicadas por W. Hoche sob o título Die Gesetzgebung des Kabinetts Hitler [A legislação do gabinete Hitler] (Berlim, 1933 et seq.), é exemplificado pela observação, feita ao acaso por um dos seus juristas constituintes. Achava ele que, a despeito da inexistência de nova estrutura legal, tinha havido, não obstante, uma “ampla reforma” (ver Ernst R. Huber, “Die deutsche Plizei”, em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, vol. 101, 1940-1, pp. 273 ss).
10. Maunz, op. cit., p. 49. Ao que se saiba, Maunz é o único autor nazista que menciona essa circunstância e lhe dá a devida ênfase. Somente através do estudo dos cinco volumes de Verfügungen, Anordnungen, Bekanntgaben [Decretos, disposições, editais], coletados e impressos durante a guerra pela chancelaria do partido segundo instruções de Martin Bormann, é possível obter algum conhecimento dessa legislação secreta pela qual a Alemanha era governada. De acordo com o prefácio, os volumes destinavam-se “apenas ao uso interno do partido e deviam ser tratados como confidenciais”. Quatro desses volumes, evidentemente muito raros, comparada aos quais a coleção de Hoche da legislação do gabinete de Hitler era mera fachada, estão na Hoover Library.
11. Hitler aos juristas em 1933, citado por Hans Frank, Nationalsozialistische Leitsätze für ein neues deutsches Strafrecht [Diretivas nacional-socialistas para um novo direito penal alemão], 2a parte, 1936, p. 8.
12. Deutscher, op. cit., p. 381. Em 1918 e 1924 foram feitas tentativas de redigir uma constituição. A reforma constitucional de 1944, segundo a qual algumas das Repúblicas Soviéticas teriam os seus próprios representantes estrangeiros e os seus próprios exércitos, foi uma manobra tática destinada a conseguir para a União Soviética mais de uma representação nas Nações Unidas.
13. Ver Deutscher, op. cit., p. 375. Uma atenta leitura do discurso de Stálin referente à Constituição (o seu relatório ao Oitavo Congresso Extraordinário dos Sovietes de 25 de novembro de 1936), revela que nunca houve intenção de torná-la definitiva. Stálin disse explicitamente: “Esta é a estrutura da nossa constituição no dado momento histórico. O projeto da nova constituição representa, assim, a soma total dos caminhos que já trilhamos, a soma total das realizações já existentes”. Em outras palavras, a constituição já estava datada no instante em que foi anunciada, e o seu interesse era meramente histórico. Não se trata de uma interpretação arbitrária, como o prova Molotov, que, em seu discurso sobre a constituição, serve-se do tema de Stálin e acentua o seu caráter provisório: “Realizamos apenas a primeira fase do comunismo, e mesmo essa primeira fase, que é o socialismo, ainda não é completa: só erigimos até agora o seu esqueleto” (ver Die Verfassung des Sozialistischen Staates der Arbeiter und Bauern [A Constituição do Estado Socialista dos Trabalhadores e Camponeses], Estrasburgo, Editions Prométhée, 1937, pp. 42 e 84).
14. “A vida constitucional alemã caracteriza-se por sua completa informidade, em contraste com a Itália” (Franz Neumann, Behemoth, 1942, apêndice, p. 521).
15. Citado por Boris Souvarine, Stalin: a critical survey of Bolshevism, Nova York, fi939, p. 695.
16. Stephen H. Roberts, The house that Hitler built, Londres, 1939, p. 72.
17. O juiz Robert H. Jackson, em seu discurso de abertura dos Julgamentos de Nurembergue, baseou sua descrição da estrutura política da Alemanha nazista na coexistência de “dois governos na Alemanha — o verdadeiro e o ostensivo. A forma da República Alemã foi mantida durante certo tempo e constituía o governo externo e visível. Mas a verdadeira autoridade estatal estava fora e acima da lei, e repousava no Corpo de Liderança do Partido Nazista” (Nazi conspiracy, I, 125). Os estudiosos da Alemanha nazista concordam que o Estado tinha apenas uma função ostensiva. Para a única exceção, ver Ernst Fraenkel, The dual state, Nova York e Londres, 1941, que afirma que o Estado normativo (governo formal) era mantido pelos nazistas para a proteção da ordem capitalista e da propriedade privada e tinha plena autoridade em todas as questões econômicas, enquanto o Estado prerrogativo (Partido) era supremo em todos os assuntos políticos.
18. “No caso daquelas posições do poder estatal que os nacional-socialistas não podiam preencher com os seus próprios elementos, criavam na própria organização do Partido ‘órgãos-fantasmas’ correspondentes, montando assim um segundo Estado ao lado do Estado. […]” (Konrad Heiden, Der Fueher: Hitler’s rise to power, Boston, 1944, p. 616.)
19. O. C. Giles, The Gestapo, Oxford Pamphlets on World Affairs, n o 36, 1940, descreve a constante superposição dos departamentos do Partido e do Estado.
20. É bem característico um memorando do ministro do Interior, Frick, que se ressentia do fato de que Himmler, líder da SS, tivesse poderes superiores aos dele. Ver Nazi conspiracy, III, p. 547. Dignas de nota a esse respeito são também as observações feitas por Rosenberg acerca de uma conversa com Hitler em 1942: Rosenberg nunca havia antes ocupado uma posição estatal, mas pertencia ao círculo íntimo de Hitler. Agora que era ministro para os Territórios Ocupados no Leste, defrontava-se constantemente com “ações diretas” de outros plenipotenciários (principalmente homens da SS) que o menosprezavam porque ele pertencia ao aparelho ostensivo do Estado. Ver ibid., IV, pp. 65 ss. O mesmo sucedeu a Hans Frank, governador-geral da Polônia. Houve apenas dois casos em que a promoção a ministro não acarretou perda de poder ou de prestígio: o do ministro da Propaganda, Goebbels, e o do ministro do Interior, Himmler. No tocante a Himmler, possuímos um memorando, presumivelmente do ano de 1935, que é um exemplo da sistemática obstinação com que os nazistas regulamentavam as relações entre o partido e o Estado. Esse memorando, que parece ter partido do séquito imediato de Hitler e que foi encontrado entre a correspondência do Reichsadjudantur do Führer e da Gestapo, contém uma advertência contra a nomeação de Himmler para o cargo de secretário de Estado do Ministério do Interior, porque, em tal caso, ele “já não poderia ser um líder político” e “seria alienado do partido”. Nele encontramos também o princípio técnico que regulava as relações entre o partido e o Estado: “Um Reichsleiter [líder do partido] não deve ser subordinado a um Reichsminister [ministro de Estado]”. (O memorando, sem data e sem assinatura, intitulado Die Geheime Staatspolizei, pode ser encontrado na Hoover Library, arquivo P. Wiedemann.)
21. Ver o “Brief report on activities of Rosenberg’s Foreign Affairs Bureau of the Party from 1933 to 1943”, ibid., III, pp. 27 ss.
22. Baseado num decreto do Führer de 12 de agosto de 1942. Ver Verfügungen, Anordnungen, Bekanntgaben, op. cit., Nr. A. 54/42.
23. “Por trás do governo ostensivo estava o verdadeiro governo”, que Victor Kravchenko ( I chose freedom: the personal life of a soviet official, Nova York, 1946, p. 111) via no “sistema da polícia secreta”.
24. Ver Arthur Rosenberg, A history of Bolshevism, Londres, 1934, capítulo VI. “Existem na realidade dois edifícios políticos na Rússia, que se erguem paralelamente um ao outro: o governo fantasma dos sovietes e o governo de fato do partido bolchevista.”
25. Deutscher, op. cit., pp. 255-6, resume o relatório de Stálin ao Décimo Segundo Congresso do Partido acerca do trabalho do departamento de pessoal durante o primeiro ano de sua gestão como secretário-geral: “No ano anterior, somente 27% dos líderes regionais dos sindicatos eram membros do partido. Atualmente, 57% deles são comunistas. A percentagem de comunistas na gerência das cooperativas havia subido de 5 para 50%; e, entre os oficiais- comandantes das Forças Armadas, de 16 para 24%. O mesmo sucedia em todas as outras instituições que Stálin descrevia como as ‘correias de transmissão’ que ligavam o partido ao povo”.
