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Comentários a ‘O que é política?’ de Hannah Arendt

Vale a pena ler os fragmentos sobre política de Hannah Arendt, que estão disponíveis em ARENDT, Hannah (c. 1950). O que é política? (Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

Reproduzimos abaixo o Fragmento 1 (de agosto de 1950), o Fragmento 2b e o Fragmento 3b, incluindo o título Guerra Total.

Interpolamos alguns comentários que não são propriamente resultados de uma exegese dos escritos de Arendt, não se baseiam em estudos do seu pensamento com as necessárias referências cruzadas com outros escritos da autora. Ou seja, não são comentários de um especialista em Hannah Arendt e sim leituras livres de partes de seus escritos e interpretações segundo nossas próprias ideias atuais.

O texto transcrito abaixo ainda carece de revisão.

O QUE É POLÍTICA?

[Fragmento 1 (agosto de 1950)]

1. A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus criou o homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da natureza humana. A filosofia e a teologia sempre se ocupam do homem, e todas as suas afirmações seriam corretas mesmo se houvesse apenas um homem, ou apenas dois homens, ou apenas homens idênticos. Por isso, não encontraram nenhuma resposta filosoficamente válida para a pergunta: o que é política? Mais, ainda: para todo o pensamento científico existe apenas o homem — na biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma como para a zoologia só existe o leão. Os leões seriam, no caso, uma questão que só interessaria aos leões.

É surpreendente a diferença de categoria entre as filosofias políticas e as obras de todos os grandes pensadores — até mesmo de Platão. A política jamais atinge a mesma profundidade. A falta de profundidade de pensamento não revela outra coisa senão a própria ausência de profundidade, na qual a política está ancorada.

Brilhante! O homem arquetípico – o Adam-Kadmon, o Adapa sumeriano, o Adão bíblico – simplesmente não existe: é uma criação da cultura patriarcal. Os que existem são os seres humanos, com todas as suas diferenças, impurezas e imperfeições. Arendt percebe que Platão (e não precisaria dizer “até mesmo”) não pode apreender a política porque repete a tradição vertical que substitui o ser concreto pelo modelo. Platão, aliás, foi o mais prolífico dos pensadores apolíticos: o seu regime ideal (a aristocracia iluminada dos guardiães ou reis-filósofos que dirige uma sociedade de castas) foi pensado para este homem imaginário, que não precisa interagir com ninguém para ser um ser político. E isso porque, de fato, não o é – e sim um ser apolítico. A política é um tipo de interação. O homem como ser apolítico é a matéria-prima ideal da autocracia. No caso de Platão, do totalitarismo e do racismo.

2. A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças. Enquanto os homens organizam corpos políticos sobre a família, em cujo quadro familiar se entendem, o parentesco significa, em diversos graus, por um lado, aquilo que pode ligar os mais diferentes e por outro aquilo pelo qual formas individuais semelhantes podem separar-se de novo umas das outras e umas contra as outras.

Nessa forma de organização, a diversidade original tanto é extinta de maneira efetiva como também destruída a igualdade essencial de todos os homens. A ruína da política em ambos os lados surge do desenvolvimento de corpos políticos a partir da família. Aqui já está indicado o que se torna simbólico na imagem da Sagrada Família: Deus não criou tanto o homem como o fez com a família (1).

3. Quando se vê na família mais do que a participação, ou seja, a participação ativa na pluralidade, começa-se a bancar Deus, ou seja, a agir como se pudesse sair, de modo natural, do princípio da diversidade. Ao invés de se gerar um homem, tenta-se criar o homem na imagem de si mesmo.

Porém, sob o ponto de vista prático-político, a família ganha sua importância inquestionável porque o mundo assim está organizado, porque nele não há nenhum abrigo para o indivíduo — vale dizer, para os mais diferentes. As famílias são fundadas como abrigos e castelos sólidos num mundo inóspito e estranho, no qual se precisa ter parentesco. Esse desejo leva à perversão fundamental da coisa política, porque anula a qualidade básica da pluralidade ou a perde através da introdução do conceito de parentesco.

Outra observação genial. A família como refúgio contra a diversidade, proteção contra o outro, o diferente. A família patriarcal (monogâmica) é um modo de selecionar as interações válidas e separá-las de outras inválidas, perigosas, ameaçadoras. Em termos atuais poderíamos dizer que ela privatiza capital social ou cria clusters fechados por fronteiras de identidade na rede social. E por isso todo familismo é avesso à democracia que pressupõe estar aberto ao outro-imprevisível, não apenas os ligados a nós por laços de sangue, de certo modo, naturais e não-sociais.

4. O homem, tal como a filosofia e a teologia o conhecem, existe — ou se realiza — na política apenas no tocante aos direitos iguais que os mais diferentes garantem a si próprios. Exatamente na garantia e concessão voluntária de uma reivindicação juridicamente equânime reconhece-se que a pluralidade dos homens, os quais devem a si mesmos sua pluralidade, atribui sua existência à criação do homem.

Embora Hannah Arendt não o diga, a filosofia, sobretudo dos antigos (como as de Pitágoras, Heráclito, Platão e dos platônicos que cunharam e definiram o termo) – ela mesma, em si, como forma de pensar e lidar com o mundo da experiência – é uma reminiscência patriarcal. Nem seria necessário dizer, mas é quase o mesmo que teologia. Vale a pena examinar as ideias de Humberto Maturana a respeito, resumidas e apresentadas por mim no artigo As diferenças entre filosofia e ciência e a democracia.

5. A filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas encontrar o lugar onde surge a política. A primeira é:

a) Zoon politikon (2): como se no homem houvesse algo político que pertencesse à sua essência — conceito que não procede; o homem é a-político. A política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como relação. Hobbes compreendeu isso.

Exato. A política é um tipo de interação. O conceito (aristotélico) de “animal político” é absurdo. É essencialista, ou seja, parte da ideia de que primeiro existe o homem (ou os homens, qualificados por sua essência igual e não por suas diferenças), para depois existir a interação. Então os homens, como são iguais do ponto de vista de seus atributos, nas suas relações manifestariam algo que já trazem em si. Mas o homem (ou melhor, o propriamente humano) já é fruto da interação com outros homens (ou seja, se humanizam mutuamente). Não há, nesse sentido, uma natureza humana e sim, com o perdão do neologismo, uma socialeza humana. Aristóteles, embora não fosse avesso à democracia, como Pitágoras e Heráclito, nem um adversário da democracia, como Sócrates e boa parte de seus discípulos (inclusive e sobretudo Platão), não captou corretamente o “genos” da democracia (aliás, nunca participou do processo democrático: até porque não podia, era um estrangeiro e não um cidadão ateniense). Não se sabe até que ponto Hobbes compreendeu isso.

b) A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem deve ter sido criado. Daí só pode haver o homem, e os homens tornam-se sua repetição mais ou menos bem-sucedida. O homem, criado à imagem da solidão de Deus, serve de base ao state of nature as a war of all against all, de Hobbes. É a rebelião de cada um contra todos os outros, odiados porque existem sem sentido — sem sentido exclusivamente para o homem criado à imagem da solidão de Deus.

A solução ocidental dessa impossibilidade da política dentro do mito ocidental da criação é a transformação ou a substituição da política pela História. Através da ideia de uma história mundial, a pluralidade dos homens é dissolvida em um indivíduo-homem, depois também chamada de Humanidade. Daí o monstruoso e desumano da História, que só em seu final se afirma plena e vigorosamente na política.

O monoteísmo aqui não é tão relevante. Tanto faz se o homem foi criado por um deus único ou por vários deuses que se concertassem entre si. Como narrado na Epopeia da Criação – Enûma Eliš – um autêntico texto mesopotâmico provavelmente mais antigo do que as fontes bíblicas, pré-monoteísta portanto, o homem é criado para servir aos deuses, livrá-lo do jugo, da fadiga, trabalhar para eles (*). Eis o problema. Servir, adorar, temer, obedecer, a um deus ou a vários deuses, dá no mesmo. A ideia-implante perversa, que está na raiz dos primeiros sistemas de dominação, nas sociedades colonizadas e comandadas por predadores e senhores, é a de que o homem foi criado por um ser superior, sobre-humano. O humano veio pronto porque foi uma criação e uma concessão divina. A humanidade já estava dada desde o início dos tempos (humanos): ela não se constrói a partir das ações e interações humanas. Este não é um mito ocidental e sim um programa da cultura patriarcal (oriental e ocidental).

Arendt tem razão ao afirmar que a substituição da política pela História (com ‘H’ maiúsculo) impossibilita a política, a política propriamente dita, quer dizer, a democracia (a autocracia é sempre antipolítica). Há aqui uma crítica, até certo ponto pioneira (embora ela já tivesse sido feita por Karl Popper, em 1945, em A Sociedade Aberta e seus Inimigos) do historicismo (nas suas várias versões, antigas e modernas: notadamente a heraclítico-platônica e a hegeliana-marxiana).

(*) Ou seja, o homem foi criado para trabalhar para os deuses.

Cf. Tablet VI

1~When Marduk heard the gods’ speech
2~He conceived a desire to accomplish clever things.
3~He opened his mouth addressing Ea,
4~He counsels that which he had pondered in his heart,
5~”I will bring together blood to form bone,
6~I will bring into being Lullû, whose name shall be ‘man’.
7~I will create Lullû—man
8~On whom the toil of the gods will be laid that they may rest.
9~I will skilfully alter the organization of the gods:
10~Though they are honoured as one, they shall be divided into two.”

This translation of Enuma Elish is courtesy of by W.G. Lambert. It is taken from pp. 37-59 of his “Mesopotamian Creation Stories.” The full article is at pp. 15-59 in M.J. Geller and M. Schipper (eds), Imagining Creation (IJS Studies in Judaica 5; Brill Academic Publishers 2007).

Fonte: Diverse, among them: L. W. King, Enuma Elish: The Seven Tablets of Creation, London (2. Vol, 1902); Anton Deimel, Enuma eliš (2nd ed., 1936); W. C. Lambert, S. B. Parker, Enuma Eliš. The Babylonian Epic of Creation (1966); Philippe Talon, The Standard Babylonian Creation Myth-Enuma Elish (2005).

6. Torna-se difícil compreender que devemos ser livres de fato num campo, ou seja, nem movidos por nós mesmos nem dependentes do material dado. Só existe liberdade no âmbito particular do conceito intra da política. Nós nos salvamos dessa liberdade justo na “necessidade” da História. Um absurdo abominável.

7. Pode ser que a tarefa da política seja construir um mundo tão transparente para a verdade como a criação de Deus. No sentido do mito judaico-cristão, isso significaria: ao homem, criado à imagem de Deus, foi dada capacidade genética para organizar os homens à imagem da criação divina. Provavelmente, um absurdo — mas seria a única demonstração e justificativa possível à ideia da lei da Natureza.

Na diversidade absoluta de todos os homens entre si — maior do que a diversidade relativa de povos, nações ou raças — a criação do homem por Deus está contida na pluralidade. Mas a política nada tem a ver com isso. A política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas.

Arendt está lançando aqui os fundamentos conceituais do seu juízo (que será exposto a seguir em outros fragmentos, em especial o 3b) de que o sentido da política é a liberdade. A política propriamente dita, quer dizer, a democracia.

Mas há mais. A ideia de que “ao homem, criado à imagem de Deus, foi dada capacidade genética para organizar os homens à imagem da criação divina” desvela os fundamentos hierárquico-autocráticos da cultura patriarcal e seu propósito de criar uma sociedade de dominação. De certo modo, a ideia de deus (ou deuses) criador do homem não é tão revelante como a ideia de que as sociedades devem se organizar segundo os desígnios divinos (interpretados, é claro, pelos intermediários entre a divindade e a humanidade: os sacerdotes). Essa forma de organização (e a política ou antipolítica dela decorrente ou à ela afeita) é a hierárquica (literalmente, o poder sacerdotal), regida por modos de regulação de conflitos autocráticos (ou antipolíticos).

CAPITULO 1 – OS PRECONCEITOS

[Fragmento 2b]

I Preconceito e Juízo (3)

Ao se falar de política, em nosso tempo, é preciso começar pelos preconceitos que todos nós temos contra a política — quando não somos políticos profissionais. Pois os preconceitos que compartilhamos uns com os outros, naturais para nós, que podemos lançar-nos mutuamente em conversa sem termos primeiro de explicá-los em detalhes, representam em si algo político no sentido mais amplo da palavra — ou seja, algo a se constituir num componente integral da questão humana, em cuja órbita nos movemos a cada dia. Não se precisa deplorar e, em nenhum caso, deve-se tentar modificar o fato de os preconceitos desempenharem um papel tão extraordinário no cotidiano — e com isso, na política. Pois nenhum homem pode viver sem preconceitos, não apenas porque não teria inteligência ou conhecimento suficiente para julgar de novo tudo que exigisse um juízo seu no decorrer de sua vida, mas sim porque tal falta de preconceito requereria um estado de alerta sobre-humano. Por isso, a política tem de lidar sempre e em toda parte com o esclarecimento e com a dispersão de preconceitos, o que não significa tratar-se, no caso de uma educação para a perda de preconceitos, nem que aqueles que se esforcem para fazer tal esclarecimento sejam livres de preconceitos. A dimensão do estado de alerta e abertura para o mundo determina o nível político e o caráter geral de uma época; mas não se pode imaginar nenhuma época na qual os homens não pudessem reincidir e confiar em seus preconceitos para amplas áreas de juízo e decisão.

É evidente que essa justificação do preconceito enquanto medida do juízo dentro da vida cotidiana tem seus limites. Ela só vale para os verdadeiros preconceitos, quer dizer, para aqueles que não afirmem ser juízos. Os verdadeiros preconceitos podem ser reconhecidos, em geral, porque recorrem despreocupadamente a um “dizem”, “acham”, sem que, é claro, essa apelação precise ser apresentada de maneira expressa. Os preconceitos não são idiossincrasias pessoais que, apesar da impossibilidade permanente de sua indemonstrabilidade, sempre remontam a uma experiência pessoal dentro da qual persiste a evidência de percepções sensoriais. Os preconceitos jamais têm essa evidência, nem mesmo para aqueles a eles submetidos por falta de experiência. Em contrapartida, como não são ligados a pessoas, podem facilmente contar com o assentimento de outras, grandes esforços de convencimento. Nisso, o preconceito diferencia-se do juízo — com o qual, por outro lado, tem em comum o fato de nele os homens se reconhecerem e a ele sentirem-se integrados — de modo que o homem dotado de preconceitos sempre pode ter certeza de um efeito, enquanto que o idiossincrático quase nunca pode realizar-se no espaço político-público, só revelando-se no privado íntimo. Por conseguinte, o preconceito desempenha um grande papel na coisa social pura; na verdade, não existe nenhuma estrutura social que não se baseie mais ou menos em preconceitos, através dos quais certos tipos de homens são permitidos e outros excluídos. Quanto mais livre de preconceitos é um homem, menos apto será para a coisa social pura. Mas nós afirmamos não julgar, em absoluto, dentro da sociedade e essa renúncia, essa substituição do juízo pelo preconceito só se torna perigosa quando se alastra para o âmbito político, onde não conseguimos mover-nos sem juízos porque, como veremos mais tarde, o pensamento político baseia-se, em essência, na capacidade de formação de opinião (4).

Sim, a opinião (doxa) como matéria-prima da política (e não o conhecimento, filosófico, científico ou técnico – episteme e techné) define a democracia.

Uma das razões para a eficiência e a periculosidade dos preconceitos reside no fato de neles sempre se ocultar um pedaço do passado. Além disso, observando-se com mais atenção, vemos que um verdadeiro preconceito pode ser reconhecido porque nele se oculta um juízo já formado, o qual originalmente tinha uma legítima causa empírica que lhe era apropriada e que só se tornou preconceito porque foi arrastado através dos tempos, de modo cego e sem ser revisto. Com relação a isso, o preconceito diferencia-se do mero boato que não sobrevive ao dia ou à hora do rumor e no qual reina uma grande confusão caleidoscópica de opiniões e juízos mais heterogêneos. O perigo do preconceito reside no fato de originalmente estar sempre ancorado no passado, quer dizer, muito bem ancorado e, por causa disso, não apenas se antecipa ao juízo e o evita, mas também torna impossível uma experiência verdadeira do presente com o juízo. Quando se quer difundir preconceitos, é preciso sempre descobrir primeiro o juízo anterior neles contido, ou seja, identificar seu conteúdo original de verdade. Se porventura se passar ao largo disso, batalhões inteiros de oradores esclarecidos e bibliotecas inteiras nada podem conseguir, como mostram com clareza os infindos esforços infinitamente infrutíferos em relação a problemas sobrecarregados de preconceitos mais antigos e radicados, como é o caso dos negros nos Estados Unidos ou o problema dos judeus.

Como o preconceito se antecipa ao juízo, recorrendo ao passado, sua razão de ser temporal é limitada às épocas históricas — e formam, em termos puramente quantitativos, a maior parte da História —, nas quais o novo é relativamente raro e o velho predomina na estrutura política e social. A palavra julgar tem, em nosso uso idiomático, dois significados distintos um do outro por completo, que sempre confundimos quando falamos. Ela significa, por um lado, o subordinar do indivíduo e do particular a algo geral e universal, o medir normalizador com critérios nos quais se verifica o concreto e sobre os quais se decidirá. Em todos esses juízos encontra-se um preconceito; só o indivíduo é julgado, mas não o próprio critério nem sua adequabilidade para o medir. Também o critério foi um dia posto em julgamento, mas depois esse juízo foi assumido e como que se tornou um meio para se poder continuar julgando. Mas, julgar também pode significar outra coisa bem diferente e, na verdade, sempre quando nos confrontamos com alguma coisa que nunca havíamos visto antes e para a qual não estão à nossa disposição critérios de nenhum tipo. Esse julgar não tem parâmetro, não pode recorrer a coisa alguma senão à própria evidência do julgado, não possui nenhum outro pressuposto que não a capacidade humana do discernimento, e tem muito mais a ver com a capacidade de diferenciar do que com a capacidade de ordenar e subordinar.

Conhecemos bem esse julgar sem parâmetros no juízo estético ou no juízo de gosto, sobre o qual, como sentenciou Kant, não se pode “discutir”, mas sim brigar e chegar a um acordo; e nós o conhecemos na vida cotidiana sempre que, numa situação ainda desconhecida, opinamos que este ou aquele teria julgado a situação correta ou erradamente. Em toda crise histórica, são sempre os preconceitos que cambaleiam primeiro, passa-se a não ter mais nenhuma confiança neles e justamente porque não podem contar mais com o reconhecimento, em seu caráter descomprometido do “dizem”, “acham”, no espaço limitado onde são justificados e usados, eles se consolidam, com facilidade, em algo que, por natureza, não existe em absoluto — ou seja, transformam-se naquelas pseudoteorias que, enquanto visões de mundo fechadas ou ideologias que tudo explicam, pretendem compreender a realidade histórica e política. Se a função do preconceito é defender o homem julgante para não se expor abertamente a cada realidade encontrada e daí ter de defrontá-la pensando, então as visões de mundo e ideologias cumprem essa tarefa — tão bem que protegem contra toda experiência, pois supostamente todo o real está nelas previsto de alguma maneira. É justamente essa universalidade distinta tão claramente dos preconceitos — que são sempre de natureza parcial — que induz com nitidez à conclusão de não se poder mais ter confiança não apenas no preconceito, mas também nos critérios do preconceito e no que foi nele prejulgado: indica textualmente que eles são inconvenientes. Essa falha dos parâmetros no mundo moderno — a impossibilidade de se julgar o que aconteceu e acontece de novo todos os dias, segundo critérios fixos e reconhecidos por todos, de subordiná-lo como caso de um esquema geral bem conhecido, assim como a dificuldade, estreitamente ligada a isso, de indicar princípios de ação para o que irá acontecer — foi descrita, como um niilismo inerente à época, como uma desvalorização de todos os valores, uma espécie de crepúsculo dos deuses e catástrofe da ordem mundial moral.

Todas essas interpretações pressupõem, de forma tácita, que só se podem exigir juízos dos homens onde eles possuem parâmetros; que a capacidade de discernimento não seja nada mais do que a capacidade de agregar, de modo correto e adequado, o isolado ao geral que lhe corresponde e sobre o qual se chegou a um acordo. Sabe-se que a capacidade de discernimento insiste e deve insistir em julgar de forma direta e sem parâmetros, mas as esferas nas quais tal acontece — nas decisões de todo tipo, tanto de natureza pessoal como pública, e no chamado ‘juízo de gosto’ não são levadas a sério porque, de fato, a coisa assim julgada jamais tem caráter imperativo, jamais pode forçar os outros a uma concordância no sentido de uma conclusão lógica e inevitável; pode apenas e tão-somente convencer. Mas é um preconceito em si mesmo o fato de algo imperativo adequar-se ao juízo; os critérios, enquanto duram, jamais podem ser demonstrados de maneira forçada; só lhes serve, sempre, a evidência limitada dos juízos sobre os quais todos concordaram e sobre os quais não se precisa mais brigar nem discutir. Forçosa e unicamente demonstráveis é a agregação, o medir e a adoção de critérios, a regulamentação do isolado e do concreto, feita nesse sentido, e que pressupõe a validade do critério segundo a natureza da coisa; e esse agregar e regular no qual nada mais é decidido a não ser o proceder, provando-se correta ou erradamente, tem muito mais a ver com um pensamento que chega a conclusões do que com um pensamento que julga. Portanto, a perda de critérios — a determinar, de fato, o mundo moderno com sua facticidade e que não pode ser anulada por meio de nenhum retorno a velhos conceitos do ‘bom’ nem da formação arbitrária de novos valores e critérios — só é uma catástrofe do mundo moral quando se supõe os homens não estarem em condições de julgar a coisa em si, que sua capacidade de discernimento não basta para um julgar original. Na verdade, não se poderia exigir deles mais do que a aplicação correta de regras conhecidas e a adoção apropriada de critérios já existentes.

Se isso estiver certo, se pertencer à natureza do pensamento humano o fato de os homens só poderem julgar ali onde têm à mão critérios fixos e prontos, então de fato seria certo, como atualmente se supõe, que na crise do mundo moderno não é tanto o mundo, mas sim o próprio homem que saiu dos trilhos. Hoje, tal suposição se impôs amplamente dentro dos estabelecimentos de ensino acadêmico, como se pode reconhecer pelo fato de as disciplinas que têm a ver com a história do mundo e com aquilo que sucede nela (5) terem sido diluídas primeiro nas ciências sociais e depois na psicologia. Isso não significa nada mais do que a renúncia do estudo ‘histórico’ do mundo — dissecado em suas camadas cronológicas em favor do estudo do modo de conduta, primeiro, social e depois humano — o qual, por sua vez, só pode tornar-se objeto de uma pesquisa sistemática quando se exclui o homem atuante, o autor dos acontecimentos mundiais demonstráveis, degradando-o a um ser que só reage, que pode ser submetido a experiências e do qual até pode-se esperar ter definitivamente sob controle. Talvez mais característico do que essa disputa acadêmica das faculdades, na qual sempre se apresentam reivindicações de poder nem um pouco acadêmicas, seja o fato de um semelhante deslocamento do interesse do mundo para o homem manifestar-se no resultado de uma pesquisa recente, na qual à pergunta sobre o que estaria hoje no centro das preocupações seguiu-se a resposta quase unânime: o homem (6). Não se referia, contudo, à ameaça do gênero humano pela bomba atômica (tal preocupação seria justificada, na realidade); é evidente que os entrevistados reportavam-se à essência do homem, entendendo-se com isso o indivíduo. Num e noutro caso — e esses exemplos podem multiplicar-se à vontade —, em nenhum momento duvida-se de o homem ter saído dos trilhos ou estar em perigo; ou de ser quem deve ser modificado.

