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Padrões autocráticos que se replicam

Tudo que foi começado passa a existir. Hannah Arendt (c. 1950), nos seus escritos póstumos sobre O que é política, percebeu que “a palavra archein tanto significa começar como dominar. É evidente – escreve ela – que esse duplo significado indica que originalmente era chamado de guia aquele que começava uma coisa, procurava companheiros a fim de poder levá-la a cabo; e esse levar a cabo e levar-ao-fim-a-coisa-começada era o significado original da palavra para agir, prattein”.

A mesma Arendt (1951), em Origens do totalitarismo, escreveu que “a crise do nosso tempo e a sua principal experiência deram origem a uma forma inteiramente nova de governo que, como potencialidade e como risco sempre presente, tende infelizmente a ficar conosco de agora em diante, como ficaram, a despeito de derrotas passageiras, outras formas de governo surgidas em diferentes momentos históricos e baseadas em experiências fundamentais — monarquias, repúblicas, tiranias, ditaduras e despotismos”.

Uma avaliação profética. A de que o totalitarismo (que ela então examinava), como forma inteiramente nova de governo e como risco sempre presente, tende a ficar conosco. Mesmo depois da derrocada dos governos totalitários, eles estarão presentes nos autoritarismos que surgirem – seja qual for a sua forma.

Uma vez experimentado por um número suficiente de seres humanos, um modo-de-vida pode tornar-se um padrão que se replica, inspirando agires (comportamentos) conexos em outras regiões do tempo. É por isso que não podemos nos livrar da influência dos totalitarismos e, em termos mais gerais, de padrões míticos, sacerdotais e hierárquicos que estão presentes em qualquer autocracia.

É por isso que os fundamentos da civilização patriarcal jamais vão desaparecer. Quando as condições ambientais – ou as configurações do campo interativo da convivência social – o permitem, a coisa toda volta, ainda que sob outras formas.

As raízes ancestrais da tirania, percebidas há mais de 5 milênios no Estado-Templo-Palácio mesopotâmico, estão presentes no tribalismo patriarcalista dório (que invadiu e contaminou Esparta, Creta e Siracusa), nos totalitarismos do século 20 e nos populismos do século 21. E vão continuar por aí, nos séculos 22, 23 e além – desde que existam padrões mais centralizados do que distribuídos de organização condicionando (e sendo condicionados por) modos mais autocráticos do que democráticos de regulação de conflitos (ou seja, guerra). Essa é a hipótese básica de uma teoria de reconhecimento de padrões autocráticos.

Todavia, o que realmente se replica? O que se replica são caminhos sulcados no espaço-tempo dos fluxos, modos recorrentes de interagir, de ver e de interpretar, comportamentos compatíveis com ideias míticas, sacerdotais e hierárquicas, que conformam padrões autocráticos. Vejamos alguns sinais da presença desses padrões.

SINAIS DE RECONHECIMENTO DE PADRÕES AUTOCRÁTICOS

Esta é uma lista demonstrativa (não-analítica) contendo apenas exemplos de indícios da presença de processos de autocratização da vida cotidiana, de reprodução de pressupostos hierárquico-autocráticos, em geral aceitos como verdades evidentes por si mesmas (ideias-implante básicas ou rotinas de um programa autocrático instalado na mente coletiva), da existência de acentuada hierarquização (topologias da rede social mais centralizadas do que distribuídas), da adesão por boa parte dos agentes a princípios de modos de regulação autocráticos, da existência de estado de guerra como dinâmica organizadora do cosmo social e do estatismo como ideologia e comportamento político.

A – INDICADORES (SIMBÓLICOS) DE AUTOCRATIZAÇÃO DA VIDA COTIDIANA

A1 – A limpeza e a pureza (a aversão à sujeira e à contaminação pelo contato com o que é impuro).

A2 – A predominância do branco (e da luz que espanca as trevas).