26. Arthur Rosenberg, op. cit., loc. cit.
27. Maunz, op. cit., p. 12.
28. O jurista e Obersturmbannfueher professor R. Hoehn, exprimiu isso nas seguintes palavras: “Havia também outra coisa à qual os estrangeiros, e também os alemães, tinham de acostumar-se: a tarefa da polícia secreta do Estado […] estava nas mãos de um grupo de pessoas que provinham de dentro do movimento e ainda estavam enraizadas nele” (Grundfragen der deutschen Polizei [Questões fundamentais da polícia alemã], Relatório da Sessão Constitutiva do Comitê de Legislação Policial da Academia de Direito Alemão, 11 de outubro de 1936, Hamburgo, 1937, contendo contribuições de Frank, Himmler e Hoehn).
29. Por exemplo: uma tentativa de circunscrever as diversas responsabilidades e combater a “anarquia da autoridade” foi empreendida por Hans Frank em Recht und Verwaltung [Direito e administração], 1939, e repetida num discurso intitulado Technik des Staates [Técnica do Estado], em 1941. Expressava a opinião de que as “garantias legais” não eram a “prerrogativa dos sistemas liberais de governo”, e que a administração devia continuar a ser governada, como antes, pelas leis do Reich, agora inspiradas e guiadas pelo programa do partido nacional-socialista. Precisamente porque queria impedir essa nova ordem legal a qualquer preço, Hitler nunca reconheceu o programa do partido nazista. A respeito dos membros do partido que faziam tais propostas, Hitler costumava falar com desprezo, descrevendo-os como “eternamente amarrados ao passado”, como pessoas “incapazes de pular por cima da própria sombra” (Felix Kersten, Totenkopf und Treue [Caveira e fidelidade], Hamburgo).
30. “As 32 Gaue […] não coincidem com as regiões administrativas nem com as militares, nem com as 21 divisões da SA, nem com as dez regiões da SS, nem com as 23 zonas da Juventude Hitlerista. […] O mais notável dessas discrepâncias é que não havia motivo para elas” (Roberts, op. cit., p. 98).
31. Documento de Nurembergue, PS 3063, no Centre de Documentation Juive, de Paris, é um relatório da Suprema Corte do Partido acerca de “eventos e debates na Corte do Partido relativos às demonstrações antissemitas de 9 de novembro de 1938”. À base das investigações da polícia e do gabinete do procurador-geral, a Suprema Corte chegou à conclusão de que “todos os líderes do Partido devem ter compreendido que as instruções verbais do Reichspropagandaleiter significavam que, para observadores de fora, o Partido não queria aparecer como o instigador da demonstração, mas na verdade deveria organizá-la e levá-la a cabo […] O reexame dos escalões de comando revelou […] que o nacional-socialista ativo, temperado na luta que antecedeu o poder (Kampfzeit), aceita naturalmente que as ações em que o Partido não deseja aparecer no papel de organizador não são ordenadas com clareza inequívoca nem com todos os detalhes. Assim, está habituado a compreender que uma ordem pode significar mais que o seu conteúdo verbal, como se tornou mais ou menos rotina para quem dá as ordens no interesse do Partido não dizer tudo e apenas insinuar o que deseja obter com a ordem. […] Desse modo, as […] ordens de que, por exemplo, não o judeu Grünspan mas todo o povo judeu deve levar a culpa pela morte do camarada Von Rath, […] [de que] devem trazer-se pistolas, […] [de que] todo homem da SA devia a esta altura saber o que tinha que fazer — eram compreendidas por um número de sublíderes como indicativas de que haveria de correr sangue judeu pela morte do camarada Von Rath”. Particularmente significativo é o fim do relatório, no qual a Suprema Corte do Partido abertamente objeta contra esses métodos: “Outra questão é se, no interesse da disciplina, a ordem intencionalmente vaga, dada na expectativa de que quem a recebe reconhece a intenção de quem ordena, e aja de acordo, não deva ser relegada ao passado”. Eis aqui, novamente, pessoas que, nas palavras de Hitler, “tinham medo de pularem sobre a própria sombra” e insistiam em medidas legislativas, por não compreenderem que a lei suprema não era a ordem, mas o desejo do Führer. Fica bem clara, neste exemplo, a diferença de mentalidade entre as formações de elite do partido e os seus diversos órgãos.
32. Best (op. cit.) assim se expressa: “Enquanto a polícia executa esse desejo da liderança, age em conformidade com a lei; se o desejo da liderança é violado, então não a polícia, mas um membro da polícia cometeu uma violação”.
33. Ver nota 31.
34. Em 1933, após o incêndio do Reichstag, “os líderes da SA eram mais poderosos que um Gauleiter. Recusavam- se também a obedecer a Göring”. Ver Rudolf Diels em suas declarações sob juramento, em Nazi conspiracy, V, p. 224; Diels era chefe da polícia política sob Göring.
35. Sem dúvida, a SA se ressentia da perda de posição e de poder na hierarquia nazista e tentou desesperadamente manter as aparências. Em suas revistas — Der SA-Mann, Das Archiv etc. —, encontram-se muitas indicações, veladas ou abertas, de sua impotente rivalidade com a SS. O mais interessante é que Hitler, ainda em 1936, quando a SA já havia perdido a sua força, assegurava aos seus homens num discurso: “Tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que eu sou, sou através de vocês”. Ver Ernst Bayer, Die SA, Berlim, 1938. A fonte desta citação é Nazi conspiracy, IV, p. 782.
36. Compare-se o discurso de Rosenberg de junho de 1941: “Creio que a nossa tarefa política será […] organizar esses povos em certos tipos de corpos políticos […] que se anteponham a Moscou”, com o “Memorando (sem data) para a Administração dos Territórios Ocupados do Leste”: “Com a dissolução da União Soviética após sua derrota, nenhuma estrutura política restará nos territórios do Leste e, portanto, […] sua população não terá cidadania” ( Trial of the major war criminal, Nurembergue, 1947, XXVI, pp. 616 e 604, respectivamente).
37. Hitlers Tischgespräche, Bonn, 1951, p. 213.
38. Quanto à variedade de organizações partidárias superpostas, ver Rang-und Organisationsliste der NSDAP, Stuttgart, 1947, e Nazi conspiracy, I, p. 178, que enumera quatro categorias principais: 1. Gliederungen der NSDAP, que haviam existido antes da subida ao poder; 2. Angeschlossene Verbände der NSDAP, que abrange aquelas sociedades que haviam sido coordenadas; 3. Bereute Organisationen der NSDAP; e 4. Weitere nationalsozialistische Organisationen . Em quase todas essas categorias, encontra-se uma organização diferente de estudantes, de mulheres, de professores e de trabalhadores.
39. A gigantesca organização das obras públicas, chefiada por Todt e, mais tarde, por Albert Speer, foi criada por Hitler fora de qualquer hierarquia ou afiliação partidária. Essa organização podia ser usada contra a autoridade do partido e até mesmo da polícia. É digno de nota que Speer pudesse arriscar-se a apontar a Hitler (durante uma conferência em 1942) a impossibilidade de organizar a produção sob o regime de Himmler, e até mesmo exigir jurisdição sobre o trabalho escravo e os campos de concentração. Ver Nazi conspiration, I, 916-7.
40. Por exemplo, uma organização inócua e sem importância como a NSKK (agremiação nazista de automobilistas, fundada em 1930) foi subitamente promovida, em 1933, à posição de formação de elite, compartilhando com a SA e a SS o privilégio de unidade independente afiliada ao partido. Essa ascensão na escala hierárquica do nazismo não teve maiores consequências; em retrospecto, parece ter sido apenas uma fútil ameaça à
SA e à SS.
41. F. Beck e W. Godin, Russian purge and the extraction of confessions, 1951, p. 153.
42. Ibid., pp. 159 ss. Segundo outras fontes, existem vários exemplos dessa desconcertante multiplicação do aparelho de polícia soviético, principalmente as associações locais e regionais da NKVD, que funcionam independentemente uma da outra e têm suas correspondentes nas redes locais e regionais dos agentes do partido. É natural que saibamos muito menos a respeito das condições na Rússia do que a respeito do que ocorria na Alemanha, especialmente no tocante a detalhes da organização.
43. Segundo o testemunho de um dos seus ex-funcionários (Nazi conspiracy, VI, 461), “Himmler confiava a mesma tarefa a duas pessoas diferentes”.