Não importa como pode ser feita a pergunta, se é o homem ou o mundo que corre perigo na crise atual, mas uma coisa é certa: a resposta que empurra o homem para o ponto central das preocupações do presente e que acha que deve modificá-lo, remediá-lo, é apolítica em seu sentido mais profundo. Pois, no ponto central da política está sempre a preocupação com o mundo e não com o homem — e, na verdade, a preocupação com um mundo assim ou com um mundo arranjado de outra maneira, sem o qual aqueles que se preocupam e são políticos, julgam que a vida não vale a pena ser vivida. E modifica-se o mundo tão pouco, modificando-se os homens dele — abstraindo-se a impossibilidade prática de tal empreendimento — quanto se muda uma organização ou uma associação, começando-se a influenciar seus membros, de uma maneira ou de outra. Se se quer mudar uma instituição, uma organização ou entidade pública existente no mundo, então só se pode renovar sua constituição, suas leis, seus estatutos e esperar que tudo mais se produza por si mesmo. Isso está relacionado com o fato de que em toda parte em que os homens se agrupam — seja na vida privada, na social ou na público-política —, surge um espaço que os reúne e ao mesmo tempo os separa uns dos outros. Cada um desses espaços tem sua própria estruturabilidade que se transforma com a mudança dos tempos e que se manifesta na vida privada em costumes; na social, em convenções e na pública em leis, constituições, estatutos e coisas semelhantes. Sempre que os homens se juntam, move-se o mundo entre eles, e nesse interespaço ocorrem e fazem-se todos os assuntos humanos.

Outra frase brilhante de Hannah Arendt. O que ela entende por mundo (humano-social), que não é o mundo natural (da vida, como o dos animais, por exemplo), nem o universo (físico). Em termos contemporâneos, da nova ciência das redes, poderíamos dizer que ela está tentando definir o ‘social’ (não a coleção dos indivíduos, mas o que acontece entre eles para que virem pessoas – humanas: o humano propriamente dito). O humano, nesse sentido, é um ente social.

O espaço entre os homens que é o mundo, com certeza não pode existir sem eles e um mundo sem homens, ao contrário de um universo sem homens ou uma natureza sem homens, seria uma contradição em si — sem isso significar, porém, que o mundo e as catástrofes que nele ocorrem seriam reduzidos a um acontecer puramente humano, muito menos reduzidos a algo que acontecesse com ‘o homem’ ou com a natureza do homem. Pois o mundo e as coisas do mundo em cujo centro se realizam os assuntos humanos não são a expressão — a impressão como que formada para fora — da natureza humana, mas sim o resultado de algo que os homens podem produzir: que eles mesmos não são, ou seja, coisas, e que os pretensos âmbitos espirituais ou intelectuais só se tornam realidades duradouras para eles, nas quais se podem mover, desde que existam objetivados enquanto mundo real. Os homens agem nesse mundo real e são condicionados por ele e exatamente por esse condicionamento toda catástrofe ocorrida e ocorrente nesse mundo é neles refletida, co-determina-os. Seria inimaginável tal catástrofe ser tão monstruosa, tão aniquiladora do mundo a ponto de as capacidades formadoras do mundo e realizadoras (7) do homem também serem afetadas, e o homem tornar-se tão ‘sem mundo’, como o animal. Podemos até imaginar que, no passado, tais catástrofes tenham acontecido em tempos pré-históricos e que certas tribos dos chamados povos primitivos sejam seus resíduos, suas sobras ‘sem mundo’. Também podemos imaginar que uma guerra atômica se permitisse a sobrevivência de alguma vida humana, poderia provocar uma catástrofe assim através da destruição do mundo inteiro. Mesmo assim, será sempre o mundo, bem como o curso do mundo — do qual os homens não [são] mais senhores, do qual se alhearam tanto que o automatismo inerente a todo processo pode realizar-se sem ser impedido — no qual os homens sucumbem. Tampouco trata-se daquelas possibilidades de preocupação com os homens acima mencionada. O pior e mais inquietante dela é essencialmente o fato de não se interessar mais, em absoluto, por esses perigos ‘externos’ e, por conseguinte, altamente reais, e desviá-los para um âmbito interior que pode no máximo ser refletido, mas não tratado nem modificado.

Contra isso se poderia objetar com facilidade ser o mundo do qual se fala aqui o mundo dos homens, quer dizer, o resultado do fazer humano e do agir humano, como se queira entender isso. Essas capacidades pertencem, com certeza, à natureza do homem; se falham, não se deveria mudar a natureza do homem, antes de se poder pensar numa mudança do mundo? Essa objeção é antiquíssima em sua essência e pode recorrer às melhores testemunhas — a saber, a Platão que já censurava Péricles, afirmando que, depois da morte, os atenienses não seriam melhores do que antes.

Hahaha!

CAPITULO I: O SENTIDO DA POLÍTICA (8)

[Fragmento 3b]

A pergunta sobre o sentido da política e a desconfiança em relação à política são muito antigas, tão antigas quanto a tradição da filosofia política. Elas remontam a Platão e talvez até mesmo a Parmênides e nasceram de experiências muito reais de filósofos com a polis: significa como a forma de organização do convívio humano, que determinou, de forma tão exemplar e decisiva, aquilo que entendemos hoje por política que até mesmo nossa palavra para isso, em todos os idiomas europeus, deriva daí.

Possivelmente as reflexões sobre o sentido da política são anteriores a Platão. Certamente essas reflexões foram feitas pelos sofistas, como Protágoras e por líderes destacados do regime democrático, como Péricles (Platão nasceu um ano depois da morte de Péricles), Efialtes e Clistenes (que esteve na origem da invenção democrática).

Tão antigas quanto a pergunta sobre o sentido da política são as respostas que justificam a política; quase todas as classificações ou definições da coisa política que encontramos em nossa tradição são, quanto a seu conteúdo original, justificações. Falando-se de maneira bastante geral, todas essas justificações ou definições têm como objetivo classificar a política como um meio para um fim mais elevado, sendo a determinação dessa finalidade bem diferente ao longo dos séculos. Contudo, essa diferença também pode ser reduzida a algumas poucas respostas básicas, e o fato de assim ser indica a simplicidade elementar das coisas com as quais temos de lidar aqui.

Pois é. “Classificar a política como um meio para um fim mais elevado” é o problema quando se trata da política propriamente dita, quer dizer, da política democrática, que não quer levar os seres humanos para lugar algum e sim que eles vivam, aqui e agora, como seres políticos, autorregulando seus conflitos a partir da interação de suas opiniões. Não é uma utopia, não é um porto, um ponto de chegada e sim um modo de caminhar. Arendt abordará esse ponto mais adiante.

A política, assim aprendemos, é algo como uma necessidade imperiosa para a vida humana e, na verdade, tanto para a vida do indivíduo como da sociedade. Como o homem não é autárquico, porém depende de outros em sua existência, precisa haver um provimento da vida relativo a todos, sem o qual não seria possível justamente o convívio. Tarefa e objetivo da política é a garantia da vida no sentido mais amplo. Ela possibilita ao indivíduo buscar seus objetivos, em paz e tranqüilidade, ou seja, sem ser molestado pela política — sendo antes de mais nada indiferente em quais esferas da vida se situam esses objetivos garantidos pela política, quer se trate, no sentido da Antiguidade, de possibilitar a poucos a ocupação com a filosofia, quer se trate, no sentido moderno, de assegurar a muitos a vida, o ganha-pão e um mínimo de felicidade. Como, além disso, conforme Madison observou um dia, trata-se nesse convívio de homens e não de anjos (9), o provimento da vida só pode realizar-se através de um Estado, que possui o monopólio do poder e impede a guerra de todos contra todos.

A rigor tal observação de Madison é problemática. Não há qualquer evidência de que, numa sociedade sem Estado, haveria uma guerra hobbesiana de todos contra todos. Aliás, as evidências disponíveis não corroboram tal hipótese. Jericó, nos seus primeiros dois milênios (ou mais – antes de ser uma cidade murada e fortificada), não tinha Estado e não se tem notícias de que não havia provimento da vida ou de que seus habitantes vivessem em guerra permanente uns contra os outros (o que não permitiria que ela se mantivesse por 2 mil anos). Isso para não falar de todas as aldeias agrícolas neolíticas (desde o surgimento da agricultura, há cerca de 12 mil anos), das tribos paleolíticas e dos grupos de coletores e caçadores (que caminham sobre a Terra há mais de 150 mil anos) – e nenhuma dessas sociedades tinha Estado detentor do monopólio do poder. 

Comum a essas respostas é o fato de elas se julgarem naturais, de que a política existe e existiu sempre e em toda parte, onde os homens convivem num sentido histórico-civilizatório. Para esse caráter natural, costuma-se recorrer à definição aristotélica do homem enquanto ser político, e esse recurso não é indiferente porque a polis determinou de maneira decisiva, tanto em termos de idioma como de conteúdo, a concepção européia do que seria política originalmente e que sentido ela tem. Tampouco é indiferente porque a citação a Aristóteles baseia-se num equívoco também bastante antigo, embora pós-clássico. Aristóteles, para quem a palavra politikon era de fato um adjetivo da organização da polis e não uma designação qualquer para o convívio humano, não achava, de maneira nenhuma, que todos os homens fossem políticos ou que a política, ou seja, uma polis, houvesse em toda parte onde viviam homens. De sua definição estavam excluídos não apenas os escravos, mas também os bárbaros asiáticos, ramos de governo despótico, de cuja qualidade humana não duvidava, de maneira alguma. Ele julgava ser apenas uma característica do homem o fato de poder viver numa polis e que essa organização da polis representava a forma mais elevada do convívio humano; por conseguinte, é humana num sentido específico, tão distante do divino que pode existir apenas para si em plena liberdade e independência, e do animal cujo estar junto, onde existe, é uma forma da vida em sua necessidade. Portanto, a política na acepção de Aristóteles — e Aristóteles não reproduz aqui, como em muitos outros pontos de seus escritos políticos, sua opinião sobre a coisa, mas sim a opinião compartilhada por todos os gregos da época, embora em geral não articulada — não é, de maneira nenhuma, algo natural e não se encontra, de modo algum, em toda parte onde os homens convivem. Ela existiu, segundo a opinião dos gregos, apenas na Grécia e mesmo ali num espaço de tempo relativamente curto.

É duvidoso que Aristóteles tivesse tal compreensão. Izzi Stone (1988), em O Julgamento de Sócrates, tem uma opinião parecida com a de Hannah Arendt:

“Mas quando afirmou, no início de sua Política, que o homem era um “animal político”, Aristóteles não se referia às manifestações externas da pólis enquanto entidade soberana, mas às relações internas que viabilizavam a existência da cidade. O que Aristóteles estava dizendo é que apenas o homem possuía as qualidades que tornavam possível a existência em comunidade, e para ele, como para a maioria dos gregos, a forma mais elevada de koinonia — literalmente, “comunidade” — era a pólis. Segundo Aristóteles, ela era possível porque só o homem, dentre todos os animais, possuía o logos. O logos era mais do que a capacidade de falar. O termo denotava também a razão e a moralidade. Como o próprio Aristóteles observou, existem outras formas de vida social ou gregária. Alguns insetos vivem em comum em colmeias, e certos animais selvagens vivem juntos em bandos. Mas “o que distingue o homem dos outros animais é ser ele o único a perceber o bem e o mal, o justo e o injusto”. E esse senso de justiça intrínseco que confere ao homem seu instinto social, seu “impulso”, para usar o termo de Aristóteles, que o leva a viver em sociedade, e faz do homem “um animal político em maior medida do que qualquer abelha ou qualquer animal gregário”. Quando afirma que a pólis existe “por natureza”, Aristóteles quer dizer que ela decorre da natureza do homem, de um senso de justiça intrínseco”.

Há aqui uma imprecisão ou um equívoco mesmo de Aristóteles (de certo modo, endossado por Stone). A comunidade democrática não decorre da natureza humana e sim do modo como as pessoas se organizam e regulam seus conflitos. Do contrário a democracia teria aparecido “naturalmente” em outras épocas e lugares antes de surgir em Atenas na passagem do século 6 para o século 5 a.C. Mas ela só apareceu porque formou-se na Agora (a praça do mercado de Atenas) uma rede de conversações entre os homens livres, com topologia mais distribuída do que centralizada e porque essas conversações recorrentes questionaram a tirania do filho de Psistrato que governava na época. Esse questionamento foi a ação política da rede de pessoas que inventou a democracia pela primeira vez.

O que distingue o convívio dos homens na polis de todas as outras formas de convívio humano que eram bem conhecidas dos gregos, era a liberdade. Mas isso não significa entender-se aqui a coisa política ou a política justamente como um meio para possibilitar aos homens a liberdade, uma vida livre. Ser-livre e viver-numa-polis eram, num certo sentido, a mesma e única coisa. A propósito, apenas num certo sentido; posto que para poder viver numa polis, o homem já devia ser livre em outro sentido — ele não devia estar subordinado como escravo à coação de um outro nem como trabalhador à necessidade do ganha-pão diário. Primeiro, o homem precisava ser livre ou se libertar para a liberdade, e esse ser livre do ser forçado pela necessidade da vida era o sentido original do grego schole ou do romano otium, o ócio, como dizemos hoje. Essa libertação, diferente da liberdade, era um objetivo que podia e devia ser atingido através de determinados meios. O meio decisivo era a sociedade escravagista, o poder com o qual outros eram forçados a assumir a preocupação com a vida diária. Ao contrário de todas as formas de exploração capitalista que perseguem sobretudo objetivos econômicos e servem ao enriquecimento, no caso da exploração do trabalho escravo na Antiguidade tratava-se de liberar os senhores por completo do trabalho a fim de dispô-los para a liberdade da coisa política. Essa libertação realizava-se através da coação e da força e baseava-se no domínio absoluto que o dono da casa exercia em seu domicílio. Mas esse domínio não era político, se bem que representasse uma condição indispensável de toda a coisa política. Portanto, se quiserem entender a coisa política no sentido da categoria meio-objetivo, ela era, tanto na acepção grega como na acepção de Aristóteles, antes de qualquer coisa um objetivo e não um meio. E o objetivo não era pura e simplesmente a liberdade tal como ela se realizava na polis, mas sim a libertação pré-política para a liberdade na polis. O sentido da coisa política aqui, mas não seu objetivo, é os homens terem relações entre si em liberdade, para além da força, da coação e do domínio. Iguais com iguais que só em caso de necessidade, ou seja, em tempos de guerra, davam ordens e obedeciam uns aos outros; porém, exceto isso, regulamentavam todos os assuntos por meio da conversa mútua e do convencimento recíproco.

Ou seja, “em tempos de guerra” os homens se comportavam de modo apolítico, quer dizer, não-democrático. Arendt voltará a esse ponto. Fica claro aqui que a democracia é um modo não-guerreiro de regulação de conflitos. E, pulando algumas passagens, que guerra é autocracia.

A coisa política entendida nesse sentido grego está, portanto, centrada em torno da liberdade, sendo liberdade entendida negativamente como o não-ser-dominado e não-dominar, e positivamente como um espaço que só pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que são meus iguais não existe liberdade alguma e por isso aquele que domina outros e, por conseguinte, é diferente dos outros em princípio, é mais feliz e digno de inveja que aqueles a quem ele domina, mas não é mais livre em coisa alguma. Ele também se move num espaço no qual a liberdade não existe, em absoluto. Isso é difícil nós compreendermos porque vinculamos à igualdade o conceito de justiça e não o de liberdade e, desse modo, compreendemos mal a expressão grega para uma constituição livre, a isonomia [Isonomie], em nosso sentido de uma igualdade perante a lei. Porém, isonomia não significa que todos são iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política; e essa atividade na polis era de preferência uma atividade da conversa mútua.

A ideia de que sem outros não há liberdade alguma é luminosa. John Dewey (1927, 1937, 1939), bem antes, portanto, de Hannah Arendt, já havia afirmado coisa semelhante. Para ele, a liberdade do indivíduo depende de relações comunicativas (cada cidadão só pode atingir autonomia pessoal em associação com outros), mas o indivíduo só atinge liberdade quando atua comunitariamente para resolver um problema coletivo, o que exige – necessariamente – cooperação (voluntária). Há portanto, uma conexão interna entre liberdade, democracia e cooperação. Isso evoca um outro conceito (deweyano) de esfera pública – diferente do de Arendt e o de Habermas -, como instância em que a sociedade tenta, experimentalmente, explorar, processar e resolver seus problemas de coordenação da ação social. Assim, é somente a experiência de participar voluntária e cooperativamente em grupos para resolver problemas e aproveitar oportunidades, que pode apontar para o indivíduo a necessidade de um espaço público democrático. O indivíduo como participante ativo de empreendimentos comunitários – tendo consciência da responsabilidade compartilhada e da cooperação – é o agente político democrático (no sentido “forte” do conceito).

Cf. Franco, Augusto e Pogrebinschi, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: EdiPUC, 2008

Por isso, isonomia é, antes de mais nada, liberdade de falar e como tal o mesmo que isegoria; mais tarde, em Polibios, ambas significam apenas isologia (10). Porém, o falar na forma de ordenar e o ouvir na forma de obedecer não eram avaliados como falar e ouvir originais; não era uma conversa livre porquanto comprometida com um fenômeno determinado não pela conversa, mas sim pelo fazer ou trabalhar. As palavras eram aqui como que o substituto do fazer e, na verdade, de um fazer que pressupunha o forçar e o ser forçado. Quando os gregos diziam que escravos e bárbaros eram aneu logou, não dominavam a palavra, queriam dizer que eles se encontravam numa situação na qual era impossível a conversa livre. Na mesma situação encontra-se o déspota que só conhece o ordenar; para poder conversar, ele precisava de outros de categoria igual à dele. Portanto, para a liberdade não se precisava de uma democracia igualitária no sentido moderno, mas sim de uma esfera limitada de maneira estreitamente oligárquica ou aristocrática, na qual pelo menos os poucos ou os melhores se relacionassem entre si como iguais entre iguais. Claro que essa igualdade não tem a mínima coisa a ver com justiça.

Não apenas os súditos não são livres, mas também o déspota não é livre – no sentido político do termo. Na verdade, nenhum autocrata tem (ou pode experimentar) a liberdade política.

Decisivo dessa liberdade política era o fato de ser ela vinculada espacialmente. Quem deixava sua polis ou era dela degredado, perdia não apenas sua terra natal ou pátria, mas também o único espaço no qual poderia ser livre; perdia a companhia daqueles que eram seus iguais. Mas esse espaço da liberdade era tão pouco necessário ou indispensável para sua vida e o sustento de sua existência que ele era mais embaraçoso para ela. Os gregos sabiam por experiência própria que um tirano sensato (o que chamamos hoje de déspota esclarecido) era de grande vantagem para o puro bem-estar da cidade e o florescimento das artes tanto materiais como intelectuais. Só a liberdade estava extinta. Os cidadãos eram desterrados em suas casas, e era isolado o espaço no qual se realizava o livre trânsito entre iguais, a ágora. A liberdade não tinha mais nenhum espaço e isso significava: não havia mais liberdade política.

A democracia não pode se justificar em termos de bem-estar para a população. Não é dar ao povo “casa, comida e roupa lavada” (como dela muitos esperam atualmente e, por isso, se desiludem com os regimes democráticos). A democracia é outra coisa…

Vai aqui uma divagação sobre o que significa estar em uma cidade. Quando você se afasta de uma cidade (muda para outro lugar ou passa muito tempo viajando), mesmo que continue interagindo à distância com seus moradores (parentes, amigos, conhecidos, seguidores), suas conexões com aquele ambiente vão se enfraquecendo. Isso acontece porque a cidade é um bicho-vivo, não é apenas o conjunto das pessoas que ali vivem, mas o que acontece entre elas, a cada dia, a cada minuto. Caminhos percorridos recorrentemente no espaço-tempo dos fluxos cavam creodos no campo social da cidade, às vezes redemoinhos, que funcionam como atratores estranhos. É por isso que um lugar é muito frequentado e outro não, mesmo que as pessoas que comparecem no primeiro também compareçam no segundo (mas a questão é que elas não comparecerão com a mesma frequência no segundo porque isso não tem a ver apenas com a sua vontade: de certo modo as pessoas são atraídas pelos redemoinhos, um fenômeno que não se explica pelo hábito somente). Se você se afasta, não é que você se desconecta, mas a “largura de banda”, por assim dizer, fica menor. A rede não é o meio que você utiliza para interagir e sim a própria interação, que sempre extravasa os meios adotados. A vida da cidade e, sobretudo, seus padrões característicos do fluxo interativo da convivência social, formam – mal-comparando – um grande processador, que é capaz de captar todos os seus impulsos, gestos, falas, percursos. Por exemplo, se você sai de manhã para caminhar, o caminho que você faz, suas percepções e ações durante a caminhada, também entram no grande processamento daquela cidade que existe por trás da cidade que você vê. De sorte que não há como “ficar” em uma (ou com uma) cidade não estando nela (a não ser nas formas precárias e incompletas do “namoro à distância”). Quando você muda, migra, é muito importante levar tudo isso em consideração. Se você continuar imaginando que está na sua velha cidade, a perderá e, ainda por cima, não ganhará uma nova cidade. O último Hillman (1993) escreveu que “o significado básico da palavra polis” é: “fluxo e muitos” (e se você não entrar nessa correnteza, não conseguirá se achar).

Ainda não podemos tratar aqui do que acontecia, de fato, com essa perda da coisa política que, na acepção da Antiguidade, coincidia com a perda de liberdade. Tratamos aqui apenas de que uma breve reminiscência daquilo que estava ligado originalmente ao conceito da coisa política nos deve curar do preconceito moderno, segundo o qual a política seria uma necessidade imperiosa e que ela teria existido sempre e em toda parte. A política não é necessária, em absoluto — seja no sentido de uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor, seja no sentido de uma instituição indispensável do convívio humano. Aliás, ela só começa — onde cessa o reino das necessidades materiais e da força física. Como tal, a coisa política existiu sempre e em toda parte tão pouco que, falando em termos históricos, apenas poucas grandes épocas a conheceram e realizaram. Esses poucos e grandes acasos felizes da História são, porém, decisivos; é só neles que se manifesta de cheio o sentido da política e, na verdade, tanto o bem quanto a desgraça da coisa política. Com isso, eles tornam-se determinantes, mas não a ponto de poder ser copiadas as formas de organização que lhes são inerentes, e sim porque certas ideias e conceitos que se tornaram plena realidade para um curto período de tempo, também co-determinem as épocas para as quais seja negada uma experiência plena com a coisa política.

É claro que – nunca e demais frisar – quando Arendt se refere à coisa política ela está tratando da política democrática (a política propriamente dita).