A3 – As formas geométricas retilíneas (as linhas e ângulos retos) na arquitetura de interiores e exteriores, urbana e rural (ruas, praças, prédios, plantações etc.).

A4 – A arquitetura monumental privilegiando a direção vertical e a repartição e separação dos espaços: muros, escadas, portas, fechaduras…

A5 – A sociedade totalmente organizada e uniformizada (as pessoas com uniformes ou roupas semelhantes, com cortes padrão de cabelo ou penteados canônicos, os conjuntos habitacionais com construções e aparência iguais etc.)

A6 – Os horários fixos válidos para determinadas atividades (eletivas ou compulsórias): a existência de uma espécie de regulamento geral das horas (ou tabela taylorista, com horas para trabalhar, descansar, dormir, fazer sexo, se divertir etc.)

A7 – O silêncio (a aversão ao alarido do chamado populacho ou da turba considerada vil e ao falar alto).

A8 – A ordem (e a aversão ao que é julgado como bagunça ou baderna).

A9 – O culto à bandeira, ao hino e aos símbolos pátrios (e à pátria) e a exaltação do patriotismo.

A10 – Os regulamentos e as numerosíssimas proibições (“levíticas”: para tudo ou quase haverá uma disposição certa ou um modo-de-fazer correto).

A11 – A espada, a coroa, o cetro, o bastão (como símbolos de poder deslizados para a política).

A12 – O intrincado protocolo para qualquer cerimônia, os modos de tratamento canônicos, os numerosos títulos e as reverências ou prostrações para falar com o governante (ou coexistir em sua presença ou até sobreviver diante da sua passagem).

A13 – O culto (necrófilo) do trabalho e a exaltação do trabalhador.

A14 – As restrições à livre sexualidade e a deslegitimação da imaginação criadora.

A15 – A existência – e onipresença – de uma polícia política.

A16 – O sentimento geral de poder estar violando – nas menores ações privadas do dia-a-dia – alguma regra estabelecida conhecida ou ser interpretado como violador de alguma regra desconhecida e, por isso, cair em desgraça, ter suas aspirações ou demandas preteridas ou ser reprimido pela polícia política (supostamente onisciente).

A17 – A constante vigilância de todos sobre todos e a existência de mecanismos de delação espalhados (que podem ser usados por qualquer um).

A18 – A naturalização da ordem social que impede a percepção, deslegitima alternativas e promove a configuração social existente como necessária (de sorte a fazer com que as pessoas imaginem que as coisas ‘são’ assim e não que ‘estão’ assim).

A19 – A despessoalização: os seres humanos – as pessoas, sempre únicas – são transformados em indivíduos, não raro, designados por números (e não por nomes próprios; ou seus nomes são antecedidos por tratamentos niveladores (camarada, companheiro, irmão) ou sucedidos pelas designações dos cargos funcionais ou hierárquicos que ocupam.

B – IDEIAS-IMPLANTE (ROTINAS DO PROGRAMA BÁSICO)

B1 – A felicidade como ideal supremo.

B2 – A igualdade como ideal supremo (e como pré-condição para a liberdade); ou a ideia de que não pode haver (verdadeira) liberdade sem (ou até que se alcance a perfeita) igualdade.

B3 – A abundância como ideal supremo (que, para ser alcançado, exige a politização da economia como administração da escassez, em geral artificialmente introduzida).

B4 – A utopia (qualquer utopia) como modelo a ser alcançado no futuro (e que, para ser alcançada, exige algum tipo de sacrifício ou de restrição às liberdades no presente).

B5 – O esforço para consertar a natureza, a sociedade ou o ser humano (que teriam vindo com alguma espécie de “defeito de fábrica”).

B6 – A ideia de que existe uma sociedade igual para colocar no lugar da sociedade desigual (e de que essa sociedade igual estaria em alguma espécie de mundo paralelo pronta para ser trazida – ou realizada – a partir das contradições da sociedade desigual, elidindo a evidência de que a sociedade igual é somente o conjunto das relações igualitárias que se traçam aqui e agora por meio de atos singulares e precários).