44. No discurso mencionado acima (ver nota 29), Hans Frank deixou claro que, em alguma data futura, queria estabilizar o movimento; as suas numerosas queixas como governador-geral da Polônia demonstram a total falta de compreensão das tendências absolutamente antiutilitárias da polícia nazista. Ele não podia compreender por que os povos dominados não eram explorados, mas exterminados. Rosenberg, aos olhos de Hitler, era racialmente indigno de fé, uma vez que pretendia estabelecer Estados satélites nos territórios conquistados do Leste e não compreendia que a política de despopulação de Hitler visava esvaziar esses territórios.
45. A noção da divisão em “pequenos principados” constituindo “uma pirâmide de poder fora da lei com o Fuehrer no topo” é de Robert H. Jackson. Ver o cap. xii de Nazi conspiracy, II, pp. 1 ss. Para evitar a criação desse tipo de Estado autoritário, Hitler, já em 1934, baixou o seguinte decreto: “O tratamento de ‘Mein Führer’ fica reservado apenas para o Fuehrer. Todos os sublíderes do NSDAP ficam doravante proibidos a se deixarem tratar por ‘Mein Reichsleiter’ etc., tanto por escrito como oralmente. Em vez disso, o tratamento deve ser Pg. [abreviatura de Parteigenosse — Camarada do Partido] […] ou Gauleiter etc.” Ver Verfügungen, Anordnungen, Bekanntgaben , op. cit., decreto de 20 de agosto de 1934.
46. Ver o Organisationsbuch der NSDAP.
47. Ver o quadro no 14 do vol. VIII de Nazi conspiracy.
48. Todos os juramentos, no partido e nas formações de elite, eram feitos com a invocação pessoal de Adolf Hitler.
49. O primeiro passo de Himmler nessa direção foi dado no outono de 1944, quando mandou, por iniciativa própria, desmontar as câmaras de gás em alguns dos campos de extermínio e parar a matança em massa. Foi a sua maneira de dar início às negociações de paz com as potências do Ocidente. É interessante que Hitler nunca chegasse a ser informado desses preparativos; aparentemente, ninguém ousou dizer-lhe que um dos seus mais importantes objetivos de guerra — o extermínio dos judeus — tinha sido parcialmente abandonado. Ver Léon Poliakov, Bréviaire de la haine, 1951, p. 232.
50. Quanto aos acontecimentos que se seguiram à morte de Stálin, ver Harrison E. Salisbury, American in Russia, Nova York, 1955.
51. Ver a excelente análise da estrutura da polícia nazista em Nazi conspiracy, II, pp. 250 ss, esp. p. 256.
52. Ibid., p. 252.
53. Franz Neumann, op. cit., pp. 521 ss, duvida se se “pode chamar a Alemanha de Estado. Parece mais uma gangue em que os líderes são perpetuamente compelidos a concordar [com seus chefes, mesmo] depois dos desacordos”. As obras de Konrad Heiden sobre a Alemanha nazista exemplificam a teoria de que o país era governado por uma clique. No tocante à formação de cliques em torno de Hitler, The Bormann letters, publicadas por Trevor-Roper, são muito elucidativas. No julgamento dos médicos (The United States vs. Karl Brandt et al., audiência de 13 de maio de 1947), Victor Brack testemunhou que, já em 1933, Bormann, certamente por ordem de Hitler, havia começado a organizar um grupo de pessoas que estariam acima do Estado e do partido.
54. Compare-se a contribuição da autora à discussão do problema da culpabilidade alemã: “Organized guilt”, em Jewish Frontier, janeiro de 1945.
55. Num discurso de 23 de novembro de 1939, citado em Trial of major war criminals, vol. 26, p. 332. Esse pronunciamento representava mais que uma aberração histérica provocada pelo acaso, como se depreende do discurso de Himmler (cuja transcrição estenográfica se encontra nos arquivos da Biblioteca Hoover, arquivo Himmler, pasta 332) na conferência dos prefeitos em Posen, em março de 1944. Diz Himmler: “Que valores podemos colocar na balança da história? O valor do nosso próprio povo. […] O segundo valor, e eu quase diria ainda maior, é a singular pessoa do nosso Führer Adolf Hitler, […] que, pela primeira vez em 2 mil anos, […] foi enviado à raça germânica como um guia supremo”.
56. Ver as declarações de Hitler sobre essa questão em Hitlers Tischgespräche, pp. 253 e 222: O novo Führer teria de ser eleito por um “senado”; o princípio orientador das eleições do Führer seria a cessação de qualquer discussão entre as personalidades que participassem da eleição. Dentro de três horas, a Wehrmacht, o partido e todos os servidores públicos teriam de prestar novo juramento. “Ele não tinha ilusões quanto ao fato de que, nessa eleição do supremo chefe do Estado, nem sempre poderia surgir uma personalidade marcante de Líder para comandar o Reich”. Mas isso não acarretava perigos, “contanto que a maquinaria geral funcionasse devidamente”.
57. Um dos princípios mestres da SS, formulado pelo próprio Himmler, diz: “Nenhuma tarefa é executada em benefício de si mesma”. Ver Gunter d’Alquen, Die SS Geschichte, Aufgabe und Organisation der Schutzstaffeln der NSDAP [A SS. História, função e organização dos Esquadrões de Proteção do NSDAP], 1939, Schriften der Hochschule für Politik.
58. Ver David J. Dallin e Boris I. Nicolaevsky, Forced labor in Russia, 1947. Durante a guerra, quando a mobilização havia criado agudo problema de mão de obra, a taxa de mortalidade nos campos de trabalho atingiu cerca de 40%. De modo geral, calcula-se que a produção de um trabalhador nos campos é menor em 50% da de um trabalhador livre.
59. Thomas Reveille, The spoil of Europe, 1941, calcula que somente durante o primeiro ano da guerra a Alemanha pôde cobrir todas as suas despesas com a preparação do conflito entre 1933 e 1939.
60. William Ebenstein, The Nazi State, p. 257.
61. Ibid., p. 270.
62. Em apoio a essa conjectura, há o fato de que o decreto para assassinar todos os doentes incuráveis foi emitido no dia em que a guerra foi declarada. As declarações de Hitler durante a guerra, citadas por Goebbels (The Goebbels diaries, editados por Louis P. Lochner, 1948), são claras nesse sentido: ‘‘A guerra possibilitou resolvermos uma porção de problemas que nunca teriam sido resolvidos em tempos normais”, e, “qualquer que seja o resultado do conflito, os judeus certamente levarão a pior” (p. 314).
63. A Wehrmacht tentou muitas vezes explicar aos vários órgãos do partido os perigos de conduzir uma guerra na qual as ordens eram dadas com o mais completo descaso às necessidades militares, civis e econômicas (ver Poliakov, op. cit., p. 321). Mas até mesmo muitos dos altos funcionários nazistas tinham dificuldade em compreender esse desprezo por todos os fatores objetivos econômicos e militares da situação. Dizia-se-lhes repetidamente que “basicamente devem esquecer as considerações econômicas na solução do problema [judaico]” (Nazi conspiracy, VI, pp. 402), mas ainda assim eles se queixavam de que importantes planos de construção não teriam sido interrompidos na Polônia “se os judeus que nele trabalhavam não houvessem sido deportados. Agora, ordena-se que os judeus sejam removidos dos projetos de armamentos. Espero que essa […] ordem seja logo cancelada, porque senão a situação será pior”. Essa esperança de Hans Frank, governador-geral da Polônia, foi tão frustrada quanto as suas expectativas posteriores de uma política militarmente mais sensata em relação aos poloneses e ucranianos. Suas queixas são interessantes (ver o seu diário em Nazi conspiracy, IV, pp. 902 ss), porque o que o assustava era exclusivamente o aspecto antiutilitário da política nazista durante a guerra. “Uma vez que a guerra tenha sido ganha, pouco se me dá se se fizer picadinho dos poloneses e ucranianos e de todos os mais aqui.”
64. Originalmente, somente as unidades especiais da SS — as formações da Caveira — eram empregadas nos campos de concentração. Mais tarde, vieram reforços das divisões da Waffen- SS. A partir de 1944, empregaram-se também unidades de Forças Armadas regulares. A maneira como a presença ativa da Wehrmacht se fazia sentir nos campos de concentração foi descrita no diário do campo de concentração de Odd Nansen, Day after day, Londres, 1949. Infelizmente, esse diário mostra que as tropas do Exército regular eram pelo menos tão brutais quanto a SS.