A mais importante dessas ideias — que também para nós pertence inegavelmente ao conceito da política e que, por conseguinte, sobreviveu a todas as mudanças históricas e a todas as transformações teóricas — é, sem dúvida, a ideia da liberdade. O fato de a política e a liberdade serem ligadas e de a tirania ser a pior de todas as formas de Estado — ser na prática antipolítica — estende-se como uma diretriz através do pensar e agir da Humanidade até os tempos mais recentes. Apenas as formas de Estado totalitárias e as ideologias correspondentes — não o marxismo que proclamava o reino da liberdade e compreendia a ditadura do proletariado, no sentido romano, como uma instituição temporária da revolução — ousaram cortar essa linha, mas o verdadeiro novo e assustador desse empreendimento não é a negação da liberdade ou a afirmação que a liberdade não é boa nem necessária para o homem, e sim a concepção segundo a qual a liberdade dos homens precisa ser sacrificada para o desenvolvimento histórico, cujo processo só pode ser impedido pelo homem quando este age e se move em liberdade. Essa concepção é comum a todos os movimentos políticos e ideológicos específicos. Do ponto de vista teórico, torna-se decisivo a liberdade não ser localizada nem no homem atuante e semovente nem no espaço que surge entre os homens, mas sim apresentada num processo que se realiza pelas costas do homem atuante e age, às escondidas, do outro lado do espaço visível dos assuntos públicos. O modelo desse conceito de liberdade é o rio que corre livremente, diante do qual qualquer intervenção representa uma arbitrariedade a obstruir seu fluxo. As modernas identificações da antiquíssima oposição entre liberdade e necessidade e o par de contrastes que a substitui, de liberdade e intervenção, têm sua justificação secreta neste modelo. Em todos esses casos, o moderno conceito de História substitui um conceito de política qualquer que seja sua natureza; acontecimentos políticos e agir político são diluídos no acontecer histórico, e a História é compreendida, no sentido mais textual, como um fluxo da história. A diferença entre esse difundido pensamento ideológico e as formas totalitárias de Estado é que estas descobriram os meios políticos para encaixar os homens no fluxo da História de tal maneira a ele ser compreendido, em relação à ‘liberdade’, ao fluxo ‘livre’ dela, exclusivamente como não podendo obstruir esse fluxo, ao contrário, tornando-se um momento de sua aceleração. Os meios pelos quais isso acontece são um processo externo de coação do terror e a pressão exercida por dentro do pensamento ideológico, ou seja, um pensamento que, bem no sentido do fluxo da História, também vem junto no íntimo, por assim dizer. Esse desenvolvimento totalitário é, sem dúvida, o passo decisivo no caminho da abolição da liberdade. Mas não impede que, em termos teóricos, o conceito de liberdade desapareça em toda parte onde, no pensamento dos novos tempos, o conceito da História substitui o conceito da política.

Aqui temos uma contundente crítica do historicismo.

Que a ideia de a política ter necessariamente alguma coisa a ver com a liberdade, depois de haver nascido pela primeira vez na polis grega, conseguir perdurar através dos milênios é tanto mais notável e confortador porque quase não existe outro conceito no pensamento e na experiência ocidental que se tenha transformado tanto e também se enriquecido tanto no decorrer desse espaço de tempo. Originalmente, ser livre nada mais significava que poder ir aonde bem se desejasse, mas isso continha mais do que [aquilo] que hoje entendemos como liberdade de ir e vir. Significava não apenas que não se estava subordinado à coação de nenhum homem, mas também que era possível distanciar-se de todo o âmbito da obrigação, da casa e de sua “família” (esse conceito romano que Mommsen traduziu um dia apenas como servidão) (11). Tal liberdade só tinha o senhor da casa, e ela não consistia em ele dominar os demais membros da casa, mas que em função desse domínio, ele podia abandonar sua casa, a família no sentido da Antiguidade. Evidente que o elemento do risco, da aventura, era inerente a essa liberdade; a casa da qual o ir embora era uma opção ao bel-prazer do homem livre, não era apenas o lugar no qual os homens dominavam por necessidade e pressão, mas também — e numa ligação mais estreita —o lugar onde a vida de cada qual estava assegurada, onde tudo estava orientado para satisfazer às necessidades vitais. Portanto, só podia ser livre quem estivesse disposto a arriscar a vida, e tinha alma escrava; e era não-livre aquele que se agarrava à vida com um amor grande demais — um vício para o qual o idioma grego tinha uma palavra própria (12).

O libertar-se da família pode ser visto, em certo sentido, como um libertar-se da cultura patriarcal.

Essa concepção, de que só pode ser livre quem está disposto a arriscar sua vida, nunca mais desapareceu de todo de nossa consciência; o mesmo vale para a ligação entre a coisa política e perigo e risco. A coragem é a mais antiga das virtudes políticas e ainda hoje pertence às poucas virtudes cardeais da política, porque só podemos chegar no mundo público comum a todos nós — que, no fundo, é o espaço político — se nos distanciarmos de nossa existência privada e da conexão familiar com a qual nossa vida está ligada. Aliás, o espaço no qual entravam aqueles que ousavam ultrapassar a soleira da casa já deixou de ser, em nossa época, um âmbito de grandes empreendimentos e aventuras, no qual o homem só podia entrar e no qual só podia esperar sair vitorioso se se ligasse a outros que eram seus iguais. Além disso, é verdade que surge no mundo aberto para os corajosos, os aventureiros e os ávidos por empreendimento uma espécie de espaço público, mas ainda não-político no verdadeiro sentido. Torna-se público esse espaço no qual avançam os ávidos por façanhas, porque eles estão entre seus iguais e se podem conceder aquele ver, ouvir e admirar o feito, cuja tradição vai fazer com que o poeta e o contador de histórias mais tarde possam assegurar-lhes a glória para a posteridade. Ao contrário do que acontece na vida privada e na família, no recolhimento das quatro paredes, aqui tudo aparece naquela luz que só pode ser criada em público, o que quer dizer na presença de outros. Mas essa luz, condição prévia de toda manifestação real, é enganadora enquanto for apenas pública e não-política. O espaço público da aventura e do empreendimento desaparece assim que tudo chega a seu fim, logo que dissolvido o acampamento do exército e os ‘heróis’ —que em Homero nada mais significam que os homens livres — retornam para suas casas. Esse espaço público só se torna político quando assegurado numa cidade, quer dizer, quando ligado a um lugar palpável que possa sobreviver tanto aos feitos memoráveis quanto aos nomes dos memoráveis autores, e possa ser transmitido à posterioridade na sequência das gerações. Essa cidade a oferecer aos homens mortais e a seus feitos e palavras passageiros um lugar duradouro constitui a polis — que é política e, desse modo, diferente de outros povoamentos (para os quais os gregos tinham uma palavra específica) (13), porque originalmente só foi construída em torno do espaço público, em torno da praça do mercado, na qual os livres e iguais podiam encontrar-se a qualquer hora.

Aqui aparece o conceito, não-trivial, da polis democrática (que será desenvolvido em seguida).

Essa estreita união do político com o homérico é de grande importância para a compreensão de nosso conceito de liberdade política tal como aparece em sua origem na polis grega. E não apenas porque Homero se tornou o educador dessa polis, mas também porque em consequência do auto-entendimento grego, a organização e fundação da polis estavam ligadas, da maneira mais íntima, com as experiências que existiam dentro do homérico. Desse modo, o conceito central da polis livre e não dominada por nenhum tirano, pode ser situado, sem dificuldade, no conceito da isonomia e da isegoria da era homérica (Pauly-Wissowa, loc. cit.) (14), porque a enorme experiência das possibilidades de uma vida entre iguais existia, de fato, como modelo no épico de Homero; e, o que talvez fosse mais importante, era possível compreender o surgimento da polis como uma resposta a essas experiências. Isso podia acontecer de uma maneira como que negativa — no sentido como Péricles referiu-se a Homero na oração fúnebre: a polis precisava ser fundada para assegurar um paradeiro para a grandeza do fazer e do falar humanos, que fosse mais seguro (15) do que a memória que o poeta fixava no poema, tornando-a duradoura (16). Também poderia ser compreendido de modo positivo — no sentido conferido por Platão (na 11ª Epístola) (17): a polis nasceu do encontro de grandes acontecimentos na guerra ou em outros feitos, quer dizer, das próprias atividades políticas e de sua grandeza original. Em ambos os casos, são como se o acampamento do exército de Homero não fosse desfeito, senão depois que o regresso à pátria, quando fundasse a polis para então encontrar um espaço onde pudessem reunir-se permanentemente. Não importa quanto pode ter-se modificado através dessa constância no futuro, o conteúdo da polis permanece ligado no homérico como em sua origem.

Mas por que – e para quê – “reunir-se permanentemente”? Aqui pode estar uma das pistas sobre o sentido da liberdade como sentido da política (a democracia como modo-simbionte de viver a convivência). Importantíssimo! Ao viver a convivência criamos outra forma de “vida” (uma segunda “vida”, uma segunda criação), erigindo propriamente uma entidade social. Ver a simbiose em Johannes Althusius (1600), em seu livro Política e a “entidade” de Jane Jacobs (1961), aventada em Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas. Ver também o conceito de polis em James Hillman (1993), em Psicologia, Self e Comunidade (onde se acha a passagem, já citada acima): “você acha a você mesmo ao entrar na multidão — o que é o significado básico da palavra polis — fluxo e muitos”.

Também fica claro no parágrafo acima que, para Arendt, a democracia é o regime sem um senhor (como havia escrito Ésquilo, em Os Persas, no primeiro escrito que define a democracia).

A propósito, é natural que nesse sentido específico de espaço político desvie-se aquilo que se entendia por liberdade; o sentido do empreendimento e da aventura retrocede cada vez mais e aquilo que era, de certo modo, apenas o acessório indispensável, a constante presença de outros, o relacionamento com iguais na publicidade da ágora, como Heródoto diz, a isegoria torna-se o verdadeiro conteúdo do ser-livre. Ao mesmo tempo, a mais importante atividade para o ser-livre desloca-se do agir para o falar, da ação livre para a palavra livre.

Novamente. Por que – e para quê – “a constante presença de outros”?

Esse deslocamento é de grande importância, em nosso conceito tradicional de liberdade no qual a concepção de que agir e falar são, em princípio, separados um do outro, de que correspondem, de certa maneira, a duas capacidades bem diferentes do homem: faz-se valer de forma muito mais decisiva do que na própria história da Grécia. Pois um dos traços essenciais mais notáveis e excitantes justamente do pensamento grego é que nele, desde o começo — ou seja, já em Homero — não ocorre tal separação de princípio entre falar e agir, e o autor de grandes feitos também deve ser sempre, ao mesmo tempo, um orador de grandes palavras — e não apenas porque grandes palavras precisam acompanhar os grandes feitos, explicando-os, por assim dizer, feitos esses que, caso contrário, cairiam mudos no esquecimento, mas porque o próprio falar era compreendido a priori como uma espécie de agir. É verdade que o homem não pode proteger-se contra os golpes do destino, contra os golpes dos deuses, mas pode opor-se a eles e retrucar-lhes no falar e, se bem que esse retrucar não adiante nada, não mude a infelicidade nem atraia a felicidade, essas palavras pertencem ao acontecer como tal; se as palavras são iguais ao acontecimento, se (como no final de Antígona) “grandes palavras” replicam e pagam na mesma moeda “os grandes golpes dos ombros altos”, então o que sucede é algo grandioso e digno da lembrança enaltecedora. A tragédia grega e seu drama, nela tratado, baseiam-se nessa convicção básica, de que o falar é, nesse sentido, uma espécie de ação, de que o declínio pode tornar-se um feito se palavras forem lançadas em sua direção enquanto se sucumbe.

Apenas para dizer: belíssimo! 

Justamente essa concepção do falar encontra-se na origem da descoberta do poder independente do logos pela filosofia grega, que retrocede na experiência da polis e desaparece, por completo, da tradição do pensamento político. A liberdade de externar opinião, o direito de ouvir opiniões de outros e de também ser ouvido, que para nós constitui também parte indispensável da liberdade política, suplantou a liberdade não em contradição com ela, mas que possui uma natureza bem diferente, característica do agir e do falar, desde que seja uma ação. Essa liberdade consiste naquilo que chamamos de espontaneidade que, segundo Kant, se baseia no fato de cada homem ser capaz de começar uma série de novo por si mesmo. O fato de que liberdade de agir é equivalente a estabelecer-um-início-e-começar-alguma-coisa é ilustrado, da melhor maneira dentro do âmbito político grego, porque a palavra archein tanto significa começar como dominar. É evidente que esse duplo significado indica que originalmente era chamado de guia aquele que começava uma coisa, procurava companheiros a fim de poder levá-la a cabo; e esse levar a cabo e levar-ao-fim-a-coisa-começada era o significado original da palavra para agir, prattein. Encontramos esse acoplamento do ser-livre com o começar na concepção romana, segundo a qual a grandeza dos antepassados está contida na fundação de Roma e a liberdade dos romanos sempre pode ser atribuída a essa fundação — ab urbe condita —, na qual foi feito um começo. Então, Agostinho fundamentou ontologicamente essa liberdade romana experimentada, dizendo ser o próprio homem um começo, um initium, porquanto nem sempre existiu, senão que só veio ao mundo por meio do nascimento. Apesar da filosofia política de Kant que, a partir da experiência da Revolução Francesa, se tornou uma filosofia da liberdade porque, em seu âmago, está centrada em torno do conceito da espontaneidade, parece que só hoje reconhecemos o extraordinário significado político inserido no poder-começar, pois as formas de dominação total não se contentaram em pôr um fim no livre externar de opinião, senão que puseram mãos à obra para exterminar, em princípio, a espontaneidade do homem em todas as áreas. Por outro lado, isso é inevitável sempre que o processo histórico-político foi definido de maneira determinística, como algo definido de antemão e segundo suas próprias leis, podendo ser reconhecido por isso. Contra a possível determinação e distinguibilidade do futuro está o fato de o mundo se renovar a cada dia por meio do nascimento e, pela espontaneidade dos recém-chegados, está sempre se comprometendo com um novo imprevisível. Só quando os recém-nascidos são privados de sua espontaneidade, de seu direito a começar algo novo, o curso do mundo pode ser determinado e previsto, de maneira determinística.

Brilhante! Aqui também está a raiz da concepção da imprevisibilidade da política.

A liberdade de externar opinião, determinante para a organização da polis, distingue-se da liberdade característica do agir, do fazer um novo começo, porque numa medida muitíssimo maior não pode prescindir da presença de outros e do ser-confrontado com suas opiniões. É verdade que o agir também jamais pode realizar-se em isolamento, porquanto aquele que começa alguma coisa só pode levá-la a cabo se ganhar outros que o ajudem. Nesse sentido, todo agir é um agir in concert, como Burke costumava dizer (18): “é impossível agir sem amigos e companheiros dignos de confiança” (Platão, 7ª Epístola 325d) (19), ou seja, impossível no sentido do prattein grego, do executar e do concluir. Mas isso mesmo é apenas uma fase do agir, embora politicamente seja o mais importante, em suma, aquilo que determina no final o que será feito dos assuntos dos homens e que aspecto terão. Precede-lhe o começar, o archein; essa iniciativa, que decide quem será o guia ou archon, o primus inter pares, cabe ao indivíduo e sua coragem de se envolver num empreendimento. Por fim, alguém como Hércules — a quem os deuses ajudam — pode realizar grandes façanhas mesmo sozinho e precisava dos homens apenas para receber a notícia sobre elas. A própria liberdade da espontaneidade é, por assim dizer, pré-política, se bem que sem ela toda a liberdade política perderia seu melhor e mais profundo sentido; ela só depende das formas de organização da vida em comum na medida em que também pode ser organizada do mundo para fora. Mas como, em última análise, ela nasce do indivíduo, é só em circunstâncias muito desfavoráveis que ela ainda consegue salvar-se da intervenção, por exemplo, de uma tirania; na produtividade do artista, como de todos aqueles que produzem alguma coisa qualquer do mundo no isolamento contra outros, também se apresenta a espontaneidade e se pode dizer que nenhum produzir é possível que não tenha sido criado por meio da capacidade para agir. Contudo, muitas atividades do homem só podem realizar-se longe da esfera política e essa distância é até, como veremos mais tarde (20), uma condição essencial para determinadas produtividades humanas.

Algo bem diferente ocorre com a liberdade do falar um com o outro. Ela só é possível no trato com outros. Sua importância sempre foi múltipla e ambígua e, já na Antiguidade, possuía a ambiguidade duvidosa que ainda tem para nós. Mas, naquele tempo como hoje, o decisivo não era, de maneira alguma, cada um poder dizer o que bem entendesse, ou cada homem ter um direito imanente de se expressar tal como era. Trata-se aqui talvez da experiência de ninguém poder compreender por si, de maneira adequada, tudo que é objetivo em sua plenitude, porque a coisa só se mostra e se manifesta numa perspectiva, adequada e inerente à sua posição no mundo. Se alguém quiser ver e conhecer o mundo tal como ele é ‘realmente’, só poderá fazê-lo se entender o mundo como algo comum a muitos, que está entre eles, separando-os e unindo-os, que se mostra para cada um de maneira diferente e, por conseguinte, só se torna compreensível na medida em que muitos falarem sobre ele e trocarem suas opiniões, suas perspectivas uns com os outros e uns contra os outros. Só na liberdade do falar um com o outro nasce o mundo sobre o qual se fala, em sua objetividade visível de todos os lados. O viver-num-mundo-real e o falar-sobre-ele-com-outros são, no fundo, a mesma e única coisa, e a vida privada parecia ‘idiota’ para os gregos porque os privava dessa complexidade do conversar-sobre-alguma-coisa e, com isso, da experiência sobre como a coisa acontecia, de fato, no mundo.

Essa liberdade de movimento, seja a liberdade de ir em frente e começar algo novo e inaudito, ou seja, a liberdade de se relacionar com muitos conversando e tomar conhecimento de muitas coisas que, em sua totalidade, são o mundo em dado momento, não era nem é, de maneira alguma, o objetivo da política — aquilo que seria alcançável por meios políticos; é muito mais o conteúdo e sentido original da própria coisa política. Nesse sentido, política e liberdade são idênticas e sempre onde não existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido. Por outro lado, os meios com os quais se pode fundar esse espaço político e proteger sua existência não são, de modo algum, sempre e necessariamente meios políticos. Desse modo, os gregos, por exemplo, não reconheceram como atividades políticas legítimas — quer dizer, como uma espécie de agir que está contida na essência da polis — esses meios com os quais o espaço político é formado e mantido. Eles eram de opinião que, para a fundação de uma polis, só se precisava de um ato legislativo, mas esse legislador não era um cidadão da polis e aquilo que ele fazia não era, em absoluto, ‘político’. Além disso, eram de opinião de que sempre que a polis tinha a ver com outros Estados, não precisava mais proceder politicamente, senão que podia empregar a força — seja porque sua existência corresse perigo pelo poder de outras coletividades, seja porque ela mesma desejasse tornar outros vassalos seus. O que hoje denominamos política externa não era, em outras palavras, para os gregos a política no verdadeiro sentido. Voltaremos a isso mais tarde (21). Para nós, só importa aqui o fato de entendermos liberdade como algo político, e não como o objetivo mais elevado dos meios políticos, e que pressão e violência sempre foram, na verdade, meios para proteger o espaço político, ou para fundá-lo e amplia-lo — mas sem serem políticos em si como tal. São fenômenos marginais que pertencem ao fenômeno da coisa política e, por causa disso, não são elas.

Mais uma indicação de que guerra (inclusive a política como continuação da guerra por outros meios, na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin) é antipolítica.

A partir desse espaço da política, que como tal realizava e garantia tanto a realidade por muitos discutida e testemunhada como a liberdade de todos, só se pode indagar por um sentido situado no outro lado da esfera política se, como os filósofos da polis, conferir-se preferência ao trato com poucos e não ao trato com muitos e chegar-se à convicção de que o livre-conversar-sobre-alguma-coisa-com-outros não produz a realidade, mas sim o engano; não a verdade, mas a mentira.

Parece que Parmênides foi o primeiro a ter essa opinião, sendo decisivo o fato de ele não separar os muitos maus dos poucos e melhores — como Heráclito fazia e como, no fundo, correspondia ao espírito agonal da vida política grega, no qual cada um devia esforçar-se sempre para ser o melhor de todos. Parmênides distinguia muito mais um caminho da verdade que só está aberto para o “indivíduo qua indivíduo”, dos caminhos do engano nos quais se movem todos aqueles, qualquer que seja a forma, que estão no caminho uns com os outros. Platão seguiu-o até certo grau. Mas esse acompanhamento de Platão só tem importância política porque ele não insiste no indivíduo, e concretizando na fundação da academia uma concepção básica dos poucos que, por seu lado, filosofavam de novo entre si num discurso livre.

Platão, o pai da filosofia política do Ocidente, tentou de várias maneiras contrapor-se à polis e aquilo que ela definia por liberdade. Tentou-o por meio de uma teoria política na qual os critérios da coisa política não são criados a partir da própria política, mas sim da filosofia, por meio do aperfeiçoamento de uma constituição que entrava em pormenores, cujas leis correspondem às ideias acessíveis apenas aos filósofos, e por fim por meio inclusive de uma influência sobre um soberano, do qual esperava que fosse transformar tal legislação em realidade — tentativa que quase lhe custou a vida e a liberdade. Entre tais tentativas está também a fundação da academia, que se efetuou tanto contra a polis — enquanto uma delimitação ao âmbito político original — como também, por outro lado, no sentido justamente desse espaço político específico grego-ateniense — ou seja, contanto que o conversar-um-com-o-outro se tornasse seu verdadeiro conteúdo. Daí, junto com o âmbito da liberdade da coisa política, surgiu um novo espaço da liberdade muitíssimo real, com repercussão até hoje na forma de liberdade das universidades e de liberdade de ensino acadêmico. Mas essa liberdade, se bem que formada à imagem de uma liberdade originalmente experimentada como política e entendida por Platão como um possível núcleo ou ponto de partida, a partir do qual devia ser determinado o estar junto de muitos no futuro, trouxe, de fato, ao mundo um novo conceito de liberdade. Ao contrário de uma liberdade puramente filosófica e válida apenas para os indivíduos, tão distante de tudo que é político, que só o corpo do filósofo habita a polis, essa liberdade de poucos tem completa natureza política. O espaço de liberdade da academia devia ser um substituto válido para a praça do mercado, a ágora, o espaço de liberdade central da polis. Para poder existir como tal, a minoria precisava exigir, para sua atividade, seu conversar entre si, ser dispensada das atividades da polis e da ágora, da mesma maneira que os cidadãos de Atenas eram dispensados de todas as atividades que serviam ao mero ganha-pão. Eles precisavam ser libertados da política no sentido dos gregos, para serem livres para o espaço de liberdade acadêmica, da mesma maneira como os cidadãos precisavam ser libertados das necessidades da vida para a política. E precisavam sair do espaço da própria coisa política, a fim de poder entrar no espaço da ‘coisa acadêmica’, da mesma maneira como os cidadãos precisavam sair da esfera privada de sua casa para se deslocarem para a praça do mercado. Assim como a libertação do trabalho e das preocupações com a vida eram pressupostos necessários para a liberdade da coisa política, a libertação da política tornou-se pressuposto necessário para a liberdade da coisa acadêmica.

Mas aqui deve-se notar que a liberdade da coisa acadêmica (em Platão, notadamente, mas também nos seus “sucessores”) erigiu-se contra a liberdade da polis num sentido negativo e até certo ponto tenebroso. Não foi por acaso que na academia de Platão foram formados pelo menos nove tiranos. A academia platônica era um clube de antidemocratas, que conspirava contra a democracia, em Atenas e em várias cidades vizinhas ou próximas. Foi um empreendimento anti-sofista (e daí o ódio de Sócrates e Platão aos sofistas), que faziam “ciência” na praça, mantendo-se vulneráveis ao outro-imprevisível (e não no espaço fechado, murado, da fraternidade pitagórico-platônica, que só admitia a entrada de escolhidos).

