O que chamamos de esquerda no Brasil não tem quase nada a ver com a social-democracia europeia. Nem mesmo com a social-democracia latino-americana. A esquerda brasileira tem ideologia marxista, comportamento neopopulista e é hegemonizada pelo PT. É democrata eleitoral, sim, mas não democrata liberal.
Os acadêmicos que lavam a imagem de Lula querendo apresentá-lo como social-democrata e não como “socialista do século 21”, quer dizer, neopopulista de esquerda, acham que não há inteligência fora de seus círculos.
Examinemos suas oito principais alegações:
1 – “Ah!… Mas Lula não foi um Chávez!” – repetem eles. Ora, é claro que não foi (embora tenha declarado, várias vezes, que Chávez, se pecou, foi por excesso de democracia). A questão é: Lula não foi um Chávez porque não quis ou não foi porque não havia como ser um Chávez nas condições do Brasil? Para desmascarar esses enganadores intelectuais, basta fazer uma pergunta: Lula era mais próximo de Fidel, Chávez, Maduro, Ortega, Evo, Correa, Lugo e Funes ou de Fernando Henrique, Lagos e Bachelet?
2 – “Ah!… Mas Lula sempre apostou na via eleitoral” – proclamam eles, como quem apresenta uma prova inconteste de sua índole democrática. Ora, é claro que sim. A última tomada do poder por vias não-eleitorais na América Latina foi a dos sandinistas de Daniel e Humberto Ortega, Tomas Borge, Victor Tirado, Henry Ruiz, Jaime Wheelock, Bayardo Arce, Luis Carrión e Carlos Núñez. Isso foi em 1979. Daí para frente a imensa maioria da esquerda (marxista) adotou a via eleitoral (neopopulista).
Façamos um rápido balanço do florescimento do neopopulismo de esquerda na América Latina:
Nicarágua – Ortega 1 = 1979 -1990 (tomada insurrecional e consolidação do poder pelo movimento revolucionário sandinista seguida de eleições em 1984) → Ortega 2 = 2007 aos nossos dias (ditadura: a Nicarágua passou a ser uma autocracia-eleitoral neopopulista).
Venezuela – Chávez = 1999-2013 → Maduro = 2013 aos nossos dias (ditadura: a Venezuela passou a ser uma autocracia-eleitoral neopopulista).
Brasil – Lula = 2003-2010 → Dilma = 2011-2016 (impeachment).
Bolívia – Evo = 2006-2019 (renúncia forçada) → Arce = 2020 aos nossos dias.
Honduras – Zelaya = 2006-2009 (preso) → Xiomara (mulher de Zelaya) = Eleita presidente em 2021.
Equador – Correa = 2007-2017 → Moreno = 2017-2021 (rompeu com Correa em meio ao mandato).
Paraguai – Lugo = 2008-2012 (impeachment).
El Salvador – Funes = 2009-2014.
Argentina – Nestor Kirchner = 2003-2007 (era um populista à moda antiga, não tipicamente um neopopulista) → Cristina Kirchner = 2007-2015 e vice-presidente (a partir de 2019) → Fernández = 2019 aos nossos dias.
México – Obrador = 2018 aos nossos dias.
Perú – Castillo = 2021 aos nossos dias.
Algumas exceções:
Cuba – Os ditadores de Cuba não são neopopulistas e sim autocratas não-eleitorais (embora tenham investido na ascensão do neopopulismo): Fidel Castro = 1959-2008 → Raul Castro = 2008-2018 → Díaz-Canel = 2018 aos nossos dias.
Chile – Os governos ditos de esquerda do Chile não foram tipicamente neopopulistas: Lagos = 2000-2006 → Bachelet 1 = 2006-2010 → Bachelet 2 = 2014-2018 → Boric = Eleito presidente em 2021 (não se sabe se será neopopulista).
Uruguai – Os governos ditos de esquerda do Uruguai não foram tipicamente neopopulistas: Vázquez 1 = 2005-2010 → Mujica = 2010-2015 → Vázquez 2 = 2015-2020.
Examinando a lista acima o que concluímos (fora as exceções)? A maioria desses líderes tem ideologia marxista (ou não se desvencilhou do marxismo, ou está num partido cuja maioria dos dirigentes é marxista) e comportamento neopopulista.
E convenhamos: a foto que ilustra este artigo (tirada em Havana, por ocasião das exéquias de Fidel) não se parece em nada com um convescote de social-democratas… (Veja a legenda na nota ao final deste artigo).
3 – “Ah! Mas Lula não é revolucionário” – alegam os passadores de pano. Se se entende por revolucionário um adepto da ruptura, da tomada do poder pela força (pela insurreição popular, pelo foco revolucionário ou pela guerra popular prolongada), é óbvio que Lula não é isso. Com exceção dos ditadores cubanos, a maioria dos líderes neopopulistas (ver lista acima) adotaram a via eleitoral a partir do início do século 21. E até mesmo os neopopulistas que viraram ditadores (como Maduro e Ortega), chegaram ao poder democraticamente, via eleições.
4 – “Ah! Mas Lula não quer destruir as instituições da democracia” – argumentam os universitários, como se isso fosse prova de alguma coisa quando se trata de populismo. Claro que não. Lula não quer destruir as instituições e sim mantê-las e ocupá-las, fazendo maioria em seu interior para colocá-las a serviço do partido – e tudo numa boa.