65. Deutscher, op. cit., p. 326. Trata-se de uma citação de peso, pois é da autoria do mais benévolo dos biógrafos não comunistas de Stálin.
66. Os nazistas gostavam especialmente de pensar em termos de milênios. Os pronunciamentos de Himmler de que os homens da SS interessavam-se unicamente por “questões ideológicas que seriam importantes em termos de décadas e de séculos” e que “serviam a uma causa que só ocorria uma vez a cada 2 mil anos” são repetidas, com ligeiras variações, em todo o material de doutrinação emitido pelo SS-Hauptamt-Schulungsamt (Wesen und Aufgabe der SS und der Polizei, p. 160). Quanto à versão bolchevista, a melhor referência é o programa da Internacional Comunista formulado por Stálin, já em 1928, no Sexto Congresso, em Moscou. Particularmente interessante é a avaliação da União Soviética como “a base do movimento mundial, o centro da revolução internacional, o mais importante fator da história do mundo. Na URSS, o proletariado mundial adquire um país pela primeira vez […]” (citado por W. H. Chamberlain, Blue-print for world conquest, 1946, que reproduz verbatim os programas da Terceira Internacional).
67. Essa mudança do lema oficial pode ser encontrada no Organisationsbuch der NSDAP, p. 7.
68. Ver Heiden, op. cit., p. 722. Hitler declarou, num discurso de 23 de novembro de 1937 perante os futuros líderes políticos na Ordensburg Sonthofen: Não “tribos ridicularmente pequenas, pequeninos países, Estados ou dinastias […] mas somente raças [podem] funcionar como conquistadores do mundo. Mas uma raça — pelo menos no sentido consciente — é algo que ainda temos de nos tornar” (ver Hitlers Tischgespräche , p. 445). Em completa harmonia com esse fraseado, que de modo algum era acidental, está o decreto de 9 de agosto de 1941 no qual Hitler proíbe o uso da expressão “raça alemã”, porque ela tenderia a “sacrificar a ideia racial em si a favor de um simples princípio de nacionalidade, e a destruir importantes precondições conceituais de toda a nossa política racial e popular” (Verfügungen, Anordnungen, Bekanntgaben ). É óbvio que o conceito de uma raça alemã teria constituído um obstáculo à progressiva “seleção” e exterminação de grupos indesejáveis da população alemã que, naqueles mesmos anos, estava sendo planejada para o futuro.
69. Ao fundar uma SS Germânica em vários países, Himmler declarou: “Não esperamos que vocês se tornem alemães por oportunismo. Mas esperamos que subordinem o seu ideal nacional ao ideal maior, racial e histórico, do Reich Alemão” (Heiden, op. cit.). A futura tarefa dessa SS seria formar, através “da mais copiosa reprodução”, um “superestrato racial” que, em vinte ou trinta anos, apresentaria “a toda a Europa a sua nova classe dirigente” (discurso de Himmler na reunião dos generais da SS em Posen, em 1943, em Nazi conspiracy, IV, pp. 558 ss).
70. Himmler, ibid., p. 572.
71. Deutscher, op. cit., descreve a notável “sensibilidade [de Stálin] para todas aquelas correntes psicológicas ocultas […] das quais se arrogava em porta-voz” (p. 292). “O próprio nome da teoria de Trótski, ‘revolução permanente’, parecia ominosa advertência a uma geração cansada. […] Stálin apelou diretamente ao horror ao risco e à incerteza que dominava muitos bolchevistas” (p. 291).
72. Assim, Hitler pôde dar-se ao luxo de usar o chavão ‘‘judeu decente”, quando havia começado a exterminá-los, ou seja, em dezembro de 1941 (Hitlers Tischgespräche, p. 346).
73. Ao falar, em novembro de 1937, a vários membros do Estado-Maior Geral (Blomberg, Fritsch, Raeder) e altos funcionários civis (Neurath, Göring), Hitler permitiu-se declarar abertamente que necessitava de espaços vazios e rejeitava a ideia de conquistar povos estrangeiros. Evidentemente nenhum dos seus ouvintes compreendeu que isso resultaria automaticamente numa política de extermínio desses povos.
74. Isso começou com uma ordem, em julho de 1934, pela qual a SS era promovida à posição de organização independente dentro do partido nazista, e foi completado com um decreto altamente confidencial de agosto de 1938, que declarava que as formações especiais da SS, as Unidades da Caveira e as Tropas de Choque ( Verfügungstruppen) não faziam parte nem do Exército nem da polícia; os Esquadrões tinham de “executar tarefas de natureza policial” e as Tropas de Choque eram “uma unidade armada de prontidão, exclusivamente à minha disposição” (Nazi conspiracy, III, pp. 459). Dois decretos subsequentes, de outubro de 1939 e abril de 1940, criavam uma jurisdição especial em assuntos gerais para todos os membros da SS (ibid., II, 184). Daí em diante, todos os panfletos publicados pelo órgão de doutrinação da SS trazem advertências como “exclusivamente para uso da polícia”, “publicação proibida”, “exclusivamente para os líderes e encarregados de educação ideológica”. Valeria a pena compilar uma bibliografia da volumosa literatura secreta da era nazista, que inclui muitas medidas legislativas. O interessante é que não há um único folheto da SA entre esse tipo de literatura, o que constitui a melhor prova de que a SA deixara de ser uma formação de elite a partir de 1934.
75. Compare-se Franz Borkenau, “Die neue Komintern”, em Der Monat, Berlim, 1949, vol. 4.
76. Os exemplos são demasiado óbvios e numerosos para serem citados. Essa tática, porém, não deve ser confundida com a enorme deslealdade e inveracidade que todos os biógrafos de Hitler e de Stálin apontam como o principal traço do caráter de cada um deles.
77. Ver a Circular do Ministério das Relações Exteriores para todas as autoridades alemãs no exterior, em janeiro de 1939, em Nazi conspiracy, VI, pp. 87 ss.
78. Em 1940, o governo nazista decretou que todos os crimes, desde alta traição contra o Reich até “pronunciamentos maliciosos e agitadores contra pessoas de importância do Estado ou do Partido Nazista”, seriam punidos com força retroativa em todos os territórios ocupados, independentemente de haverem sido cometidos por alemães ou por nativos desses países. Ver Giles, op. cit. Quanto às desastrosas consequências da Siedlungspolitik [política de transferência populacional] nazista na Polônia e na Ucrânia, ver Trial, op. cit., vols. XXVI e XIX.
79. A ideia é de Kravchencko, op. cit., p. 303, que, ao descrever as condições que prevaleciam na Rússia após o superexpurgo de 1936-8, observa: “Se um conquistador estrangeiro houvesse se apossado da máquina da vida soviética […] a mudança não poderia ter sido mais completa nem mais cruel”.
80. Hitler planejou, durante a guerra, a criação de uma Lei de Saúde Nacional: “Depois de um exame de raios X de toda a nação, o Fuehrer receberia uma lista de pessoas doentes, particularmente de portadores de moléstias do pulmão e do coração. Segundo essa nova lei de saúde do Reich […] essas famílias já não podiam permanecer misturadas ao público nem gerar crianças. O que será feito delas é objeto de futuras ordens do Fuehrer”. Não é preciso ter muita imaginação para adivinhar o que teriam sido essas ordens futuras. O número de pessoas que já não poderiam “permanecer misturadas ao público” teria constituído uma considerável proporção do povo alemão ( Nazi conspiracy, VI, p. 175).
81. O total de russos mortos durante os quatro anos de guerra é calculado entre 12 e 21 milhões. Num só ano, Stálin exterminou cerca de 8 milhões de pessoas somente na Ucrânia. Ver Communism in action, U. S. Government, Washington, 1946, House Document n o 754, pp. 140-1. Em contraste com o regime nazista, que mantinha uma conta bastante precisa do número de suas vítimas, não existe um cálculo digno de confiança dos milhões de pessoas que foram mortas no sistema soviético. Não obstante, a seguinte estimativa, citada por Souvarine, op. cit., p. 69, tem certo valor uma vez que provém de Walter Krivitsky, que tinha acesso à informação dos arquivos da GPU. Segundo ele, o censo de 1937 na União Soviética, que estatísticos russos haviam esperado que atingisse 171 milhões de pessoas, mostrou que existiam somente 145 milhões. Isso indicaria uma perda populacional de 26 milhões, algarismo que não inclui as perdas citadas acima.