Nesse contexto, ouvimos pela primeira vez que a política é algo necessário, que a coisa política em sua totalidade é apenas um meio para um objetivo mais elevado, situado fora de si mesmo, e que em conseqüência precisa ser justificado no sentido de tal estabelecimento de objetivo. Torna-se então surpreendente que o paralelismo que recém-estabelecemos, em conseqüência do qual a liberdade acadêmica simplesmente parece substituir a política e que polis e academia se comportassem entre si como casa e polis, não é mais válido aqui. Pois, a casa (e o provimento da vida que ocorria em sua esfera) jamais foi justificada como um meio para um objetivo, como se, falando aristotelicamente, a vida fosse um simples meio para a ‘boa vida’ só possível na polis. Isso não era possível nem necessário porque, dentro do mero âmbito da vida, a categoria objetivo-meio não pode chegar a ser empregada: é evidente que o objetivo da vida e de todas as atividades de trabalho relacionadas com ela é a manutenção da vida e nada mais, e o impulso para o manter-se-em-vida com trabalho não está situado do lado de fora da vida, mas sim contido no processo da vida que nos obriga a trabalhar, assim como nos obriga a comer. Se se quiser entender essa relação entre casa e polis no âmbito do objetivo-meio, então a vida garantida na casa não é o meio para um objetivo mais elevado da liberdade política, senão que o domínio das necessidades vitais e a dominação realizada sobre o trabalho escravo são o meio da libertação para a coisa política.

Tal libertação através do domínio, a libertação de poucos para a liberdade do filosofar através da dominação sobre muitos, foi proposta, de fato, por Platão na forma do rei-filósofo, mas essa proposta não foi admitida por nenhum filósofo depois dele e permaneceu sem nenhum efeito político. Em contrapartida, a fundação da academia, justamente porque não objetivava sobretudo a educação para política, como as escolas dos sofistas e oradores, teve uma importância extraordinária para aquilo que ainda entendemos por política. O próprio Platão ainda podia acreditar que um dia a academia fosse conquistar e dominar a polis. Para seus sucessores, para os filósofos que vieram a seguir, só continuou determinante o fato de a academia garantir institucionalmente um espaço de liberdade para a minoria, e essa liberdade ser entendida desde o início em completa contradição com a liberdade política da praça do mercado; ao mundo das opiniões mentirosas e do falar enganador devia ser oposto um mundo contrário da verdade e do falar adequado à verdade; à arte da retórica, a ciência da dialética. O que se impôs e até hoje determina nossa concepção de liberdade acadêmica não é a esperança de Platão de a partir da academia determinar a polis, a partir da filosofia determinar a política, mas sim o afastamento da polis, a apolitia (22), a indiferença contra a política.

Mas ocorre que a experiência da academia platônica teve, de facto, forte efeito político (ou antipolítico), contra a democracia. A academia dispensava, sim, uma educação contra a política, não apenas apolítica.

Como escreve Karl Popper (1945), no primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos, “na prática, Platão não mostrou demasiado sucesso como seletor de líderes políticos. Tenho em mente não tanto o decepcionante resultado de sua experiência com Dionísio, o Moço, tirano de Siracusa, como a participação da Academia de Platão na vitoriosa expedição de Dio contra Dionísio. Dio, famoso amigo de Platão, foi apoiado nessa aventura por certo número de membros da Academia de Platão. Um deles era Calipo, que se tomou o companheiro de maior confiança de Dio. Dio, depois que se fez tirano de Siracusa, mandou assassinar Heráclides, seu aliado (e talvez seu rival). Pouco mais tarde, foi ele próprio assassinado por Calipo, que usurpou a tirania para perdê-la treze meses após. (Foi ele, por sua vez, assassinado pelo filósofo pitagórico Leptines.) Mas este acontecimento não foi o único dessa espécie na carreira de Platão como mestre. Clearco, um dos discípulos de Platão (e de Isócrates), fez-se tirano de Heracléia, depois de haver-se apresentado como um líder democrático. Foi assassinado por um seu parente, Quíon, outro membro da Academia de Platão. (Não podemos saber como Quíon, que alguns retratam como um idealista, teria agido, pois foi logo morto.) Estas e outras experiências similares de Platão — que se podia gabar de um total de pelo menos nove tiranos entre seus discípulos e companheiros de outrora — lançam luz sobre as dificuldades peculiares relacionadas com a seleção de homens que devam ser investidos de poder absoluto… A Academia era famosa por educar tiranos. Entre os discípulos de Platão estavam Cairon, mais tarde tirano de Pele, Eurasto e Corisco, tiranos de Esquépsis (perto de Atarneu), e Hermias, mais tarde tirano de Atarneu e Assos (Cf. Aten., XI, 508, e Estrabão, XIII, 610). Hermias, segundo algumas fontes, foi discípulo direto de Platão; de acordo com a chamada “ Sexta Carta Platônica”, cuja autenticidade é discutivel, talvez ele fosse apenas um admirador de Platão disposto a aceitar seus conselhos. Hermias tornou-se protetor de Aristóteles e do terceiro diretor da Academia, o discípulo de Platão, Xenócrates. Quanto a Perdicas III e suas relações com o aluno de Platão Eufaco, ver Aten., XI, 505 sgs., onde também se fala de Calipo como discípulo de Platão”.

O decisivo nesse contexto não é tanto o conflito entre a polis e os filósofos — nos quais mais tarde teremos de entrar em detalhes (23) — mas sim não poder persistir a simples indiferença de um âmbito em relação ao outro, na qual o conflito pareceu solucionado por um momento, porquanto impossível o espaço da minoria e sua liberdade — se bem que era também um âmbito público e não-privado — desempenhar as duas funções, assim como a política incluía todos os que estavam aptos para a liberdade. É evidente que a minoria, sempre que se separou da maioria — seja na forma de uma indiferença acadêmica, seja na forma de um domínio oligárquico —, caiu numa dependência da maioria, em todas as questões da vida em comum nas quais realmente se tinha de negociar. Assim, essa dependência no sentido de uma oligarquia platônica pode ser entendida como obrigação da maioria em cumprir as ordens da minoria, quer dizer, assumir o verdadeiro agir; nesse caso, a dependência da minoria foi superada pelo domínio, assim como a dependência dos livres em relação às necessidades da vida pôde ser superada por meio de seu domínio sobre uma casa de escravos, e a liberdade basear-se no poder. Ou então, a liberdade da minoria é de natureza meramente acadêmica e assim torna-se evidente ser dependente da boa vontade do corpo político que a garante. Mas em ambos os casos a política não tem mais a ver com a liberdade, não sendo, portanto, política no sentido grego; refere-se muito mais a tudo que garante a própria existência dessa liberdade, quer dizer, à administração e ao provimento da vida na paz e à defesa na guerra. Assim, o âmbito de liberdade da minoria não apenas tem o trabalho de se impor contra o âmbito da coisa política determinada pela maioria; além disso, sua mera existência depende da maioria; a existência simultânea da polis é uma necessidade vital para a existência da academia, seja a existência da platônica ou da universidade posterior. Com isso, é evidente que a coisa política em sua plenitude é empurrada um degrau para baixo, que faz parte da política [da polis] da conservação da vida; torna-se uma necessidade por um lado em contradição com liberdade, mas por outro forma seu pressuposto.

Ao mesmo tempo, aparecem, de maneira inegável, no ponto central de todo esse âmbito, aqueles aspectos da coisa política que originalmente, ou seja, no auto-entendimento da polis, representavam fenômenos marginais. Para a polis, o sustento da vida e a defesa não eram o ponto central da vida política, e só eram políticos no verdadeiro sentido desde que as conclusões sobre eles não fossem decretadas de cima para baixo, mas sim se concebidas em comum no conversar de um com o outro e no convencer mútuo. Mas justamente isso tornou-se indiferente na justificação da política resultante do ponto de vista da liberdade da minoria. Só era decisivo o fato de todas as questões da existência, das quais a minoria não fosse o senhor, serem deixadas por conta do âmbito da coisa política. É verdade que com isso ainda se nota uma relação entre política e liberdade, mas apenas uma relação e não uma identidade. A liberdade enquanto objetivo final da política estabelece as fronteiras políticas; mas, o critério do agir dentro do próprio âmbito político não é mais a liberdade, mas sim a competência e a capacidade de assegurar a vida.

Essa degradação da política a partir da filosofia, tal como conhecemos desde Platão e Aristóteles, depende por completo da distinção entre maioria e minoria. Tem um efeito extraordinário, demonstrável até nossos dias, sobre todas as respostas teóricas para a pergunta sobre o sentido da política. Mas em termos políticos não realizou mais que a apolitia das escolas filosóficas da Antiguidade e a liberdade de ensino acadêmico das universidades. Em outras palavras, sua eficiência política sempre estendeu-se apenas à minoria para a qual a autêntica experiência filosófica era decisiva em sua estupenda eficácia — uma experiência que, de acordo com seu próprio sentido, levava de fato para fora do âmbito político da vida em comum e da conversa em comum.

Talvez não só isso, ou seja, não apenas apolitia, mas – sobretudo no caso de Platão – antipolítica mesmo, quer dizer, antidemocracia. Platão, já se sabe, era um pensador político totalitário e racista. Aristóteles, por sua vez, também não era um democrata. Se fosse, não teria aceitado ser conselheiro de estado de seu antigo colega de academia, Hermias, um dos nove discípulos de Platão que viraram tiranos (posto que educados para tal na academia), no caso, tirano de Atarneu e Assos (e até casou-se com Pítia, sua filha adotiva) – como já foi, aliás, mencionado em comentário anterior. Se tivesse profundas convicções democráticas, Aristóteles também não teria aceitado o convite do rei Filipe II, da Macedônia, para ser tutor de seu filho, que mais tarde virou um autocrata conquistador, quer dizer, um predador, que ficou conhecido como Alexandre, O Grande (e continuou se aconselhando com Aristóteles).

A degradação da política (quer dizer, da democracia) a partir da filosofia tem a ver, como já foi assinalado acima, com a própria filosofia, com a sua forma patriarcal de pensar e lidar com o mundo da experiência.

Contudo, a razão pela qual não prevaleceu esse efeito teórico — pelo qual faz-se valer, até hoje, no auto-entendimento da política e dos políticos, a concepção segundo a qual a coisa política é justificada e precisa ser justificada através de objetivos mais elevados, situados fora da coisa política (ainda que esses objetivos sejam, nesse meio tempo, como é natural, de natureza muitíssimo mais mesquinho do que eram originalmente) reside na negação e na reinterpretação da política, semelhantes apenas no exterior, mas na verdade moldadas de maneira bem diferente e muito mais radical, realizadas pelo cristianismo. Ao mesmo tempo, pode parecer à primeira vista que o cristianismo primitivo reivindicava para todos a mesma liberdade de certo modo acadêmica da política, que as escolas filosóficas da Antiguidade solicitavam para si. Tal impressão é fortalecida se considerarmos que aqui também a negação da coisa política andava de mãos dadas com o restabelecimento de um espaço existente ao lado do político, no qual os fiéis se reuniam primeiro numa comunidade e depois numa Igreja. Porém, esse paralelismo só se impôs de cheio com o advento do Estado secularizado no qual, aliás, a liberdade acadêmica e a religiosa têm estreita ligação, desde que lhes seja garantida pública e juridicamente a liberdade da política pelo corpo político. Uma vez entender-se por política tudo aquilo necessário para o convívio dos homens, a fim de lhes possibilitar, enquanto indivíduos ou em comunidade, uma liberdade situada além da política e da necessidade justifica-se de fato que se meça o grau de liberdade de cada corpo político pela liberdade acadêmica e religiosa por ele tolerada, ou seja, pela extensão, por assim dizer, do espaço de liberdade não-política que contém e mantém.

Justamente esse efeito político já direto da liberdade da política, da qual a liberdade acadêmica se aproveitou de maneira extraordinária, remonta a outras experiências mais radicais — no que diz respeito à coisa política — do que as dos filósofos. No caso dos cristãos não se tratava de se produzir um espaço da minoria junto ao espaço da maioria, tampouco de se fundar um contra-espaço para todos contra o espaço oficial, mas sim que um espaço público, não importava se para a minoria ou para a maioria, era insuportável por causa de sua publicidade. Quando Tertuliano diz que “para nós, os cristãos, nada é mais estranho que os assuntos públicos” (24), a essência encontra-se no caráter público. Costuma-se entender, sem dúvida com razão, a negação do cristianismo antigo de participar dos assuntos públicos a partir da perspectiva romana de uma divindade que rivalizava com os deuses de Roma, ou a partir da visão do cristianismo primitivo de uma expectativa escatológica, segundo a qual estaria dispensada toda a preocupação com o mundo. Com isso, não se notam as verdadeiras tendências antipolíticas da mensagem cristã e a experiência que lhe serve de base, com aquilo que é essencial para o estar junto dos homens. Não há dúvida de que no sermão de Jesus o ideal da bondade desempenha o mesmo papel que o ideal da sabedoria nas doutrinas de Sócrates: Jesus recusa-se a ser chamado de bom pelos discípulos, no mesmo sentido em que Sócrates recusa ser apresentado como sábio pelos alunos. Porém, a bondade precisa ser escondida, não deve manifestar-se como aquilo que é. Uma comunidade de homens, cuja opinião seja que com toda seriedade todos os assuntos humanos devem ser regulamentados no sentido da bondade; que, por conseguinte, não tem medo de pelo menos tentar amar seus inimigos e de pagar o mal com o bem; que em outras palavras acha decisivo o ideal da santidade — não apenas para a salvação da própria alma no afastamento dos homens, mas para a própria regulamentação dos assuntos humanos —, não pode fazer outra coisa que se manter afastada do público e de sua luz. Ela precisa agir em segredo porque o ser-visto e ser-ouvido geram forçosamente aquele brilho e luz, nos quais toda a santidade — que pode apresentar-se como quiser — torna-se, de imediato, hipocrisia.

Assim, no caso do afastamento dos primeiros cristãos da política não se tratava, como no caso do afastamento dos filósofos, de um abandono do âmbito dos assuntos humanos. Tal afastamento, comum nas formas extremas de vida eremita nos primeiros séculos da era cristã, estaria em retumbante contradição com o sermão de Jesus e foi sentida bem cedo como uma heresia pela Igreja. Tratava-se muito mais de uma proposição da mensagem cristã para um caminho de vida, no qual os assuntos humanos deviam ser deslocados do âmbito público para um âmbito intermédio entre homem e homem. O fato de ter-se identificado e talvez confundido esse âmbito intermédio com a esfera privada, porquanto em evidente oposição ao âmbito público-político, encontra-se na natureza da situação histórica. A esfera privada foi entendida através de toda a Antiguidade grego-romana como única alternativa para o espaço público, sendo que, para a interpretação de ambos os espaços, foi decisiva a oposição entre aquilo que se queria mostrar para todo o mundo e a maneira como se queria aparecer diante de todo o mundo e aquilo que só podia existir em segredo e, por conseguinte, precisava continuar a salvo. Em termos políticos foi decisivo que o cristianismo procurasse o recolhimento e, nesse recolhimento, exigisse co-assumir aquilo que sempre foi coisa do público (25).

Nesse contexto, não é necessário entrarem considerações de como se conseguiu, dentro do decorrer histórico, transformar o caráter consciente e radicalmente antipolítico do cristianismo, de maneira a tornar possível uma espécie de política cristã; isso foi — abstraindo-se a necessidade histórica propiciada pela decadência do Império Romano — obra de um único homem, Agostinho, e possibilitada pela extraordinária tradição ainda bem viva nele do pensamento romano. A reinterpretação da coisa política foi de importância decisiva para toda a tradição do Ocidente e, na verdade, não apenas para a tradição das teorias e do imaginário, mas sim para os marcos nos quais acontecia então a verdadeira história política. Foi então que o corpo político também aceitou a concepção de que a política é um meio para um objetivo mais elevado e que se trata da liberdade dentro da política apenas porque a coisa política tem de libertar determinadas áreas. Só que a liberdade da política não é mais uma questão da minoria, mas sim, ao contrário, tornou-se uma questão da maioria que não devia nem precisava preocupar-se com os negócios do governo, ao passo que foi imposto à minoria o fardo de se preocupar com a ordem política necessária aos assuntos humanos. No entanto, esse fardo não resultou, como em Platão e nos filósofos, da situação humana básica da pluralidade, que liga a minoria à maioria, o um a todos. Essa pluralidade é, ao contrário, afirmada, e o motivo que determina a minoria assumir sobre os próprios ombros o fardo do governar não é o medo de ser dominado por piores. Agostinho exige expressamente que a vida dos santos também se passe numa “sociedade” e supõe com o cunho de uma Civitas Dei, um Estado de Deus, que a vida dos homens também é determinada politicamente em condições não-terrenas — deixando em aberto se a coisa política também é um fardo no Além. Em todo caso, o motivo para assumir nos próprios ombros o peso da coisa política terrena é o amor ao próximo e não o medo dele.

Essa transformação do cristianismo realiza-se no pensamento e ação de Agostinho (26), que no final restaurou a Igreja, que secularizou o medo cristão em segredo ao ponto de os fiéis constituírem no mundo um espaço público totalmente novo e determinado pela religião — o qual, embora público, não era político. O caráter público desse espaço dos fiéis — o único no qual, através de toda a Idade Média, as necessidades políticas específicas do homem puderam ser levadas em conta — sempre foi ambíguo; era antes de mais nada um local de reunião e isso significa não apenas um prédio no qual homens se reuniam, mas um espaço que foi construído expressamente como reunidor de homens. Como tal, porém, não devia tornar-se um espaço de aparição, devendo ser preservado o conteúdo original da mensagem cristã. Ficou provado ser quase impossível impedir isso, visto que está na natureza do caráter público, constituído pela reunião de muitos, estabelecer-se como espaço de aparição. A política cristã sempre esteve diante da dupla tarefa de, por um lado, assegurar-se através da influência sobre a política secular, de que o local de reunião não político dos fiéis esteja protegido de fora, e, por outro lado, impedir que um local de reunião se torne um espaço de aparição, e com isso que a Igreja se torne um poder secular-mundano, entre outros. Daí verificou-se que a vinculação com o mundo correspondente a tudo espacial e o faz aparecer e parecer, é muito mais difícil de se combater do que a reivindicação de poder do secular, que se apresenta de fora para dentro. Quando a Reforma conseguiu afastar da Igreja tudo aquilo que tem a ver com aparência e manifestação, transformando-a de novo em local de reunião para aqueles que, no sentido dos Evangelhos, viviam no recolhimento, desapareceu também o caráter público desses espaços da Igreja. Ainda que ao movimento da Reforma não se tenha seguido a secularização de toda a vida pública, da qual ela é vista, com frequência, como precursora, e ainda que, no rastro dessa secularização, a religião não se tenha tornado coisa privada, a Igreja protestante dificilmente poderia ter assumido a tarefa de oferecer aos homens um substituto para a cidadania da Antiguidade — tarefa que, sem dúvida, a Igreja católica realizou durante longos séculos após o declínio do Império Romano.

Não importa como sejam essas possibilidades e alternativas hipotéticas, o decisivo é que desde o fim da Antiguidade e com o nascimento de um espaço eclesiástico-público, a política secular continuou vinculada às necessidades da vida resultantes do convívio dos homens e com a defesa de uma esfera mais elevada, que até o fim da Idade Média estava espacial e palpavelmente na existência das igrejas. A Igreja precisa da política e, na verdade, tanto da política mundana dos poderes seculares como da própria política religiosa ligada ao âmbito eclesiástico, para poder manter-se e afirmar-se na terra e neste mundo do lado de cá — enquanto Igreja visível, ou seja, ao contrário da invisível cuja existência apenas acreditada continuou sem ser molestada, em absoluto, pela política. A política precisava da Igreja — não apenas da religião, mas sim da existência espacial palpável das instituições religiosas —, a fim de provar sua razão de ser mais elevada, por causa de sua legitimação. O que mudou com o despontar dos tempos modernos não foi uma modificação de função da coisa política; não é como se, de repente, à política fosse adjudicada uma nova dignidade própria só dela. O que mudou foram, pelo contrário, os âmbitos pelos quais a política parecia ser necessária. O âmbito do religioso recaiu no espaço do privado, ao passo que o âmbito da vida e de suas necessidades — que tanto na Antiguidade como na Idade Média valera por excelência como âmbito privado — recebeu nova dignidade e, na forma da sociedade, apareceu em público.

Nisso, devemos diferenciar politicamente entre a democracia igualitária do século XIX para a qual a co-participação de todos no governo, seja em que forma for, é sempre um sinal imprescindível da liberdade do povo, e o despotismo esclarecido do começo dos tempos modernos para o qual valia que “liberty and freedom consists in having the government of those laws by wich their life and their goods may be most their own: ‘tis not for having share in government, that is nothing pertaining to ‘em” (27). Em ambos os casos é obrigação do governo em cujo espaço de ação cai a coisa política a partir de então, proteger a livre produtividade da sociedade e a segurança do indivíduo em seu âmbito privado. Não importa como seja a relação entre cidadão e Estado: liberdade e política continuam separadas uma da outra da maneira mais categórica, e ser livre no sentido de uma atividade positiva a se desenvolver livremente está localizado num âmbito que trata de coisas que, de acordo com sua natureza, não podem ser, em absoluto, comuns a todos, ou seja, trata da vida e da propriedade, quer dizer, trata daquilo que é próprio da maioria. O fato de essa esfera do próprio, do idion, cujo permanecer nela era tido como limitação ‘idiota’ pela Antiguidade, ampliasse enormemente através do novo fenômeno de um espaço social e de forças produtivas sociais e não-individuais, não altera em nada o estado de coisas, segundo o qual as atividades necessárias à manutenção da vida e da propriedade, bem como para a melhoria da vida e o aumento da propriedade, estão subordinadas à necessidade e não à liberdade. O que os tempos modernos esperavam de seu Estado e o que esse Estado fez, de fato, em grande escala foi uma libertação dos homens para o desenvolvimento das forças produtivas sociais, para a produção comum de mercadorias necessárias para uma vida ‘feliz’.

Essa concepção de política dos tempos modernos para a qual o Estado é uma função da sociedade ou um mal necessário para a liberdade social, impôs-se, tanto em termos práticos como teóricos contra as concepções moldadas de maneira bem diferente e inspiradas pela Antiguidade, de uma soberania do povo ou da nação, que se manifestaram em todas as revoluções dos tempos modernos. Só para essas revoluções, da americana e francesa do século XVIII até a revolução húngara mais recente, coincidem de maneira direta o ter-participação-no-governo e o ser-livre. Mas essas revoluções e as experiências diretas nelas verificadas sobre as possibilidades do agir político não puderam, pelo menos até hoje, transformar-se em nenhuma forma de Estado. Desde o advento do Estado nacional é opinião corrente ser obrigação do governo proteger a liberdade da sociedade para dentro e para fora, se preciso por meio da força. A participação dos cidadãos no governo, qualquer que seja a forma, só é tida como necessária para a liberdade porque o Estado, que necessariamente precisa dispor de meios de força, precisa ser controlado pelos governados no exercício dessa força. Acrescente-se a informação de que, com o estabelecimento de uma esfera por mais que limitada do agir político, surge um poder do qual a liberdade só pode ser protegida se seu exercício for fiscalizado o tempo todo.