B7 – A ideia de que a nação é uma grande comunidade de destino e a própria ideia de destino (ou da existência de leis ou disposições transcendentes ou imanentes à história).

B8 – A ideia de que existe uma História (assim mesmo, com H maiúsculo), de que há uma imanência na História, de que a História vai para algum lugar, de que a História é regida por leis (que podem se conhecidas por quem tem a teoria verdadeira e o método corretos de interpretação da realidade).

B9 – A ideia de que a superestrutura da sociedade (a política, a cultura etc.) é determinada em última instância pela sua infraestrutura econômica.

B10 – A ideia de que o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo e de que as pessoas se movem buscando sempre maximizar a satisfação de seus interesses ou preferências (que são, ao fim e ao cabo, egotistas).

B11 – A ideia de que não é possível mobilizar a ação coletiva a não ser a partir de lideranças destacadas.

B12 – A ideia de povo como rebanho à espera de um condutor, salvador (messias).

B13 – A ideia de povo eleito (escolhido ou ungido por alguma entidade transcendente que intervém na história para conduzi-lo para algum destino já configurado ou prefigurado).

B14 – A ideia de espaço vital (necessário à consumação do destino de um povo predestinado a cumprir um ideal ou de uma raça superior).

B15 – A ideia de que é direito do povo eleito dominar os demais sem limitações de qualquer natureza, sejam elas impostas por leis humanas ou divinas (sendo esse direito determinado pelo critério único do valor do grupo no interior de uma luta darwiniana).

B16 – O mito fundante: de que a nação teria alguma origem comum em um suposto evento épico ou glorioso (perdido nas brumas do passado).

B17 – A ideia de que não é possível organizar nada sem (uma boa dose de) hierarquia.

B18 – A ideia de que o sentido da política é a ordem (e não a liberdade), seja uma ordem pretérita (não corrompida) sintonizada com alguma ordem cósmica (de origem divina ou natural), seja uma nova ordem mais justa (sintonizada com a História e suas leis).

C – INDICADORES DE PRESENÇA DA HIERARQUIA

C1 – A existência de sacerdócio (a burocracia, a intermediação, a descentralização da rede em vez da sua distribuição).

C2 – A ordenação top down do Estado e da sociedade (os graus, degraus, a estratificação: camadas sobre camadas).

C3 – Ordem, hierarquia, disciplina, obediência, fidelidade imposta top down, punição e recompensa.

C4 – A busca e manutenção da estabilidade pela aproximação do estado de equilíbrio (e não feita e refeita no fluxo dos sistemas estáveis afastados do estado de equilíbrio).

C5 – As opções pré-ordenadas e a redução dos caminhos possíveis (levando à escolhas sempre limitadas).

D – PRINCÍPIOS DO MODO DE REGULAÇÃO AUTOCRÁTICO

D1 – O conflito como uma disfunção (malfunction).

D2 – A resolução do conflito pela eliminação (ou recuperação, restauração ou conserto de um defeito) do elemento ou polo conflitante.

D3 – A regulação do conflito pela imposição da vontade da maioria (ignorando-se os desejos das minorias).

D4 – As restrições à liberdade (de opinião, de ir-e-vir, de imprensa, de manifestação, de organização, de difusão de ideias por qualquer meio, inclusive no ciberespaço etc.).

D5 – O segredo nos negócios de Estado (e nos negócios do chefe de Estado e de suas organizações), a opacidade das instituições e procedimentos: inexistência de transparência e impossibilidade de accountability.

D6 – A ideia de que democracia é o poder do povo ou o poder da maioria da população (pervertendo a ideia fundante – ou o fundamento democrático original – de que ela é ‘o poder de qualquer um’, quer dizer, a indiferença das capacidades para ocupar as posições de governante ou de governado).