82. Deutscher, op. cit., p. 256.
83. B. Souvarine, op. cit., p. 605, cita as seguintes palavras de Stálin, proferidas no auge do terror em 1937: “É preciso compreender que, de todos os recursos existentes no mundo, os melhores e mais preciosos são os quadros [do partido]”. Todos os relatórios demonstram que, na União Soviética, a polícia secreta é considerada como a verdadeira formação de elite do partido. Típico dessa natureza da polícia é o fato de que, desde o começo da década de 20, os agentes da NKVD “não eram recrutados como voluntários”, mas eram tirados dos escalões do partido. Além disso, “a NKVD não podia ser escolhida como carreira” (ver Beck e Godin, op. cit., p. 160).
84. Citado por Heiden, op. cit., p. 311.
85. Segundo relatos da última reunião, Hitler decidiu cometer suicídio depois de saber que já não podia confiar nas tropas da SS. Ver H. R. Trevor-Roper The last days of Hitler, 1947, pp. 116 ss.
86. Hitler frequentemente fazia comentários sobre a relação entre o Estado e o Partido e sempre acentuava que não o Estado, mas a raça, ou a “comunidade popular unida”, era a mais importante (cf. o discurso citado anteriormente, publicado como anexo a Tischgespräche). Em seu discurso no Parteitag de 1935, em Nurembergue, ele exprimiu essa teoria do modo mais sucinto: “Não é o Estado que nos comanda, mas nós que comandamos o Estado”. Na prática, é axiomático que tais poderes de comando somente serão possíveis se as instituições do partido permanecerem independentes das do Estado.
86a. Otto Gauweiler, Rechtseinrichtungen und Rechtsaufgaben der Bewegung, 1939, observa expressamente que a posição especial de Himmler como Reichsfuehrer-SS e chefe da polícia alemã repousava no fato de que a administração da polícia havia produzido “uma genuína unidade do partido e Estado”, que não havia nem sido tentada em outros setores do governo.
87. Durante as revoltas camponesas dos anos 20 na Rússia, Voroshilov recusou o apoio do Exército Vermelho, o que levou à introdução de divisões especiais da GPU para tarefas punitivas. Ver Ciliga, op. cit., p. 95.
88. Em 1935, os agentes da Gestapo no exterior receberam 20 milhões de marcos, enquanto o serviço de espionagem regular do Reichswehr tinha de contentar-se com um orçamento de 8 milhões. Ver Pierre Dehillotte, Gestapo, Paris, 1940, p. 11.
89. Ver Nazi conspiracy, IV, pp. 616 ss.
90. Ver nota 62.
91. Maurice Laporte, Histoire de l’Okhrana, Paris, 1935, diz, com justiça, que o método de provocação é “a pedra fundamental” da polícia secreta (p. 19). Na Rússia soviética, a provocação, longe de ser a arma secreta da polícia secreta, tem sido usada como o método público e largamente divulgado pelo qual o regime sonda a opinião pública. A relutância da população em tirar proveito desses convites periódicos à crítica, ou em reagir a interlúdios “liberais” no regime do terror, mostra que esses gestos são compreendidos como provocação em massa. Realmente, a provocação tornou-se a versão totalitária das pesquisas de opinião pública.
92. Nesse ponto, é interessante notar as tentativas feitas pelos funcionários civis nazistas para reduzir a competência e o pessoal da Gestapo, argumentando que a nazificação do país já havia sido conseguida, de sorte que Himmler, que, ao contrário, desejava expandir os serviços secretos àquela altura (cerca de 1934), teve de exagerar o perigo proveniente dos “inimigos internos”. Ver Nazi conspiracy, II, p. 259; V, p. 205; III, p. 547.
93. Ver Gallier-Boissière, Mysteries of the French secret police, 1938, p. 234.
94. Afinal, parece que não foi por acaso que a fundação da Okhrana em 1880 trouxe um período de atividade revolucionária sem precedentes na Rússia. Para demonstrar sua utilidade, a Okhrana tinha às vezes de organizar assassinatos, e os seus agentes, “a despeito de si próprios, serviam às ideias daqueles a quem denunciavam. […] Que um panfleto antigovernamental ou a execução de um ministro fossem obras da polícia ou de um Azev — o resultado era o mesmo” (M. Laporte, op. cit., p. 25). Além disso, as execuções mais importantes parecem realmente ter sido obra da polícia — Stolypin e Von Plelwe. O fato de que, em tempos de calma, os agentes policiais tinham de “reavivar as energias e estimular o zelo” dos revolucionários foi decisivo para a tradição revolucionária (ibid., p. 71).
Ver também Bertram D. Wolfe, Three who made a revolution: Lenin, Trotski, Stalin, 1948, que chama esse fenômeno de “socialismo policial”.
95. Hans Frank, que mais tarde tornou-se governador-geral da Polônia, fez uma típica diferenciação entre a pessoa que é “perigosa para o Estado” e a que é “hostil ao Estado”. A primeira categoria implica uma qualidade objetiva independente da vontade e da conduta; a polícia política dos nazistas se interessa não apenas por atos hostis ao Estado, mas por “todas as tentativas — qualquer que seja o seu objetivo — cujos efeitos possam acarretar perigo para o Estado”. Ver Deutsches Verwaltungsrecht [Direito administrativo alemão], pp. 420-30. Tradução citada em Nazy conspiracy, IV, pp. 881 ss. Nas palavras de Maunz, op. cit., p. 44: “Através da eliminação da pessoa perigosa, a medida de segurança […] pretende evitar um estado de perigo à comunidade nacional, independentemente de qualquer ofensa cometida pela pessoa. [É uma questão de] evitar um perigo objetivo”.
96. R. Hoehn, jurista nazista e membro da SS, disse num obituário de Reinhard Heydrich, que, antes de governar a Boêmia ocupada, havia sido um dos mais íntimos colaboradores de Himmler, que considerava os seus oponentes “não como indivíduos, mas como portadores de tendências que traziam perigo para o Estado e, portanto, como tais, estavam além do âmbito da comunidade nacional”. Em Deutsche Allgemeine Zeitung, de 6 de junho de 1942; citado por E. Kohn-Bramstedt, Dictatorship and political police, Londres, 1945.
97. Já em 1941, durante uma reunião de dirigentes no quartel-general de Hitler, apresentou-se uma proposta de impor à população polonesa os mesmos regulamentos com os quais os judeus haviam sido preparados para os campos de extermínio: mudança de nomes, se estes fossem de origem alemã (como os judeus foram obrigados a apor a seus prenomes, obrigatoriamente, Israel ou Sara), sentenças de morte pelas relações sexuais entre alemães e poloneses (Rassenschande); obrigação de usar um sinal com a letra “P” na Alemanha, semelhante à estrela amarela com a letra “J” dos judeus. Ver Nazi conspiracy, VIII, pp. 237 ss, e o diário de Hans Frank em Trial, op. cit., XXI, p. 683. Quanto aos planos de Hitler com referência ao povo alemão, ver a nota 80.
98. Beck e Godin, op. cit., p. 87, falam das “características objetivas” que mais facilmente levavam à prisão na Rússia: entre elas, está o fato de pertencer à NKVD (p. 153). Era mais fácil aos ex-membros da polícia secreta compreenderem subjetivamente a necessidade objetiva da prisão e da confissão. Nas palavras de um ex-agente da NKVD: “Os meus superiores conhecem-me a mim e ao meu trabalho bastante bem e, se o partido e a NKVD exigem agora que eu confesse essas coisas, devem ter boas razões para isso. Meu dever como um leal cidadão soviético é não lhes negar a confissão exigida de mim” (ibid., p. 231).
99. Bem conhecido é o caso da França, onde os ministros viviam em constante pavor dos “ dossiers” secretos da polícia. Quanto à situação na Rússia czarista ver Laporte, op. cit., pp. 22-3: “Chegará o dia em que a Okhrana exercerá um poder muito superior ao das autoridades mais regulares. […] A Okhrana […] só deixará o czar saber aquilo que ela quiser”.
100. “Em contraste com a Okhrana, que havia sido um Estado dentro do Estado, a GPU é um departamento do governo soviético; […] e as suas atividades são muito menos independentes” (Roger N. Baldwin, “Political police”, na Encyclopedia of social sciences).