O que hoje entendemos por governo constitucional, não importa se de natureza monárquica ou republicana, é, em essência, um governo controlado pelos governados, restringido em suas competências de poder e em sua aplicação de força. É indiscutível que a restrição e controle ocorrem em nome da liberdade, tanto da sociedade como do indivíduo; trata-se de estabelecer limites, os mais amplos possíveis e necessários, para o espaço estatal do governar, a fim de possibilitar a liberdade fora de seu espaço. Portanto, não se trata, em todo caso, de possibilitar a liberdade de agir e de atuar politicamente; ambos continuam sendo prerrogativa do governo e dos políticos profissionais que se oferecem ao povo como seus representantes no sistema de partidos, para representar seus interesses dentro do Estado e, se for o caso, contra o Estado. A relação entre política e liberdade, em outras palavras, também é entendida nos tempos modernos de modo a ser a política um meio e a liberdade seu objetivo mais elevado; portanto, a relação em si não mudou, embora o conteúdo e a extensão da liberdade se tenham modificado de forma bastante extraordinária. Assim, a pergunta sobre o sentido da política é respondida por categorias e conceitos que são extraordinariamente antigos e, por conseguinte também extraordinariamente veneráveis. Embora os tempos modernos se diferenciem, de forma tão decisiva, em seus aspectos políticos, de todos os tempos anteriores, assim como também nos aspectos espirituais e materiais. Só o fato da emancipação das mulheres e da classe operária, quer dizer de grupos de homens que nunca antes podiam mostrar-se na vida pública, dá um rosto radicalmente novo a todas as questões políticas.

Aquilo que concerne a essa determinação da política como um meio para o objetivo de uma liberdade situada fora de seu âmbito também vale para os tempos modernos, embora nós só possamos atestar isso numa medida bastante limitada. Ela é, entre as respostas modernas para a pergunta sobre o sentido da política, aquela que continua mais estreitamente ligada à tradição da filosofia política ocidental e, dentro do pensamento estatal-nacional, mostra-se da maneira mais clara no princípio do primado da política externa, abordado por Ranke, mas que serve de base a todos os Estados nacionais (28). Muito mais característico do caráter igualitário das formas modernas de Estado e da emancipação de operários e mulheres ocorrida nos tempos modernos, na qual, falando em termos políticos, se manifesta seu aspecto mais revolucionário, é uma definição de Estado derivada do primado da política interna, segundo a qual “o Estado enquanto portador do poder é uma instituição indispensável para a sociedade” (Theodor Eschenburg) (29). Entre essas duas concepções — entre a opinião de o Estado e a coisa política serem uma instituição indispensável para a liberdade, e a opinião que vê nele uma instituição indispensável para a vida — está uma contradição intransponível da qual, aliás, os defensores dessas teses quase não têm consciência. Trata-se de uma grande diferença se a liberdade ou a vida é cotada como o bem com valor mais alto —como parâmetro pelo qual se orienta e se julga todo o agir político. Se entendemos por política algo que, não importa qual a escala, surgiu em sua essência a partir da polis e continua ligado a ela, então forma-se, no acoplamento entre política e vida, uma contradição interna que revoga e arruína justamente a coisa política específica.

Tal contradição pode estar na base da desconsolidação democrática atual.

Essa contradição manifesta-se da maneira mais palpável porque sempre foi prerrogativa da política exigir, em certas circunstâncias, o sacrifício da vida dos homens que nela participam. Só que, é claro, essa exigência deve ser entendida no sentido de exigir-se do indivíduo que sacrifique sua vida para o processo de vida da sociedade; de fato, existe aqui uma relação que pelo menos impõe um limite para o risco de vida: ninguém pode ou deve arriscar sua vida se com isso colocar em perigo a vida da Humanidade. Ainda voltaremos a examinar essa relação, que como tal chegou à nossa consciência porque só agora dispomos da possibilidade de pôr um fim à vida da Humanidade e de toda a vida orgânica (30); na verdade, quase não existe uma categoria política e quase não existe um conceito político tradicional que, medido nessa mais jovem possibilidade, não se tenha demonstrado ultrapassado na teoria e inaplicável na prática e, na verdade, justamente porque, em certo sentido, o que está em jogo hoje, pela primeira vez, também na política externa, é a vida, ou seja, a sobrevivência da Humanidade.

Mas essa relação da própria liberdade com a sobrevivência da Humanidade não risca do mapa a oposição entre liberdade e vida, na qual se assentou toda a coisa política e que continua decisiva para todas as virtudes especificamente políticas. Até se poderia dizer, com muito direito, que é esse próprio fato, de que hoje o que está em jogo na política é a existência nua e crua de todos, o sinal mais evidente da calamidade em que nosso mundo caiu — calamidade que, entre outras coisas, consiste em a política ameaçar ser riscada da face da Terra. Pois o risco a ser corrido por aquele que lida na esfera política — na qual deve levar tudo a conselho, antes de sua vida (31), — diz respeito não à vida da sociedade ou da nação ou do povo, para o qual ele sacrificaria sua vida; diz respeito muito mais à liberdade, tanto a própria como a do grupo ao qual o indivíduo pode pertencer, e com ela a segurança da existência do mundo no qual esse grupo ou esse povo vive, e que ela construiu no trabalho de gerações para encontrar um alojamento seguro e calculado a longo prazo para agir e conversar — quer dizer para as verdadeiras atividades políticas (32). Em circunstâncias normais, ou seja, nas circunstâncias que eram decisivas na Europa desde a Antiguidade romana, a guerra era de fato apenas a continuação da política por outros meios e isso significa que ela sempre podia ser evitada se um dos adversários decidisse aceitar as exigências do outro. Tal aceitação poderia custar a liberdade, mas não a vida.

Essas circunstâncias, como todos sabemos, hoje não existem mais; quando olhamos para trás, elas nos parecem uma espécie de paraíso perdido. Mas se o mundo em que vivemos agora também não deriva e nem se explica — de maneira causal ou no sentido de um processo automático — pelos tempos modernos, mesmo assim ele cresceu no solo desses tempos modernos. No que concerne à coisa política, isso significa que tanto a política interna para a qual o objetivo mais elevado era a própria vida como a política externa que se orientava pela liberdade como o bem mais elevado, viam na força e no agir violento seu verdadeiro conteúdo. Por fim, era decisivo que o Estado se organizasse, de fato, como ‘portador da força’ — não importando se o objetivo dos meios da força eram determinados pela vida ou pela liberdade. Em todo caso, a pergunta sobre o sentido da política diz respeito hoje à conveniência ou inconveniência desses meios públicos de força; ela surge do simples fato de a força que devia proteger a vida ou a liberdade tornar-se tão terrivelmente poderosa que ameaça não apenas a liberdade, mas sim a vida. Como é justamente o aumento dos meios estatais de força que põe em perigo o processo de vida de toda a Humanidade, a resposta — em si já bastante duvidosa — que os tempos modernos oferecem à pergunta sobre o sentido da política tornou-se hoje duplamente duvidosa.

A culpa por ter sido possível esse monstruoso aumento dos meios de força e extermínio cabe não apenas às invenções técnicas, mas também ao fato de que o espaço público-político tornou-se um lugar de força, não apenas no auto-entendimento teórico dos tempos modernos, mas também na realidade brutal. Só por isso foi possível o progresso técnico transformar-se sobretudo num progresso das possibilidades de extermínio mútuo. Como em toda parte onde os homens agem em comum, surge o poder e como o agir em comum dos homens acontece essencialmente no espaço político, o poder potencial inerente a todos os assuntos humanos se fez valer num espaço dominado pela força. Com isso, surge a ilusão de que poder e força seriam a mesma coisa; e nas condições modernas, esse é realmente o caso em amplas áreas. Porém, poder e força não são a mesma coisa quanto à sua origem e sentido original; em certos sentidos, chegam a ser antagonismos. Mas onde a força, que é um fenômeno do indivíduo ou da minoria, liga-se ao poder, que só é possível entre muitos, surge um aumento monstruoso do potencial de força — por sua vez, provocado pelo poder de um espaço organizado, mas que depois, como todo potencial de força, aumenta e se desenvolve às custas do poder.

A pergunta sobre que papel cabe à força no trato interestatal dos povos, e sobre como dele se pode eliminar o uso dos meios de força, está hoje, desde a invenção das armas atômicas, no primeiro plano de toda a política. Mas o fenômeno do tornar-se-superior da força às custas de todos os outros fatores políticos é mais antigo; já se mostrou na Primeira Guerra Mundial e nas grandes batalhas materiais no teatro de guerra ocidental. O notável é que esse novo papel funesto de uma força que se desenvolve de maneira automática e aumenta sem cessar, de parte de todos os participantes, pegou os povos, os estadistas e a opinião pública de forma totalmente despreparada e de surpresa. De fato, o aumento da força no espaço público-estatal consumou-se pelas costas dos homens atuantes, por assim dizer — num século que supostamente é tido como um dos mais pacíficos e menos violentos da História. Os tempos modernos que viam com mais firmeza do que nunca a política apenas como um meio para a conservação e fomento da vida da sociedade e, em conseqüência disso, desenvolveu um esforço para limitar as competências da coisa política ao mais necessário, puderam imaginar, não sem razão, que lidariam com o problema da força de melhor forma que todos os séculos anteriores. O que fizeram, de fato, foi eliminar, por completo, a violência e o domínio direto do homem sobre o homem da esfera na vida social que se alarga sem cessar. A emancipação da classe operaria e das mulheres, quer dizer, de duas categorias que em toda a história pré-moderna foram submetidas à força, indica, da maneira mais clara, o ponto culminante desse desenvolvimento.

Nisso queremos deixar em suspenso por enquanto se essa redução da violência na vida da sociedade pode ser equiparada, de fato, com um ganho de liberdade. Em todo caso, no sentido da tradição política, o não-ser-livre é duplamente determinado. Ele existe quando se é submetido à força de um outro, mas também existe, e até mesmo mais originalmente, quando se está sujeito à nua e crua necessidade da vida. A atividade inerente à obrigação com a qual a própria vida nos obriga a procurar o necessário é o trabalho. Em todas as sociedades pré-modernas, o homem podia libertar-se desse trabalho, forçando outros homens a trabalharem para ele, quer dizer, por meio da força e da dominação. Na sociedade moderna, o trabalhador não está sujeito a nenhuma força nem a uma dominação, ele é forçado pela necessidade imediata inerente à própria vida. Portanto, aqui a necessidade substituiu a força e é duvidoso qual coação é mais repugnante, a coação da força ou a coação da necessidade. Além disso, todo o desenvolvimento da sociedade só vai até ali, ou seja, até o momento em que a automação abolir realmente o trabalho, tornando todos os seus membros ‘trabalhadores’ na mesma medida — homens cuja atividade, não importa em que consista, serve sobretudo para obter o necessário para a vida. Também nesse sentido, o afastamento da força da vida da sociedade teve como conseqüência, em primeiro lugar, o fato de ser concedido um espaço muito maior do que antes à necessidade com a qual a vida coage a todos. Na verdade, a vida da sociedade é dominada não pela liberdade, mas sim pela necessidade; e não se trata de um acaso o fato de o conceito de necessidade ter-se tornado tão dominante em todas as modernas filosofias da história, nas quais o pensamento dos tempos modernos se orienta filosoficamente e procura chegar a um autoconhecimento.

O afastamento da força para fora do âmbito do domicílio e da esfera semipública da sociedade ocorreu de forma totalmente consciente; para poder existir sem força na vida cotidiana, o homem fortaleceu a força da mão pública, do Estado, da qual acreditava poder continuar senhor por tê-la definido expressamente como um mero meio para o objetivo da vida social, do livre desenvolvimento das forças produtivas. Não ocorreu aos tempos modernos que os próprios meios de força poderiam tornar-se ‘produtivos’, ou seja, aumentar tanto (e mais ainda até) quanto as outras forças produtivas da sociedade; isto porque para ela a verdadeira esfera do produtivo coincidia com a sociedade e não com o Estado. O Estado era tido como especificamente improdutivo e, em caso extremo, como um fenômeno parasitário. Justamente porque se limitou a força ao âmbito estatal que, de mais a mais, estava sujeito, nos governos constitucionais, ao controle da sociedade através do sistema de partidos, acreditou-se ter limitado ao mínimo a própria força, mínimo esse que como tal permaneceria constante.

Sabemos que ocorreu o contrário. A época mais pacífica e menos violenta, vista em termos históricos, acarretou o maior e mais terrível desenvolvimento dos meios de força. E isso só é um paradoxo aparente. O que não se calculou foi a combinação específica de força e poder que só poderia realizar-se na esfera estatal-pública, porque é nela que os homens agem em conjunto e geram poder. Não importa quão estreitas sejam as competências desse âmbito, nem com que exatidão se fazem suas fronteiras através de constituição e outros controles; o simples fato de que ele deve continuar sendo um âmbito público-político produz poder: e esse poder deve tornar-se uma calamidade se concentrado quase exclusivamente em torno da força, como é o caso dos tempos modernos, porque essa força desloca-se da esfera privada do indivíduo para a esfera pública. Por mais absoluta que possa ter sido a força do dono da casa sobre sua família no sentido mais amplo, nos tempos pré-modernos — e, com certeza, ela foi grande o bastante para designar o governo da casa de despótico no sentido pleno da palavra —, essa força estava sempre limitada ao indivíduo que a exercia; era uma força totalmente impotente que continuava estéril tanto econômica como politicamente. Por mais funesto que o exercício da força do dono da casa fosse para os oprimidos, os próprios meios de força não poderiam prosperar nessas circunstâncias; não poderiam tornar-se um perigo para todos porque não havia um monopólio da força.

Vimos que a concepção de que a coisa política é um império dos meios, cujo objetivo e parâmetro devem ser procurados fora deles é extraordinariamente antiga e também extraordinariamente venerável. Contudo, trata-se daquilo que no mais recente desdobramento se tornou discutível, dessas concepções que moveram aquilo que originalmente eram fenômenos fronteiriços e marginais da coisa política — a força que em certas circunstâncias é necessária para proteger, e o sustento da vida que deve ser assegurado antes que a liberdade política seja possível — para o centro de todo agir político, estabelecendo a força como meio cujo objetivo mais elevado devia ser a conservação e a instituição da vida. A crise reside em que o âmbito político ameaça aquilo por cuja causa ele parecia justificado. Nessa situação modifica-se a pergunta sobre o sentido da política. A pergunta hoje quase não é: qual é o sentido da política? É muito mais natural ao sentimento dos povos que por toda parte se sentem ameaçados pela política e nos quais os melhores se distanciam da política de maneira consciente que a pergunta seja: tem a política ainda algum sentido?

As opiniões sobre o que é a política de fato servem de base para as questões que esboçamos em resumo. Essas opiniões quase não mudaram no decorrer de muitos séculos. Mudou apenas aquilo que originalmente era conteúdo de juízos, que provinham diretamente de determinadas experiências legítimas — o juízo e condenação da coisa política a partir da experiência do filósofo ou do cristão, bem como a correção de tais juízos e a justificação limitada da coisa política —, e que há muito tempo já se tornou preconceito. Os preconceitos sempre desempenham um grande e legítimo papel no espaço público-político. Eles dizem respeito àquilo que todos nós compartilhamos sem querer uns com os outros e onde não julgamos mais porque quase não temos mais oportunidade de ter a experiência direta. Todos esses preconceitos são juízos passados, desde que sejam legítimos e não meros boatos. Nenhum homem pode viver sem eles porque uma vida sem nenhum preconceito exigiria um estado de alerta sobre-humano, uma prontidão que não se pode ter de modo constante para a todo momento se encontrar e se deixar atingir pela totalidade da realidade, como se cada dia fosse o primeiro ou o Dia do Juízo Final. Portanto, preconceitos e disparates não são a mesma coisa. Justamente porque os preconceitos sempre têm uma legitimidade inerente a eles é que se deve aventurar-se com eles apenas quando eles não preencherem mais sua função; significa quando não mais adequados para tirar uma parte da realidade do homem julgante. Mas é justamente aí, quando os preconceitos entram em evidente conflito com a realidade, que começam a se tornar perigosos, e os homens que não se sentem mais protegidos deles em seu pensamento, começam a fantasiá-los e transformá-los em fundamento daquela espécie pervertida de teorias, em geral chamadas de ideologias ou de mundividências. Contra tais formações de ideologia surgidas de preconceitos, de nada adianta a apresentação de uma visão de mundo oposta à respectiva ideologia corrente, mas sim apenas a tentativa de substituir os preconceitos por juízos. Nisso é inevitável que se reduza o preconceito ao juízo nele contido e esse juízo, por seu turno, à experiência nele contida e da qual ele nasceu.

Os preconceitos que, na crise de hoje, se opõem a uma compreensão teórica daquilo que está em jogo, de verdade, na política, dizem respeito a quase todas as categorias políticas nas quais estamos habituados a pensar — mas sobretudo à categoria meio-objetivo que entende a coisa política como um fim situado fora de si mesmo, além da concepção de que o conteúdo da coisa política é a força e, por fim, a convicção de que o domínio é o conceito central da teoria política. Todos esses juízos e preconceitos nascem de uma desconfiança contra a política, em si não injustificada. Mas essa antiquíssima desconfiança transformou-se no preconceito atual contra a política. Por trás dela está, desde a invenção da bomba atômica, o medo muitíssimo justificado de que a Humanidade poderia apagar-se do mapa por meio da política e dos meios de força à sua disposição. É desse medo que nasce a esperança de a Humanidade ter juízo e, ao invés de se eliminar, elimine a política. Essa esperança não é menos justificada do que aquele medo. Pois a concepção segundo a qual a política existiu sempre e em toda parte onde existiram e existem homens, é ela própria um preconceito; o ideal socialista de uma condição final da Humanidade sem Estado — que, em Marx, significa sem política, não é de maneira alguma utópico: só é pavoroso (33).

Está na natureza de nosso objeto, no qual sempre temos a ver com a maioria e o mundo surgido entre ela, a opinião pública não ser omitida em seu tratamento. Porém, de acordo com essa opinião pública, a pergunta sobre o sentido da política acendeu hoje por completo na ameaça ao homem através da guerra e das armas atômicas. Desse modo, é essencial que comecemos nossa discussão com uma reflexão sobre a questão da guerra.

A GUERRA TOTAL

Quando a primeira bomba atômica caiu sobre Hiroshima, provocando um fim rápido e inesperado da Segunda Guerra Mundial, um horror percorreu o mundo. Naquela época ainda não se podia saber quão justificado era esse horror. Uma única bomba atômica arrasou urna cidade, fazendo em apenas poucos minutos o que o emprego sistemático de ataques aéreos precisaria de semanas ou mesmo meses. Que a condução da guerra, de novo como na Antiguidade, podia dizimar não apenas os povos com ela relacionados, mas também podia transformar num deserto o mundo por eles habitado, era do conhecimento dos especialistas desde o bombardeio de Coventry e do conhecimento de todo o mundo desde os ataques em massa, com bombas, às cidades alemãs. A Alemanha já era um campo de ruínas, a capital do país um monte de escombros, e a bomba atômica tal como a conhecemos da Segunda Guerra Mundial — se bem que já representasse algo absolutamente novo na história da ciência — estava no cardápio da moderna condução da guerra e dai no âmbito dos assuntos humanos, ou melhor, inter-humanos, dos quais a política trata. Não mais como o ponto culminante, alcançável por um salto ou num curto-circuito, através dos quais por assim dizer, o acontecer avança com velocidade sempre alucinante.

Além disso, a destruição do mundo e o extermínio da vida humana por meio da força não são novos nem terríveis e aqueles que sempre achavam que uma condenação pura e simples da força acabava no final numa condenação da coisa política, só deixaram de ter razão há poucos anos, mais exatamente desde a invenção da bomba de hidrogênio. Na destruição do mundo, nada é destruído a não ser um produto da mão humana, e a força que é empregada para isso corresponde, da maneira mais exata, à violência que é inerente, de forma indissolúvel, a todos os processos humanos de produção. Os meios de força necessários para a destruição são criados, por assim dizer, à imagem e semelhança das ferramentas de produção, e o instrumentário técnico de cada época abrange ambas as coisas na mesma medida. O que os homens produzem também pode ser por eles destruído; o que destroem também pode ser por eles reconstruído. O poder destruir e o poder produzir estão em equilíbrio. O vigor que destrói o mundo e lhe causa violência tem o mesmo vigor das mãos que violentam a Natureza e destrói uma coisa natural — talvez uma árvore para obter madeira e para produzir algo de madeira —, para moldar o mundo.

Porém, não está em vigência incondicional o fato de que o poder destruir e o poder produzir estão em equilíbrio. Isso só é válido para o produzido por homens, não para o âmbito menos palpável e nem por isso menos real das relações humanas, que surgiram através do agir no sentido mais amplo. Mais tarde retornaremos a isso. O decisivo para nossa situação de hoje é que, no verdadeiro mundo material, só pode haver equilíbrio entre destruir e reconstruir enquanto a técnica tenha a ver apenas com puros processos de produção e tal não é mais o caso desde a descoberta da energia atômica, embora vivamos hoje num mundo, em média, ainda determinado pela Revolução Industrial. Também nesse mundo não temos mais a ver apenas com coisas naturais, que aparecem de novo, transformadas de uma maneira ou de outra, no mundo moldado pelos homens, mas sim com processos naturais gerados pelos homens através da imitação e conduzidos diretamente para o mundo dos homens. Já é característico desses processos que se desenrolam de modo idêntico ao processo num motor a explosão, produzindo portanto, em termos históricos, catástrofes, cada uma dessas explosões ou catástrofes propulsionando o processo. Nós nos encontramos, em quase todas as áreas da vida, num processo assim, no qual as explosões e catástrofes significam não apenas o declínio, mas também um progresso contínuo incitado por elas — mas por enquanto não deve ser levado em consideração em nosso contexto o caráter discutível dessa espécie de progresso. Talvez a melhor maneira ‘política’ de imaginar isso seja o fato de a catastrófica derrota da Alemanha ter contribuído, de maneira essencial, para tornar a Alemanha o país mais moderno e progressista da Europa, ao passo que ficaram para trás os países que, como a América, não são tão exclusivamente determinados pela técnica, nos quais a velocidade do processo de produção e consumo torna supérfluas as catástrofes por enquanto, ou os países como a França que passaram por uma catástrofe palpavelmente destruidora. O equilíbrio entre produzir e aniquilar não é perturbado através dessa técnica moderna e do processo com o qual ela comprometeu o mundo dos homens. Pelo contrário, parece que essas capacidades estreitamente análogas soldaram-se de forma indissolúvel nesse processo, de tal modo que produzir e destruir, mesmo quando executados nas maiores medidas, se manifestam no final como duas fases difíceis de serem separadas uma da outra, do mesmo processo do progresso, no qual — para escolher um exemplo do dia a dia — a demolição de uma casa é apenas o primeiro estágio da construção, e a construção dessa casa, planejada apenas para um determinado tempo de vida, já pode ser incluída num processo incessante de demolir e reconstruir.