D7 – O regime político baseado em votação por maioria, em que as minorias não têm direitos (ou têm menos direitos do que a maioria).

D8 – O julgamento de que a oposição não é legítima e de que os que se opõem aos chefes do Estado ou aos seus representantes ou delegados são traidores ou sabotadores.

D9 – A caracterização (e inculpação) de quem desobedece, diverge, desvia ou destoa como traidor.

D10 – A ideia (meritocrática) de que quem deve governar (dirigir o Estado, o país, a cidade e, por decorrência, a sociedade) é quem sabe mais.

D11 – A ideia (aristocrática) de que quem deve governar (dirigir o Estado, o país, a cidade, a sociedade) são os melhores (aristoi).

D12 – A sociedade regulada por um algoritmo, sem necessidade de um chefe ou comandante.

E – A GUERRA COMO DINÂMICA ORGANIZADORA DO COSMO SOCIAL

E1 – A separação nós x eles (e todas as separações decorrentes dessa separação primordial: bem x mal, explorados x exploradores, povo x elites, esquerda x direita, socialistas x liberais, fieis x infiéis de qualquer religião ou seita, nacionais x estrangeiros, leste x oeste, sul x norte, brancos x não-brancos, heterossexuais x homossexuais etc.)

E2 – A ideia e a prática da política como arte da guerra, ou como continuação da guerra por outros meios (a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin).

E3 – O culto do conflito e a guerra como instituição permanente (e como realidade inexorável, sobretudo a guerra não-ocorrida como guerra-quente ou conflito violento, mas latente e eternamente presente nos períodos considerados de paz).

E4 – A ideia e a prática de que governar é comandar (uma força, um contingente, um exército, um povo).

E5 – O culto do herói.

E6 – A ideia de que a luta de classes é o motor da história.

E7 – A ideia de que a violência é a parteira da história.

E8 – A ideia da beleza da violência e a eficácia da vontade, quando voltadas para o êxito do grupo que tem uma causa redentora ou reformadora do mundo.

E9 – A construção e manutenção de inimigos.

E10 – A ideia de que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe “o povo” às “elites” (ou ao “establishment”) e a pretensão de líderes políticos de falar em nome do (verdadeiro) povo (composto por seus seguidores), achando-se os únicos representantes legítimos (do “true people”) e que, assim, nada deve ficar no seu caminho.

F – O ESTATISMO COMO IDEOLOGIA E COMPORTAMENTO POLÍTICO

F1 – A ideia de Estado como materialização do espírito ou da vontade divina (ou de alguma realidade ou entidade transcendente).

F2 – O culto do Estado (e a ideologia estatista, ou seja, a visão estadocêntrica do mundo).

F3 – A sociedade como dominium do Estado (no sentido feudal do termo) e a ideia de que é o Estado que deve dirigir a sociedade.

F4 – O partido fundido ao Estado, que conquistou hegemonia sobre a sociedade e transformou a sociedade em um ente privado.

F5 – A existência de um líder supremo, benfeitor, condutor, com alta gravitatem e carisma, que ocupa o centro do Estado para fazer uma ligação direta com as massas bypassando as mediações institucionais.

F6 – Os direitos encarados como privilégios (ou concessões de um benfeitor).

F7 – Os cidadãos reduzidos a súditos (do Estado e, às vezes, do chefe de Estado).

F8 – As pessoas – todas as pessoas – transformadas em funcionários (stricto ou latu sensu) do Estado.

F9 – A ideia de que o Estado – quando nas mãos certas – é o grande agente transformador da sociedade e a ele compete educar as massas para produzir o Homem Novo.


Vamos examinar algumas dessas ideias em um curso-relâmpago sobre reconhecimento de padrões autocráticos que acontecerá em janeiro de 2022. Para mais informações clique no link:  https://padroes.carrd.co/

Por que é necessário aprender a reconhecer padrões autocráticos

Sobre a mentira de que Lula é social-democrata