101. Típica do conceito de suspeito é a seguinte história, contada por C. Pobiedonostzev em L’autocratie russe : mémoires politiques, correspondance officielle et documents inédits … 1881-1894 , Paris, 1927: “Pediram ao general Cherevin, da Okhrana, que interviesse a favor de uma senhora que estava para perder um processo, no qual a outra parte havia contratado um advogado judeu. Disse o general: ‘Na mesma noite, mandei prender o maldito judeu e meti-o na prisão como pessoa politicamente suspeita. […] Afinal, não posso tratar da mesma forma os meus amigos e um judeu sujo, que pode ser inocente hoje, mas que foi culpado ontem ou pode vir a ser culpado amanhã’”.
102. As acusações dos julgamentos de Moscou “baseavam-se […] numa previsão grotescamente brutalizada e distorcida de possíveis acontecimentos. O raciocínio [de Stálin] provavelmente se processou como segue: querem derrubar-me numa crise — acusá-los-ei de terem-no tentado. […] Uma mudança de governo pode enfraquecer a capacidade bélica da Rússia; e, se eles forem bem-sucedidos, podem ser obrigados a assinar a trégua com Hitler, e talvez até concordem em ceder algum território. […] Acusá-los-ei de já haverem feito uma traiçoeira aliança com a Alemanha e de terem concordado em ceder território soviético”. Essa é a brilhante explicação de Isaac Deutscher sobre os julgamentos de Moscou, op. cit., p. 377. Um bom exemplo da versão nazista do crime possível pode ser encontrado em Hans Frank, op. cit.: “É impossível fazer um rol completo dos atos ‘perigosos para o Estado’ porque nunca se pode prever aquilo que virá a constituir um risco para a liderança e para o povo em alguma data futura”. (Tradução citada em Nazi conspiracy, IV, p. 881.)
103. Os métodos criminosos da polícia secreta são conhecidos na França de Fouchet. Na Áustria, por exemplo, a temida polícia política sob o reino de Maria Teresa foi organizada por Kaunitz com os elementos dos chamados “comissários da castidade”, que viviam de chantagem. Ver Moritz Bermann, Maria Theresia und Kaiser Joseph II, Vienna-Leipzig, 1881. Devo esta referência a Robert Pick.
104. Não há dúvida de que a enorme organização policial é paga com os lucros do trabalho escravo; o que é surpreendente é que o orçamento da polícia não parece ser inteiramente coberto dessa forma; Kravchenko, op. cit., menciona impostos especiais, cobrados pela NKVD dos cidadãos condenados que conseguem sobreviver e que trabalham em liberdade.
105. Ver Fritz Thyssen, I paid Hitler, 1941.
106. Ver Nazi conspiracy, I, pp. 916-7. A atividade econômica da SS era centralizada num escritório para assuntos econômicos e administrativos. Para o Tesouro e para o Imposto de Renda, a SS declarava seus haveres financeiros como “propriedade do partido reservada para fins especiais” (carta de 5 de maio de 1943, citada por M. Wolfson, Uebersicht der Gliederung verbrecherischer Nazi-Organisationen [Panorama da estrutura das organizações criminais nazistas], Omgus, dezembro de 1947).
107. Ver Kohn-Bramstedt, op. cit., p. 112. A chantagem fica bem caracterizada se considerarmos que esse tipo de coleta de dinheiro era sempre organizado pelas unidades SS nas próprias localidades onde operavam. Ver Der Weg der SS, publicado pelo SS-Hauptamt-Schulungsamt (sem data), p. 14.
108. Ibid., p. 124. Faziam-se certas exceções no tocante às necessidades de manutenção dos campos e às necessidades pessoais da SS. Ver Wolfson, op. cit., carta de 19 de setembro de 1941, de Oswald Pohl, chefe do WVH (Wirtschafts- und Werwaltungs-Hauptamt) ao Reichskommissar parece controle de preços. Parece que todas essas atividades econômicas surgiram nos campos de concentração apenas durante a guerra e devido à aguda escassez de mão de obra.
109. Discurso de Himmler de outubro de 1943, em Posen, International military trials. Nurembergue, 1945-6, vol. 29, p. 146.
110. “Bek Bulat (pseudônimo literário de um ex-professor soviético) teve a oportunidade de estudar documentos da NKVD norte-caucasiana. Os documentos deixavam claro que, em junho de 1937, quando o grande expurgo estava no auge, o governo ordenou que as NKVD locais prendessem uma certa porcentagem da população. […] A porcentagem variava de uma província para outra, atingindo 5% nas áreas menos leais. A média para toda a União Soviética era de cerca de 3%.” Relatado por David J. Dallin em The New Leader, 8 de janeiro de 1949. — Beck e Godin, op. cit., p. 239, chegam a uma suposição ligeiramente diferente e bem plausível, segundo a qual “as prisões eram planejadas como segue: a NKVD possuía arquivos sobre quase toda a população, e cada pessoa era classificada numa certa categoria. Assim, em cada cidade existiam estatísticas mostrando quantos ex-‘brancos’, membros de partidos de oposição etc., moravam lá. Todas as informações incriminadoras coletadas […] e depreendidas das confissões dos prisioneiros eram também incorporadas ao arquivo, e a ficha de cada pessoa indicava o seu grau de periculosidade em potencial, que dependia da quantidade de informações suspeitas ou acusações contidas em seu dossiê. As autoridades recebiam regularmente essas estatísticas, de modo que era possível providenciar um expurgo a qualquer momento, sabendo-se exatamente o número de pessoas de cada categoria”.
111. Baldwin, op. cit.
112. Os esquadrões da polícia secreta russa estavam à “disposição pessoal” de Stálin, da mesma forma como as Tropas de Choque da SS estavam à disposição especial de Hitler. Ambas as organizações, mesmo quando convocadas para servir com as forças militares em tempo de guerra, permaneciam sob essa jurisdição especial. As “leis de casamento” especial serviram para separar a SS do resto da população e foram os primeiros e mais fundamentais regulamentos que Himmler introduziu quando assumiu a tarefa de reorganizar a SS. Mesmo antes das leis de casamento de Himmler, em 1927, a SS tinha instruções, por decreto oficial, de “nunca [participar] de discussões nas reuniões dos membros do partido” (Der Weg der SS, op. cit.). Era idêntico o comportamento dos membros da NKVD, que deliberadamente se mantinham sempre à parte, e acima de tudo não se associavam com outros setores da aristocracia do partido (Beck e Godin, op. cit., p. 163).
113. Bem típica é a esplêndida carreira do agente policial Malinovsky, que terminou como deputado dos bolchevistas no parlamento. Ver Bertram D. Wolfe, op. cit., capítulo XXXI.
114. Citado por Avtorkhanov, op. cit.
115. The dark side of the moon, Nova York, 1947.
116. Ver Laporte, op. cit., p. 39.
117. Beck e Godin, op. cit., pp. 234 e 127.
118. Ver Nazi conspiracy, VII, pp. 84 ss.
119. The dark side of the moon.
120. “Pouco havia na SS que não fosse secreto. O segredo-mor era o que sucedia nos campos de concentração. Nem mesmo os membros da Gestapo podiam entrar […] nos campos sem uma permissão especial” (Eugen Kogon, Der SS-Staat [O Estado SS], Munique, 1946, p. 297).
121. Beck e Godin, op. cit., p. 169, contam como os elementos da NKVD que eram presos “cuidavam em não revelar algum segredo da NKVD”.
122. O seguinte diálogo, narrado em The dark side of the moon, é bem típico: “Se alguém admitia haver estado fora da Polônia, a pergunta seguinte era sempre: ‘E para quem você estava espionando?’ […] Um homem perguntou: ‘Mas os senhores também recebem visitantes estrangeiros. Acham que todos são espiões?’ A resposta foi: ‘E o que você pensa? Que somos tão ingênuos que não sabemos disso perfeitamente?’”.
123. David Rousset, The other kingdom, Nova York, 1947.
124. Os nazistas sabiam muito bem que uma parede de incredulidade protegia o que faziam. Um relatório secreto dirigido a Rosenberg sobre o massacre de 5 mil judeus em 1943 diz explicitamente: “Imagine se estes fatos chegassem ao conhecimento do inimigo e eles tentassem explorá-los. Provavelmente a propaganda não teria efeito, pois as pessoas que a ouvissem ou lessem simplesmente não estariam dispostas a acreditar nela” (Nazi conspiracy, I, p. 1001).
125. Em Tischgespräche, Hitler menciona várias vezes estar lutando por uma situação em que “cada indivíduo saiba que vive e morre para a preservação da espécie” (p. 349). Ver também p. 347: “Uma mosca põe milhões de ovos, dos quais todos morrem. Mas a mosca fica”.