Tem-se duvidado, com frequência e com certa razão, que o homem, em meio a esse processo do progresso por ele mesmo desencadeado, que transcorre necessariamente de maneira catastrófica, ainda possa continuar sendo senhor e mestre do mundo por ele construído e dos assuntos humanos. Nisso, permanece sendo consternador o surgimento das ideologias totalitárias, nas quais o homem já se entende como expoente desse processo catastrófico por ele mesmo desencadeado, cuja função essencial consiste em estar a serviço do processo do progresso e propulsioná-lo cada vez mais rápido. Porém, a respeito dessa adequabilidade inquietante, não se deve esquecer que isso são apenas ideologias e que também as forças da Natureza que o homem forçou a permanecerem a seu serviço, ainda devem ser calculadas em cavalo-vapor, quer dizer, em unidades naturalmente conhecidas, devidamente deduzidas do meio-ambiente imediato do homem. Se o homem consegue dobrar ou centuplicar sua própria força por meio da utilização da Natureza, então se pode ver nisso uma violentação da Natureza ao se concordar com a Bíblia, segundo a qual o homem foi criado para cuidar da terra e para servi-la, e não o contrário, ou seja, forçá-la a ficar às suas ordens. Mas não importa quem serve quem aqui, ou quem foi predeterminado por decreto divino para estar a serviço: de qualquer modo continua incontestável que a força do homem, tanto como força produtiva ou mão-de-obra, é um fenômeno da Natureza, sendo o poder inerente a essa força. Portanto, é natural que, por fim, enquanto o homem tiver a ver com as forças da Natureza, permanece num âmbito terrestre-natural ao qual ele e sua própria força pertencem, pelo fato de ser um ser vivo orgânico. Isso não se modifica pelo fato de ele empregar a própria força junto com a força retirada da Natureza para produzir algo totalmente não-natural, ou seja, um mundo — algo que não se realizaria sem ele, de maneira apenas ‘natural’. Ou dito de outra maneira: enquanto o poder produzir e o poder destruir estiverem em equilíbrio, tudo ainda estará acontecendo de certa forma correta, e o que as ideologias totalitárias declararem sobre a escravização do homem nos processos por ele desencadeados é, afinal de contas, um fantasma ao qual se opõe o fato de os homens continuarem sendo senhores do mundo por eles construído e mestres do potencial de destruição por eles produzido.

Tudo isso só poderia ser modificado com a descoberta da energia atômica, ou seja, com a invenção de uma técnica propulsionada por processos de energia nuclear. Pois aqui não são desencadeados processos naturais, mas sim processos que não acontecem na natureza terrestre, são conduzidos para a Terra para produzir o mundo ou destruir o mundo. Esses próprios processos provêm do Universo que cerca a Terra, e o homem que os coage com sua força, age aqui não mais como um ser vivo natural, mas como um ser que, apesar de só poder viver sob as condições terrestres e de sua natureza, pode, entretanto, ambientar-se também no Universo. Essas forças universais não podem ser medidas mais em cavalo-vapor ou alguma outra medida natural e como elas são de natureza não-terrestre, podem destruir a natureza da Terra assim como os processos naturais manipulados pelo homem podem destruir o mundo construído pelo homem. O horror que se apoderou da Humanidade quando se ouviu falar da primeira bomba atômica foi um horror em relação a essa força oriunda do Universo, quer dizer, no sentido mais verdadeiro da palavra, uma força sobrenatural; a extensão das casas e ruas destruídas assim como o número de vidas humanas exterminadas só tiveram importância pelo fato de a fonte de energia recém-descoberta causar, logo em seu nascimento, morte e destruição na maior escala, possuída de uma tremenda força simbólica capaz de ficar gravada na memória.

Esse horror mesclou-se e logo foi sobrepujado pela indignação não menos justificada e, no momento, muito mais atual porque a superioridade absoluta da nova arma foi experimentada em cidades habitadas, superioridade essa que poderia ter sido demonstrada tão bem quanto — e politicamente não com menos eficácia — num deserto ou numa ilha desabitada. Também nessa indignação ficou-se sabendo com antecipação de algo do qual só sabemos hoje, que na verdade é monstruoso, ou seja, o fato não mais negado pelo estado-maior das grandes potências, de que uma guerra, depois de posta em andamento, será conduzida necessariamente com as armas que estiverem à disposição das respectivas potências que a estão travando. Isso só é natural se o objetivo da guerra não for mais limitado e seu fim não for mais um acordo de paz entre os governos em litígio, senão que a vitória deve produzir o aniquilamento estatal ou até mesmo físico do adversário. Essa possibilidade só foi expressada de maneira vaga na Segunda Guerra Mundial, pois já estava embutida na exigência de uma capitulação incondicional, apresentada à Alemanha [e] ao Japão, mas só foi realizada em todo seu horror quando as bombas atômicas demonstraram, de repente, para o mundo inteiro que, no caso das ameaças de completo extermínio, não se tratava de conversa fiada vazia, senão que já estavam disponíveis, de fato, os meios necessários para isso. Com certeza, hoje ninguém mais duvida que uma terceira guerra mundial, no desenvolvimento conseqüente dessas possibilidades, dificilmente terminará de outra maneira que não com o extermínio dos derrotados. Todos nós já estamos tão presos no feitiço da guerra total que quase não conseguimos imaginar que, depois de uma guerra entre a Rússia e a América, a Constituição americana ou o regime atual russo possa sobreviver a uma derrota. Mas isso significa que, numa guerra futura, não estará em jogo o ganho ou a perda do poder, as fronteiras, mercados de venda e espaço vital, quer dizer, coisas que em si poderiam ser alcançadas sem a força, no caminho da negociação política. Com isso, a guerra deixou de ser a ultima ratio das negociações que ocorrem em conferências, nas quais os objetivos da guerra eram assentados no momento da suspensão das negociações, de modo que as ações militares que eclodiam depois nada mais eram, de fato, que a continuação da política por outros meios. Aqui trata-se muito mais de alguma coisa que jamais poderia ser, de maneira natural, objeto de negociações, trata-se da existência nua e crua de um país e de um povo. Somente nesse estágio — em que a guerra não pressupõe mais como viável a coexistência das partes inimigas e só quer liquidar, de maneira violenta, os conflitos surgidos entre elas — a guerra deixou realmente de ser um meio da política e começa, na condição de guerra de extermínio, a romper os limites impostos à coisa política e, com isso, a se auto-exterminar.

Essa condução da guerra total, como se diz hoje em dia, tem sua origem, como se sabe, nas formas de domínio totalitário, com as quais está forçosamente associada; a guerra de extermínio é a única guerra conveniente ao sistema totalitário. Foram países de governo totalitário que proclamaram a guerra total, mas com ela impingiram necessariamente a lei de seu agir ao mundo não-totalitário. Mas quando um princípio de tamanha envergadura vem ao mundo, é quase impossível limitá-lo a talvez um conflito entre países totalitários e não-totalitários. Isso ficou patente quando a bomba atômica foi empregada contra o Japão e não contra a Alemanha de Hitler, para a qual ela foi originalmente produzida. O revoltante nesse caso foi, entre outras coisas, o fato de que se lidava, na verdade, com uma potência imperialista, mas não com uma potência totalitária.

O horror que se propaga a todas as considerações políticas-morais e a imediata indignação reagente política e moral tinham em comum a compreensão do que a guerra total significava, de fato, e o reconhecimento de que a condução da guerra total era um fato consumado não apenas para os países de governo totalitário e os conflitos por eles causados, mas sim para o mundo todo. Aquilo que a princípio parecia impossível desde os romanos e, de fato, nos três ou quatro séculos que chamamos de tempos modernos, posto que não estava mais no coração do mundo civilizado o extermínio de povos inteiros e o arrasar de civilizações inteiras, foi empurrado, de novo, de um só golpe, para o âmbito do possível-possível-demais. Essa possibilidade, embora nascida como resposta para uma ameaça totalitária — uma vez que quase nenhum cientista teria pensado em produzir a bomba atômica se não precisasse recear que a Alemanha de Hitler pudesse fabricar e empregar a bomba —, tornou-se de imediato uma realidade que quase não tinha mais a ver com o motivo que causou seu surgimento.

Aqui, talvez pela primeira vez nos tempos modernos — embora de maneira nenhuma na história por nós recordada, ultrapassou-se uma restrição inerente ao agir violento, segundo a qual a destruição resultante dos meios de força deve ser sempre parcial, deve sempre concernir apenas a partes do mundo e a um número de vidas humanas arranjado, mas jamais ao país inteiro ou a um povo inteiro. Mas aconteceu com bastante frequência na História do mundo de um povo inteiro ser arrasado, os muros da cidade demolidos, os homens assassinados e a população restante vendida como escrava, e só os séculos dos tempos modernos não quiseram mais acreditar que isso pudesse acontecer. Sempre se soube, de maneira mais ou menos expressa, que isso representa um dos poucos pecados mortais da coisa política. Os pecados mortais ou, falando de modo não patético, a transposição da fronteira inerente ao agir violento consiste em duas coisas distintas: por um lado, o matar diz respeito aqui não mais a maiores ou menores números de homens — que, aliás, morreriam de qualquer forma — mas sim a um povo e sua constituição política que não são imortais na possibilidade e, no caso da constituição, até na intenção. O que é morto, aqui, não é algo da mortal, mas sim algo possivelmente imortal. Além disso e na mais estreita relação com isso, a violência estende-se aqui não apenas ao produzido que, por seu lado, também surgiu através da força e que, por conseguinte, pode ser construído de novo por meio de um esforço poderoso, mas sim a uma realidade política-histórica alojada nesse mundo produzido, que, como não foi produzida, tampouco pode ser restaurada de novo. Quando um povo perde a liberdade estatal, perde sua realidade política, mesmo que consiga sobreviver fisicamente.

O que sucumbe aqui é um mundo de relações humanas, surgido por meio do produzir, mas sim do agir e do falar, que em si jamais chega a um fim e que — embora tecido com a coisa mais fugidia que existe, a palavra passageira e o fato terrivelmente tenaz que, em certas circunstâncias, como talvez no caso do povo judeu, pode sobreviver milênios à perda do palpável mundo produzido. Isso, porém, é uma exceção e, em geral, só pode existir dentro do mundo produzido, através do sistema de relações surgidas a partir do agir, no qual o passado continua vivendo na forma da História que fala e sempre persuade, em cujo mundo pedras se aninham até também falarem, testemunharem falando — mesmo que se tenha que desenterra-las do seio da terra. É verdade que todo esse âmbito verdadeiramente humano que forma a coisa política no sentido mais estreito pode sucumbir através da força, mas ele não surgiu da força e a determinação nele contida não é um fim por meio da força.

Esse mundo de relações não surgiu através da força ou do vigor individual dos indivíduos, mas sim através do estar junto de muitos indivíduos fazendo com que surgisse o poder e, na verdade, um poder diante do qual até mesmo a maior força do indivíduo se torna impotência. Esse poder pode ser enfraquecido por meio de todos os fatores possíveis, assim como pode ser renovado de novo por meio de todos os fatores possíveis; só a força pode liquidá-lo em definitivo, quando esta se torna total e não deixa, textualmente, pedra sobre pedra, homem ao lado de homem. Ambas as coisas estão na essência da dominação total que, em termos de política interna, não se contenta em restringir o indivíduo, porém aniquila todas as relações inter-humanas por meio do terror sistemático. A ele corresponde a guerra total que não se contenta com a destruição de pontos militares importantes isolados, senão que arregaça as mangas — e pode arregaçar as mangas em termos da técnica — para aniquilar todo o mundo surgido entre os homens.

Seria relativamente fácil demonstrar que as teorias políticas e os códices morais do Ocidente sempre tentaram excluir a verdadeira guerra de extermínio do arsenal dos meios políticos; supostamente seria mais fácil ainda mostrar que a eficácia dessas teorias e exigências não andou muito bem das pernas. Está estranhamente na natureza dessas coisas — que, no sentido mais amplo, diz respeito ao nível de civilização que o homem impõe a si mesmo — que para elas vale a palavra de Platão, segundo a qual é a arte poética com as imagens e modelos por ela cunhados que “forma os descendentes adornados milhares de feitos dos pais da humanidade” (Fedro, 245). Na Antiguidade, pelo menos no que dizia respeito à pura coisa política, o maior objeto desses adornos formadores foi a Guerra de Troia, em cujos vitoriosos os gregos viam seus avós e em cujos derrotados os romanos viam os seus. Assim, eles se tornam, como Mommsen costumava dizer, “o povo gêmeo” da Antiguidade, porque um mesmo e único empreendimento era tido para ambos como o começo de sua existência histórica. Essa guerra dos gregos contra Troia — que terminou com um aniquilamento tão completo da cidade a ponto de, até tempos bem recentes, chegar-se a acreditar que ela nunca existiu — poderia valer, com certeza, ainda hoje como primeiro exemplo da guerra de extermínio.

Assim, para uma reflexão sobre o significado político da guerra de extermínio que nos ameaça de novo pode-se ser permitido recordar mais uma vez esses acontecimentos mais antigos e seus adornos — sobretudo porque nos adornos dessa guerra tanto gregos como romanos determinaram, de uma maneira multiplamente ligada e multiplamente oposta para si, e com isso, em certa medida também para nós, o que política devia significar originalmente e que espaço ela devia ocupar na História. Nisso, é de importância decisiva o fato de a canção de Homero não calar a respeito do homem vencido, de testemunhar por Heitor não menos que por Aquiles e — embora a vitória grega e a derrota troiana tenham sido decididas e garantidas de antemão no conselho dos deuses — de essa vitória não fazer Aquiles maior e Heitor menor, a causa dos gregos mais justa e a defesa de Troia não injusta. Homero também cantou a guerra de extermínio que ficava séculos atrás de tal maneira que, em certo sentido, ou seja no sentido da recordação poética e histórica, anulava de novo o extermínio. Essa grande imparcialidade de Homero — que não é nenhuma objetividade no sentido da moderna liberdade de valores, mas sim no sentido da liberdade mais completa de interesses e da mais completa independência do juízo da História, que em comparação com ela consiste no juízo do homem atuante e de seu conceito de grandeza — está no começo de todo o registro histórico, não apenas o ocidental; posto que algo como isso que entendemos por História não existia antes e em parte alguma, o que não torna o exemplo homérico menos eficiente, pelo menos indiretamente. É a mesma ideia que reencontramos na introdução de Heródoto, quando diz querer impedir que “feitos grandiosos e maravilhosos, realizados em parte por helenos e em parte por bárbaros, caíssem no esquecimento” — ou seja, uma ideia que, como Burckhardt observou um dia com razão, “nenhum egípcio ou judeu poderia ter tido”.

Sabe-se que o esforço grego para transformar a guerra de extermínio numa guerra política jamais prosperou além da salvação dos exterminados e vencidos, feita por Homero — posterior e poeticamente determinada e recordativa da História e por essa incapacidade sucumbiram, em última análise, as cidades-Estados da Grécia. No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e com isso centrou a verdadeira coisa política — ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres — em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo, com violência em relação a outros Estados ou cidades-Estados, mas, com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘a-política’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo. Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento grego. Entretanto, a esse âmbito pertencia, no fundo, tudo aquilo que entendemos por política externa; aqui, a guerra não é a continuação da política com outros meios, mas sim, ao contrario, o negociar e o firmar tratado eram sempre entendidos como uma continuação da guerra por outros meios, com os meios da astúcia e da fraude.

No parágrafo grifado acima temos uma estupenda síntese da natureza do modo democrático de regulação de conflitos como um modo não-guerreiro.

Mas, a eficácia do homérico sobre o desenvolvimento da polis grega não se esgotou nessa eliminação apenas negativa da força para fora do âmbito da coisa política, o que só teve como consequência as guerras, tal como antes, serem conduzidas segundo o princípio de que o mais forte faz o que pode, e o mais fraco suporta o que precisa suportar. O verdadeiro homérico na representação da Guerra de Troia só teve seu pleno efeito no modo em que a polis inclui em sua forma de organização o conceito da luta como uma forma de convívio humano não apenas legítimo, mas também o mais elevado, em certo sentido. O que em geral se chama de espírito agonal dos gregos e que, sem dúvida, ajuda a explicar (se é que algo assim deve ser explicado) que nós encontremos, nos poucos séculos de seu apogeu, uma genialidade maior e mais significativa — concentrada em simplesmente todas as áreas do espírito — do que em qualquer outra parte, não é, de maneira alguma, aquele esforço para se mostrar como o melhor sempre e em toda parte, do qual Homero já fala e que, de fato, possuía tamanha importância para os gregos: existe, inclusive, em seu idioma um verbo para isso, de modo que aristeuein (ser o melhor) podia ser entendido não apenas como um esforço, mas sim como uma atividade que preenchia a vida. Essa competição mútua tinha seu protótipo na luta de Heitor e Aquiles que, independente de vitória e derrota, dá oportunidade a cada um deles de se mostrar como é de verdade — para se pôr em evidência realmente e com isso tornar-se completo, de fato. É muito parecido com a guerra entre gregos e troianos, que dá a ambos a oportunidade de se manifestar por completo, e que corresponde a uma contenda dos deuses que não apenas dá o pleno significado à luta que está sendo travada na terra, mas também indica, da maneira mais clara, que nos dois lados há algo de divino, muito embora um desses lados esteja consagrado para a derrota. A guerra contra Troia tem dois lados, e Homero a vê com os olhos do troiano não menos que com os olhos dos gregos. Essa maneira homérica de demonstrar que todas as coisas têm dois lados, que só se manifestam na luta, também serve de base para a palavra de Heráclito, de que a guerra “é o pai de todas as coisas”. A violência da guerra em todo seu terror origina-se aqui ainda diretamente na força e potência do homem, que só pode dar provas dessa força inerte nele se for enfrentado por alguma coisa ou alguém e então possa demonstrá-la.

O que em Homero manifesta-se ainda não-separado — a violenta força dos grandes feitos e a força irresistível das grandes palavras que os acompanham e que justamente por isso convencem a reunião de homens, que vêem e ouvem — encontramos mais tarde, já separadas com bastante clareza uma da outra, nas competições — as únicas ocasiões em que a Grécia inteira se reunia para admirar as forças desenvolvidas sem violênciae nos desafios de oratória e no incessante falar mútuo dentro da polis. Nisso, a bilateralidade das coisas que em Homero se deu imediatamente no duelo, recai exclusivamente no âmbito do falar, onde toda vitória torna-se tão ambígua quanto a vitória de Aquiles, e uma derrota pode tornar-se tão gloriosa quanto a de Heitor. Mas nos desafios de oratória não se fica nos dois lados dos oradores que se manifestam neles como pessoas, se bem que é inerente a cada discurso, de maneira imperiosa, não importa o quão ‘objetivo’ possa apresentar-se, ele também revelar-se para o orador, de uma forma difícil de se apreender, mas nem por isso menos penetrante e essencial. Aqui, a bilateralidade com a qual Homero pôde poetar a Guerra de Troia como um todo, torna-se uma infinita variedade dos assuntos discutidos: desde que discutidos por tantos na presença de muitos outros, são atraídos para a luz da publicidade, onde são forçados, por assim dizer, a revelarem todos seus lados. Somente em tal universalidade uma única e mesma coisa pode revelar-se em toda sua realidade, sendo preciso ter presente que cada coisa possui tantos lados e pode revelar-se em tantas perspectivas quantos homens nela participam. Uma vez que o espaço público-político é para os gregos a coisa comum (koinon), na qual todos se reúnem, ele é o âmbito onde só então todas as coisas podem revelar-se em toda sua universalidade. Essa capacidade fundada em última análise na imparcialidade homérica, de ver a mesma e única coisa primeiro de lados opostos e depois de todos os lados, que não tem rival na Antiguidade e até nosso tempo ainda não foi superada em sua intensidade emotiva, ainda serve de base para os truques dos sofistas cuja importância para a libertação do pensamento humano das ligações dogmáticas é subestimada, quando, seguindo-se o exemplo de Platão, se a condena moralmente. Contudo, essa extraordinária capacidade do argumentar tem importância de segunda categoria para a constituição da coisa política, que se realizou pela primeira vez na polis. O decisivo não é dar-se voltas em argumentos, nem que se possa pôr afirmações de cabeça para baixo, mas sim que se adquiriu a capacidade de ver, de fato, as coisas de diferentes lados: isso significa, politicamente, que passou-se a saber abranger as muitas posições possíveis no mundo real, a partir das quais a mesma coisa pode ser contemplada e nas quais apresenta os aspectos mais distintos, apesar de seu caráter particular. Isso é muitíssimo mais que a eliminação do próprio interesse, na qual só se ganhou coisas negativas e, além disso, ainda existe o perigo de, com a interrupção do interesse, se perder a ligação com o mundo e a simpatia por seus objetos e as coisas que se passam nele. A capacidade de se ver a mesma coisa dos pontos de vista mais distintos permanece no mundo dos homens, apenas troca a sua própria posição natural pela posição dos outros, com os quais se está junto no mesmo mundo; consegue-se assim uma verdadeira liberdade de movimento no mundo do espiritual, que corre em paralela exata com a liberdade de movimento do físico. O persuadir-um-ao-outro e o convencer-um-ao-outro que era o verdadeiro modo do trato político dos cidadãos livres da polis, pressupunha uma espécie de liberdade que não era ligada imutavelmente, em termos espirituais ou físicos, ao próprio ponto de vista ou posição.

Importante o juízo de Arendt de que a importância dos sofistas é subestimada. O movimento de revalorização dos sofistas, que ainda é tímido, só se avolumou alguns anos depois desse escrito. Entretanto, ela ainda fala de “truques dos sofistas” (indicando não ter se libertado totalmente do preconceito e da maledicência infundidos pela desonestidade de Platão). Já o conversar é mesmo dar voltas juntos.

Seu ideal característico e com isso o parâmetro para a especifica aptidão política situa-se na phronesis, aquela compreensão do homem político (do politikos, não do estadista que não existia em absoluto dentro desse mundo) que tem tão pouco a ver com sabedoria que Aristóteles até pôde definir em acentuada oposição à sabedoria dos filósofos. Compreensão num estado de coisas político não significa outra coisa que ganhar e ter presente a maior visão geral das possíveis posições e pontos de vista, dos quais o estado de coisas pode ser visto e a partir dos quais pode ser julgado. Quase não se falou dessa phronesis através dos séculos, que em Aristóteles é a verdadeira virtude cardinal da coisa política. Só a encontramos de novo em Kant, na explanação da razão saudável do homem como um bem do juízo. Ele a chama de “maneira de pensar ampliada” e a define expressamente como a capacidade “[de] pensar no lugar de todos os outros”, mas infelizmente continua sendo característico que essa capacidade política par excellence quase não desempenha um papel na filosofia política própria de Kant, do desenvolvimento do imperativo categórico. Pois a validade do imperativo categórico é deduzida do “pensamento-em-uníssono-com-si-mesmo”, e a razão legislativa não pressupõe os outros, mas sim apenas um eu não contraditório. Na verdade, o verdadeiro bem político na filosofia de Kant não é a razão legisladora, mas sim o discernimento do qual é próprio conseguir não se importar com “as condições privadas subjetivas do juízo”. No sentido da polis, o homem político, em sua excelência peculiar, era ao mesmo tempo o mais livre, porque tinha a maior liberdade de movimento em virtude de sua compreensão, sua capacidade de tomar em consideração todas as posições.

Mas é importante ter presente que essa liberdade da coisa política dependia, por completo, da presença e da igualdade de direitos de muitos. Uma coisa só pode mostrar-se sob muitos aspectos quando muitos estão presentes, aos quais ela aparece em respectivas projeções diferentes. Quando esses outros com direitos iguais e suas opiniões particulares são abolidos, como talvez numa tirania na qual tudo e todos são sacrificados para o ponto de vista do tirano, ninguém é livre e ninguém está apto para a compreensão, nem mesmo o tirano. Além disso, essa liberdade da coisa política, que em seu aperfeiçoamento mais elevado coincide com a compreensão, não tem o mínimo a ver com nosso livre-arbítrio, ou com a libertas romana, ou com o cristão liberum arbitrium; de fato, tem tão pouco a ver que falta a palavra para tal no idioma grego. O indivíduo em seu isolamento jamais é livre; só pode sê-lo quando adentra o solo da polis e age nele. Antes de a liberdade se tornar uma espécie de distinção de um homem ou de um tipo de homem — talvez do grego contra os bárbaros —, ela é um atributo de uma determinada forma de organização de homens entre si, e nada mais. Seu local de origem jamais está situado num interior do homem, não importa com que forma, em sua vontade ou em seu pensamento ou em seu sentir, mas sim no interespaço que só surge quando muitos se reúnem e que só pode existir enquanto ficarem juntos. Existia um espaço da liberdade e era livre aquele nele admitido, e não-livre aquele dele excluído. O direito de admissão e, portanto, de liberdade era um bem para o indivíduo que sobre o destino de sua vida não decidia de maneira diferente da riqueza e da saúde.