5 – “Ah! Mas Lula não é extremista” – insistem eles, dizendo o óbvio. É claro que não é. Lula é moderado, sempre foi. A via neopopulista, tirando as exceções já mencionadas (Venezuela e Nicarágua), é moderada. Não quer chegar ao poder de uma vez, como numa explosão, e sim lentamente, através do exercício continuado de governos conquistados eleitoralmente, ganhando tempo para estabelecer hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido. É um “tratamento” quase-homeopático para esterilizar as sementes liberais que sempre estão presentes na democracia eleitoral.
6 – “Ah! Mas Lula é um democrata” – gritam eles. Claro que sim. Lula é democrata-eleitoral no sentido de que não quer acabar com a nossa democracia eleitoral e sim mantê-la como democracia eleitoral, impedindo que ela se converta em uma democracia liberal. Não é, portanto, um democrata-liberal. E por que não é? Porque é populista. Lula concebe e pratica a política como uma continuação da guerra por outros meios (na base do “nós” – o verdadeiro povo, contra “eles” – as elites).
7 – “Ah! Mas Lula tem altos índices de popularidade e é adorado pelo povo” – dizem eles, embevecidos. Sim. Não existe líder populista sem altos índices de popularidade. Para a democracia, entretanto, isso – por si só – não lhe confere legitimidade. Do contrário os maiores ditadores da história, que tinham altíssimos índices de aprovação, não teriam sido também os maiores genocidas da humanidade. Sim, qualquer líder populista com alta-gravitatem, capaz de mesmerizar as massas, terá um alto número de intenções de votos nas pesquisas e de votos nas urnas. Por isso é tão difícil remover populistas do governo apenas por processos eleitorais. Eles dominam a tecnologia eleitoral a tal ponto, transformando-a em guerra, que seria necessário constituir forças políticas de combate preparadas para removê-los (via de regra também populistas). O que leva necessariamente à polarização.
É da natureza do neopopulismo instalar um estado de guerra fria permanente, mantendo suas forças sempre mobilizadas e preparadas para o próximo embate… eleitoral. É um modo de perverter a democracia (no sentido liberal do termo), usando meios democráticos (eleitorais). E perverter por quê? Porque a democracia é um modo pazeante (não-guerreiro) de regulação de conflitos. E o neopopulismo parasita as democracias eleitorais para fazê-las adotar modos guerreiros (da política como continuação da guerra por outros meios) de regulação de conflitos. Claro que é preciso entender aqui que guerra não é destruição de inimigos e sim construção e manutenção de inimigos.
8 – “Ah! Mas Lula é conciliador, procura sempre fazer alianças” – retrucam eles. Claro, desde que as alianças sejam para apoiá-lo – o que é uma evidência de que o lulopetismo é hegemonista. Hegemonistas não são isolacionistas. Fazem alianças, sim. Todavia, se alguém faz alianças para ficar mais forte (ganhar eleições, conseguir governar para ganhar eleições de novo) e depois mata (ou descarta) os aliados no final (quando não precisa mais deles), então não faz alianças democráticas (pelo menos, não do ponto de vista da democracia liberal). A aliança democrática não tem objetivos instrumentais, de realpolitik. Não pode ser celebrada com inspiração hegemonista. Ela vai além. Ela parte da ideia de que nenhuma força política, isoladamente, pode ter a verdade, ser a portadora do único caminho correto etc.
Se nada disso for suficiente para desvendar o que é Lula e o que é o lulopetismo, então não tem jeito. Quem gosta de ser cavalgado arrumará sempre um pretexto para continuar sendo. Até mentindo que Lula é um social-democrata (se é que essa denominação ainda faz algum sentido). Pelo menos em um sentido (histórico) a denominação social-democrata faz algum sentido. Social-democratas não são i-liberais. Populistas (ditos de esquerda ou de direita) são i-liberais.
O que é relevante, do ponto de vista da democracia (liberal) é o comportamento político, não o conteúdo dos programas e dos discursos. O que é relevante é se uma força política é democrata liberal (radical ou formal), democrata (apenas) eleitoral (formal ou neopopulista), autocrata eleitoral (neopopulista ou populista-autoritária) ou autocrata não-eleitoral. O quadro abaixo (com alguns exemplos) talvez ajude a compreender isso:
Foto da capa (2016). Na primeira fila, da esquerda para a direita: Wagner Freitas (Presidente da CUT), Lula, Daniel Ortega (presidente da Nicarágua), Dilma Rousseff, Raúl Castro, Nicolás Maduro (presidente da Venezuela) e Evo Morales (presidente da Bolívia). Segunda fila: Guillaume Long (chanceler do Equador), Guilherme Boulos (MTST), Fernando Morais (Nocaute), Monica Valente (secretária de Relações internacionais do PT) e Raúl Guillermo Castro (neto de Raúl Castro). Terceira fila: David Choquehuanca (chanceler da Bolívia), Olímpio Cruz Neto, João Pedro Stédile (MST) e Breno Altman (fundador de Opera Mundi). No alto, Miguel Diáz-Canel (vice-presidente de Cuba, na época), Delcy Rodríguez (chanceler da Venezuela) e Bruno Rodríguez (chanceler de Cuba).