126. Os melhores relatos sobre os campos de concentração nazistas são os de David Rousset, Les jours de notre mort, Paris, 1947; Eugen Kogon, op. cit.; Bruno Bettelheim, “On Dachau and Buchenwald” (de maio de 1938 a abril de 1939), em Nazi conspiracy, VII, pp. 824 ss. Quanto aos campos de concentração soviéticos, ver a excelente coleção de relatos de sobreviventes poloneses publicados sob o título The dark side of the moon; e também David J. Dallin, op. cit., embora as suas narrativas sejam menos convincentes por partirem de personalidades “proeminentes” desejosas de redigir manifestos e acusações.
127. The dark side of the moon; a introdução também acentua essa peculiar falta de comunicação: “Eles registram mas não comunicam”.
128. Ver especialmente Bruno Bettelheim, op. cit. “Era como se eu estivesse convencido de que, de certa forma, aquelas coisas horríveis e degradantes não estavam acontecendo a ‘mim’ como sujeito, mas a ‘mim’ como objeto. Essa sensação foi corroborada pelo que me diziam outros prisioneiros. […] Era como se eu visse ocorrerem coisas das quais apenas vagamente participava. […] ‘Isto não pode ser verdadeiro, essas coisas simplesmente não acontecem’. […] Os prisioneiros tinham de convencer a si mesmos de que aquilo era real, que estava realmente acontecendo e que não era apenas um pesadelo. Nunca o conseguiram completamente”. Ver também Rousset, op. cit., p. 213: “[…] Aqueles que não o viram com os próprios olhos não podem acreditar. Você mesmo, antes de vir para cá, levava a sério o que se dizia a respeito das câmaras de gás? Respondi que não. […] Vê? Pois todos são iguaizinhos a você. Todos eles, em Paris, Londres, Nova York, até mesmo em Birkenau, com aqueles crematórios embaixo do próprio nariz […] ainda não acreditam, cinco minutos antes de serem mandados para o porão dos crematórios ainda não acreditam”.
129. O primeiro a compreender isso foi Rousset, em seu Univers concentratinaire, 1947.
130. Rousset, op. cit., p. 587.
131. Ver Georges Bataille em Critique, janeiro de 1948, p. 72.
132. O livro de Rousset contém muitas dessas “intuições” a respeito da “natureza” humana, baseadas principalmente na observação do fato de que, depois de certo tempo, mal se pode distinguir a mentalidade dos internos da mentalidade dos guardas dos campos.
133. A fim de evitar mal-entendidos, convém acrescentar que, com a invenção da bomba de hidrogênio, dos foguetes teleguiados e das armas eletrônicas, a guerra ficou totalmente diferente. Contudo, está fora do escopo deste livro discutir essa questão.
134. Isso aconteceu na Alemanha em fins de 1942, ocasião em que Himmler notificou a todos os comandantes dos campos “que reduzissem a taxa de mortalidade a todo custo”, pois verificara-se que, dos 136 mil recém-deportados, 70 mil já estavam mortos quando chegaram no campo ou morreram logo depois. Ver Nazi conspiracy, IV, anexo II. Relatos posteriores, provenientes dos campos da União Soviética, confirmam unanimemente que, após 1949 — isto é, quando Stálin ainda estava vivo — a taxa de mortalidade nos campos de concentração, que antes havia alcançado até 60% dos presos, foi sistematicamente reduzida, presumivelmente devido à aguda escassez de mão de obra na União Soviética. Essa melhora de condições não deve ser confundida com a crise do regime surgida após a morte de Stálin e que, significativamente, repercutiu primeiro nos campos de concentração. Cf. Wilhelm Starlinger, Grezen der Sowjetmacht [Limites do poder soviético], Würzburg, 1955.
135. Ver Kogon, op. cit., p. 58: “Grande parte do trabalho imposto nos campos de concentração era inútil; ou era supérfluo ou era tão mal planejado que tinha de ser feito duas ou três vezes”. Ver também Bettelheim, op. cit., pp. 831-2: “Os novos prisioneiros eram forçados a realizar tarefas idiotas. […] Sentiam-se degradados […] e preferiam trabalho mais pesado que produzisse alguma coisa de útil”. Mesmo Dallin, que baseou seu livro sobre a tese de que a finalidade dos campos soviéticos é proporcionar mão de obra barata, é forçado a admitir a ineficiência do trabalho nos campos: op. cit., p. 105. As teorias correntes sobre o sistema de campos russo como uma medida econômica, destinada a prover mão de obra barata, seriam claramente refutadas se recentes informes acerca de anistias em massa e da abolição dos campos de concentração provarem-se corretos. Pois, se os campos serviam a um importante objetivo econômico, o regime certamente não poderia ter-se permitido sua rápida liquidação sem graves consequências para todo o sistema econômico.
136. Além dos milhões de pessoas que os nazistas transportaram para os campos de extermínio, constantemente experimentavam novos planos de colonização, transportando alemães da Alemanha ou dos territórios ocupados para o Leste para fins de colonização. Isso, naturalmente, constituía sério obstáculo às ações militares e à exploração econômica. Quanto às numerosas discussões sobre esses assuntos e ao constante conAito entre a hierarquia civil nazista nos territórios ocupados do Leste e a hierarquia da SS, ver especialmente o volume XXIX de Trial of the major war criminals, Nurembergue, 1947.
137. Bettelheim, op. cit., observa que os guardas dos campos adotavam uma atitude semelhante à dos próprios prisioneiros no tocante à atmosfera de irrealidade.
138. Tem certa importância compreender que todas as fotografias dos campos de concentração eram enganadoras, uma vez que mostravam os campos em seus últimos estágios, no momento em que chegavam as tropas aliadas. Não existiam campos de extermínio na Alemanha propriamente dita e, a essa altura, todo o equipamento de extermínio já havia sido desmontado. Por outro lado, o que mais provocou a indignação dos aliados e o que constitui o lado mais horroroso dos filmes — isto é, a visão dos esqueletos humanos — não era de modo algum típico dos campos de concentração alemães; o extermínio era levado a cabo sistematicamente por meio de gás e não de fome. A condição dos campos foi o resultado da guerra durante os últimos meses: Himmler havia ordenado a evacuação de todos os campos de extermínio do Leste europeu onde eles se concentravam (principalmente na Polônia), e, em consequência, os campos de concentração alemães ficaram superpovoados com a vinda dos sobreviventes deportados, sem que houvesse possibilidade de assegurar o suprimento de alimentos.
139. Rousset acentua (op. cit., passim) que a vida num campo de concentração era simplesmente um prolongado processo de morte.
140. Maunz, op. cit., p. 50, insiste em que os criminosos nunca deviam ser mandados para os campos para cumprimento das sentenças regulares.
141. A escassez de prisões na Rússia era tal que, no ano de 1925-6, somente 36% das sentenças puderam ser cumpridas. Ver Dallin, op. cit., pp. 158 ss.
142. “A Gestapo e a SS sempre deram grande importância ao fato de se misturarem as categorias dos internos nos campos. Em nenhum campo os internos pertenciam exclusivamente a uma categoria” (Kogon, op. cit., p. 19). Na Rússia, sempre se costumou misturar prisioneiros políticos e criminosos. Durante os primeiros dez anos de poder soviético, os grupos políticos da Esquerda gozavam de certos privilégios; contudo, o pleno desenvolvimento do caráter totalitário do regime mudou a situação e “após a década de 20, os prisioneiros políticos passaram a ser tratados como inferiores aos criminosos comuns, mesmo oficialmente” (Dallin, op. cit., pp. 177 ss).
143. O livro de Rousset peca por seu exagero da inAuência dos comunistas alemães, que dominavam a administração interna de Buchenwald durante a guerra.
144. Ver, por exemplo, o testemunho da sra. Buber-Neumann (ex-esposa do comunista alemão Heinz Neumann), que sobreviveu aos campos de concentração soviéticos e alemães: “Os russos nunca […] se mostravam tão sádicos quanto os nazistas. […] Nossos guardas russos eram homens decentes e não sádicos, mas satisfaziam fielmente as necessidades daquele desumano sistema” (Under two dictators).