Novamente: “o indivíduo em seu isolamento jamais é livre; só pode sê-lo quando adentra o solo da polis e age nele”. Mas o mais importante aqui é a sentença de que “a liberdade… é um atributo de uma determinada forma de organização de homens entre si, e nada mais”. Ou seja, a liberdade não está dentro do homem e sim entre os homens (e depende, diríamos hoje, dos graus de distribuição da rede).

Assim, a liberdade era para o pensamento grego enraizada, ligada a uma posição e limitada espacialmente, e as fronteiras do espaço da liberdade coincidiam com os muros da cidade, da polis ou, dito de forma mais exata, da ágora nela encerrada. Fora dessas fronteiras situava-se, por um lado, o estrangeiro no qual não se poderia ser livre, posto que nele não se era mais um cidadão ou, melhor, um homem político; e por outro, a casa particular na qual tampouco se poderia ser livre porque faltavam os demais com igualdade de direitos, que juntos constituíam o espaço da liberdade. Esse último era de importância ainda mais decisiva para o conceito romano moldado de maneira bem diferente, sobre o que é a coisa política, a coisa pública, a res publica ou república. Para os romanos, a família caía tanto no âmbito dos não-livres que Mommsen traduziu a palavra familia, de maneira sumária, por “servidão”. Porém, a razão para essa servidão é dupla; em primeiro lugar, residia em que o pater familias, o dono da casa, reinava como um verdadeiro monarca ou déspota sozinho sobre sua casa multiforme, composta de mulher, filhos e escravos; portanto, faltavam-lhe as pessoas com igualdade de direitos diante das quais ele poderia aparecer em liberdade. Em segundo lugar, essa casa dominada por um não podia ser admitida em nenhum certame ou competição, porque precisava formar uma unidade que só poderia ser destruída por interesses, posições e pontos de vista antagônicos. Com isso, deixava de existir, de maneira automática, aquela multiplicidade de aspectos nos quais o verdadeiro conteúdo do ser-livre, do agir-e-conversar-em-liberdade estava livre para se mover. Resumindo, a não-liberdade era o pressuposto de uma unidade que não foi fendida, tão constitutiva para a vida em comum na família quanto a liberdade e a luta de um com o outro para a vida em comum na polis. Com isso, o espaço livre da coisa política apresenta-se como uma ilha, na qual o princípio da força e da coação é eliminado das relações dos homens. O que fica de fora desse estreito espaço, a família, por um lado, e as relações da polis com outras unidades políticas, por outro, continua sujeito ao princípio da coação e ao direito do mais forte. Assim, segundo a concepção da Antiguidade, o status do indivíduo é tão exclusivamente dependente do espaço no qual ele se move de cada vez que o mesmo homem, como filho crescido de um pai romano, “era subordinado a seu próprio pai… na condição de cidadão [poderia] cair no caso de dar-lhe ordens como senhor”.

Em outras palavras: a família e as relações exteriores são espaços de não-liberdade (de domínio e de guerra). Por isso nelas não se poderia experimentar a democracia.

Retornemos ao nosso ponto de partida. Tentamos recordar a guerra de extermínio de Troia em seus adornos homéricos para nos lembrar quão bem os gregos deram conta do elemento exterminador da força, que destruía o mundo e a coisa política. Como se os gregos houvessem separado a luta sem a qual nem Aquiles nem Heitor jamais poderiam ter-se revelado, de fato, tentando provar quem eram, da coisa guerreira-militar da qual a força é oriunda, e, com isso, transformando-a num elemento integrante da polis e da coisa política, ao passo que deixavam por conta de seus poetas e historiadores a preocupação com o que devia ser dos vencidos e derrotados nas guerras seguintes. Contudo, deve-se observar que sua própria obra, mas não a atividade através da qual ela surgiu, tornou-se de novo parte da polis e da coisa política — não diferente das estátuas de Fídias e outros artistas cujas obras pertenciam ao estoque da coisa política pública palpável no mundo, ao passo que eles mesmos, por causa de sua profissão, não eram tidos como iguais e cidadãos livres. Nisso continua decisiva, para a cunhagem do tipo grego de homem na polis, a figura de Aquiles, o empenho constante para se distinguir, para ser sempre o melhor de todos e ganhar fama imortal. A necessária presença de muitos no geral e de muitos de igual categoria em especial, o local de reunião homérico da ágora, que no caso da expedição contra Troia só pôde manifestar-se porque muitos ‘reis’, quer dizer, homens livres, que viviam isolados em suas casas associaram-se para um grandioso empreendimento que precisava de todos — no fundo, de cada um porque só nesse estar juntos, longe da casa natal e de sua estreiteza, era possível ganhar fama: o estar junto homérico dos heróis era despido também de caráter temporário que dependia da aventura. A polis ainda está inteiramente ligada à ágora homérica, mas esse local de reunião é agora perpétuo, não o acampamento de um exército que depois do trabalho feito se retira de novo e precisa esperar séculos até se encontrar um poeta que conceda aquilo que tem direito perante deuses e homens por causa da grandeza de seus feitos e palavras — a fama imortal. Então, assim esperava a polis em seu apogeu (tal como sabemos através do discurso de Péricles), ela mesma assumiria possibilitar a luta sem toda violência e garantir a glória sem poeta e sem versos, a única maneira pela qual os mortais podem tornar-se imortais.

Hummm…

Os romanos eram o povo gêmeo dos gregos porque deduziam sua origem enquanto povo do mesmo acontecimento, a Guerra de Troia, “porque não se achavam romúlidas, mas sim enéides”, achavam-se descendentes dos troianos, assim como os gregos julgavam-se descendentes dos aqueus. Desse modo, deduziam conscientemente sua existência política de uma derrota, a qual se seguiu uma nova fundação em terra estranha, mas na verdade não a nova fundação de um novo inaudito, mas a fundação renovada para algo velho, a fundação de uma nova pátria e de uma nova casa para os penates, os deuses do rebanho real em Troia, que Enéias salvou na fuga junto com pai e filho sobre o mar para o Lácio. Tratava-se, como nos diz Virgilio no aperfeiçoamento definitivo do adorno grego, siciliano e romano do ciclo de lendas troianas, da anulação da derrota de Heitor e do aniquilamento de Troia: “Um novo Páris acende-me de novo o fogo que abala as ameias de Pérgamo”. Essa é a tarefa de Enéias e, visto a partir dessa tarefa, através de Heitor a vitória é mantida afastada dos gregos durante dez anos, e não de Aquiles: Heitor torna-se o verdadeiro herói da lenda. Mas isso não é decisivo. O decisivo é que, na repetição da Guerra de Troia em solo italiano, invertem-se as relações do poema homérico. Se Enéias é ao mesmo tempo o sucessor de Páris e de Heitor, então ele atiça de fato o fogo por uma mulher, mas não por Helena e uma adúltera, mas sim por Lavínia, uma noiva, e igual a Heitor ele encontra a ira implacável e a cólera invencível de um Aquiles, ou seja, ao Turnus que se identifica expressamente — “comunica a Príamo então que encontraste aqui também a Aquiles”; mas quando se chega no duelo, Turnus foge, quer dizer, Aquiles, e Enéias, quer dizer Heitor, o persegue. Assim como é evidente que Heitor não põe a fama acima de tudo mesmo na representação homérica, mas sim que “tomba um defensor lutando por seus altares domésticos”, a Enéias não pode ser arrancado o pensamento na alta fama e grandes feitos de Dido, porque “não lhe parece que o próprio louvor valha o esforço e flagelos”; mas apenas a lembrança no filho e descendentes, a preocupação com a continuidade da geração e sua fama que para os romanos continha a garantia da imortalidade terrena.

Essa origem — primeiro transmitido como lenda e depois adornada cada vez de forma mais consciente e rica — da existência política romana a partir de Troia e da guerra que se travou em torno da cidade pertence, sem dúvida, aos acontecimentos mais estranhos e excitantes da história ocidental. É como se comparasse aqui a bilateralidade poético-espiritual e a imparcialidade do poema homérico com uma realidade plena e cumprida que realiza algo nunca antes realizado na História; ao que parece, tampouco pode ser realizado nela, ou seja, a plena justiça para com a causa dos vencidos não de parte da posteridade julgadora — que sempre pode dizer com e desde Catão: victrix causa diis placuit sed victa Catoni — mas de parte do próprio decorrer histórico. Já é bastante inaudito que Homero cante a glória dos vencidos e, assim, no próprio poema glorificante mostra que um mesmo e único acontecimento pode ter dois lados e que o poeta, ao contrário da realidade, não tem o direito de, com a vitória de um lado, abater e matar o outro lado, pela segunda vez. Porém, o mesmo se passa na realidade — e se pode esclarecer com facilidade o quanto a auto-interpretação dos povos é parte integrante de tal realidade, quando se pensa que os romanos, enquanto sucessores dos troianos, defenderam, em sua primeira contato demonstrável com os gregos, a Ílion de mesma origem —, parece muito mais inaudito; pois é como se no começo da história ocidental houvesse, de fato, uma guerra no sentido de Heráclito, [ou seja, uma guerra] que se tornou “o pai de todas as coisas” porque forçou o mesmo e único acontecimento a se manifestar em seus dois lados, que originalmente eram virados de costas um para o outro. Desde então, não existe para nós, tanto no mundo físico como no mundo histórico-político, nada mais que se torne coisa ou fenômeno em plena realidade, quando descoberto e classificado em sua riqueza de aspectos e mostrado de todos os lados e todos os ângulos possíveis no mundo dos homens, chega ao conhecimento e à articulação.

Somente a partir dessa perspectiva determinada como romana, na qual o fogo é atiçado de novo para abolir o extermínio, talvez possamos compreender o que é em si, de verdade, a guerra de extermínio e por que não deve ter nenhum lugar na política, independente de todas as considerações morais. Se for correto que uma coisa só é realmente no mundo do histórico-político, assim como no mundo do físico, quando mostrar-se e puder ser percebida de todos os lados, então ela sempre precisará ser observada e definida por uma pluralidade de homens ou de povo, ou de uma pluralidade de ângulos, para se fazer realidade possível e garantir sua continuidade. Em outras palavras, só surge mundo porque há perspectivas, e só existe por causa de uma correspondente ordem de coisas. Se um povo, ou um Estado, ou apenas um determinado grupo de homens, é exterminado porque, em todo caso, tem uma posição qualquer no mundo que ninguém pode duplicar sem dificuldade, que apresenta uma visão de mundo só realizável por ele —, então não é apenas um povo, um Estado ou uma certa quantidade de homens que morre, senão que uma parte do mundo comum é aniquilada — um lado do mundo mostrado antes, mas que jamais poderá mostrar-se de novo. Por conseguinte, o aniquilamento iguala-se aqui não apenas a uma espécie de fim do mundo, senão que atinge também os aniquiladores. A rigor, a política não tem tanto a ver com os homens como tem a ver com o mundo surgido entre eles e que sobreviverá a eles; na medida em que se torna destruidora e causa fins de mundo, ela destrói e se aniquila a si mesma. De outra maneira: quanto mais povos houver no mundo que tenham entre si essa relação e outras, mais mundo se formará entre eles e maior e mais rico será o mundo. Quantos mais pontos de vista houver num povo, a partir dos quais possa ser avistado o mesmo mundo, habitado do mesmo modo por todos e estando diante dos olhos de todos, do mesmo modo, mais importante e mais aberta para o mundo será a nação. Mas se acontecer o contrário e, através de uma tremenda catástrofe, só restar um povo na face da Terra e se esse povo chegar ao ponto em que todos vêem e entendem tudo a partir da mesma perspectiva e vivem entre si em plena unanimidade, então o mundo terá chegado ao fim, no sentido histórico-político, e os homens sem mundo que restarem na face da Terra quase mais nada terão em comum conosco — tanto quanto aquelas tribos sem mundo e sem relações que vegetavam de um lado para o outro, encontradas pela humanidade européia na descoberta de novos continentes, que foram tomadas de volta para o mundo dos homens ou exterminadas, sem ter consciência de que também eram homens. Em outras palavras, só pode haver homem na verdadeira acepção onde existe mundo, e só pode haver mundo no verdadeiro sentido onde a pluralidade do gênero humano seja mais do que a simples multiplicação de uma espécie.

Por conseguinte, é da maior importância que a Guerra de Troia repetida em solo italiano, à qual o povo romano atribui sua existência política e histórica, não terminasse de novo, por seu lado, com o aniquilamento dos derrotados, mas sim com uma aliança e um tratado. Não se tratava apenas de atiçar o fogo de novo para simplesmente inverter o desenlace, mas sim de inventar um novo desfecho para tal fogo-guerra. Contrato e aliança, de acordo com sua origem e seu conceito cunhado tão ricamente pelos romanos, estão ligados, do modo mais estreito, com a guerra entre povos e, segundo a concepção romana, representam a continuação natural, por assim dizer, de toda e qualquer guerra. Nisso também há algo de homérico ou talvez alguma coisa que já existia antes do próprio Homero quando ele pôs mãos à obra para dar sua cunhagem poética definitiva ao ciclo de lendas troianas. Residia no reconhecimento de que também o encontro mais hostil de homens faz surgir alguma coisa que só é comum a eles, justamente porque — como Platão um dia expressou — “tal como o agente faz, o sofredor também sofre” (Górgias,476), é assim e não de outra maneira, de modo que quando fazer e sofrer passam, podem tornar-se posteriormente os dois lados de um mesmo acontecimento. Mas com isso o próprio acontecimento já foi transformado de luta em uma outra coisa, que só se torna acessível para o olhar retroativo e enaltecedor do poeta ou do historiador. Politicamente, porém, o encontro que ocorre na luta só pode manter-se como encontro quando a luta é interrompida antes do aniquilamento do vencido e dela surge um estar junto de novo tipo. Todo tratado de paz, mesmo quando não for verdadeiro, mas sim um ditado, trata de uma reorganização daquilo que já existia antes da conflagração das hostilidades, e também do que se manifesta no decorrer das hostilidades como algo em comum do agente e do sofredor. Uma tal transformação [do simples aniquilamento em algo diferente e duradouro] se encontra na imparcialidade homérica que não deixa morrer pelo menos a glória e a honra do vencido e através da qual o nome de Aquiles permaneceu ligado para sempre ao de Heitor. Mas, no caso dos gregos, tal transformação do estar junto hostil permaneceu totalmente limitado ao poético e retroativo e não pôde tornar-se diretamente eficaz na política.

Portanto, contrato e aliança enquanto concepções centrais da coisa política são, em termos históricos, não apenas de origem romana, mas também ambas as coisas são estranhas, em sua essência mais profunda, ao caráter grego e à sua concepção do âmbito da coisa política, ou seja, da polis. O que sucedeu quando os descendentes de Troia chegaram em solo italiano foi nada mais nada menos do que o fato de a política surgir exatamente ali onde no caso dos gregos chegava em suas fronteiras e achava um fim, ou seja, no âmbito intermediário não entre os cidadãos de igual categoria de uma cidade, mas sim entre os povos estranhos entre si e que se defrontavam em desigualdade, que só a luta reuniu. É verdade que, como vimos, também no caso dos gregos a luta e com ela a guerra foi o começo de sua existência política, mas apenas até o ponto em que, nessa luta, tornaram-se eles mesmos e uniram-se para se assegurar da confirmação definitiva e perpétua da própria essência. No caso dos romanos, a mesma luta tornou-se aquilo em que reconheciam a si mesmos e aos parceiros; quando a luta chegou ao fim, não se retiraram de novo para si mesmos e a sua glória nos muros de sua cidade, mas haviam ganho algo novo, um novo âmbito político assegurado através do tratado com o qual os inimigos de ontem tornaram-se os aliados de amanhã. Falando politicamente, o contrato que liga dois povos faz surgir um novo mundo entre eles ou, de maneira mais exata, garante a continuação da existência de um mundo novo, só comum a eles, surgido quando eles se encontraram na luta e, no fazer e no sofrer, produziram um igual.

Essa solução da questão da guerra — quer tenha sido originalmente própria dos romanos ou tenha surgido apenas posteriormente no recordar e no adornar da guerra de extermínio de Troia — é a origem tanto do conceito de lei como da importância extraordinária que a lei e a formação da lei experimentaram no pensamento político romano. Pois, a lex romana, em completa diferença e até mesmo em oposição àquilo que o gregos conheciam por nomos, significa originalmente “ligação duradoura” e, em seguida, contrato tanto no direito de Estado como no privado. Portanto, uma lei é algo que liga os homens entre si e se realiza não através de um ato de força ou de um ditado, mas sim através de um arranjo ou um acordo mútuo. O fazer da lei, essa ligação duradoura que se segue à guerra violenta, é ele mesmo totalmente ligado à conversa e à réplica daí a algo que, tanto na opinião dos gregos como na dos romanos, estava no centro de tudo que é político.

Nisso, porém, é decisivo que só para os romanos a atividade legisladora e com isso a própria lei caíam no âmbito da verdadeira coisa política, ao passo que segundo a concepção grega a atividade do legislador era tão radicalmente separada das verdadeiras atividades e ocupações políticas dos cidadãos dentro da polis que o legislador nem ao menos precisava ser cidadão da cidade, podendo ser contratado de fora — como um escultor ou um arquiteto a quem se podia encomendar o que fosse preciso para a cidade. Em contrapartida, a lei das doze tábuas de Roma, se bem que em seus pormenores possa ter sido determinada por modelos gregos, não é obra de um único homem, mas sim o contrato entre duas partes em luta, o patriciado e os plebeus, que precisava do assentimento de todo o povo, aquele consensus omnium ao qual a historiografia romana sempre atribuiu “um papel singular” (Altheim) quando da redação de leis. Para esse tipo de contrato é importante que — no caso dessa lei básica a qual remonta, de fato, à fundação do povo romano, do populus romanus — não se trata de conciliar as partes em litígio no sentido de ser abolida pura e simplesmente a diferença entre patriciado e plebeus. Ocorreu o contrário: uma expressa proibição de casamento, mais tarde abolida de novo, entre patrícios e plebeus acentuava a separação, de maneira mais expressa do que antes. Só foi conciliada a relação de inimizade. Mas o aspecto legal específico da regulamentação, no sentido romano, residia em que, a partir de então, um contrato, uma eterna ligação, ligava entre si a patrícios e plebeus. A res publica, a questão pública que surgiu a partir desse contrato e que se tornou a república romana, estava localizada no espaço intermediário entre os parceiros antes inimigos. Portanto, a lei é, aqui, algo que institui de novo relações entre homens, e quando liga homens entre si, não o faz no sentido do direito natural no qual todos os homens são identificados, com um voto da consciência da natureza, por assim dizer, como bons e maus; não no sentido de mandamentos proferidos de fora para todos os homens do mesmo modo, mas no sentido do acordo entre contraentes. E assim como tal acordo só pode realizar-se quando é defendido o interesse de ambas as partes, no caso da protolei romana, também tratava-se de “estabelecer uma lei comum que levasse em conta as duas partes” (Altheim).

Para avaliar corretamente a extraordinária fecundidade política do conceito romano de lei além da coisa moral, que deve continuar secundária em nossa reflexão, é preciso rememorar, em poucas palavras, a concepção grega, moldada de modo bem diferente, daquilo que originalmente é lei. A lei, como os gregos entendiam, não era acordo nem contrato, não surgiu entre os homens no falar de duas partes e no agir e contra-agir e, por conseguinte, não é algo inserido no âmbito político, mas é, em essência, imaginado por um legislador e precisa ser aprovado, antes de poder entrar na verdadeira coisa política. Como tal, é pré-política, no sentido de ser constitutiva para todo o ulterior agir político e o lidar politicamente entre si. Assim como os muros da cidade [com] os quais Heráclito compara a lei, precisam ser construídos primeiro antes de poder existir uma cidade identificável em sua forma e em suas fronteiras, a lei determina a verdadeira fisionomia de seus habitantes, através da qual ela se distingue e sobressai de todas as outras cidades e seus habitantes. A lei é a circunvalação-fronteira produzida e feita por um homem, dentro da qual nasce então o espaço da verdadeira coisa política, no qual muitos se movem livremente. Por isso, Platão invoca Zeus, o protetor das fronteiras e dos marcos, antes de pôr mãos à obra e promulgar suas leis para uma cidade recém-fundada. Trata-se, em essência, de estabelecer fronteira e não de ligação e união. A lei é, por assim dizer, aquilo segundo a qual uma polis forma sua vida a seguir, que não pode ser abolida sem renúncia à própria identidade, e cuja violação é igual à transposição de uma fronteira imposta à existência e que, por conseguinte, é Hibris. A lei não vale no lado de fora da polis, sua força obrigatória estende-se apenas sobre o espaço que ela encerra e limita. Violar a lei e deslocar-se para fora das fronteiras da polis eram, para Sócrates, a mesma e única coisa, no sentido mais textual da palavra.

Nisso é decisivo que a lei — se bem que encerre o espaço no qual os homens vivem entre si sob a renúncia à força — tem algo de violento e, na verdade, tanto no que diz respeito a seu surgimento como à sua essência. Ela surgiu através de produção e não do agir; o legislador é igual ao urbanista e ao arquiteto, não ao estadista e ao cidadão. A lei produz o espaço da coisa política e contém o violento-brutal, próprio de todo produzir.

Como tal, uma coisa feita está em oposição ao que surgiu de maneira natural, não precisando de ajuda alguma, nem de deuses nem de homens, para ser. Assim, é próprio de tudo que não é natureza e não surgiu através de si mesmo, uma lei pela qual é produzido, cada um depois do outro, e entre essas leis não existe nenhuma relação, tampouco quanto entre aquilo por elas imposto. “Uma lei”, assim expressou Píndaro num famoso fragmento (nº 48, ed. Boeckh) também citado por Platão, “é o rei de todos, dos mortais e dos imortais, e, ao criar justiça, desempenha a coisa mais violenta com mão prepotente”. Em relação aos homens a ela subordinados, essa coisa violenta expressa-se porque as leis ordenam, porque elas são os senhores e comandantes da polis na qual mais ninguém tem o direito de dar ordem a outra pessoa de igual categoria. Assim, as leis são pai e déspota de uma só vez, como Sócrates explica ao amigo em Críton (50-51) — e isso não apenas porque a coisa despótica predominava na casa da Antiguidade, determinando também a relação entre pai e filho, de modo a insinuar “pai e déspota”, mas também porque a lei produziu o cidadão, por assim dizer, assim como o pai gerou o filho (pelo menos é tanto pressuposto de sua existência política como o pai é a condição da existência física do filho) e, por conseguinte, na opinião da polis — embora não mais na opinião de Platão e de Sócrates —, cabe a ela a educação do cidadão (Apologie — Nomoi). Porém, como a relação de obediência à lei não tem um fim natural como a relação de obediência ao pai, a relação entre senhor e escravos pode ser comparada de novo, de modo que o cidadão livre da polis era, em relação à lei, quer dizer, em relação à fronteira dentro da qual ele era livre e [onde] situava-se o espaço da liberdade — um “filho e escravo” durante toda a vida. Assim, os gregos, que dentro da polis não estavam subordinados à força do comando de nenhum homem, puderam advertir aos persas para não subestimarem sua força de combate, pois todos eles temiam a lei de sua polis não menos do que os persas ao grande rei. Como quer que se interprete esse conceito grego de lei, de maneira nenhuma a lei poderia servir para construir uma ponte entre um povo e outro, entre uma coletividade política dentro do mesmo povo e outra. Também no caso da fundação de uma nova colônia, a lei da cidade-mãe não bastava, senão que aqueles que se mudavam para fundar uma nova polis precisavam de novo de um legislador, de um nomothetes, de um compositor de leis, antes que o novo âmbito político pudesse ser reconhecido como assegurado. É evidente que, sob essas condições básicas, era simplesmente impossível a formação de um reino — e também é verdade que, através das guerras persas, foi despertada uma espécie de consciência nacional helênica, a consciência do mesmo idioma e da mesma constituição política de toda Hélade. A união de toda Hélade teria conseguido preservar o povo grego do declínio; nesse caso, a verdadeira essência grega também teria declinado.