145. Bruno Bettelheim “Behavior in extreme situations”, no Journal of Abnormal and social psycology, vol. XXXVIII, no 4, 1943, descreve a vaidade dos criminosos e prisioneiros políticos comparada com a atitude dos que não haviam feito nada. Estes “eram menos capazes de suportar o choque inicial”, os primeiros a se desintegrar. Bettelheim atribui isso à sua origem na classe média.
146. Rousset, op. cit., p. 71.
147. Quanto às condições nos campos de concentração franceses, ver Arthur Koestler, Scum of the earth, 1941.
148. Kogon, op. cit., p. 6.
149. Ver Nazi conspiracy, IV, pp. 800 ss.
150. Beck e Godin, op. cit., dizem explicitamente que “os opositores políticos constituíam apenas uma proporção relativamente pequena da população das prisões [russas]” (p. 87), e que não havia qualquer relação entre “a prisão de uma pessoa e algum crime” (p. 95).
151. Bruno Bettelheim, “On Dachau and Buchenwald”, ao discutir o fato de que a maioria dos prisioneiros “terminava por aceitar os valores da Gestapo”, acentua que “isso não era o resultado da propaganda […] A Gestapo insistia em que, de qualquer modo, impediria que eles expressassem os seus sentimentos” (pp. 834-5). Himmler proibiu explicitamente qualquer tipo de propaganda nos campos. “A instrução consiste em disciplina, não em qualquer tipo de doutrinação ideológica”, “Sobre a organização e obrigação da SS e da polícia”, em National-politischer Lehrgang der Wehrmacht, 1937. Citado em Nazi conspiracy, IV, pp. 616 ss.
152. Rousset, op. cit., p. 464.
153. Ver o relato de Sergei Malakhov em Dallin, op. cit., pp. 20 ss.
154. Ver Albert Camus em Twice a year, 1947.
155. Grande parte do livro de Rousset, op. cit., ocupa-se das discussões desse dilema pelos prisioneiros.
156. Bettelheim, op. cit., descreve o processo pelo qual os guardas, bem como os prisioneiros, ficavam “condicionados” pela vida do campo e receavam voltar para o mundo exterior. Rousset, portanto, tem razão quando insiste em que a verdade é que “tanto a vítima como o carrasco são ignóbeis; a lição dos campos é a irmandade da abjeção” (p. 588).
157. Bettelheim, op. cit., descreve como “a principal preocupação dos novos prisioneiros parecia ser a de se conservarem intactos como personalidade”, enquanto o problema dos prisioneiros antigos era “como viver da melhor maneira possível dentro do campo”.
158. Rousset, op. cit., p. 390, conta como um homem da SS disse a um professor: “Antigamente você era professor. Agora não é mais professor de coisa alguma. Já não é nenhum mandachuva. Agora você é um nanico: o mandachuva agora sou eu”.
159. Kogon, op. cit., p. 6, menciona a possibilidade de que os campos seriam mantidos como áreas de experimentação e de treinamento para a SS. Faz também um bom relato da diferença entre os antigos campos administrados pela SA e os posteriores sob a chefia da SS. “Nenhum desses primeiros campos tinha mais que mil internos. […] Neles, as condições de vida estavam além de qualquer descrição. As narrativas dos poucos antigos prisioneiros que sobreviveram a esses anos concordam quanto ao fato de que não existia nenhuma forma de perversão sádica que não fosse praticada pelos homens da SA. Mas eram atos de bestialidade individual, ainda não inteiramente organizados num sistema frio que compreendia multidões de homens. Quem conseguiu isto foi a SS” (p. 7). O novo sistema mecanizado procurava atenuar o sentimento de responsabilidade na medida do humanamente possível. Quando, por exemplo, veio a ordem de matar, a cada dia, várias centenas de prisioneiros russos, a matança era feita atirando-se através de um furo para que não se visse a vítima. (Ver Ernst Feder, “Essai sur la psychologie de la terreur”, em Synthèses, Bruxelas, 1946.) Por outro lado, homens normais eram levados artificialmente à perversão. Rousset conta que um guarda da SS lhe disse: “Geralmente eu continuo a bater até ejacular. Tenho uma esposa e três filhos em Breslau. Antes, eu era perfeitamente normal. Foi isto o que eles fizeram de mim. Agora, quando tenho minha folga, não vou para casa. Não ouso olhar de frente para a minha mulher” (p. 273). Os documentos da era nazista contêm numerosos testemunhos quanto à normalidade média dos que eram encarregados de levar a cabo o programa de extermínio de Hitler. Uma boa coleção se encontra em “The weapon of antisemitism”, de Léon Poliakov, publicado pela UNESCO em The Third Reich, Londres, 1955. A maioria dos homens que compunham as unidades usadas para esses fins não eram voluntários; eram policiais comuns convocados para essas tarefas especiais. Mas até mesmo os experimentados homens da SS consideravam esse serviço pior do que a luta no front. Relatando uma execução em massa levada a efeito por membros da SS, uma testemunha ocular louva-lhes “o idealismo”, que era tão grande que “eles puderam exterminar a todos sem precisar recorrer à bebida”. O desejo de eliminar todos os motivos e paixões pessoais durante os “extermínios” e, portanto, de reduzir a crueldade a um mínimo é revelado pelo fato de que um grupo de médicos e engenheiros, encarregados das instalações de gás, estava sempre fazendo melhoramentos que visavam não só aumentar a capacidade produtiva das fábricas de cadáveres, mas também a acelerar e atenuar a agonia da morte.
160. Isso está bem claro no livro de Rousset. “As condições sociais da vida nos campos transformaram as grandes massas de internos, tanto alemães como deportados, independentemente de sua antiga educação ou posição social, […] numa turba degenerada, inteiramente submissa aos reflexos primitivos do instinto animal” (p. 183).
161. Nesse contexto, há também a surpreendente raridade dos suicídios nos campos. Os suicídios ocorriam com muito maior frequência entre a prisão e a deportação do que no próprio campo, fato que, naturalmente, se explica pelos cuidados e providências tomados para evitá-los, uma vez que o suicídio é um ato espontâneo. Segundo estatísticas de Buchenwald (Nazi conspiracy, IV, pp. 800 ss), menos de 0,5% das mortes eram atribuídas ao suicídio; muitas vezes havia apenas dois suicídios por ano, embora o número total de mortes atingisse 3516 no mesmo ano. Os relatórios dos campos russos mencionam o mesmo fenômeno. Cf., por exemplo, Starlinger, op. cit., p. 57.
162. Rousset, op. cit., p. 525.
Notas do Capítulo 4
1. Na oração fúnebre a Marx, Engels disse: “Tal como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da vida orgânica, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana”. Comentário semelhante encontra-se na introdução que Engels escreveu para a edição de 1890 do Manifesto comunista; e, na introdução a Ursprung der Familie, ele menciona outra vez, lado a lado, “a teoria da evolução de Darwin” e a “teoria de Marx da mais-valia”.
2. Quanto ao conceito de Marx do trabalho como “necessidade eterna imposta pela natureza, sem a qual não pode haver metabolismo entre o homem e a natureza e, portanto, não pode haver vida”, ver O capital, vol. I, parte I, capítulos 1 e 5. O trecho citado é do capítulo 1, seção 2.
3. Discurso de Stálin de 28 de janeiro de fi924, citado em Lênin, Selected works, vol. I, p. 33, Moscou, 1947. É interessante notar que a “lógica” de Stálin foi uma das poucas qualidades que Krushchev louvou no seu devastador discurso perante o Vigésimo Congresso do Partido.
4. Ein solcher (sc. einsamer) Mensch folgert immer eins aus dem andern und denkt alles zum Argsten. Em: Erbauliche Schriften, “Warum die Einsamkeit zu fliehen?”.
5. De Civitate Dei, livro 12, capítulo 20.
Hannah Arendt nasceu em Hannover, Alemanha, em 1906. Estudou nas universidades de Marburg e Freiburg, e obteve seu doutorado em filosofia na universidade de Heidelberg, sob a orientação de Karl Jaspers. Em 1933 fugiu para Paris e, em 1941, por decorrência da Segunda Guerra Mundial, se estabeleceu nos Estados Unidos, onde faleceu em dezembro de 1975. Professora visitante em várias universidades, Arendt fez sua carreira acadêmica na New School for Social Research de Nova York. É autora, entre outros livros, de A condição humana, Entre o passado e o futuro, Homens em tempos sombrios, Eichmann em Jerusalém, Responsabilidade e julgamento, Compreender e Sobre a revolução.