Talvez se avalie a distância que separava essa concepção de lei enquanto único comandante ilimitado da polis da romana, da maneira mais fácil se nos lembrarmos que Virgílio o Latino, a quem Enéias vai, considera como povo “aquele que sem grilhões e leis… se atém por impulso próprio aos costumes do deus mais velho” (VII, 203-4). A lei só surge ali porque trata-se agora de fazer um contrato entre os estabelecidos e os recém-chegados. Roma foi fundada sobre esse contrato, e se a missão de Roma é “pôr sob a lei toda a orbe” (VII, 231): então, isso não significa outra coisa que atrelar toda a orbe num sistema de contrato para o qual esse povo era o único qualificado, porque sua própria existência histórica derivava de um contrato.

Se se quiser expressar isso cm categorias modernas, então é preciso dizer que no caso dos romanos a política começou como política externa; portanto, exatamente com aquilo que, segundo o pensamento grego, estava situado fora de toda a política. Também para os romanos o âmbito político só podia surgir e existir dentro da coisa legal; mas esse âmbito surgia e se multiplicava ali onde diferentes povos se encontravam entre si. Esse encontro é guerreiro, e a palavra latina populus significava originalmente “mobilização para o exército” (Altheim), mas essa guerra não é o fim, porém o começo da política, ou seja, de um espaço político novo, surgido do tratado de paz e de aliança. Pois esse também é o sentido da “demência” romana tão famosa na Antiguidade, do parcere subiectis, da deferência para com os vencidos através da qual Roma organizou primeiro as regiões e povos da Itália e depois as possessões fora da Itália. Nem mesmo a destruição de Cartago é um reparo a esse princípio levado a efeito na realidade política de verdade, o princípio de jamais aniquilar, mas de sempre aumentar e firmar novos tratados. Aniquilado ali não foi o poder militar, ao qual Cipião ofereceu condições tão inauditamente favoráveis depois da vitória romana a ponto de o historiador moderno perguntar-se se ele agiu mais em seu interesse ou mais no interesse de Roma (Mommsen), e tampouco foi a potência comercial concorrente no Mediterrâneo, mas sim sobretudo “um governo que nunca cumpria a palavra e jamais perdoava” e, desse modo, encarnava o verdadeiro princípio político anti-romano contra o qual a diplomacia romana era impotente e que teria aniquilado Roma, se não tivesse sido aniquilado por Roma. Catão pode ter pensado assim, ou pelo menos de maneira parecida, e lhe seguem os modernos historiadores que justificam a destruição da cidade, a única rival de Roma ainda existente na escala mundial da época.

Não importa como possa aparecer essa justificação: em nosso contexto, é decisivo que justamente a justificação não correspondia ao pensamento romano e não pôde ser imposta pelos historiadores romanos. Teria sido romano deixar a cidade inimiga existir na condição de adversária, da maneira como tentou o mais velho Cipião, o vitorioso sobre Aníbal; romano foi lembrar o destino dos antepassados e, como o destruidor da cidade, Emiliano Cipião, desfazer-se em pranto sobre as ruínas da cidade e, pressentindo a própria desgraça, citar Homero: “Virá o dia em que a santa Ílion cairá, / o próprio Príamo e o povo do rei derrubado à lança”; por fim, romano foi deduzir o começo do declínio a partir dessa vitória, que terminou com um aniquilamento que tornou Roma uma potência mundial, dedução essa que costumavam fazer quase todos os historiadores romanos até Tácito. Em outras palavras, romano foi saber que o outro lado da própria existência, justamente quando se revelou como tal na guerra, deve ser poupado e mantido vivo — não por misericórdia para com os outros, mas sim por causa do aumento da cidade que a partir de então devia abranger também esse estrangeiro numa nova aliança. Então, esse bom-senso determinou que os romanos lutassem, a despeito de todos os seus interesses imediatos, de maneira decidida em favor da liberdade e independência dos gregos, mesmo que tal procedimento, em vista da situação existente de fato nas poleis gregas, se apresentasse muitas vezes como imprudência sem sentido. Não porque se quisesse reparar na Grécia aquilo que se pecou em Cartago, mas porque se julgava justamente o caráter grego como o verdadeiro reverso correspondente ao romano. Para os romanos era como se Heitor encontrasse Aquiles mais uma vez e lhe oferecesse a aliança depois da guerra travada. Só que, infelizmente, nesse meio tempo Aquiles ficou velho e implicante.

Aqui também seria errado adotar parâmetros morais e pensar num sentimento moral que se estenda à coisa política. Cartago foi a primeira cidade com a qual Roma teve a ver: era igual a Roma em termos de poder e, ao mesmo tempo, encarnava um princípio oposto ao romano. Por conseguinte, nessa cidade foi demonstrado pela primeira vez que o princípio político romano do tratado e da aliança não era aplicável em toda parte, que possuía seus limites. Para compreender isso, devemos ter presente que as leis com as quais Roma organizou primeiro as regiões romanas e depois os países do mundo não eram apenas contratos em nossa acepção, senão que visavam a uma ligação duradoura, e que portanto continham, em essência, uma aliança. Desses aliados de Roma, os socii — que eram quase todos os antigos inimigos derrotados — resultou a societas romana que nada tem a ver com sociedade, mas sim com associação e a relação nela contida. O que os romanos aspiravam não era tanto aquele Imperium Romanum, aquele domínio romano sobre povos e terras que, como sabemos desde Mommsen, tocou-lhes mais contra a própria vontade e lhes foi impingido, quanto uma Societas Romana, um sistema de aliança fundado por Roma e infinitamente dilatável, no qual povos e terras estavam ligados a Roma não apenas através de tratados temporários e renováveis, mas sim por alianças eternas. Os romanos falharam no caso de Cartago justamente porque ali só seria possível, no máximo, um tratado entre iguais com os mesmos direitos, uma espécie de coexistência, falando em termos modernos, e porque tal tratado moderno estava fora das possibilidades do pensamento romano.

Isso não deve ser atribuído a nenhum acaso e tampouco a uma burrice. O que os romanos não conheciam e que tampouco podiam conhecer dentro da experiência básica da qual era determinada sua existência política do começo ao fim, eram justamente aquelas características inerentes ao agir que haviam determinado que os gregos se limitassem ao nomos e por lei entendessem não uma ligação e uma relação, mas sim uma fronteira, algo que encerrava, impossível de ser transposto. Pois era inerente ao agir, justamente porque segundo sua essência está sempre produzindo relações e ligações para onde quer que se estenda, um descomedimento e, como Ésquilo achava, uma insaciabilidade que só podia ser mantida dentro dos limites, a partir de fora, através de um nomos, uma lei na acepção grega. O descomedimento, como os gregos achavam, não reside no descomedimento do homem atuante e sua Hibris, mas sim no fato de as relações surgidas através do agir, são e devem ser de tal espécie que entram no ilimitado. Toda relação causada pelo agir recai, porquanto liga homens atuantes, numa rede de relações e relacionamentos na qual desencadeia novas relações, muda de maneira decisiva a constelação de relacionamentos já existentes e segue alastrando-se sempre e pondo em ligação e movimento cada vez mais do que o homem atuante poderia prever. O nomos grego opõe-se a essa investida contra o ilimitado e restringe o negociado àquilo que se passa dentro de uma polis entre homens, e liga de volta na polis aquilo que está situado do outro lado dessa polis, com que a polis tem de entrar em contato em seus feitos. Segundo o modo de pensar grego é só com isso que o agir se torna político, quer dizer, vinculado à polis e com isso à mais elevada forma de convívio humano. Do nomos que limita e impede que ele se volatilize num mesmo sistema de relações que crescem sem cessar, o negociado recebe a forma permanente, que o transforma em proeza, que pode ser lembrado e conservado em sua grandeza, significando sua transcendência. Com isso, o nomos opõe-se à fugacidade de tudo que é mortal, fugacidade característica e sentida de maneira tão nítida pelos gregos da era trágica, a fugacidade da palavra falada assim como do volatilizar-se do ato consumado. Os gregos apagaram essa força produtora de formas de seu nomos, tornando-se incapazes de constituir um reino; não há nenhuma dúvida de que, no final, toda Hélade sucumbiu ao nomos das poleis, das cidades-Estados que decerto se multiplicaram ao colonizar, mas jamais puderam unir-se e juntar-se numa ligação duradoura. Mas se poderia dizer com o mesmo direito que os romanos tornaram-se vítimas de sua lei, de sua lex que, é verdade, lhes possibilitou instituir ligações e alianças duradouras onde quer que chegassem, mas ilimitadas em si e, desse modo, muito contra sua própria vontade e sem nenhuma vontade de poder ou mesmo ambição de poder, lhes impôs o domínio sobre a orbe, domínio esse que, tão logo alcançado, só poderia sucumbir de novo em si mesmo. No entanto, quase reside na natureza da própria coisa que, com a queda de Roma, sucumbisse para sempre o ponto central de um mundo e com ele talvez a possibilidade especificamente romana de centrar o mundo inteiro em torno de um ponto central; ao passo que ainda hoje, quando pensamos no declínio de Atenas, podemos supor que com isso não desapareceu para sempre, de maneira alguma, um ponto central do mundo, mas sim um ápice das possibilidades humanas-mundanas.

Mas os romanos pagaram por sua inaudita capacidade de fazer aliança e ligação duradoura que aumentava sem parar, não apenas com um aumento do império que no final entrou na escala do incomensurável, com o que sucumbiu a cidade e a Itália por ela dominada. Pagaram, de maneira menos catastrófica em termos políticos, porém não menos decisiva em termos intelectuais, com a perda da imparcialidade grego-homérica, com o sentido de grandeza e transcendência em todas as suas formas onde quer que se encontre, com a vontade de se tornar imortais através do glorificar. A historiografia e a poesia dos romanos são romanas num sentido exclusivo, assim como a poesia e a historiografia grega jamais foram gregas, nem mesmo na decadência; trata-se aqui sempre apenas do apontamento da história da cidade e de tudo aquilo que a afeta diretamente; quer dizer, de seu aumento e difusão desde sua fundação: ab urbe condita, ou, como em Virgílio, da narrativa daquilo que levou à fundação da cidade, os feitos e viagens de Enéias: dum conderet urbem. Em certo sentido, se poderia dizer que os gregos, aniquiladores de seus inimigos, eram historicamente mais justos e nos transmitiram muitíssimo mais do que os romanos, que transformavam seus rivais em seus aliados. Mas esse julgamento também é errado quando entendido moralmente. Pois os vencedores romanos compreenderam, de maneira primorosa, o aspecto especificamente moral da derrota e se perguntaram através da fala do inimigo derrotado se eles não seriam “conquistadores do mundo ladrões cujo instinto de destruição não encontra mais terra”, se sua mania de criar relações em toda parte e de levar [a outros] a ligação eterna da lei, também não poderia ser interpretada como sendo [eles] “o único de todos os povos que ambicionava, com igual paixão, a plenitude e o vazio”, de modo que, pelo menos do ponto de vista dos vencidos, poderia parecer muito bem que aquilo que chamavam de “domínio” equivalesse a roubar, matar e furtar, e que a pax romana, a famosa paz romana, fosse apenas o nome para o deserto que deixavam para trás (Tácito, Agrícola). Porém, por mais impressionantes que possam ser essas e semelhantes observações, quando são medidas na moderna historiografia patriota e nacionalista, o lado oposto ostentado por elas é apenas o reverso humano geral de uma vitória, o lado do derrotado na qualidade de derrotado. A concepção de que poderia haver algo simplesmente diferente, que podia ser igual a Roma em grandeza e, por conseguinte, igualmente digno da história retroativa: esse pensamento com o qual Heródoto introduz a guerra persa, estava bem distante dos romanos.

Não importa como quer que se saia a limitação romana característica nessas coisas, é indubitável que o conceito de uma política externa e com isso a concepção de uma ordem política fora das fronteiras do próprio corpo do povo ou da cidade são de origem exclusivamente romana. Essa politização romana do espaço entre os povos está nos primórdios do mundo ocidental; foi ela que criou o mundo ocidental qualificado como mundo. Até os romanos houve muitas civilizações ricas, grandes e extraordinárias, mas o que havia entre elas não era mundo algum mas sim um deserto através do qual, quando as coisas iam bem, relações se tramavam como linhas e atalhos finos através de terra erma, e que quando as coisas iam mal se propagavam em guerras aniquiladoras e arruinavam o mundo existente. Nós estamos acostumados a entender lei e direito no sentido dos dez mandamentos enquanto mandamentos e proibições, cujo único sentido consiste em que eles exigem obediência, que deixamos cair no esquecimento, com facilidade, o caráter espacial original da lei. Toda lei cria, antes de mais nada, um espaço no qual ela vale, e esse espaço é o mundo em que podemos mover-nos em liberdade. O que está fora desse espaço, esta sem lei e, falando com exatidão, sem mundo; no sentido do convívio humano é um deserto. Está na essência das ameaças tanto da política interna como da externa, com as quais estamos confrontados desde o advento das formas de dominação total, que elas fazem desaparecer a verdadeira coisa política tanto da política interna como da externa. Se as guerras deviam tornar-se de novo guerras de extermínio, então desde os romanos a coisa política específica da política externa desapareceu e as relações entre os povos caíram de novo naquele espaço sem lei e sem política, que destrói o mundo e produz o deserto. Pois o que é exterminado numa guerra de extermínio é muitíssimo mais do que o mundo do adversário derrotado; é sobretudo o espaço intermédio entre os parceiros da guerra e entre os povos, que em sua totalidade formam o mundo na terra. Para esse mundo intermédio, que agradece seu surgimento não ao produzir mas sim ao agir dos homens, não vale o que dissemos no começo — que assim como pode ser aniquilado por mão humana também pode ser produzido de novo por mão humana. Pois o mundo das relações que surge a partir do agir, a verdadeira atividade política do homem, é muito mais difícil de se destruir do que o mundo produzido das coisas, no qual o produtor e feitor continua sendo o único mestre e senhor. Mas se esse mundo de relação é devastado, a lei do agir político cujos processos dentro da coisa política só podem ser anulados de fato, com muita dificuldade é substituída pela lei do deserto que, como um deserto entre homens, desencadeia processos devastadores que trazem em si o mesmo descomedimento inerente ao livre agir causador de relações dos homens. Conhecemos esses processos de devastação através da História e quase não conhecemos um caso em que puderam ser levados a uma paralisação, antes de levarem no declínio todo um mundo com toda sua riqueza de relações.

Notas

1. Antiquado para: Deus não criou o homem tanto como criou a família.

2. Em grego no original.

3. Atualização e revisão de O preconceito contra a política

4. Hannah Arendt não se pronunciou em detalhes sobre o discernimento nos manuscritos deixados. Mas, devemos notar que a tese com a qual ela se ocuparia mais tarde com tanta intensidade, ou seja, que “o pensamento político se funda sobre tudo no discernimento”, já é formulada nessa época da primeira fase. Para isso, veja também Fragmento 3c, p. 85 e seg., além da p. 190 no Apêndice e nota 66 no Comentário.

5. No original: …e o sucedido nela

6. Não pôde ser apurado de que “pesquisa” se trata (que também é mencionada em outra parte dos manuscritos aqui publicados, veja pp. 189-190). Isso é muito lamentável porque é provável que a partir dessa fonte se pudessem tirar conclusões para a datação dos fragmentos. Compare também com Comentário p. 151 e seg.

7. No original: que a capacidade formadora do mundo e realizadora.

8. Revisto e atualizado de: Introdução: Tem a Política ainda algum sentido?

9. The Federalist, nº 51 (Madison): “Mas o que é o governo em si a não sero maior de todos os reflexos da natureza humana? Se os homens fossem anjos, não haveria necessidade de governo algum. Se anjos governassem os homens, não seriam necessários controles internos nem externos sobre o governo. Ao moldar um governo que deve ser administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade reside nisso: você precisa primeiro capacitar o governo a controlar os governados e, no passo seguinte, obrigá-lo a se autocontrolar”. Citado segundo: Alexander Hamilton et al.; The Federalist Papers, com uma introdução… de Clinton Rossiter, Nova York: A Mentor Book (ME 2541), 1961, p. 322.

10. Compare Victor Ehrenberg, art. “Isonomia”, in Paulys Real-Encyclopaedie der classichen Altertumwissenschaften, Supl., tomo 7 (1950), p. 293 e segs.

11. Theodor Mommsen, Roemische Geschichte, 3 tomos, 5 ª ed., Berlim: Weidmann, 1868-1870, tm. 1, p.62.

12. A palavra é “philopsychia”. Compare para isso Jacob Burckhardt, Griechische Kulturgeschichte, edição completa, 4 tomos, Munique: dtv (6075-6078), tm. 2, p. 391: “… o amor à vida (philopsychia) é uma repreensão da qual os gregos e os trágicos costumavam preservar seus personagens heroicos… Em geral, o amor à vida era atribuído aos serviçais e escravos como uma característica vil, que os diferenciava dos homens livres”. Essa citação também se encontra num apontamento conservado no episódio de Arendt em Washington.

13. É provável que seja aludida a palavra asty, para a qual H. G. Liddle e R. Scott, A Greek English Lexicon, Oxford, Claredon (ed. 1968, p. 263), documenta o seguinte significado: “no sentido material, o oposto a polis.”

14. Ehrenberg, l. c.

15. No original: de confiança

16. Segundo Thucídides, II, 41; compare Hannah Arendt, Vita Activa oder Vom taetigen Leben, nova edição 1981, Munique-Zurique: Piper (SP 217), 1983, p. 190 e seg. Veja também abaixo, p. 102 e nota 37.

17. Veja “As Cartas transmitidas com o nome de Platãp”, tit. de Hieronymus e Friedirch Mueller, in Platão, Sämtliche Werke, na tradução de Friedrich Schleiermacher com a numeração de Stephanus, 3 tomos, Hamburgo: Rowohrt (RK 1, 14, 27), 1957-1958, tm. I, pp. 285-336, p. 333 (= 2ª Carta, 359b).

18. Edmund Burke, em Thoughts on the Cause of the Present Discontentes (1970: “Eles [isto é, os Whigs no reinado da Rainha Anne, ed.] acreditavam que nenhum homem poderia agir com efeito, senão agisse de comum acordo; que nenhum homem poderia agir de comum acordo, se não agisse com confiança; que nenhum homem poderia agir com confiança, se não estivesse ligado por opiniões comuns, afeições comuns e interesses comuns”. Citado aqui segundo extrato em Edmund Burke, On Government, Politcs and Society, escolhido e editado por B. W. Hill, Nova York: Internat. Library, 1976, pp. 75-119, p. 117.

19. Veja “As Cartas Transmitidas com o nome de Platão”, l. c., p. 303.

20. Refere-se à distância da esfera política, que se presta sobre tudo às atividades produtivas artesanais e artísticas, mas também ao filosofar pensante. Hannah Arendt só chega a falar de leve sobre ambos nos manuscritos deixados (compare p. 101 e seg.). É possível que tivessem previstas explicações correspondentes para a introdução (veja no Apêndice Documento 1), mas não estava planejado o assentado terceiro capítulo “A Posição Socrática”.

21. Veja Fragmento p. 73 e segs., além do Fragmento 3c no qual se faz referência à política externa como uma concepção especificamente romana, p. 122 e segs.

22. A palavra não tem comprovação léxica, tampouco como “apolitéia”.

23. Essa referência poderia relacionar-se com o planejado capítulo “A Posição Socrática”.

24. Tertuliano, Apologeticus, 38: “nec ulla magis res aliena quam publica”. Compare Arendt, Vita Activa, l. c., p. 71

25. No original acompanha o seguinte texto: “Pois, os cristãos não ficam satisfeitos em exercer uma misericórdia que vá além da coisa política; eles têm a pretensão expressa de ‘exercer a justiça’ – e o dar esmolas, do qual fala Mt 6, 1 e segs., e uma concepção judaica bem como do cristianismo primitivo, em conseqüência totalmente da justiça e não da misericórdia – só que essa atividade não deve aparecer diante dos olhos dos homens, não deve ser vista por eles, mas sim permanecer tão firmemente oculta que a mão esquerda não possa saber o que a direita faz, quer dizer que o autor seja excluído como observador de seu próprio feito.”

26. No original: É sobre a base dessa transformação que se realiza no pensamento e ação de Agostinho…

27. Carlos I em seu discurso antes de sua decapitação em 30 de janeiro de 1649: “Para o povo desejo verdadeiramente sua liberdade e libertação tanto quanto qualquer outra pessoa. Mas devo dizer-lhes que sua liberdade e libertação consiste em ter governo – aqulas leis pelas quais sua vida e seus bens possam ser seus ao máximo. Não é ter uma parte no governo. Isso não lhes diz respeito”. Citado aqui de acordo com Hugh Ross Williamson, The Day They Killed the King, Nova York: Macmillan, 1957, pp. 139-144, p. 143. Williamson chama atenção para o fato de que existem várias versões desse discurso.

28. Compare, por exemplo, Leopold von Ranke, Die grossen Maechte (1833), em: o mesmo, Geschichte und Politik: Ausgwaehlte Aufsätze und Meisterschriften, ed. por Hans Hofmann, Stuttgart: Kroener, 1942, pp. 1-53, p. 2. Não pôde ser descoberto se Arendt refere-se diretamente a esse ou outros trechos de Ranke ou se sua afirmação baseia-se apenas numa avaliação geral da obra de Ranke. Compare, porém, Politisches Gespraech (1836), pp. 78-114, p. 97 na mesma antologia de Ranke; o título da página provavelmente formulado pelo editor é “Primado da Política Exterior”; Ranke faz Karl dizer: “Parece que na política as relações exteriores desempenham um grande papel”.

29. Compare Theodor Eschenburg, Staat und Gesellschaft in Deustschland, Stuttgart: Schwab, 1956 p. 19. A citação em Eschenburg é: “O Estado como portador da força é uma instituição da sociedade imprescindível para esta”.

30. Nos fragmentos deixados, esse pensamento é exposto, sobretudo no Fragmento 3d.

31. A formulação obsoleta “levar o conselho” pode ter sido inspirada no poeta de Goethe “Amyntas”, em cuja última linha está escrito: “Quem confiar no amor, leva sua vida a conselho?” Agradeço essa referência à administradora do espólio de Arendt, dra. Lotte Koehler, Nova York.

32. No original: alojamento de confiança.

33. No original, segue-se o seguinte texto entre parêntese: “Infelizmente, Marx foi muito melhor historiador do que teórico e, em geral, só aumentou muito conceitualmente enquanto teoria aquilo que podia ser demonstrado, de maneira objetiva, como tendência histórica. O extinguir-se da coisa pública pertence a essas tendências objetivamente demonstráveis dos tempos modernos.

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